Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:977/19.2BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:09/12/2019
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:ADVOCACIA; INCOMPATIBILIDADES; FORÇAS MILITARES OU MILITARIZADAS; GUARDA NACIONAL REPUBLICANA
Sumário:
1- A GNR, além das atribuições policiais que de ordinário lhe competem, pode ser chamada a desempenhar tarefas que consistem na aplicação extrema da força do Estado e no controlo da violência, o que justifica a sua organização militarizada e o estatuto militar dos seus agentes. Desde sempre legalmente definida como tendo natureza militar, cabia e cabe na sua missão geral colaborar na execução da política de defesa nacional nos termos da Constituição e da lei, podendo em caso de guerra ou em situação de crise as forças da Guarda ser chamadas a cumprir, em colaboração com as Forças Armadas, as missões militares que lhe forem cometidas.
2- O exercício de funções no seio de tal instituição encontra-se abrangido pela previsão legal constante da alínea k) do nº 1 do artigo 82º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
3- Pelo que tem que soçobrar a pretensão do ora Recorrido, militar da GNR, em ver aceite pela Ordem dos Advogados a sua inscrição como advogado estagiário.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:


I. Relatório

Bruno .......... intentou no TAC de Lisboa contra a Ordem dos Advogados intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, peticionando a condenação desta a aceitar a sua inscrição como advogado estagiário.

Por sentença de 10.06.2019 foi decidido julgar procedente a acção e intimada a Entidade Requerida, através do seu Conselho Geral, a proceder de imediato à inscrição do Requerente como advogado estagiário.

Não se conformando com o assim decidido, vem a Ordem dos Advogados recorrer para este TCA, tendo as alegações de recurso que apresentou culminado com as seguintes conclusões:

I – O presente recurso jurisdicional vem interposto da decisão proferida pelo tribunal a quo, através da qual se decidiu intimar a ora Recorrente a inscrever o ora Recorrido como advogado estagiário.

II – Para o efeito, considerou-se no arresto recorrido que as funções desempenhadas pelo ora Recorrido, enquanto militar na Guarda Nacional Republicana, não eram incompatíveis com o exercício da advocacia, não se encontrando-se, porquanto, subsumidas ao disposto no artigo 82º, nº1, k) do EOA que dispõe que: “ 1. São, designadamente, incompatíveis, com o exercício da advocacia os seguintes cargos, funções e actividades: (…) k) Membro das Forças Armadas ou militarizadas.”

III – Ora, salvo o devido respeito, não se pode a ora Recorrente conformar com tal decisão, uma vez que, salvo melhor entendimento, o exercício de tais funções, inseridas numa estrutura militar fortemente hierarquizada, sujeita a códigos de conduta e poder disciplinar próprios, como é a de uma força de segurança militar como a Guarda Nacional Republicana, deve, pela similitude de características das funções desempenhadas por militares das Forças Armadas, consubstanciar-se, pela sua natureza, no impedimento elencado na alínea k) do nº1 da supra citada disposição legal – “Forças Armadas ou militarizadas.”

IV – Conforme refere o Acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional, datado de datado de 29 de Outubro de 2003 (ACTC nº 521/03), já, oportunamente, mencionado na Resposta apresentada pelo ora Recorrente, através do qual, se refere que: “ (…) Na verdade, à face de tal legislação a Guarda Nacional Republicana sempre foi definida como sendo uma força de segurança constituída por militares organizada num corpo espacial de tropas (art.os1º da LOGNR e 1º a 4º do EMGNR). [DL 231/93, de 26 de Junho em vigor naquela data]. Uma tal definição adquire, desde logo, a característica verdadeiramente determinante dos militares das Forças Armadas que é a de serem um corpo de tropas, cuja função primordial é a “defesa militar da República”. E se é certo que as atribuições daquele corpo especial de tropas são, predominantemente, funções de autoridade de segurança, de polícia criminal, de polícia fiscal e de controlo de entrada e saída de cidadãos nacionais e estrangeiros do território nacional, não o deixa, também, de ser que, entre elas, se conta, igualmente, a de colaborar na execução da política da defesa nacional (artº 2º da LOGNR). Por outro lado, constata-se que essas suas atribuições são levadas a cabo mediante um esquema organizatório que é decalcado totalmente do que se verifica em relação aos militares das Forças Armadas.(…)

V – Ora, ao prever a incompatibilidade versada na supra citada disposição legal, somos levados a crer que o que legislador pretendeu foi, justamente, vedar o exercício da advocacia a quem, inserido numa estrutura organizatória de cariz militar fortemente hierarquizada, como é a de uma força de segurança militar como a Guarda Nacional Republicana, visse a sua autonomia e liberdade, próprias, por definição, do exercício da advocacia, ameaçadas.

VI - Considerando a similitude das características de tal instituição com as desempenhadas pelos militares que integram as Forças Armadas, teremos, forçosamente, que concluir que não poderá ter sido outra a intenção que resulta da ratio legis da disposição legal em discussão nos presentes autos, que não seja a de incluir os militares que desempenham funções na Guarda Nacional Republicana.

VII - Tal interpretação, salvaguardando o interesse público e a dignidade de que reveste o exercício da advocacia, não fere nem conflitua, salvo o devido respeito, com o direito constitucionalmente consagrado da livre escolha e acesso à profissão, decorrente do disposto no artigo 47º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, sendo certo que tal direito não é ilimitado e pode, em nome do interesse público, ceder perante outros valores.

