Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:18/04.4BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:06/06/2019
Relator:ALDA NUNES
Descritores: CÉRCEA
PDM
DEMOLIÇÃO
Sumário:· O art 5º, nº 11 do Regulamento do PDM da Lourinhã de 1999 define a cércea como a dimensão vertical da construção contada a partir do ponto de cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado, ou platibanda, ou guarda do terraço.
· Em situações específicas de edifícios implantados em terrenos onde se verifiquem desníveis topográficos, o critério a adotar deve precisar qual a fachada que é tomada como referência, contemplando sempre a coerência global. Quando tal não sucede, socorrendo-nos do Vocabulário Urbanístico da DGOTU, a cércea reporta-se à fachada cuja linha de intersecção com o terreno é a de menor nível altimétrico.
· A medição da cércea feita a partir do ponto da cota média do terreno até à linha de beirado, platibanda ou guarda do terraço, sendo a licenciada, de 9 metros, é legal, por conforme com o PDM.
· A existência de altura de construção acima da cércea permitida, pelo PDM e pela licença de construção [de 9 metros], não legitima o tribunal a determinar a demolição da obra, porque o ato de licenciamento é válido, mas pode condenar o Município a exercer os poderes que o art 106º do RJUE lhe confere, com vista a repor a legalidade da construção.
· Esta condenação – no exercício dos poderes do art 106º do RJUE – ainda se enquadra no objeto do processo, isto é, nos termos da questão a decidir e nos poderes que assistem ao tribunal nos termos do art 71º, nº 2 do CPTA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

Relatório

Carlos.................................... e Maria........................ instauraram ação administrativa especial, sob a forma de ação popular, contra o Município da Lourinhã e contra a contrainteressada D.......... – ............, SA, em que pediram: (i) a declaração de nulidade do despacho de 1.10.2003, do Presidente da CM da Lourinhã, que deferiu o pedido de licenciamento das alterações ao projeto de arquitetura da construção de um edifício multifamiliar, sito na Rua António..............., na ............., Lourinhã, e aprovou os correspondentes projetos de especialidade; e (ii) a condenação do Município a adotar os atos e operações necessários à reconstituição da situação que existiria se o ato impugnado não tivesse sido praticado, ordenando-se, nomeadamente, a demolição da obra executada de acordo com as alterações licenciadas.

A 29.1.2015 foi proferido acórdão que julgou a ação parcialmente procedente e condenou o Município a exercer os poderes que o art 106º do RJUE faz impender sobre o seu Presidente, uma vez que o edificado ultrapassa a cércea de 9 metros que foi licenciada.

Inconformados com a decisão cada uma das partes interpôs um recurso.

O Município da Lourinhã recorreu da decisão por considerar que ela padece de erro na interpretação dos pressupostos de facto e de direito e concluiu as suas alegações do seguinte modo:

«A - Os A.A. não peticionaram a declaração de invalidade do ato originário de licenciamento da construção da contrainteressada, nem lhe assacaram quaisquer vícios, e nem pediram a condenação do Município recorrente a exercer os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 106.º do RJUE, com fundamento no facto de as alterações licenciadas pelo Município não terem sido respeitadas pela contrainteressada aquando da construção do imóvel em causa;

B - Os A.A. peticionaram, sim, a invalidade da licença de autorização de alterações à licença inicial;

C – Ao decidir como decidiu, condenando o recorrente a exercer os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 106.º, pelo facto de considerar que o edificado ultrapassa a cércea de 9 metros que foi licenciada inicialmente, uma vez que tal não foi peticionado pelos A.A., o Tribunal “a quo” foi além do que lhe foi pedido na petição inicial, fazendo a sentença incorrer em nulidade, nos precisos termos do disposto da alínea e) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, ex vi do art.º 1.º do CPTA, devendo o acórdão recorrido ser revogado com esse fundamento.

D - Caso assim não o entendam V.V. Exas, deveria o Tribunal “a quo” ter dado ao Município da Lourinhã a possibilidade de exercer o contraditório, pronunciando-se sobre o eventual desvalor da construção face à licença de construção por si emitida, o que, ao não ter sido feito, faz incorrer o acórdão recorrido em vício de violação de lei, por violação do princípio da igualdade, do princípio do acesso à justiça, do princípio do tratamento equitativo e do princípio do contraditório, devendo o mesmo ser revogado com esse fundamento;

E – Dispõe o n.º 11 do art.º 5.º do RPDM da Lourinhã, que cércea é a “dimensão vertical da construção contada a partir do ponto de cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado, ou platibanda, ou guarda do terraço”;

F – Ao ter decidido que o edifício se encontra implantado em terreno que apresenta desníveis topográficos e se desenvolve por quatro blocos a jeito de escadaria e ultrapassa em algumas partes do edificado a cércea licenciada, o que importa a violação da licença emitida (cfr. página 10 da sentença, último parágrafo), violou o acórdão recorrido o disposto no referido normativo, bem como incorreu em errada interpretação do direito aplicável, por tal devendo ser revogado;

G – Pois o edificado em causa respeita, na opinião do R. recorrente, a cércea licenciada, considerando o facto de o edifício ter sido construído em terreno acentuadamente inclinado e o facto de o edifício estar abaixo, em vários locais, dos nove metros de cércea que foram licenciados pelo R., resultando a cércea do cômputo global da altura de todo o edifício edificado, através da obtenção de uma média, a qual se conta a partir do ponto de cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado, ou platibanda, ou guarda do terraço, de harmonia com o RPDM da Lourinhã e não a partir de cada local do edificado distribuído por vários blocos;

H - Se o Tribunal “a quo” deu como provado que o edificado existente ultrapassa em alguns locais a altura de nove metros e que não se provou que o mesmo ultrapasse os edifícios de acompanhamento, não obstante as fotografias que constam dos autos, e a prova testemunhal produzida em sede de audiência, que aponta para que o edifício em questão fica abaixo da altura dos edifícios de acompanhamento, resultará de uma observação mediana de tal prova documental constante dos autos que aqueles edifícios de acompanhamento têm uma altura superior à do edificado da contrainteressada;

I – Tendo, pois, havido uma errada apreciação da matéria de facto e da prova documental constante dos autos quanto a tal facto;

J - Ainda que assim não fosse, se o Tribunal “a quo” considerava importante para a boa decisão da causa saber qual a cércea dos edifícios de acompanhamento em relação ao edifício da contrainteressada, poderia ter usado da faculdade de convite dos R.R. e ou dos peritos para esclarecimento de tal facto, o que não fez;

K– Pelo que se requer a revogação da decisão judicial recorrida por ambiguidade e obscuridade da respetiva fundamentação, no sentido exposto, de harmonia com o disposto na alínea c) do nº 1 do artº 615º do CPC, ex vi do artº 1º do CPTA».

