Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:339/12.2BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:09/16/2021
Relator:VITAL LOPES
Descritores:IVA;
CONTA CORRENTE;
LIQUIDAÇÃO;
CADUCIDADE;
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Sumário:1. A liquidação oficiosa originada na regularização da conta corrente do IVA por correcção do crédito em excesso a reembolsar declarado não está sujeita ao prazo de caducidade.

2. A fundamentação do acto tributário deve ser contextual e contemporânea da sua prática, não sendo permitida a invocação superveniente de fundamentos que, embora objectivamente existentes, não constam da motivação expressa do acto.

3. O princípio do aproveitamento dos actos não pode neutralizar os efeitos anulatórios do acto viciado de falta de fundamentação se não é possível afirmar que outro não poderia ser o seu conteúdo quanto às operações de cálculo dos créditos regularizados na conta corrente do IVA.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 2.ª SUBSECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL


I. RELATÓRIO

O Exmo. Representante da Fazenda Pública recorre da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial apresentada por E... – SOCIEDADE IMOBILIÁRIA E MOBILIÁRIA, S.A., no seguimento do indeferimento da reclamação graciosa deduzida da liquidação adicional de IVA n.º 10327630, referenciada ao segundo trimestre de 2007, de que resultou montante a pagar de 9.141,08 euros.

O Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes e doutas conclusões:
«
A. In casu, salvaguardado o elevado respeito, deveria ter sido dada uma maior acuidade ao escopo do consignado no artigo 45.º da LGT; artigos 28º, n.º1 e 92.º, ambos do CIVA, assim como ao teor do vertido na Informação elaborada pela Divisão de Justiça Contenciosa (cfr. fls. 444 a fls. 446, F/verso do PA junto aos autos); e teor do Parecer de fls. 447, F/verso do PA junto aos autos.

B. Tudo devidamente condimentado e com arrimo no respeito pelo princípio da legalidade (art. 103.º da nossa mater legis).

C. Para que, se pudesse aquilatar pela IMPROCEDÊNCIA DA IMPUGNAÇÃO (mormente pela não verificação da caducidade do direito à liquidação dos montantes em causa) aduzida pelo Recorrido, contrariamente ao que foi considerado na douta decisão recorrida.

D. Pelo que, a Recorrente, com o devido respeito, conclui não ter razão o Tribunal a quo, que julgou num determinado sentido que, perante o acervo probatório documental constante dos autos e da matéria de facto dada como assente, devidamente conjugada com os demais elementos constantes do processo sub judice,

E. não tem a devida correspondência com a ilação jurídica que deveria ser colhida daquele acervo documental e com o modo como as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão a quo deveriam ter sido interpretadas e aplicadas no que concerne à vexata quaestio sindicada.

F. Efectivamente, a caducidade do direito à liquidação, tal como o respeitoso Tribunal a quo decidiu verificar no caso em apreço, não tem aplicação.

G. Se não for por mais, assim vai asseverado, porquanto, in casu não se está perante uma qualquer correcção ao IVA dedutível declarado pelo contribuinte.

H. Mas, sim e efectivamente, perante um erro de cálculo da impugnante ao determinar o excesso a reportar de períodos anteriores para as declarações seguintes.

I. O respeitoso Areópago a quo retirou ilações jurídicas do acervo documental supra referenciado, que conduziu a uma errada interpretação e aplicação do direito aos factos, mormente das normas legais supra vazadas ao caso concreto.

J. Por conseguinte, salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo lavrou em erro de julgamento.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, com o mui douto
suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido total provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a sentença proferida com as devidas consequências legais.

CONCOMITANTEMENTE,

Apela-se desde já à vossa sensibilidade e profundo saber, pois, se aplicar o Direito é um rotineiro acto da administração pública, fazer justiça é um acto místico de transcendente significado, o qual, poderá desde já, de uma forma digna ser preconizado por V. as Ex.as, assim se fazendo a mais sã, serena, objectiva e acostumada
JUSTIÇA!».