VIII - Encontrando-se, salvo melhor opinião, o ora Recorrido a exercer funções que caem na alçada do impedimento versado na alínea k) do nº 1 do artigo 82º do EOA, e não prevendo o nº3 de tal disposição legal os impedimentos que decorrem daquela alínea, afastando-a, expressamente, o legislador, devia o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, ter considerado a acção em apreço improcedente.

IX – Ao não decidir assim, mal andou o douto Tribunal a quo, incorrendo, por tal motivo, a sentença ora posta em crise em erro de julgamento.

X – Pelo que, nos termos supra expostos, deve o presente recurso jurisidicional ser considerado procedente, por provado, revogando-se a sentença ora recorrida, fazendo-se assim, Justiça.

O Recorrido contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.



Neste Tribunal Central Administrativo, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta não emitiu pronúncia.


Com dispensa dos vistos legais, importa apreciar e decidir.


II.1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar se a sentença recorrida errou ao não ter concluído que o Requerente e ora Recorrido se encontrava na situação de incompatibilidade prevista no artigo 82.º, n.º 2, alínea k), do Estatuto da Ordem dos Advogados (Membro das Forças Armadas ou militarizadas).


II. Fundamentação

II.1. De facto

É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a qual se reproduz ipsis verbis:

1. O Requerente é militar da Guarda Nacional Republicana (GNR), com a categoria de Sargento-Ajudante de Cavalaria, a desempenhar funções de apoio jurídico na Direcção de Justiça e Disciplina do Comando-Geral da GNR (acordo e cf. fls. 15 e 85 a 89 do PA).

2. Por requerimento apresentado no Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados 24.09.2018, o Requerente solicitou a sua inscrição como Advogado Estagiário (cf. fls. 2 a 31 do PA).

3. No requerimento supra referido o Requerente apresenta-se como sendo funcionário público e, para efeitos do disposto no artigo 82.º, n.os 1, alínea i), e 3, do EAO, apresentou declaração do Comandante-Geral da GNR onde, entre o mais, se refere que o Requerente é sargento-ajudante, desempenhando funções de apoio jurídico na Direcção de Justiça e Disciplina do Comando-Geral da GNR e que “o exercício da advocacia a cuja inscrição se candidata será prestado em regime de subordinação e exclusividade ao serviço do Ministério da Administração Interna/Guarda Nacional Republicana – em especial por reporte ao disposto no artigo 11.º, n.º 1, do CPTA –, ao abrigo do artigo 82.º, n.º 1, alínea i), e n.º 3, do Estatuto da Ordem dos Advogados” (cf. fls. 15 do PA).

4. Por despacho de 21.12.2018, o Vogal com o Pelouro da Secção de Inscrições do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados decidiu não propor ao Conselho Geral da Ordem dos Advogados a inscrição do Requerente como Advogado Estagiário por, em síntese, considerá-lo abrangido pela incompatibilidade prevista no artigo 82.º, n.º 2, alínea k), do EAO (cf. fls. 38 a 40 do PA).

5. Em 28.12.2018, por despacho do Vogal do Conselho Geral, por delegação de competência, decidiu-se, com base na proposta referida em 4., notificar o Requerente para se pronunciar sobre a intenção de não proceder à confirmação do Requerente como Advogado Estagiário (cf. fls. 41 e 42 do PA).

6. Por carta de 11.01.2019, o Requerente pronunciou-se em sede de audiência prévia, ao referido em 5. (cf. fls. 43 a 89 do PA).

7. Em 27.02.2019, por despacho do Vogal do Conselho Geral, por delegação de competência, foi decidido não confirmar a inscrição do Requerente como Advogado Estagiário (cf. fls. 92 e 92 do PA).

8. Por requerimento datado de 21.03.2019 e dirigido ao Presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, o Requerente interpôs recurso da decisão referida em 7. (cf. 97 a 111 do PA).

9. Em 31.05.2019, deu entrada a presente intimação, via SITAF (cf. registo SITAF 590247).

10. Até à presente data não foi proferida decisão sobre o recurso referido em 8. (acordo e cf. fls. 144 e seguintes do PA).

49) -Em 2015, o A instaurou a acção, com o Procº 2002/15.3 BELSB, por apenso à qual instaurou a presente acção de intimação que daquela foi mandada desapensar.

50) -Em 16/05/2012, o A instaurou a ação AE, com o Procº 560/12.3BELSB, cujo Acórdão que a julgou improcedente, junto a fls 54/ss, foi proferido a 31/12/2013.

Não foram fixados factos não provados com relevo para a decisão da causa.



II.2. De direito

Imputa a Recorrente erro de julgamento à sentença recorrida por nesta não se ter concluído pela improcedência da intimação a aceitar a inscrição do ora Recorrido como advogado estagiário, por se verificar uma situação de incompatibilidade de acordo com o previsto no art. 82.º, n.º 2, al. k), conjugado com o disposto no art. 188.º, n.º 1, al. d), ambos do Estatuto da Ordem dos Advogados.

E podemos já adiantar que lhe assiste razão. Vejamos porquê.