D........... recorreu da decisão e nas alegações de recurso enunciou as conclusões seguintes:

«I - Os A.A. não peticionaram a declaração de invalidade do ato originário de licenciamento da construção da contrainteressada, nem lhe assacaram quaisquer vícios, nem pediram a condenação do Município a exercer os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 106.º do RJUE, com fundamento no facto de as alterações licenciadas pelo Município não terem sido respeitadas pela contrainteressada, aqui recorrente, aquando da construção do imóvel em causa;

II - Os A.A. peticionaram a invalidade da licença de autorização de alterações à licença inicial;

III – Ao decidir como decidiu, condenando o Município a exercer os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 106.º, pelo facto de considerar que o edificado ultrapassa a cércea de 9 metros que foi licenciada inicialmente, uma vez que tal não foi peticionado pelos A.A., o Tribunal “a quo” foi além do que lhe foi pedido na petição inicial, fazendo a sentença incorrer em nulidade, nos precisos termos do disposto da alínea e) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, ex vi do art.º 1.º do CPTA, devendo o acórdão recorrido ser revogado com esse fundamento.

IV - Deveria o Tribunal “a quo” ter dado ao R Município a possibilidade de exercer o contraditório, pronunciando-se sobre o eventual desvalor da construção face à licença de construção por si emitida, o que, ao não ter sido feito, faz incorrer a sentença recorrida em vício de violação de lei, por violação do princípio da igualdade, do princípio do acesso à justiça, do princípio do tratamento equitativo e do princípio do contraditório, devendo a mesma ser revogada com esse fundamento;

V - Dispõe o n.º 11 do art.º 5.º do RPDM da Lourinhã, que cércea é a “dimensão vertical da construção contada a partir do ponto de cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado, ou platibanda, ou guarda do terraço”.

VI - Ao ter decidido que o edifício se encontra implantado em terreno que apresenta desníveis topográficos e se desenvolve por quatro blocos a jeito de escadaria e ultrapassa em algumas partes do edificado a cércea licenciada, o que importa a violação da licença emitida (cfr. Página 10 da sentença, último parágrafo), violou a sentença recorrida o disposto no referido normativo, bem como incorreu em errada interpretação do direito aplicável, por tal devendo ser revogada;

VII - O edificado em causa respeita, na opinião da recorrente, a cércea licenciada, considerando o facto de o edifício ter sido construído em terreno acentuadamente inclinado e o facto de o edifício estar abaixo, em vários locais, dos nove metros de cércea que foram licenciados pelo Município, resultando a cércea do cômputo global da altura de todo o edifício edificado, através da obtenção de uma média, a qual se conta a partir do ponto de cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado, ou platibanda, ou guarda do terraço, de harmonia com o RPDM da Lourinhã e não a partir de cada local edificado distribuído por vários blocos.

VIII - O Tribunal “a quo” deu como provado que o edificado existente ultrapassa em alguns locais a altura de nove metros e que não se provou que o mesmo ultrapasse os edifícios de acompanhamento, não obstante as fotografias que constam dos autos, e a prova testemunhal produzida em sede de audiência, que aponta para que o edifício em questão fica abaixo da altura dos edifícios de acompanhamento, resultará de uma observação mediana de tal prova documental constante dos autos que aqueles edifícios de acompanhamento têm uma altura superior à do edificado da contrainteressada;

IX - Houve uma errada apreciação da matéria de facto e da prova documental constante dos autos quanto a tal facto;

X - Se o Tribunal “a quo” considerava importante para a boa decisão da causa saber qual a cércea dos edifícios de acompanhamento em relação ao edifício da contrainteressada, poderia ter usado da faculdade de convite do R. e ou dos peritos para esclarecimento de tal facto, o que não fez;

XI - Deve a decisão judicial recorrida ser revogada por ambiguidade e obscuridade da respetiva fundamentação, de harmonia com o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, ex vi do art.º 1.º do CPTA».

Também os autores recorreram da decisão e nas alegações de recurso concluíram do seguinte modo:








O Município contra-alegou o recurso dos autores, concluindo:

A – Não interessando ao julgamento da causa os trabalhos preparatórios do RPDM da Lourinhã, bem andou o Tribunal “a quo” ao indeferir o requerimento de prova dos A.A., nos termos do qual requereram ao tribunal que ordenasse ao R. a junção dos mesmos;
B - É patente que no terreno onde foi erigida a obra posta em causa pelos A.A. existiu uma edificação, tanto bastando para se considerar que não estávamos perante um terreno devoluto para efeitos do processo de licenciamento apresentado pela D...........;
C – Não existe, assim, qualquer erro de interpretação, nesse aspeto, pelo Tribunal recorrido;
D - Quanto aos demais vícios que os A.A. assacam à sentença recorrida, os A.A. não peticionaram a declaração de invalidade do ato originário de licenciamento da construção da contrainteressada D..........., nem lhe assacaram quaisquer vícios, nem peticionaram a condenação do Município a exercer os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 106.º do RJUE, com fundamento no facto de as alterações licenciadas pelo Município não terem sido respeitadas pela contrainteressada aquando da construção do imóvel em causa;
E - O que foi peticionado pelos A.A. foi a declaração de invalidade da licença de autorização de alterações à licença inicial;
F - A sentença recorrida não padece, pois, dos vícios que lhe assacados pelos A.A.»

A contrainteressada contra-alegou o recurso dos autores e formulou as seguintes conclusões:

«1º. Não têm razão os autores, uma vez que a sentença de que recorrem não padece dos vícios que lhe apontam.

2º. Não houve uma incorreta apreciação da prova testemunhal ou documental.

3º. O pedido dos autores limitava-se à declaração de invalidade da licença de autorização de alterações à licença inicial e nada mais.

4º. Pedido esse que tinha de ser improcedente, pelas razões pelo Município e pela D.......... explanadas».


