Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1502/18.8BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:01/24/2019
Relator:SOFIA DAVID
Descritores: PRETERIÇÃO, IMPRECISÃO OU IRREGULARIDADE DA NOTIFICAÇÃO
DIREITO DE ASILO E PROTECÇÃO SUBSIDIÁRIA; ÓNUS DA PROVA
PRINCÍPIO DO BENEFÍCIO DA DÚVIDA
ARGÉLIA
RAZÕES HUMANITÁRIAS
COMPETÊNCIAS DISCRICIONÁRIAS
Sumário:I – A preterição, a imprecisão ou a irregularidade da notificação de um acto não acarreta a sua invalidade, mas apenas a sua ineficácia. A notificação é (apenas) um mero acto integrativo, sem o qual o acto administrativo – a notificar – não produzirá efeitos – cf. art.ºs 155.º, n.º 1 e 160.º do CPA.
II - Cabe ao requerente de protecção internacional o ónus da prova dos factos que alega;
III - O art.º 18.º, n.º 4, da Lei n.º 27/2008, de 30-06, é um corolário do princípio do benefício da dúvida, que exige que frente a um relato consistente, congruente e credível do requerente de protecção internacional, o ónus da prova se reparta com o respectivo decisor;
IV – A invocação do princípio do benefício da dúvida não faz sentido quando, no caso, falta cumprir um ónus inicial e básico: fazer um relato sem contradições, circunstanciado, coerente e credível;
V – Na Argélia não se identificam relatos de perseguição a cidadãos por sofrerem problemas de saúde, assim como, não se identifica uma total ausência de protecção na saúde;
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I - RELATÓRIO
S… intentou acção administrativa no Tribunal Administrativo de Círculo (TAC) de Lisboa impugnando o despacho do Director Nacional (DN) do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), de 09-04-2018, que considerou infundado o pedido de protecção internacional apresentado pelo Requerente. Na decisão recorrida foi julgada improcedente a acção e foi o Ministério da Administração Interna (MAI) absolvido do pedido.
Inconformado com a decisão o Recorrente apresentou as suas alegações, onde formulou as seguintes conclusões: “1. Por decisão proferida pelo SEF – Gabinete de Asilo e Refugiados, foi decidida a não admissibilidade do pedido de proteção internacional requerida pela aqui Recorrente;
2. Confrontado com tal decisão, o Recorrente propôs a competente ação administrativa especial de impugnação jurisdicional da decisão sobre pedido de proteção internacional, pugnado pela atribuição de proteção ao Recorrente em Portugal;
3. Apesar da factualidade alegada pelo Recorrente na sua PI, a Douta Sentença recorrida, sem mais, apenas considerou que a condição em que o Recorrente se encontra não se enquadra no âmbito da concessão de proteção internacional;
4. Contudo, parece-nos que a Douta Sentença ora recorrida assentou num erro de apreciação quanto aos factos ora alegados e direito aplicável ao caso em concreto;
5. Desprezando simplesmente o facto do aqui Recorrente ter sido notificado da decisão do SEF mais de três meses depois, quando a lei estabelece que a notificação deverá ser feita no prazo de dois dias;
6. Ademais, o Tribunal recorrido desconsiderou a situação particular e vulnerável em que o Recorrente se encontra, tendo em conta o seu grave estado de saúde e demência;
7. Situação essa promissora de uma necessária proteção especial, que lamentavelmente não foi concedida ao Recorrente;
8. Verificando-se uma decisão judicial altamente violadora dos Direitos Humanos e da dignidade da sua própria pessoa humana;
9. Devendo, pois, ser concedida a requerida proteção internacional, por razões humanitárias.”

O MAI, através dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras – SEF, contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:”
(“texto integral no original; imagem”)
“.
Foram os autos ao Digno Magistrado do Ministério Público, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 146.º do CPTA, que se pronunciou no sentido da improcedência do recurso.
Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – OS FACTOS
A sentença recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto, que ora não vem impugnada, pelo que se mantém:
(“texto integral no original; imagem”)

II.2 - O DIREITO
As questões a decidir neste processo, tal como vêm delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, são:
- aferir do erro decisório, por o ora Recorrente ter sido notificado da decisão impugnada mais de 3 meses após ter sido tomada, desrespeitando o prazo de 2 dias previsto no art.º 20.º, n.º 3, da Lei n.º 27-02-2018 – Lei de Asilo;
- aferir do erro decisório, porque haveria de ter sido concedida a protecção internacional ao ora Recorrente, atendendo à sua situação de saúde, que é grave.