O ora Recorrido enquanto militar da GNR é um “membro das Forças Armadas ou militarizadas”, estando, assim, em situação de incompatibilidade que impede a sua inscrição como Advogado ou Advogado Estagiário, nos termos previstos no art. 188.º, n.º 1, al. d), do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Lendo o Estatuto da GNR, aprovado pelo Decreto-Lei nº 30/2017, de 22 de Março, de imediato se constata que “[o] militar da Guarda é aquele que ingressou na Guarda e a ela se encontra vinculado com caráter de permanência, em regime de nomeação, satisfazendo as características da condição militar” (art. 3.º, nº 1).

Sendo que o juramento de bandeira prestado pelos formandos antes do ingresso na Guarda, tem a seguinte fórmula: “Juro, como português(a) e como militar, guardar e fazer guardar a Constituição e as leis da República, servir a Guarda Nacional Republicana e as Forças Armadas e cumprir os deveres militares. Juro defender a minha Pátria e estar sempre pronto(a) a lutar pela sua liberdade e independência, mesmo com o sacrifício da própria vida.” (art. 4.º).

E do juramento de fidelidade consta também expressamente que os militares da Guarda juram “cumprir as ordens e deveres militares” (art. 5.º, nº 1).

Avulta, portanto, na caracterização da situação jurídico-estatutária dos militares da GNR a sujeição à condição militar. Esta “condição” encontra-se definida no art. 2.º da Lei nº 11/89, de 1 de Junho e caracteriza-se:

a) Pela subordinação ao interesse nacional;

b) Pela permanente disponibilidade para lutar em defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida;

c) Pela sujeição aos riscos inerentes ao cumprimento das missões militares, bem como à formação, instrução e treino que as mesmas exigem, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra;

d) Pela subordinação à hierarquia militar, nos termos da lei;

e) Pela aplicação de um regime disciplinar próprio;

f) Pela permanente disponibilidade para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais;

g) Pela restrição, constitucionalmente prevista, do exercício de alguns direitos e liberdades;

h) Pela adopção, em todas as situações, de uma conduta conforme com a ética militar, por forma a contribuir para o prestígio e valorização moral das forças armadas;

i) Pela consagração de especiais direitos, compensações e regalias, designadamente nos campos da Segurança Social, assistência, remunerações, cobertura de riscos, carreiras e formação.

E olhando para a Lei nº 63/2007, de 6 de Novembro (Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana), temos que dispõe o seu artigo 1º:

1 - A Guarda Nacional Republicana, adiante designada por Guarda, é uma força de segurança de natureza militar, constituída por militares organizados num corpo especial de tropas e dotada de autonomia administrativa.

2 - A Guarda tem por missão, no âmbito dos sistemas nacionais de segurança e protecção, assegurar a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, bem como colaborar na execução da política de defesa nacional, nos termos da Constituição e da lei.

Por outro lado, a jurisprudência já enfrentou esta questão – da qualificação estatutária dos militares do GNR -, ainda que não na perspectiva que agora vem colocada, i.a., no acórdão do STA de 22.09.2011, proc. nº 431/11.

Nesse aresto sumariou-se que “são material e organicamente constitucionais as normas constantes do artigo 92º n.º 1, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana (LOGNR), aprovada pelo Decreto-Lei nº 231/93, de 26 de Junho e do artigo 5º, nº 1, do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (EMGNR), aprovado pelo Decreto-Lei nº 265/93, de 31 de Julho, na parte em que tornam aplicáveis aos elementos da GNR as penas privativas da liberdade previstas no RDM”. Com interesse para o caso decidendo importa transcrever a fundamentação do acórdão referido, sendo a doutrina dele constante transponível para a situação presente (irrelevando as alterações legislativas subsequentes, que não alteram a essência da matéria e discussão). Assim:

“(…) a questão redunda em saber se as normas constantes do artigo 92°, n.° 1 da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei n.° 231/93, de 26 de Junho e do artigo 5.° do Estatuto do Militar da Guarda, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 265/93, de 31 de Julho, na parte em que tomam aplicáveis aos militares da Guarda, não pertencentes aos quadros das Forças Armadas, as penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada, previstas no RDM e enquanto incorporando a normatividade constante do n.° 1 do art.° 69° da Lei n.° 29/82, no qual se remete para o art.° 32° da mesma lei [e aqui se dispõe que em matéria de justiça e de disciplina “as exigências específicas das Forças Armadas serão reguladas, respectivamente, no Código de Justiça Militar e no Regulamento de Disciplina Militar”], são materialmente inconstitucionais por ofensa ao disposto no n.° 2 do art.° 27° da CRP.

Ora, tal só não sucederá se essa norma couber na hipótese a que se refere a excepção prevista na al. c) do n.° 3 do art.° 27° da CRP, ou seja, “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar”, entre outros, “no caso de prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente”.

A decisão recorrida, enfrentando expressamente tal questão, deu-lhe uma resposta negativa, na base do entendimento de que o sentido da palavra “militares” usada na conformação linguística do referido preceito, equivale apenas ao conceito de militares das Forças Armadas, estando dele excluídos quem se encontra em “instituição distinta das Forças Armadas, “embora os seus agentes sejam equiparados a militares para certos efeitos, como sucede com os da extinta Guarda Fiscal ou da Guarda Nacional Republicana”.