O Exmo. Procurador Geral Adjunto junto deste TCAS, notificada nos termos e para efeitos do art 146º, nº 1 do CTA, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

O parecer foi notificado às partes.

Colhidos os vistos vêm os autos à Conferência para decisão.

Fundamentação
De facto.
Na sentença recorrida foi fixada a seguinte matéria de facto:
A)
Os AA. são donos da fracção autónoma designada pela letra..., Bloco ..., correspondente ao ... andar ... do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua .........., Praia da Areia Branca, Freguesia e Conselho da Lourinhã, descrito na Conservatória do Registo Predial da Lourinhã sob o número ........ - al. A) da matéria assente;
B)
A D..........., SA (de ora em diante abreviadamente designada de D.....) é dona do prédio misto sito na Praia da Areia Branca, descrito na Conservatória do Registo Predial da Lourinhã, sob o n,° ...../......, e inscrito na matriz sob os artigos ... e ... da Secção ... e .... - al. B) da matéria assente;
C)
O prédio misto referido em B. está descrito na Conservatória do Registo Predial da Lourinhã pela Ap. .../..., como sendo composto por «terra de cultura arvense - 2200 m2 - casa de rés-do- chão e 1º andar, lavandaria e logradouro» — al. C) da matéria assente;
D)
O prédio misto referido em B. está descrito na Conservatória do Registo Predial da Lourinhã pela Ap. .../..., como sendo composto por «Lote de terreno para construção urbana con 3,971,05 m2» - al. D) da matéria assente;
E)
No prédio misto referido em B. existiu uma «casa de rés-do-chão e 1º andar»— al. E) da matéria assente;
F)
0 prédio referido em B, situa-se em área classificada como espaço urbano de nível 2 - al. F) da matéria assente;
G)

Em 21.05.2001 a D..... apresentou junto da Câmara Municipal da Lourinhã (de ora em diante abreviadamente designada de CML) um pedido de licenciamento de obras particulares, assinalando no campo «natureza da obra» a opção «Construção nova», que mereceu o n.° de processo .../... - al. G) da matéria assente;
H)

Em 04.03.2002, por despacho do Sr. Presidente da CML, foi aprovado o projecto de arquitectura referente ao licenciamento referido em G. — al. H) da matéria assente;
I)
Em 28.06,2002 a D..... apresentou junto da CML a aprovação dos projectos de especialidades referente ao licenciamento referido em G. — al, I) da matéria assente;
J)
Em 29.07.2002, por despacho do Sr. Presidente da CML, foi deferido o pedido de licenciamento referido em G. - al. J) da matéria assente;
K)
Em 26.09.2002 foi emitido o alvará de licença de construção relativo ao pedido de licenciamento,
referido em G. que teve o n.° ... - al. K) da matéria assente;

L)
O alvará de licença de construção referido em K. indica ter sido concedido para uma construção nova, em habitação multifamiliar, com área de 5.645.90, com cércea de 9 metros e para 40 fogos - al. L) da matéria assente;
M)
Em 18.10.2002 foi comunicado à CML o início das obras de construção no prédio referido em B. - al. M) da matéria assente;
N)
Em 03.04.2003 a D..... apresentou junto da CML um pedido de licenciamento de diversas obras de alterações aos projectos inicialmente aprovados, juntando diversos documentos, designadamente, a ficha estatística de edificação, as plantas de perfis, a planta implementação, a planta com o levantamento topográfico e o aditamento à memória descritiva — al. N) da matéria assente;
O)
As obras de alterações referidas em N, implicavam, designadamente, a deslocação de dois apartamentos do último piso do primeiro corpo para o último piso do segundo corpo e o «assinalar» de outros dos dois apartamentos, em paralelo com os anteriores, no último piso do segundo corpo - al. O) da matéria assente;
P)
Em 20.05.2003 foi elaborada uma Informação pela DOTU da CML, subscrita pelo Arq..........., relativamente ao pedido de licenciamento de diversas obras de alterações apresentado pela D..... em 03.04,2003, que refere designadamente o seguinte: «Analisadas as peças anexas a fls. 736, julga-se de informar que não se vê inconveniente na sua aceitação, propondo-se a aprovação do projecto de arquitectura, devendo apresentar o projecto de especialidades no prazo de 180 dia» - al. O) da matéria assente;
Q)
Sob a Informação acima referida foi exarado o seguinte despacho do Presidente da CML, datado de 29.07.2003: «Tendo em conta o parecer solicito as seguintes informações: 1) Se o prédio a construir com as alterações cumpre o PDM e demais legislação em vigor...» — al. Q) da matéria assente;
R)
Em 29.07.2003 foi elaborada uma Informação pela DOTU da CML, subscrita pelo Arq.........., à qual foram anexas várias fotocópias relativas ao conceito de cércea no vocabulário urbanístico, que refere designadamente o seguinte: «Em resposta ao Sr. Presidente, julga-se informar que: 1 - Quanto à cércea, julga- se referir que nos terrenos confinantes a norte existem dois edifícios de 9.00m e que esta foi verificada de acordo com o Vocabulário Urbanístico da Direcção Geral do Ordenamento do Território, junto em anexo» - al. R) da matéria assente;
S)
Em 01.08.2003, por despacho do Sr. Presidente da CML, foram aprovadas as alterações aos projectos de arquitectura relativas ao pedido de licenciamento de diversas obras de alterações, referido em N. — al. S) da matéria assente;
T)
Em 18.08.2003 a D..... apresentou junto da CML o pedido de aprovação das alterações aos projectos de especialidades, relativas ao pedido de licenciamento de diversas obras de alterações, referido em N. — al, T) da matéria assente;
U)
Em 01.10.2003 foi exarado sob o pedido apresentado pela D..... em 18.08.2003 o despacho de «deferido» do Sr. Presidente da CML - al. U) da matéria assente;
V)
Em 01.10.2003 o alvará que titulava o projecto inicialmente apresentado foi objecto de um aditamento que titula as alterações ao projecto - al. v) da matéria assente;
W)
A CML antes de deferir o pedido de licenciamento de obras, referido em G., consultou diversas entidades relativamente aos projectos de especialidades de electricidade, de gás e de telefones -
al. W) da matéria assente;
X)
As obras de alterações aos projectos licenciadas através do despacho de 01.10.2003 do Presidente da CML têm um índice de ocupação ou de utilização de 0,83% - al. X) da matéria assente;
Y)
Na ficha de estatística de edificação, apresentada pela D..... na CML, relativa ao pedido de licenciamento de obras de alterações aos projectos, referido em N,, é indicado um índice de densidade habitacional bruta correspondente a 93 fogos/ha - al. Y) da matéria assente;
Z)
A ficha estatística de edificação, apresentada pela D.... na CML, relativa ao pedido de licenciamento de obras de alterações aos projectos, referido em O., indica que a construção em causa tem uma cércea de 9 metros - al. Z) da matéria assente;
AA)
O pedido de licenciamento de obras de alterações aos projectos, referido em N., é relativo a uma construção com frente para a via pública - al. AA) da matéria assente;
BB)
0 pedido de licenciamento de obras de alterações aos projectos, referido em N., é relativo a uma construção que se situa num local com desníveis topográficos - al. BB) da matéria assente;
CC)
O pedido de licenciamento de obras de alterações aos projectos, referido em N,, é relativo a uma construção que se situa num intervalo entre duas outras construções - al CC) da matéria assente;
DD)
Em 04.11.2003 o mandatário dos AA. teve conhecimento da prática do acto impugnado, mediante a consulta ao PA - al. DD) da matéria assente;
EE)
Em 10.11.2003 foi intentado pelos ora AA. no TAF de Lisboa um pedido de suspensão de eficácia do despacho de 01.10.2003 do Presidente da CML, que licenciou as alterações ao projecto inicial ao âmbito do processo n.° .../..., pedido que teve o n.° de processo 322/03 e correu termos pela 1ª secção do TAC de Lisboa - al. EE) da matéria assente;
FF)
Em 12.01.2004 foi proferida sentença no âmbito processo 822/03, pela 1ª secção do TAC de Lisboa, que rejeitou o pedido por inadmissibilidade do meio utilizado - al. FF) da matéria assente;
GG)
Às 20.26h de 05.01.2004 foi enviada por mail a PI da presente acção, sob a qual foi aposto o carimbo de entrada no TAF de Lisboa com data de 06.01.2004 — al. GG) da matéria assente;HH)
A altura da edificação, medida nos termos do n.° 11 do art.° 5.° do RPDM do Município de Lourinhã, isto é, a partir do ponto de cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado, ou platibanda, ou guarda do terraço, excede os nove metros em várias partes dos blocos por que se desenvolve - resposta aos quesitos l,°e 5.°;
II)
Através de deliberação tomada em 11/02/2002, a Câmara Municipal de Lourinhã delegou no Presidente da Câmara vários poderes, entre os quais os relativos ao licenciamento de obras de construção, reedifícação e demolição de edifícios — doc. de fls, 126.
*