A Recorrida apresentou contra-alegações, que culmina com as seguintes e doutas conclusões:
«
a) deve, ao abrigo do disposto no art. 640/1 CPC ex vi do art. 281 CPPT, rejeitar-se o recurso por inobservância das exigências dele constantes.
b) na verdade, pretende a recorrente uma reapreciação nova e global da matéria de facto, o que lhe está vedado pelo art. 640/1 CPC.
c) e, ainda que tal fosse possível, não indica a recorrente o sentido com que as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas, violando destarte o disposto no art. 639/1-b) CPC ex vi do art. 281 CPPT.
TERMOS EM QUE
deve manter-se integralmente na ordem jurídica o julgado do Tribunal a quo.

O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer concluindo que a decisão recorrida deverá ser revista.

Colhidos os vistos legais e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, analisadas as conclusões das alegações do recurso, a questão que importa apreciar reconduz-se a saber se à liquidação adicional do IVA que tem subjacente correcções na conta corrente do sujeito passivo se aplica o regime de caducidade previsto para o respectivo imposto.
***

III. FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS

Na sentença recorrida deixou-se factualmente consignado:
«
Com relevo para a decisão da causa, considero provados os seguintes factos:

A) Em 17-01-1997 a sociedade E... – Sociedade Imobiliária e Mobiliária, SA., foi enquadrada no regime normal trimestral para efeitos de IVA (fls. 424 do processo administrativo -tributário);

B) Desde o período de 9806T até ao período 0706T, os valores declarados pela Impugnante e os calculados pela Administração Tributária, do “Campo 96 – Crédito de Imposto – Excesso a Reportar”, das Declarações Periódicas de IVA da Impugnante, são os que constam de fls. 425 a 433 do processo administrativo tributário, cujo conteúdo aqui se dá como integralmente reproduzido;

C) Desde o período 0209T até ao período 0706T, os valores declarados pela Impugnante e os calculados pela Administração Tributária, do “Campo 61 – Excesso a reportar do período anterior (campo 96 da declaração anterior – n.º 4 do art.º 22.º)”, das Declarações Periódicas de IVA da Impugnante, são os que constam de fls. 434 a 441 do processo administrativo tributário, cujo conteúdo aqui se dá como integralmente reproduzido;

D) Em 08-05-2007, 31-07-2007, 06-11-2007 e 13-02-2008, a Impugnante entregou as Declarações Periódicas de IVA dos períodos 2007/03T, 2007/06T, 2007/09T e 2007/12T, respetivamente (fls. 3 e 4, fls. 7 e 8, fls. 11 e 12 e fls. 15 e 16, respetivamente, do procedimento de reclamação graciosa, as quais aqui se dão como integralmente reproduzidas);
E) Em 09-08-2007, 01-11-2007 e 13-02-2008 a Impugnante pagou o imposto a favor do Estado apurado nas Declarações Periódicas de IVA dos períodos 2007/06T, 2007/09T e 2007/12T, nos montantes de € 10.556,43, € 5.170,78, € 1.579,91, respetivamente (fls. 5 e 6, fls. 9 e 10 e fls. 13 e 14 do procedimento de reclamação graciosa, respetivamente);

F) Em 27-11-2010 foi emitida, em nome da Impugnante, a liquidação de IVA n.º 10327930, no montante de € 9.141,08, cujo prazo legal de pagamento terminava em 17-01-2011 (conforme print informático, a fls. 18 do procedimento de reclamação graciosa);

G) Em 07-12-2010 foi emitida a notificação à Impugnante da liquidação mencionada na alínea precedente, constando da mesma a seguinte fundamentação:




(fls. 10 do documento n.º 005466524, do SITAF);

H) A Impugnante rececionou a notificação referida na alínea anterior em 2011 (conforme referido no artigo 1º da petição inicial, não impugnado);

I) Em 28-04-2011 a Impugnante apresentou Reclamação Graciosa à liquidação adicional referida na alínea G (conforme carimbo aposto no rosto da petição, a fls. 2 do procedimento de reclamação graciosa);

J) Em 10-11-2011 foi prestada Informação na Reclamação Graciosa apresentada, a qual propôs o indeferimento da mesma (fls. 44 a 46 do procedimento de reclamação graciosa, cujo conteúdo aqui se dá como integralmente reproduzido);