Mas uma tal conclusão não pode este Tribunal acolhê-la. Antes de mais cumpre acentuar que a Constituição em ponto algum procede a uma definição do conceito de “militar”. Por outro lado, é de notar que sempre que utiliza o termo “militar”, a Lei Fundamental fá-lo, essencialmente, na perspectiva de salientar a sujeição a um certo estatuto pessoal próprio ou específico por parte de quem se integra nesse “tipo” de pessoas e de relevar, prevalentemente, a sua inserção organizatória. [sublinhados nossos] Ou seja, a Constituição refere o conceito sem o adstringir directamente a qualquer função ou atribuições constitucionais. E isso é assim mesmo em relação às associações de que fala o n.° 4 do art.° 46° da CRP, dado que o substrato directo destas é constituído por pessoas e o que verdadeiramente aí sobressai vinculado funcionalmente ao fim que se pretende evitar é o modo como as mesmas se organizam. Como o é quando fala do “serviço militar”, pois, aqui, o que se acentua é, essencialmente, a obrigatoriedade dos cidadãos portugueses prestarem um serviço e este serviço tem, como é sabido, um certo enquadramento organizatório.

Para além do referido art.° 27°. n.° 3, al. c), o termo “militar” é utilizado, na CRP, como acaba de acentuar-se, no n.° 4 do art.° 46°, ao dizer que “não são consentidas associações armadas nem de tipo militar-militarizadas ou paramilitares, nem organizações que perfilhem a ideologia fascista”, no art.° 270°, introduzido na revisão constitucional de 1982, e em que se dispõe que “a lei pode estabelecer restrições ao exercício dos direitos de expressão, reunião, manifestação, associação e petição colectiva e à capacidade eleitoral passiva dos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, na estrita medida das exigências das suas funções próprias” e, finalmente, no n.° 2 do art.° 276° ao dispor-se que “o serviço militar é obrigatório”.

Mas destes dois últimos preceitos resulta, também, que a Constituição autonomiza o estatuto “militar” ou essa singular forma de organização de pessoas em relação a outras que terão com eles alguns índices de semelhança, como são o dos “agentes militarizados” ou associações “militarizadas ou paramilitares”. [sublinhado nosso]

Acentue-se, ainda, que, tendo procedido à definição da função constitucional da Defesa Nacional e das Forças Armadas e, não obstante ter previsto alguns seus aspectos organizatórios, como sejam a previsão da existência do Conselho Superior de Defesa Nacional, a intervenção de todos os Portugueses na defesa da Pátria e a obrigatoriedade do “serviço militar”, a lei básica, como já se referiu, não ligou o conceito “militar” a qualquer específica função ou atribuição constitucional, maxime, às Forças Armadas, mas antes o conexionou com uma certa forma singular de prestar serviço, ou seja, com acentuação da prestação de “serviço militar” ou seja, dentro de certa situação organizatória. [sublinhado nosso]

Como se demonstra no referido Acórdão n.° 103/87, a cuja fundamentação aqui se adere, tanto os elementos literais, como os histórico-sistemáticos do art.° 270º da CRP, introduzido, como se disse, na revisão de 1982, apontam no sentido do legislador constituinte ter assumido um conceito “tipológico”, que não “definitório”, de “militares” e “agentes militarizados”, tomando por referente a situação institucional e legal que, em matéria de forças armadas e de força de segurança, então se lhe deparava e onde relevava não tanto um critério do seu “estatuto profissional”, mas sobretudo o critério da sua “situação organizatória”.

Ora, como aí se diz, no domínio das forças de segurança, “tal situação caracterizava-se pela existência de uma pluralidade de forças de segurança - com objectivos, âmbitos territoriais de actuação e estruturas diferenciadas mas onde o legislador distinguiu claramente entre as que, constituindo «corpos especiais de tropas», eram, ainda (quanto à forma que não à função), «forças militares», e outras que simplesmente qualificava como forças ou organismos «militarizados»: no primeiro caso estavam - e, de resto, ainda estão - a Guarda Nacional Republicana e a Guarda Fiscal (v., quanto à primeira, Lei de 3 de Maio de 1911, artigo 1°, e Decreto-Lei n.° 33 905, de 2 de Setembro de 1944, artigos 5° e 9°, e, agora, o Decreto-Lei n.° 333/83, de 14 de Julho, em cujo artigo 1° ela é expressamente qualificada com um «corpo especial de tropas que faz parte das forças militares»; e quanto à segunda, designadamente os Decretos-Leis 143/80, de 21 de Maio, em particular o preâmbulo, e n.° 544/80, de 11 de Novembro, artigo 8°, e o Decreto n.° 80/82, de 22 de Junho, e, agora, o Decreto-Lei n.° 373/85, de 20 de Setembro, em cujo artigo 1° se qualifica a Guarda Fiscal igualmente como um «corpo especial de tropas»; no segundo caso estava, precisamente, a Polícia de Segurança Pública (v. Decreto-Lei n.° 39 497, de 31 de Dezembro de 1953, artigo 1º)”.