Não se provou:
- que a altura da edificação ultrapasse a dos edifícios confinantes ou a dos edifícios de acompanhamento;
- que as alterações aos projetos licenciados implicam uma construção que confina com quaisquer outros edifícios pré-existentes».

O Direito
São objeto do recurso dos autores: (i) o despacho proferido em 1.4.2008, na parte em que indeferiu a produção de prova por meio de junção aos autos do processo administrativo relativo à elaboração do PDM da Lourinhã em vigor à data da prática do ato de licenciamento impugnado e (ii) a sentença proferida a 29.1.2015 na parte em que os autores decaíram.
Ao despacho os recorrentes imputam violação do princípio da investigação (do inquisitório ou da verdade material).
À sentença os recorrentes apontam erro de julgamento de direito, por violação do disposto no art 30º, nº 1.2, al d2) e nº 1.2, al a) do RPDML, porque entendem que a construção foi efetuada «em terreno devoluto» sujeito a um índice de utilização máxima de 0,80% (conclusões 6 a 16); e também por violação do art 30º, nº1.2, al e), porque a cércea da construção da contrainteressada é superior a 9 metros (conclusões 17 a 26). A decisão recorrida, dizem ainda, violou o disposto no art 106º do RJUE e os arts 3º e 95º do CPTA, porque não definiu as disposições do RPDML que seriam aplicáveis à construção e não condenou o Município e a demandada a demolir ou a executar os trabalhos de correção ou de alteração necessários a cumprir o RPDML.

*
O Município e a contrainteressada recorrem do acórdão proferido a 29.1.2015, assacando-lhe nulidades, erro de julgamento de facto e de direito.
*
*
As questões a decidir neste processo, tal como vêm delimitadas pelas alegações e contra-alegações dos três recursos e respetivas conclusões, são:
· O erro de julgamento do despacho de 1.4.2008;
· as nulidades do acórdão, que «foi além do que foi pedido na petição inicial», ao decidir, sem os autores lho terem requerido, que «o edificado ultrapassa a cércea de 9 metros que foi licenciada» [art 615º, nº 1, al e) do CPC], e por «ambiguidade e obscuridade da respetiva fundamentação», ao dar como não provado que o edifício da contrainteressada ultrapasse a altura dos edifícios confinantes ou de acompanhamento e, em simultâneo, afirmar que a demandada e a contrainteressada não dizem qual seria a medida concreta da cércea [art 615º, nº 1, al c) do CPC];
· o erro de julgamento da matéria de facto;
· o erro de julgamento da matéria de direito, por erro na interpretação do art 5º, nº 11 do Regulamento do PDM da Lourinhã;
· violação do princípio da igualdade, do acesso à justiça, tratamento equitativo, do contraditório;
· o erro de interpretação do art 30º, nº 1.2, als d2), a), e) do RPDML, do art 106º do RJUE e dos arts 3º e 95º do CPTA.