Dos factos provados resulta que o A. e Recorrente pediu asilo em 27-02-2018 e em 09-04-2018 esse pedido foi considerado infundado pelo Director Nacional (DN) do SEF. Assim, a decisão impugnada foi tomada 29 dias úteis após a formulação do pedido de asilo, cumprindo o prazo indicado no art.º 20.º, n.º 1, da Lei de Asilo.
Dos factos provados resulta, ainda, que o A. foi notificado daquela decisão apenas em 25-07-2018, muito depois do prazo referido no art.º 20.º, n.º 3, da indicada Lei.
Não obstante, a preterição do prazo não consubstancia nenhuma ilegalidade que afecte o acto impugnado, primeiro, porque se trata de um prazo meramente ordenador e não peremptório e, depois, porque a preterição, a imprecisão ou a irregularidade da notificação de um acto não acarreta nunca a sua invalidade, mas apenas a sua ineficácia. A notificação é (apenas) um mero acto integrativo, sem o qual o acto administrativo – a notificar – não produzirá efeitos – cf. art.ºs 155.º, n.º 1 e 160.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA).
Falece pois, a invocação do Recorrente relativa à invalidade do acto impugnado por violação do art.º 20.º, n.º 3, da Lei de Asilo.

Igualmente falece o recurso no respeitante à obrigação de se conceder protecção internacional ao ora Recorrente, atendendo à sua situação de saúde.