Abordando o elemento literal de interpretação, o mesmo acórdão faz notar que “o qualificativo «militarizado» aponta necessariamente para uma realidade que, por definição, ou na essência, não é militar, mas recebe certas características típicas da instituição militar, vindo a assumir uma feição similar à desta; qual seja a área e grau em que tal similitude deve ocorrer para se poder falar de «militarização» não o diz directamente o qualificativo em causa; mas é seguro que ele não convém só às situações (admitindo que a elas ainda possa convir) em que acaba por verificar-se uma mais ou menos completa «identificação» (estatutária) entre a realidade em causa e a realidade militar, de tal modo que a primeira vem assumir a mesma natureza desta ou a incorporá-la: antes convém desde logo - e convém de modo mais directo - àquelas situações em que a realidade em questão se conserva extrínseca à realidade militar, mantendo a sua natureza substancial originária, e apenas é objecto de um enquadramento legal - mormente um enquadramento «organizatório - que parcialmente a reveste de uma configuração similar à daquela”.

E no que respeita ao elemento sistemático, o mesmo acórdão acaba por ver o desenho dos traços de distinção que deixou referidos rio art.° 46°, n.° 4, que tem como “lugar paralelo”. “Na verdade - diz ele - quando aí se proíbe a criação de associações de «tipo militar, militarizadas ou paramilitares», a distinção tripartida feita pelo legislador constitucional não pode senão inculcar que uma instituição «militarizada» é algo que apenas se aproxima, através de determinadas características, da instituição «militar», mas com esta se não identifica, nem sequer é um seu desenvolvimento”.

Saber quais sejam essas características é questão que o art.° 270° da Constituição não o diz directamente, sublinha igualmente tal aresto. E não o dizendo - escreve-se igualmente aí - “são os operadores jurídicos remetidos para a consideração directa da realidade institucional que as Forças Armadas constituem (como instituição militar típica), aí lhes cumprindo recolher as notas significativas susceptíveis de preencherem o conceito constitucional”.

E seguidamente o mesmo Acórdão identifica como notas características que, decerto, avultam na instituição militar:

«- O estrito enquadramento hierárquico dos seus membros, segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos;

- Correspondentemente, a subordinação da actividade da instituição (e, portanto. da actuação individualizada dos seus membros), não ao princípio geral da direcção e chefia comum à generalidade dos serviços públicos, mas a um peculiar princípio de comando cru cadeia, implicando um especial dever de obediência;

- O uso de armamento (e armamento com características próprias, de utilização vedada aos cidadãos e aos agentes públicos em geral) no exercício da função e como modo próprio desse exercício;

- O princípio do aquartelamento, ou seja, o agrupamento dos seus agentes em unidades de intervenção ou operacionais dotadas de sede física própria e de um particular esquema de vida interna, unidade a que os respectivos membros ficam em permanência adstritos, com prejuízo, para a generalidade deles, da possibilidade (e do direito) de utilização da residência própria;

- A obrigatoriedade, para os seus membros, do uso de farda ou de uniforme;

- A sujeição dos mesmos a particulares regras disciplinares e, eventualmente, jurídico-penais».

Anote-se, de resto, que esta é, também, a exacta compreensão que o legislador infra constitucional tem dos índices característicos da condição militar.

Na verdade, ao legislar sobre as bases gerais do estatuto da condição militar, diz a referida Lei n.° 11/89, de 1 de Junho:

Art.° 2.°

A condição militar caracteriza-se:

a) Pela subordinação ao interesse nacional;

b) Pela permanente disponibilidade para lutar em defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida;

c) Pela sujeição aos riscos inerentes ao cumprimento das missões militares, bem como à formação, instrução e treino que as mesmas exigem, querem tempo de paz, quer em tempo de guerra;

d) Pela subordinação à hierarquia militar, nos termos da lei;

e) Pela aplicação de um regime disciplinar próprio;

f) Pela permanente disponibilidade para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais;

g) Pela restrição, constitucionalmente prevista, do exercício de alguns direitos e liberdades;

h) Pela adopção, em todas as situações, de uma conduta conforme com a ética militar, por forma a contribuir para o prestígio e valorização moral das forças armadas;

i) Pela consagração de especiais direitos, compensações e regalias, designadamente nos campos da Segurança Social, assistência, remunerações, cobertura de riscos, carreiras e formação».

É de observar que o art.° 16° da mesma lei determina que ela se “aplica aos militares da Guarda Nacional Republicana”.

12. Ora, tomando inteiramente por bons estes parâmetros, há que convir que todos eles se verificam relativamente à Guarda Nacional Republicana, quer na legislação do tempo (atrás identificada, tal como os seus preceitos mais relevantes) em que foram aditados a al. c) do n.° 3 do art.° 27° e o art.° 270° da CRP, quer na legislação actual [Decreto-Lei n° 231/93, de 26 de Junho, maxime, artigos 1°, 9°, n.° 1, alínea b) e nº 2, 12°, 13°, 18°, 21°, 22°, 23º, 31°, 32°, 63° a 72°, e Decreto-Lei n.° 265/93, de 31 de Julho, maxime, artigos 1°, 2°, 5°, 6°, 7°, 9°, 14°, 16°, 23° e 24°], quer na realidade física existente em cada um desses diferentes momentos. A este propósito basta lembrar as tarefas de índole militar que constantemente são atribuídas à GNR.