O despacho de 1.4.2008.
No requerimento probatório os autores solicitaram ao tribunal o seguinte:
«Uma vez que está em discussão nos presentes autos a interpretação de direito local (a interpretação e aplicação do PDM da Lourinhã que constitui um instrumento legal de natureza regulamentar), o qual está de acordo com a lei sujeito a prova quer ao nível da sua existência quer ao nível do seu conteúdo (art 348º do Código Civil), requer-se, nos termos e para efeitos do disposto nos arts 528º do CPC, que a requerida pública seja intimada para juntar aos autos, a título devolutivo, o processo administrativo relativo à elaboração do PDM da Lourinhã em vigor à data da prática do ato de licenciamento impugnado, uma vez que o seu conteúdo releva para efeitos da sua correta interpretação e aplicação e, consequentemente, para a delimitação do seu exato conteúdo».
O tribunal recorrido indeferiu e bem a pretensão dos autores.
A questão em litigio – de legalidade de licenciamento municipal de obra particular (da contrainteressada) – prende-se, como os autores referem no requerimento, com a aplicação do Plano Diretor Municipal da Lourinhã, ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 131/99, de 26.10.
Este instrumento de ordenamento do território foi publicado no diário da república nº 250, I série B, de 26.10.1999. Portanto, a respetiva existência e conteúdo resulta inequívoca da publicidade dada no jornal oficial, sendo despropositada a alegação do disposto no art 348º do Código Civil.
E, mais, atento o objeto do litígio, o regulamento do PDM da Lourinhã não constitui um meio de prova, nos termos do art 341º do Código Civil, com vista a demonstrar a realidade de factos (que os autores não identificam), antes constitui o bloco legal com o qual se tem de conformar a decisão de licenciamento que foi impugnada.
Efetivamente a lide tem como questão de fundo aferir do cumprimento dos índices urbanísticos estabelecidos no PDM da Lourinhã, designadamente, no que à cércea respeita.
Conforme dispõe o art 85º, al j) do DL nº 380/99, de 22.9, na redação que lhe foi introduzida pelo DL nº 310/2003, de 10.12 (pois o ato de licenciamento data de 1.10.2003), o plano diretor municipal define um modelo de organização municipal do território, nomeadamente estabelecendo: a especificação qualitativa e quantitativa dos índices, indicadores de parâmetros de referência, urbanísticos ou de ordenamento, a estabelecer em plano de urbanização e plano de pormenor, bem como os de natureza supletiva aplicáveis na ausência destes.
Assim, não havendo plano de urbanização nem plano de pormenor aplicáveis, aplica-se subsidiariamente para as licenças de construção o disposto no referido art 85º, devendo observar-se os índices do PDM.
Tanto basta para julgarmos improcedentes as conclusões nº 1 a 5 do recurso dos autores.

O acórdão.
Nulidades do acórdão.

O Município e a contrainteressada apontam duas nulidades ao acórdão recorrido.
Por um lado, entendem que o tribunal de 1ª instância condenou o Município, a exercer os poderes que lhe são conferidos pelo art 106º do RJUE, sem que tal lhe tivesse sido pedido pelos autores. Incorrendo assim o acórdão em nulidade prevista no art 615º, nº 1, al e) do CPC.
Por outro lado, consideram a decisão recorrida ambígua, na medida em que o tribunal deu como provado que o edifício da contrainteressada ultrapassa em alguns locais a altura de nove metros e que não se provou que o mesmo ultrapasse os edifícios de acompanhamento, mas na fundamentação jurídica diz não se aplicar o disposto nos art 29º, nº 2, al c) e art 30º, 2.3 do PDM da Lourinhã e em simultâneo que os demandados não alegaram qual a cércea dos edifícios de acompanhamento em relação ao edifício da contrainteressada.
Os recorrentes constroem esta nulidade, por ambiguidade ou obscuridade, a partir daquilo que afirmam ser um erro da decisão da matéria de facto. Mas, se há erro no acórdão é porque o recorrente percebeu os fundamentos da decisão, apenas não concorda com os mesmos, ou seja, a decisão é inteligível, sendo percetível o raciocínio que conduziu à parcial procedência do pedido.
Assim sendo, o acórdão recorrido não incorre na nulidade prevista no art 615º, nº 1, al c) do CPC.

Analisemos agora a nulidade prevista no art 615º, nº 1, al e) do CPC, para decidirmos se o juiz condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Nos termos do art 609º, nº 1 do CPC, o juiz não pode, na sentença, pronunciar-se sobre mais do que o que foi pedido ou sobre coisa diversa daquela que foi pedida (cfr José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, 2º vol., Coimbra Editora, 2001, pág. 648).

O objeto da sentença coincide assim com o objeto do processo.

No caso os autores pedem a declaração de nulidade ou a anulação do despacho de 1.10.2003, que deferiu o pedido de licenciamento das alterações ao projeto de arquitetura da construção de um edifício multifamiliar, e a condenação do Município a adotar os atos e operações necessárias à reconstituição da situação que existiria se o ato impugnado não tivesse sido praticado, ordenando-se, nomeadamente, a demolição da obra executada de acordo com as alterações licenciadas.

O acórdão conclui «que o licenciamento das alterações prevê que a cércea é de nove metros. O que se prova ainda é que o edifício se encontra implantado em terreno que apresenta desníveis topográficos e se desenvolve por quatro blocos a jeito de escadaria e ultrapassa em algumas partes do edificado a cércea licenciada, o que importa a violação da licença emitida.

(…) Perante tal situação de incumprimento do licenciado, cabe ao Presidente da Câmara exercer os poderes previstos no art 106º do RJUE».

Este preceito legal confere ao Município o poder de determinar a demolição de construções ilegais, nomeadamente por terem sido executadas em violação da licença de construção.

Ou seja, o tribunal constata que não é o licenciamento das obras de alteração que viola o PDM da Lourinhã, mas o edifício construído pela contrainteressada, esse sim, viola o PDM e a licença de construção com o respetivo aditamento, de 1.10.2003. Donde o tribunal não pode determinar a demolição da obra porque o ato de licenciamento é válido, mas pode condenar o Município a exercer os poderes que o art 106º do RJUE, com vista a repor a legalidade da construção.

O que significa que a decisão recorrida não ultrapassou o objeto do processo, isto é, os termos da questão a decidir, por se enquadrar ainda no pedido de condenação à prática de atos e operações necessárias à reconstituição da situação e nos poderes que assistem ao tribunal nos termos do art 71º, nº 2 do CPTA.

Pelo que, não se verifica a nulidade da decisão recorrida do art 615º, nº 1, al e) do CPC.

Erro de julgamento da matéria de facto
O Município e a contrainteressada alegam ter havido erro na apreciação da matéria de facto do quesito 3º e na apreciação da prova documental – fotografias – e testemunhal que permitia julgar provado que «a altura do edifício da contrainteressada fica abaixo da dos edifícios de acompanhamento».