Nos termos artigo 7º, n.º 1, da Lei n.º 27/2008, de 30.06, “É concedida autorização de residência por proteção subsidiária aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 3º e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave”.
Dos presentes autos não deriva que a situação do A. e Recorrente seja subsumível no regime subsidiário previsto no art.º 7.º da Lei n.º 27/2008, de 30.06.
Como resulta da factualidade apurada, foi declarado por um médico do Centro Hospitalar de Lisboa, em 07-06-2018, que o A. e Recorrente sofre de doença psiquiátrica. Mais resulta dessa factualidade, que foi declarado por um outro médico daquele mesmo Centro, em 12-07-2018, que o A. e Recorrente apresentava síndroma delirante/alucinatório, provavelmente por efeito de uma epilepsia mal compensada, assim como, que apresentava episódios de perda de consciência, com queda e incontinência urinária.
Na PI é alegado que o A. sofre de depressão e epilepsia e que na Argélia não lhe eram disponibilizados tratamentos adequados.
No relato feito pelo A. junto do SEF este alegou sofrer de depressão e epilepsia, pelo que tinha de tomar medicamentos para o efeito. Mais alegou o A. e Recorrente, que na Argélia não será acompanhado em termos médicos e que será preso por padecer daqueles problemas de saúde.
Porém, todo o relato do A. mostra-se contraditório, vago, não detalhado e inconsistente, face à realidade que se vive na Argélia, designadamente no que se refere aos cuidados de saúde que aí se prestam. Igualmente, sendo possível ao A., ora Recorrente, apresentar elementos adicionais de prova relativamente às condições de vida na Argélia e respectivo sistema de protecção na saúde, não o fez.
Da mesma forma, nesta acção o A. e Recorrente não produz uma única indicação acerca da realidade da vida na Argélia, respectivo sistema de saúde, hospitais existentes ou sobre os cuidados médicos – ou efectiva inexistência desses cuidados – face a doentes com epilepsia e depressão.
Da aplicação conjugada dos art.ºs 15.º, 15.º-A, 16.º e 18.º da Lei n.º 27/2008, de 30-06, compete ao Requerente de asilo e de protecção subsidiária o ónus da prova dos factos que alega, admitindo-se, no entanto, nos termos do n.º 4 do art.º 18.º da citada lei, que tal ónus seja repartido quando se reúnam, em termos cumulativos, as seguintes condições: (1) o requerente tenha feito um esforço autêntico para fundamentar o seu pedido; (2) o requerente apresente todos os elementos ao seu dispor e dê uma explicação satisfatória para a eventual falta de outros considerados pertinentes; (3) as declarações prestadas pelo requerente forem consideradas coerentes, plausíveis e não contraditórias face às informações disponíveis; (4) o pedido tenha sido apresentado com a maior brevidade possível, a menos que o requerente apresente justificação suficiente para que tal não tenha acontecido; (5) tenha sido apurada a credibilidade geral do discurso do requerente.
Mais se refira, que o indicado art.º 18.º, n.º 4, da Lei n.º 27/2008, de 30-06, é um corolário do princípio do benefício da dúvida, que exige que frente a um relato consistente, congruente e credível do requerente de protecção internacional, o ónus da prova se reparta com o respectivo decisor.
Neste sentido, conforme o Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado, da ACNUR “205. O processo de constatação e avaliação dos fatos pode, portanto, ser resumido da seguinte forma: (a) O solicitante deverá:
(i) Dizer a verdade e apoiar integralmente o examinador no estabelecimento dos fatos referentes ao seu caso.
(ii) Esforçar-se para sustentar suas declarações com todas as evidências disponíveis e dar uma explicação satisfatória em relação a qualquer falta de elementos de prova. Se necessário, ele deve esforçar-se para obter evidências adicionais.
(iii) Fornecer todas as informações pertinentes sobre a sua pessoa e a sua experiência pretérita com o máximo de detalhes possíveis para permitir que o examinador conheça os fatos relevantes. É preciso pedir ao solicitante que explique de maneira coerente todas as razões invocadas como fundamentos do seu pedido de refúgio e responda a todas as questões que lhe são colocadas.
(b) O examinador deverá:
(i) Assegurar que o solicitante apresente o seu caso de forma tão completa quanto possível e com todos os elementos de provas disponíveis.
(ii) Apreciar a credibilidade do solicitante e avaliar os elementos de prova (se necessário, dando ao requerente o benefício da dúvida) a fi m de estabelecer os elementos objetivos e subjetivos do caso.
(iii) Relacionar estes elementos com os critérios relevantes da Convenção de 1951, de modo a obter uma conclusão correta sobre a concessão da condição de refugiado ao solicitante” (in ACNUR, Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado [Em linha] ACNUR [Consult. em 9-10-2017] Disponível em http://bit.ly/2g8z4jY).
Portanto, em sede de direito de asilo e de protecção subsidiária imputa-se ao requerente o ónus da prova dos factos que alega, mas exige-se, também, ao Estado que aprecia o pedido de asilo, que coopere activamente com o requerente, havendo que recolher junto de diversas fontes não estatais – como o ACNUR, a EASO ou outras organizações de defesa de direitos humanos - as informações mais actuais e necessárias para apreciar aquele pedido (cf. neste sentido – Ana Rita Gil – “ A garantia de um procedimento justo no Direito Europeu de Asilo”, in CEJ - O contencioso…, ob. cit., pp. 242-243).
Conforme informações actuais sobre a Argélia, neste país existe protecção na saúde e o apoio à saúde é gratuito para pobres. Não se identificam casos de perseguição a cidadãos por sofrerem problemas de saúde, nomeadamente de epilepsia ou depressão (cf,. entre outros, os sites: https://www.who.int/countries/dza/en/; https://www.afro.who.int; http://countrystudies.us/algeria/68.htm; https://en.wikipedia.org/wiki/Algeria ou https://en.wikipedia.org/wiki/Health_in_Algeria).
Frente às informações existentes sobre a Argélia, o relato do A.- quando invoca que será preso por apresentar problemas de saúde, ou quando invoca que tais cuidados não lhe serão prestados - não se mostra um relato credível.
Nesta acção o A. e Recorrente também não acrescentou nenhuma referência aos cuidados de saúde que se prestam efectivamente na Argélia, por forma a corroborar o relato feito frente ao SEF. No que concerne à realidade vivida na Argélia, no que tange ao apoio na saúde, o A. e Recorrente é totalmente omisso.
Ou seja, dos autos não resulta indiciado que se o A. e Recorrente regressar ao país de origem corre o risco de sofrer ameaça grave contra a vida ou integridade física por poder ser preso por padecer de uma doença ou por não lhe serem prestados os cuidados de saúde que necessita.
Acresce, que o preenchimento dos conceitos pressupostos no artigo 7º da Lei n.º 27/2008, de 30.06., relativos ao impedimento ou impossibilidade de regresso ao país de nacionalidade ou de residência habitual, de sistemática violação dos direitos humanos, ou de risco de ofensa grave, para além do que resulte já definido na indicada lei, designadamente no n.º 2 do indicado preceito, remete para conceitos indeterminados e para competências discricionárias da Administração, que só a esta competem formular.
Ora, a sindicabilidade de actos em sede de competências discricionárias só tem lugar em situações de erro de facto, erro grosseiro ou manifesto.
O A. e Recorrente não arguiu a existência de tais erros, mas limitou-se a descrever as razões pessoais que, na sua óptica, justificavam o deferimento do pedido de autorização de residência por razões humanitárias.
Assim sendo, não é possível ao Tribunal fazer outra apreciação para além daquela que resulta da existência dos alegados erros de facto, grosseiros ou manifestos. Igualmente, porque o preenchimento do conceito “razões humanitárias” apenas compete à Administração, também nunca poderia proceder o pedido de condenação do R. a autorizar o A. a sua residência em Portugal por razões humanitárias, pois tal apreciação extravasa o foro jurídico (cf. neste sentido, entre muitos, os Acs. do STA de 14-06-2000, Proc. n.º 45635, de 26-10-2002, Proc. n.º 44848, de 07-02-2001, Proc. nº 44852, em http://www.dgsi.pt/jsta).
Falecem, assim, todas as invocações do Recorrente contra a sentença recorrida.

III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam:
- em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a decisão recorrida;
- sem custas por isenção objectiva (cf. art.º 84.º da Lei nº 27/2008, de 30-06).

Lisboa, 24 de Janeiro de 2019.
(Sofia David)
(Helena Afonso)
(Pedro Nuno Figueiredo)