Na verdade, à face de tal legislação a Guarda Nacional Republicana sempre foi definida como sendo uma força de segurança constituída por militares organizada num corpo especial de tropas (art.° 1° da LOGNR e 1° a 4° do EMGNR). Uma tal definição adquire, desde logo, a característica verdadeiramente determinante dos militares das Forças Armadas que é a de serem um corpo de tropas, cuja função primordial é a “defesa militar da República”. E se é certo que as atribuições daquele corpo especial de tropas são, predominantemente, funções de autoridade de segurança, de policia criminal, de polícia fiscal e de controlo da entrada e saída de cidadãos nacionais e estrangeiros do território nacional, não o deixa, também, de ser que, entre elas, se conta, igualmente, a de colaborar na execução da política de defesa nacional (art.° 2° da LOGNR). Por outro lado, constata-se que essas suas atribuições são levadas a cabo mediante um esquema organizatório que é decalcado totalmente do que se verifica em relação aos militares das Forças Armadas. Assim, os seus membros estão organizados, segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos (art.ºs 24° e 26° do EMGNR e 51° e 90° do EMGNR). O pessoal está distribuído por “Armas” e “Serviços” e organizado por unidades de comando, de instrução, de brigadas (unidades territoriais), brigada especial de trânsito, brigada especial fiscal, unidades de reserva, estas constituídas por um regimento de cavalaria e um regimento de infantaria (art.°s 31º e 63° da LOGNR). A regra de subordinação das suas tropas no desempenho da sua actividade institucional assenta num princípio de comando em cadeia, segundo as diferentes patentes e postos (art.° 24° e 26° do EMGNR e 35° do EMGNR). Os militares da Guarda Nacional Republicana usam, para além de armamento ligeiro, armamento pesado de características militares, como sejam, entre outros, carros de combate, ligeiros e pesados, granadas e metralhadoras ligeiras e pesadas (art.° 21° da LOGNR). Nota-se, ainda, que os militares da GNR, no activo, estão agrupados em unidades de intervenção e unidades operacionais, pela forma acima apontada e toda a sua acção é desenvolvida, essencialmente, a partir dessas sedes de comando (art.°s 35° a 62° da LOGNR). Por outro lado, essas unidades estão aquarteladas em locais - quartéis, e os militares da GNR estão adstritos, em permanência, a eles, cumprindo regras específicas de vida interna, próprias de um corpo de tropas. Finalmente, os seus membros usam farda ou uniforme, cumprindo algumas das suas espécies a mesma funcionalidade dos uniformes das Forças Armadas, como os trajes de combate e assalto (artºs 21° da LOGNR). Por último, os militares da GNR sempre estiveram sujeitos às regras disciplinares do Regulamento de Disciplina Militar, e, no domínio penal, ao Código de Justiça Militar (Lei de 3 de Maio de 1911, Decreto-Lei n.° 33 905, de 2 de Setembro de 1944, Decreto-Lei n.° 333/83, de 14 de Julho e art.° 92° e 93° da LOGNR e 5° do EMGNR).

13. Assim sendo, é de incluir os militares da GNR, no activo, no conceito de militares a que alude a al. c) do n.° 3 do art.° 27° da CRP, ou seja, sob o ponto de vista constitucional, poder-lhes-á ser imposta a pena de prisão disciplinar nos termos do Regulamento de Disciplina Militar, com garantia de recurso para o tribunal competente, estando assim abrangidos pela excepção constitucional ao princípio de que “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”. [sublinhado nosso]

Este é, igualmente, o sentido que se extrai da jurisprudência do Tribunal Constitucional, não só pela revelada pelo acórdão do STA citado, mas pela que vem espelhada no acórdão nº 54/2012, proc. nº 793/11, o qual se transcreve na sua parte aqui relevante:

“(…)

8 - Mais controversa se apresenta a questão da delimitação da noção de militares para efeitos da exceção prevista no n.º 3 do artigo 27.º da Constituição [alínea c) desse preceito constitucional, na redação vigente ao tempo da edição das normas em causa; alínea d) do mesmo preceito, na redação vigente quer no momento da aplicação da sanção, quer atualmente).

Pelas razões já referidas, não sofre dúvidas que a pena disciplinar de detenção cabe (materialmente) na autorização para impor pena de "prisão disciplinar". É um minus como pena detentiva, relativamente à prisão disciplinar ou à prisão disciplinar agravada (Note-se, todavia, que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (acórdão ENGEL) não considera que, no contexto característico da organização e atividade militar, uma medida disciplinar desta natureza (light arrest) constitua privação da liberdade para efeitos do artigo 5.º da Convenção - Cfr. Irineu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed., pg. 39). Assim, o que importa averiguar é se os "militares" a quem pode ser impostas penas desta natureza são, apenas, os membros dos três ramos das Forças Armadas (Exército, Marinha, Força Aérea) ou, também, os membros de outros corpos sujeitos, segundo a lei ordinária, à condição militar.

O recorrente invoca, a favor da interpretação mais restrita do âmbito subjetivo de aplicação da exceção, argumentos de natureza histórica e sistemática.