A matéria controvertida no processo foi:
1. As obras de alterações aos projetos licenciadas através do despacho de 01.10.2003 do Presidente da CML implicam uma construção com uma altura superior a 9 metros, altura contada a partir do ponto de cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado ou platibanda ou guarda do terraço, atendendo-se à fachada cuja linha de intersecção com o terreno for a de menor nível altimétrico?
2. A altura acima referida não ultrapassa a dos edifícios confinantes?
3. A altura acima referida é superior à da dos edifícios de acompanhamento?
4. As obras de alterações aos projetos licenciadas através do despacho de 01.10.2003 do Presidente da CML implicam uma construção que confina com quaisquer outros edifícios pré-existentes?
5. As obras de alterações aos projetos licenciadas através do despacho de 1.10.2003 do Presidente da CML, relativamente ao edifício que compõe o primeiro corpo e a qualquer um dos três edifícios que compõem o segundo corpo, implicam uma construção com uma altura superior a 9 metros, altura contada a partir do ponto de cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado ou platibanda ou guarda do terraço, atendendo-se à fachada cuja linha de interseção com o terreno for a de menor nível altimétrico?
A resposta do tribunal foi:
«Quesitos 1º e 5º: provado que a altura da edificação, medida nos termos do art 5º, nº 11 do RPDML do Município da Lourinhã, isto é, a partir do ponto de cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado, ou platibanda, ou guarda do terraço, excede os nove metros em várias partes dos blocos por que se desenvolve.
Quesitos 2º e 4º: não provados por não existirem edifícios que confinem com o da contrainteressada.
Quesito 3º: não provado, por não existirem elementos que o demonstrem».

As partes não reclamaram da decisão da matéria de facto.

A impugnação da matéria de facto tem lugar nos casos enunciados no artigo 662º, nº 1 do CPC (ex vi art 140º, nº 3 do CPTA), o qual dispõe que [a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Por outro lado, dispõe o art 640º, nº 1 do CPC que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Tal como vem sendo entendido pela Doutrina e pela Jurisprudência, resulta deste preceito o ónus de fundamentação da discordância quanto à decisão de facto proferida, fundamentando os pontos da divergência, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, abarcando a totalidade da prova produzida em primeira instância.
Ou seja, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto tem como objetivo colocar em crise a decisão do tribunal recorrido, quanto aos seus argumentos e ponderação dos elementos de prova em que se baseou.
Quer isto dizer que incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso, podendo transcrever os excertos relevantes. Por seu turno, o recorrido indicará os meios de prova que entenda como relevantes para sustentar tese diversa, indicando as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
No caso, nem o Município nem a contrainteressada cumpriram o ónus de indicar as fotografias, as testemunhas e as passagens dos depoimentos que impunham decisão de facto diversa da recorrida, nos termos e para efeitos do art 640º, nº 1, al b) do CPC.
E o que fizeram foi limitar-se a invocar, genericamente, a prova que consideram justificar a alteração dos factos. Os recorrentes não podem, ao contrário do que lhes exige a lei processual civil, impor a sua convicção sobre a prova de factos que apenas genericamente foram alegados. Na verdade, é impercetível como se pretende impugnar a decisão da matéria de facto, sobre a cércea de um edifício e a cércea dos edifícios confinantes ou a cércea dos edifícios de acompanhamento, com vista ao enquadramento jurídico dos factos no art 29º, nº 2 e no art 30º, nº 2 do PDM da Lourinhã, sem indicar a concreta medida dos edifícios confinantes ou de acompanhamento. E, persistindo na falta de indicação da medida concreta da cércea, vir pedir a reapreciação de meios de prova sem os especificar, nem indicar as passagens da gravação da prova oral em que os recorrentes se fundam, não confere aos recorrentes o direito a verem reapreciada a prova por este tribunal.
A prova do facto – o edifício da contrainteressada fica abaixo da altura dos edifícios de acompanhamento – também não resulta inelutável a partir dos documentos fotografias que constam dos autos. Este meio de prova só pode relevar se conjugado com outros, no caso, com prova testemunhal e/ ou pericial sobre a cércea dos edifícios de acompanhamento.
Assim sendo, em face da alegação genérica do facto a provar e da omissão de indicação dos depoimentos e das passagens em que os recorrentes alicerçam a prova e que justificam a modificação da decisão de facto, não cumpre reapreciar os factos.
Pelo que improcedem as motivações (arts 42º a 45º do Município) e conclusões (als H) e J) do Município/ als VII, VIII, IX, X da contrainteressada) dos recursos quanto ao invocado erro no julgamento de facto.

Erro de julgamento de direito.

Os três recursos em apreço questionam a decisão recorrida, por os recorrentes discordarem do enquadramento jurídico da construção da contrainteressada face ao Regulamento do Plano Diretor Municipal da Lourinhã de 1999 (ratificado por Resolução do Conselho de Ministros nº 131/99, publicado no DRE, I série B, nº 250, de 26.10.1999), que passamos a designar PDM da Lourinhã.

Primeiro, o tribunal recorrido decidiu que ao caso não se aplica o disposto no art 30º, nº 1.2, al d2) do PDM, porque a construção não foi efetuada em terreno devoluto, antes o edifício novo foi construído em terreno onde anteriormente existia uma casa de rés-do-chão e 1º andar.

Depois, o tribunal entendeu que o Município e a contrainteressada não lograram provar factos que permitissem a aplicação ao caso do disposto no art 29º, nº 2, al c), nem no art 30º, nº 2.3 do PDM, porque se desconhece a média da cércea dos edifícios confinantes e a cércea dos edifícios de acompanhamento.

Por fim, o tribunal decidiu que não se encontrava violado o art 30º, nº 1.2, al e) do PDM, porque o licenciamento das alterações prevê a cércea de 9 metros, nos termos da definição do art 5º, nº 11 do PDM. E, deste modo, uma vez que a situação de facto existente – altura da edificação excede os 9 metros em várias partes dos blocos por que se desenvolve – viola o disposto no licenciamento e nos arts 5º, nº 11 e 30º, nº 1.2, al e) do PDM da Lourinhã, cabe ao Presidente da CM da Lourinhã exercer os poderes previstos no art 106º do RJUE.

Vejamos se este entendimento é de manter.

O art 5º, nº 11 do PDM da Lourinhã define a cércea como a dimensão vertical da construção contada a partir do ponto de cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado, ou platibanda, ou guarda do terraço.