K) Em 02-12-2011 a Impugnante exerceu o seu direito de audição prévia (fls. 49 a 63 do procedimento de reclamação graciosa, cujo conteúdo aqui se dá como integralmente reproduzido);

L) Em 22-12-2011 a Reclamação Graciosa foi indeferida com base na Informação final prestada na mesma data (fls. 70 a 72 do procedimento de reclamação graciosa, cujo conteúdo aqui se dá como integralmente reproduzido);

M) Em 11-01-2012 foi remetida ao Serviço de Finanças de Lisboa – 2, via CTT – Correios de Portugal, a petição inicial da presente Impugnação.

II. FACTOS NÃO PROVADOS:

Dos autos não resulta provado que a Administração Tributária tenha dado conhecimento à Impugnante ou que esta tenha tido conhecimento, em momento anterior à entrega da Declaração Periódica de IVA do período 2007/06T, da discrepância entre os valores declarados pela mesma e os calculados pela Administração Tributária (conforme declarações da testemunha inquirida).

Não existem outros factos, com interesse para a presente decisão, que importe destacar como não provados.

E. MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

i. PROVADA:

Relativamente à matéria de facto dada como provada, a convicção do tribunal formou-se com base nos articulados e nos documentos não impugnados constantes dos autos, assim como do processo administrativo tributário e do procedimento de reclamação graciosa juntos em apenso, conjugados com as declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pela testemunha arrolada pela Impugnante, conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.

i. NÃO PROVADA:

Relativamente ao facto dado como não provado, o Tribunal relevou o depoimento da testemunha R..., o qual se revelou credível e espontâneo, com conhecimento direto do facto, dado que trabalhou na sede da Impugnante desde 2002 (com interrupção apenas nos anos de 2003 e 2008) como técnico de contabilidade, preparando a documentação contabilística e assessorando o Técnico Oficial de Contas; confrontado com os prints informáticos que davam conta da discrepância entre os valores declarados pela Impugnante e os calculados pela Administração Tributária, foi bastante assertivo ao afirmar que a Impugnante nunca tinha tido conhecimento de quaisquer desses valores calculados pela Administração Tributária.».

B.DE DIREITO

Como se deixa muito bem explicado no Ac. Arbitral de 2005-10-03, tirado no proc. n.º 48-2015-T (caad.org.pt), «O IVA, enquanto imposto sobre o consumo, caracteriza-se essencialmente como um típico imposto indireto, que incide sobre cada uma das transacções ou prestações de serviços e permite “aos sujeitos passivos desonerarem-se do encargo do imposto suportado a montante e assegurando que a tributação incida, em cada etapa do circuito económico, sobre o valor acrescentado, sendo suportada, principalmente, pelo consumidor final”. Cada sujeito passivo liquida imposto, à taxa legal aplicável, sobre as suas vendas ou prestações de serviços, fazendo-o acrescer ao valor tributável constante das facturas ou documentos equivalentes que passa aos seus clientes. No final de cada período (o mês, ou o trimestre) o sujeito passivo entrega nos cofres públicos apenas a diferença entre o imposto assim repercutido nas suas operações activas e o imposto suportado nas suas aquisições e constante das facturas de que foi destinatário.

O apuramento de IVA a pagar ou de IVA a recuperar constitui o resultado da operação de liquidação de imposto, que é, em regra, realizada pelos próprios sujeitos passivos (autoliquidação). […] “resultando do conceito de liquidação, como apuramento do IVA relativo a cada período de tributação efectuado pelo sujeito passivo, quer um valor positivo – IVA devido aos cofres públicos – quer um valor negativo – crédito de imposto sobre os cofres públicos, então deverá concluir-se que ambas as situações devem ser vistas, só e simplesmente, como valores do apuramento periódico do IVA integrando, pois, e em ambos os casos, o conceito de liquidação.”