Portugal formulou uma reserva ao texto da CEDH no sentido de o respetivo artigo 5.º não obstar à prisão disciplinar imposta a militares em conformidade com o Regulamento de Disciplina Militar [artigo 2.º, alínea a), da Lei n.º 65/78, de 13 de outubro]. Mas a mesma ressalva não constava do texto originário da Constituição, relativamente ao princípio consagrado no artigo 27.º, suscitando dúvidas de constitucionalidade a possibilidade de imposição administrativa de tais penas. Veio a ser incluída na Lei Fundamental em 1982, com inspiração no projeto pessoal de revisão constitucional de Jorge Miranda (Um projeto de revisão constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 1980, p. 32) ao propor o aditamento de uma alínea com o seguinte teor: «prisão disciplinar imposta a militares, sem prejuízo do recurso para o tribunal competente». Justificando a proposta, escrevia o Autor que «a prisão disciplinar imposta a militares (artigos 27.º e 28.º do RDM de 1977) não parece encontrar hoje fundamento no artigo 27.º da Constituição, embora tenha sido objeto de uma das estranhas reservas à Convenção Europeia dos Direitos do Homem [artigo 2.º, alínea a), da Lei n.º 65/78, de 13 de outubro]. É esse fundamento que se pretende formular, com a indispensável garantia de recurso jurisdicional». Em sentido diverso opinavam A. Barbosa de Melo, J. M. Cardoso da Costa e J. C. Vieira de Andrade (Estudo e projeto de revisão da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 49) quando referiam que «não se exceciona, no n.º 3, a prisão disciplinar prevista no Regulamento de Disciplina Militar por se entender que esta sanção atenta contra os princípios constitucionais, devendo, por essa razão, ser abolida e não garantida como exceção». Acabou por ser acolhida a proposta de Jorge Miranda. Resulta dos trabalhos parlamentares que, embora com generalizadas reticências dos deputados intervenientes no debate quanto à desejabilidade da opção, procurou dar-se cobertura a uma realidade prática e normativa da instituição militar.

Todavia, se é certo que alguns dos intervenientes nesses debates se referem expressamente às Forças Armadas, não é menos certo que nenhuma referência se colhe no sentido de que só o âmbito de aplicação do regime disciplinar aos militares dos três ramos procurou preservar-se. Embora possa inferir-se dessas intervenções que, para os deputados que se pronunciaram especificamente, esse era o âmbito subjetivo mais vivamente presente, o debate não se centra numa necessidade organizatória específica das Forças Armadas de tal modo que possa dizer-se que só para esses militares foi concebida a exceção. O que moveu o legislador constituinte foi a falta de cobertura constitucional para a aplicação de uma pena disciplinar privativa da liberdade por via administrativa prevista no Regulamento de Disciplina Militar. De modo que, se algum argumento pode extrair-se das circunstâncias históricas da inclusão da exceção da atual alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º na Constituição, é no sentido de que procurou cobrir-se todo o âmbito de aplicação de prisão disciplinar a "militares" então existente. Com efeito, não podia ignorar-se que a GNR foi, desde sempre, concebida e organizada como um "corpo especial de tropas" e que os seus membros eram (e são) qualificados expressamente como "militares" e sujeitos à condição militar.

Tem, porém, de reconhecer-se que, em contraponto, o elemento sistemático já será mais propício a outra interpretação. Na verdade, na mesma revisão constitucional foi aditado o artigo 270.º referente a restrições ao exercício de direitos, distinguindo-se entre "militares" e "agentes militarizados". Poderá, nessa base, argumentar-se que, ao optar, num sítio (artigo 27.º), por apenas excecionar a prisão disciplinar referente a «militares» e, no outro (artigo 270.º), ter consagrado restrições a direitos fundamentais referentes a «militares» e a «agentes militarizados», a Constituição parece apontar para que os agentes da GNR cabem nesta última categoria, designando-se constitucionalmente como "militares" apenas os membros dos três ramos das Forças Armadas, e que no artigo 27.º se pretendeu deixar de fora do âmbito de aplicação da norma todos os agentes militarizados, sem exceção.

Face à inconcludência dos elementos histórico e literal-sistemático, na falta de suporte hermenêutico seguro de que, considerada a normatividade existente, se pretendeu repudiar para parte dela a cobertura constitucional resultante da exceção da alínea d) do n.º 2 do artigo 27.º, impõe-se encontrar um critério constitucionalmente adequado à justificação da sujeição dos "militares" a penas que constituem um tão significativo desvio a um princípio basilar do Estado de Direito como o de que ninguém deve sofrer privação da liberdade senão precedendo decisão judicial ou pelo tempo estritamente necessário a ser posto à disposição do juiz competente. O essencial do problema consistirá, pois, em discernir que elementos das atribuições ou da organização de uma instituição podem justificar um direito sancionatório público tão gravoso para o direito fundamental da liberdade. Procedendo por aproximação, porque a opção constitucional de que para os três ramos das Forças Armadas essa especial sujeição é justificada (os membros das Forças Armadas são "candidatos positivos" ao conceito constitucional de "militar" constante da exceção do artigo 27.º), importa discernir que elementos podem levar a que se consinta a sujeição dos militares da Guarda a um regime disciplinar idêntico (no aspeto considerado) ao dos membros das Forças Armadas.