Esta definição e caraterização de cércea é a constante do Vocabulário Urbanístico da DGOTU, tal como refere a informação dos serviços do Município de 29.7.2003 (cfr al R) dos factos provados).
Em situações específicas de edifícios implantados em terrenos onde se verifiquem desníveis topográficos, como sucede in casu – al BB) dos factos provados, o critério a adotar deve precisar qual a fachada que é tomada como referência, contemplando sempre a coerência global. Sucede que o PDM da Lourinhã não diz, nestas circunstâncias de terrenos com desníveis, qual a fachada que toma como referência. Então, socorrendo-nos do Vocabulário Urbanístico da DGOTU, a cércea reporta-se à fachada cuja linha de intersecção com o terreno é a de menor nível altimétrico.
No caso, o que sabemos é que a construção tem frente para a via pública, situa-se num local com desníveis topográficos, fica num intervalo entre duas construções e trata-se de um edifício que se desenvolve por quatro blocos (cfr als N), O), AA), BB), CC) dos factos provados).
Deste modo, a cércea foi contada e bem a partir do ponto de cota média do terreno. Ou seja, a dimensão vertical da construção não foi medida desde a cota natural do solo.
E nesta perspetiva o município licenciou as obras de alterações com uma altura de construção, desde a cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado, ou platibanda, ou guarda do terraço, com 9 metros.
O que significa que a cércea do edifício da contrainteressada, considerando tratar-se de apenas um edifício, com frente para a via pública, situado num terreno com desníveis topográficos e entre duas outras construções, onde existiu uma casa de rés-do-chão e 1º andar e um terreno de cultura, nos termos dos arts 5º, nº 11 e 30º, nº 1.2, al e) do PDM da Lourinhã, é de 9 metros.
A construção da contrainteressada não foi efetuada em terreno devoluto, como provam os factos – cfr als B), C), D), E), G), N) do probatório. Pelo que não tem aplicação o disposto no art 30º, nº 1.2, al d2) do PDM da Lourinhã [No caso de lotes devolutos com frente para a via pública, existentes e não decorrentes de operações de loteamento, construção em lotes ou parcelas, já existentes, resultante do preenchimento de espaços intersticiais: 0,80 (aplicado sobre uma faixa de 40m de profundidade a contar da via pública), tendo de respeitar cumulativamente somente a cércea máxima prevista].

Contrapõem os recorrentes autores que, se não estamos perante lotes devolutos com frente para a via pública, existentes e não decorrentes de operações de loteamento, então o projeto e a obra a executar terá de dar cumprimento aos demais parâmetros urbanísticos previstos no art 1.2 do PDM da Lourinhã, designadamente, a densidade habitacional bruta máxima prevista de 30 fogos por hectare. O que não aconteceu no caso, em que o índice de densidade habitacional bruta corresponde a 93 fogos/ha, em violação clara do art 30º, nº 1.2, al a) do PDM da Lourinhã. Este vício só em sede de alegações de recurso vem invocado e, portanto, não foi conhecido na decisão recorrida. Os recorrentes estão, por isso, a levantar uma questão nova, que não pode ser agora objeto de apreciação por parte deste TCA Sul.
Com efeito, não obstante os poderes de cognição dos Tribunais Administrativos Centrais, enquanto tribunais de apelação, surgirem reforçados, mediante a possibilidade de produção de prova em sede de recurso, o que demonstra que a apelação é um verdadeiro recurso substitutivo, eles só podem, porém, abarcar questões não apreciadas anteriormente, desde que se enquadrem no objeto do pedido (cfr art 149º, nº 2, 3, 4 do CPTA).
Ora, tal não é manifestamente o caso, já que o campo de aplicação do artigo 95º, nº 3 do CPTA, que delimita os poderes do tribunal, relativamente aos processos impugnatórios, só confere ao tribunal o poder de se pronunciar oficiosamente sobre aspetos não suscitados, nomeadamente o dever de se pronunciar sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o ato impugnado, exceto quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito, assim como deve identificar a existência de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas.
No fundo, o que os recorrentes autores pretendem com a alegação de novo vício, é que o tribunal de apelação se pronuncie sobre eventuais causas de invalidade do ato que não foram invocadas na petição inicial, nem nas alegações finais, e que por isso não tinham de ser apreciadas pelo Tribunal de 1ª instância, o que manifestamente excede o campo de previsão do artigo 95º, nº 3 do CPTA e os poderes de cognição do tribunal de apelação.
Ainda assim, considerando as definições de densidade habitacional bruta – art 5º, nº 10 do PDM da Lourinhã [«Densidade habitacional bruta» (DHb) — quociente entre o número de fogos (F) e a área bruta (AB) onde aqueles se localizem, expressa em fogos por hectare: DHb=F/AB], e de área bruta – art 5º, nº 1 [«Área bruta» (AB) — área total do terreno sujeita a uma intervenção urbana. É igual ao somatório das áreas de terreno afeto às diferentes categorias de uso do solo], os autos não dispõem de factos (sobre as superfícies de solo afetas ao uso habitacional, à rede viária, estacionamento, áreas livres, equipamento social) e consequentemente de prova (maxime pericial) para aferir do cumprimento deste índice urbanístico.
Deste modo, impõe-se não tomar conhecimento do recurso interposto pelos autores, com fundamento em erro de direito por violação do art 30º, nº 1.2, al a) do Regulamento do PDM da Lourinhã de 1999 (conclusões 13ª a 16ª do recurso dos autores).

Avançando, e sobre a aplicação ao caso do disposto no art 29º, nº 2, al c) e art 30º, nº 2.3 do PDM, regras que fazem apelo à cércea da construção como sendo a cércea dos edifícios no local, verifica-se que esta matéria de facto foi julgada não provada. E, mais, nem o Município nem a contrainteressada alegaram a medida concreta da cércea dos edifícios confinantes e dos edifícios de acompanhamento.