Sob outra perspectiva, tende a distinguir-se entre IVA liquidado pelo sujeito passivo nas operações activas que este realiza e IVA deduzido em virtude de operações passivas associadas à sua actividade, considerando-se que “só quanto ao imposto liquidado pelo sujeito passivo nos seus outputs são aplicáveis as noções de facto gerador e exigibilidade”, designadamente, para efeitos de aplicação das regras de caducidade (artigo 45.º da LGT). Já quanto ao IVA em que o sujeito passivo incorra nos seus inputs não é gerado na sua esfera jurídica nem a ele lhe é exigível, constituindo (…) um crédito que este pode ou não mobilizar contra o Estado, exercendo o direito à dedução.

A doutrina converge, porém, que é através do direito à dedução que se garante um princípio estrutural do imposto (o da neutralidade), porquanto é através do exercício deste direito “que se garante ao sujeito passivo a desoneração do imposto pago na aquisição dos inputs essenciais e necessários à prossecução de uma actividade económica (…)”.

No entanto, o legislador, em homenagem a outros princípios essenciais da ordem jurídica, como os da certeza e segurança jurídicas, e com fundamento no princípio da proporcionalidade, estabelece, no artigo 98.º, n.º 2, do CIVA que o “direito à dedução do imposto”, ou ao “reembolso do imposto pago em excesso”, apenas pode ser exercido pelo sujeito passivo até 4 anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto.

Como quer que se entenda, verifica-se que o legislador português, embora com regras diferentes para o exercício do respectivo direito, optou por fixar prazo igual, quer para a caducidade do direito à dedução, quer para o direito à liquidação, que, como veremos, é também de quatro anos.
Destes conceitos deve distinguir-se a situação de reembolso de IVA, a que se referem os n.ºs 4 e seguintes do artigo 22.º do Código do IVA, onde se estabelece que “sempre que a dedução de imposto a que haja lugar supere o montante devido pelas operações tributáveis, no período correspondente, o excesso é deduzido nos períodos de imposto seguintes”, explicitando-se as condições necessárias para que o sujeito passivo possa solicitar o reembolso desse crédito.

Ao conceito de reembolso aqui utilizado não é aplicável o prazo de caducidade do artigo 98.º do CIVA, porquanto o âmbito de aplicação do artigo 22.º do CIVA abrange tão só as situações em que a liquidação e a dedução do imposto foram efectuadas de forma correcta resultando do seu saldo um crédito de IVA a favor do sujeito passivo, que será utilizado em períodos seguintes (numa lógica de conta corrente) conferindo-se ao sujeito passivo a faculdade de solicitar o reembolso do mesmo e assim obviar ao seu reporte e aplicação nos períodos seguintes.

Assim se compreende que a este reembolso não se aplique, aliás, um qualquer prazo de caducidade, assistindo ao sujeito passivo o direito de obter o reembolso de um crédito de IVA gerado sem limitação temporal, isto é, originado pela dedução de imposto em períodos que se encontram para lá do prazo de caducidade geral (de 4 anos).».

Regressando aos autos, o que se constata (cf. pontos B) a E) do probatório) é que não está subjacente ao acto impugnado qualquer correcção à liquidação ou à dedução efectuadas pelo sujeito passivo de modo irregular nos vários períodos de tributação precedentes, sendo que apenas estas correcções estão abrangidas no prazo de caducidade previsto no art.º 45.º da Lei Geral Tributária.

Com previa o seu n.º 4 (redacção da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro) «O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, excepto no imposto sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributação seja efectuada por retenção na fonte a título definitivo, caso em que aquele prazo se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respectivamente, a exigibilidade do imposto ou o facto tributário» (sublinhados nossos).

Ora, de acordo com o art.º 7.º do CIVA, “o imposto é devido e torna-se exigível:
a) Nas transmissões de bens, no momento em que os bens são postos à disposição do adquirente;
b) Nas prestações de serviços, no momento da sua realização”.

E o direito à dedução surge no momento em que o imposto dedutível se torna exigível – art.º 22/1 do CIVA.

Só no caso de correcções à liquidação ou à dedução, o prazo de caducidade de quatro anos tem aplicação e conta-se a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou a respectiva exigibilidade.

No caso dos autos, como se alcança da informação prestada a fls.444 do apenso administrativo a AT aquando do primeiro saldo negativo apurado na conta corrente (0706T – cf. art.º 22/4 do CIVA), procedeu à regularização do saldo a reportar (que passou de positivo a negativo) corrigindo os créditos em excesso declarados pelo sujeito passivo para efeitos de reembolso ao longo dos períodos anteriores de tributação, mas não corrigiu a autoliquidação do imposto (ou os factos subjacentes à liquidação ou dedução, como sucederia respectivamente na correcção da taxa reduzida para normal, ou, na correcção da dedução relativa à aquisição de bens excluídos da dedução – art.º 21.º do CIVA).

Já se vem apreendendo do exposto que a sentença recorrida, que julgou a impugnação procedente por verificação da caducidade do direito à liquidação, não pode manter-se na ordem jurídica, sendo de revogar e conceder provimento ao recurso.

Na procedência da apelação, importará agora passar ao conhecimento das questões prejudicadas, como a da falta de fundamentação da liquidação.

Da fundamentação da liquidação impugnada, e conforme ponto G) do probatório, consta “liquidação adicional efectuada nos termos dos art.ºs 87.º e 95.º do Código do IVA por correcção à liquidação apurada nas declarações periódicas apresentadas para o ano referido”, indicando-se também o campo da declaração corrigido (Campo 61 0706T) e o montante da liquidação (€ 9.141,08).

Ora, pela leitura da liquidação impugnada – e lembrando-se que a fundamentação dos actos deve ser acessível, por imposição constitucional – um destinatário médio não se consegue aperceber das razões factuais e jurídicas que subjazem à prática do acto.

Como se diz no Ac. do STA, de 09/29/2016, tirado no proc.º 0956/16,
«A fundamentação do acto administrativo é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto.
Ponto é que a fundamentação responda às necessidades de esclarecimento do contribuinte informando-o do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito, que determinaram a sua prática, de forma a poder desencadear os mecanismos administrativos ou contenciosos de impugnação».

E como se refere no recente Ac. do STA de 12/11/2019 tirado no proc.º 0859/04.2BEPRT e constitui jurisprudência consolidada daquele alto tribunal,
«A fundamentação do acto tributário deve ser contextual e contemporânea da sua prática, não sendo permitida a invocação superveniente de fundamentos que, embora objectivamente existentes, não constam da motivação expressa do acto».

Com esta exigência de fundamentação, logo se alcança que a liquidação impugnada não se encontra devidamente fundamentada.

Com efeito, basta analisar os elementos dos autos para logo se constatar que a impugnante se não apercebeu, pelo acto, das razões da sua prática [de que não era questionada a autoliquidação; quais os períodos declarativos a que foi erroneamente imputado crédito em excesso para efeitos de reembolso…], as quais só vieram a ficar apreensíveis com as informações e os elementos instrutórios a juzante.

No entanto, aqui chegados, haverá que ponderar se por aplicação do princípio do aproveitamento do acto, previsto no art.º 163.º, n.º 5 do Cód. do Procedimento Administrativo, é possível neutralizar os efeitos anulatórios do vício de falta de fundamentação.

Estabelece aquele n.º 5 do art.º 163.º do CPA:

«Não se produz o efeito anulatório quando:
a) O conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível;
b) O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via;
c) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo».

Ora, as operações de regularização da conta corrente do IVA são complexas, pelo que se é possível, com os elementos dos autos, afirmar que a rectificação dos créditos a reembolsar declarados pelo s.p. não está sujeita a prazo de caducidade, já não é possível concluir que as operações de quantificação do excesso de crédito a reembolsar calculado pela AT estejam correctas, sendo que este é um elemento fundamental do conteúdo do acto tributário – art.º 77.º da Lei Geral Tributária.

Conclui-se, pois, ser de não aplicar, por ausência dos pressupostos de que depende, o princípio do aproveitamento do acto.

A impugnação procede por vício de forma por falta de fundamentação.

IV. DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da 2.ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em:
(i) Conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida;
(ii) Conhecendo em substituição, julgar a impugnação procedente e anular a liquidação impugnada.

Condena-se o recorrente nas custas.



Lisboa, 16 de Setembro de 2021

[O Relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Juízes–Desembargadores integrantes da formação de julgamento, Luísa Soares e MÁRIO REBELO].


Vital Lopes