O que basta para julgarmos improcedentes as conclusões E) a G) do recurso do Município e as conclusões V) a VII) do recurso da contrainteressada.
Ainda assim,
A cércea da construção da contrainteressada, tal como vem definida no art 5º, nº 11 do Regulamento do PDM da Lourinhã de 1999 e foi julgada provada (al HH) do probatório), começa do ponto de cota média do terreno, que sabemos ter desníveis topográficos. E foi medida até à linha superior do beirado ou platibanda ou guarda do terraço. Feita esta medição, como resulta da fundamentação das respostas aos quesitos 1 e 5 da base instrutória, face aos desenhos de perfil da edificação juntos aos autos, aos depoimentos de A.........., P..........., aos esclarecimentos do Sr Perito E........... e ao relatório pericial por este elaborado, resultou provado que a cércea do já edificado (como resulta das telas finais - perfis 1, 4, 5) excede os 9 metros em várias partes dos blocos por que se desenvolve.
Aliás, lê-se no relatório pericial, «que a construção referente ao alçado poente (o que assume maior relevância), ultrapassa os 9 metros em cerca de 0,85 metros» e «a altura da fachada a nascente é semelhante à altura da fachada voltada a poente, o que determina que há cerca de 0,85 metros além dos 9 metros».
O critério de medição da cércea sindicado pelo tribunal recorrido é o que vem indicado no art 5º, nº 11 do Regulamento do PDM da Lourinhã. Diferente deste é o defendido pelos recorrentes Município e contrainteressada, que dizem ser o «computo global da altura de todo o edifício edificado, através da obtenção de uma média».
O critério de cércea destes recorrentes (Município e contrainteressada) colide com o critério acolhido no PDM e, nesse sentido, viola o disposto no art 5º, nº 11 do PDM.
Feita a medida pelo ponto da cota média do terreno até à linha de beirado, platibanda ou guarda do terraço, como nitidamente se alcança do perfil 4 da situação final/ desenho 31 das telas finais, junto a fls 595 do processo físico, resulta que a cércea não foi calculada na decisão recorrida «a partir de cada bocado do edificado ou de cada cota do mesmo». Antes cumpriu o critério legal e concluiu existir altura de construção acima da cércea permitida de 9 metros.

Os recorrentes autores discordam ainda da decisão recorrida na parte em que julgou cumprido o disposto no art 30º, nº 1.2, al e) do PDM pelo licenciamento das alterações, uma vez que a licença emitida – al V) do probatório – fixou a cércea em 9 metros. Dito de outro modo, para estes recorrentes não é apenas a obra construída/ edificada que viola a cércea também o licenciamento das alterações aprovado em 1.10.2003 viola a cércea permitida para as construções novas no PDM da Lourinhã de 1999. Isto porque, dizem, designadamente, as plantas de perfis aprovadas, que instruíram o projeto licenciado e que foram utilizadas pelos peritos demonstram que o despacho impugnado, de 1.10.2003, licenciou uma construção com uma cércea superior a 9 metros.
Não procede este fundamento do recurso.
Com efeito, os recorrentes confundem os documentos que instruem o pedido de licenciamento de obras de alterações, a que aludem as als N) e Z) do probatório com os documentos – desenhos de perfil da edificação – que sustentam o facto provado na al HH).
São meios de prova com conteúdo diferente.
Os documentos que instruem o pedido de licenciamento de obras de edificação – descritos na al N) e Z) são entregues à Administração Municipal para serem apreciados à luz das normas de direito público do urbanismo, para aferir da sua compatibilidade com as normas legais e regulamentares aplicáveis, incluindo os planos municipais aplicáveis. E concluída a respetiva análise a Câmara Municipal delibera sobre o pedido de licenciamento, deferindo-o (cfr art 26º do DL nº 555/99, de 16.12 - RJUE) ou indeferindo-o (cfr art 24º do mesmo diploma legal).
Quando a obra está concluída são entregues as telas finais que integram os desenhos do que está construído, para, de seguida, ser emitida a licença de utilização. Foram estes desenhos que alicerçaram a prova do facto da al HH).
Sem dúvida que o licenciamento da operação urbanística da contrainteressada de 1.10.2003 foi analisado e deferido para uma cércea de 9 metros (cfr als N), O), S), T), U), Z) dos factos provados).
Mas, das telas finais analisadas, nomeadamente, pelo perito, que correspondem ao que está construído, resulta que a altura da edificação excede os 9 metros em várias partes dos blocos por que se desenvolve.
Ou seja, como decidiu o tribunal recorrido, «o licenciamento das alterações prevê que a cércea é de 9 metros, mas o edifício, que se desenvolve por 4 blocos em jeito de escadaria, ultrapassa em algumas partes do edificado a cércea licenciada, o que importa a violação da licença emitida». Assim sendo, os factos provados não conduzem à procedência das conclusões 17ª a 26ª do recurso dos autores.

A demolição.
O tribunal recorrido, em face da situação de facto surgida, de existência de partes de altura do edifício da contrainteressada acima dos 9 metros da cércea, nos termos do art 71º, nº 2 do CPTA, condenou o Município a exercer os poderes previstos no art 106º do DL nº 555/99, de 16.12, com vista à reposição da legalidade conforme com o disposto nos arts 5º, nº 11 e 30º, nº 1.2, al e) do Regulamento do PDM da Lourinhã de 1999.
Porém, por o pedido de demolição das partes do edifício que excedem os 9 metros de cércea justificar alguma precaução, desde logo porque não ficou determinada a parte da edificação afetada pela violação dos 9 metros de cércea e a contrainteressada poder requerer uma solução que se revele compatível com as exigências do PDM, a parte do acórdão que condenou o Município a exercer os poderes do art 106º do RJUE, observa os poderes que lhe são conferidos pelo art 71º, nº 2 do CPTA.
O que determina a improcedência das conclusões 27ª a 29ª do recurso dos autores. E bem assim das conclusões D) do recurso do Município e IV) do recurso da contrainteressada, por esta condenação se enquadrar ainda no pedido de condenação à prática de atos e operações necessárias à reconstituição da situação de facto provada conforme com o princípio da legalidade (art 106º do DL nº 555/99, de 16.12 e arts 5º, nº 11 e 30º, nº 1.2, al e) do Regulamento do PDM da Lourinhã de 1999). E concluir assim não implica, de todo, qualquer violação dos princípios da igualdade, do acesso à justiça, do tratamento equitativo e do contraditório. Porque ao Município cumpre fazer cessar a situação de ilegalidade verificada, nos termos do art 106º do DL nº 555/99 e à luz, nomeadamente, do princípio da proporcionalidade.

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento aos três recursos e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Notifique.

Envie cópia ao processo nº 228/04.4TBLNH do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo Central Cível de Loures – Juiz 3.
*
Lisboa, 2019-06-06,

(Alda Nunes)

(José Gomes Correia)

(António Vasconcelos).