Identificando os aspetos organizatórios e funcionais desta força de segurança que permitem a assimilação do regime de justiça e disciplina dos seus membros (no aspeto considerado) ao dos militares das Forças Armadas, disse-se no Acórdão n.º 521/03:

(…)

12 - Ora, tomando inteiramente por bons estes parâmetros, há que convir que todos eles se verificam relativamente à Guarda Nacional Republicana, quer na legislação do tempo (atrás identificada, tal como os seus preceitos mais relevantes) em que foram aditados a alínea c) do n.º 3 do artigo 27.º e o artigo 270.º da CRP, quer na legislação actual [Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho, maxime, artigos 1.º, 9.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, 12.º, 13.º, 18.º, 21.º, 22.º, 23.º, 31.º, 32.º, 63.º a 72.º, e Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, maxime, artigos 1.º, 2.º, 5.º, 6.º, 7.º, 9.º, 14.º, 16.º, 23.º e 24.º], quer na realidade física existente em cada um desses diferentes momentos. A este propósito basta lembrar as tarefas de índole militar que constantemente são atribuídas à GNR. [sublinhado nosso]

Na verdade, à face de tal legislação a Guarda Nacional Republicana sempre foi definida como sendo uma força de segurança constituída por militares organizada num corpo especial de tropas (artigos 1.º da LOGNR e 1.º a 4.º do EMGNR). Uma tal definição adquire, desde logo, a característica verdadeiramente determinante dos militares das Forças Armadas que é a de serem um corpo de tropas, cuja função primordial é a "defesa militar da República". E se é certo que as atribuições daquele corpo especial de tropas são, predominantemente, funções de autoridade de segurança, de polícia criminal, de polícia fiscal e de controlo da entrada e saída de cidadãos nacionais e estrangeiros do território nacional, não o deixa, também, de ser que, entre elas, se conta, igualmente, a de colaborar na execução da política de defesa nacional (artigo 2.º da LOGNR). Por outro lado, constata-se que essas suas atribuições são levadas a cabo mediante um esquema organizatório que é decalcado totalmente do que se verifica em relação aos militares das Forças Armadas. [sublinhado nosso] Assim, os seus membros estão organizados, segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos (artigos 24.º e 26.º do EMGNR e 51.º e 90.º do EMGNR). O pessoal está distribuído por "Armas" e "Serviços" e organizado por unidades de comando, de instrução, de brigadas (unidades territoriais), brigada especial de trânsito, brigada especial fiscal, unidades de reserva, estas constituídas por um regimento de cavalaria e um regimento de infantaria (artigos 31.º e 63.º da LOGNR). A regra de subordinação das suas tropas no desempenho da sua actividade institucional assenta num princípio de comando em cadeia, segundo as diferentes patentes e postos (artigos 24.º e 26.º do EMGNR e 35.º do EMGNR). Os militares da Guarda Nacional Republicana usam, para além de armamento ligeiro, armamento pesado de características militares, como sejam, entre outros, carros de combate, ligeiros e pesados, granadas e metralhadoras ligeiras e pesadas (artigo 21.º da LOGNR). Nota-se, ainda, que os militares da GNR, no activo, estão agrupados em unidades de intervenção e unidades operacionais, pela forma acima apontada e toda a sua acção é desenvolvida, essencialmente, a partir dessas sedes de comando (artigos 35.º a 62.º da LOGNR). Por outro lado, essas unidades estão aquarteladas em locais - quartéis -, e os militares da GNR estão adstritos, em permanência, a eles, cumprindo regras específicas de vida interna, próprias de um corpo de tropas. Finalmente, os seus membros usam farda ou uniforme, cumprindo algumas das suas espécies a mesma funcionalidade dos uniformes das Forças Armadas, como os trajes de combate e assalto (artigo 21.º da LOGNR). Por último, os militares da GNR sempre estiveram sujeitos às regras disciplinares do Regulamento de Disciplina Militar, e, no domínio penal, ao Código de Justiça Militar (Lei de 3 de Maio de 1911, Decreto-Lei n.º 33 905, de 2 de Setembro de 1944, Decreto-Lei n.º 333/83, de 14 de Julho e artigos 92.º e 93.º da LOGNR e 5.º do EMGNR)."

Mantém-se este entendimento, que foi também o seguido pelo acórdão recorrido.

Com efeito, a GNR, além das atribuições policiais que de ordinário lhe competem, pode ser chamada a desempenhar tarefas que consistem na aplicação extrema da força do Estado e no controlo da violência, o que justifica a sua organização militarizada e o estatuto militar dos seus agentes. Desde sempre legalmente definida como tendo natureza militar, cabia e cabe na sua missão geral colaborar na execução da política de defesa nacional nos termos da Constituição e da lei, podendo em caso de guerra ou em situação de crise as forças da Guarda ser chamadas a cumprir, em colaboração com as Forças Armadas, as missões militares que lhe forem cometidas (cf. artigos 2.º, alínea i) e 9.º, n.º 2, da LOGNR aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93 e artigo 1.º, n.º 2 e 3.º, n.º 2, alínea i) da atual LOGNR). Acresce que, embora dependentes do membro do Governo responsável pela área da administração interna, as forças da Guarda podem ser colocadas na dependência operacional do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, através do seu comandante-geral, nos casos e termos previstos nas Leis de Defesa Nacional e das Forças Armadas e do regime do estado de sítio e do estado de emergência, dependendo, nesta medida, do membro do Governo responsável pela área da defesa nacional no que respeita à uniformização, normalização da doutrina militar, do armamento e do equipamento. [sublinhados nossos]

E é para assegurar a disponibilidade e prontidão nesses domínios que se adequa a organização militarizada desta força de segurança interna como "corpo de tropas" e a condição militar dos seus agentes e se pode, à face da Constituição, exigir deles a sujeição a um mais rígido estatuto disciplinar do que o aplicável à generalidade das forças de segurança, considerando-os incluídos no conceito constitucional de "militar" para efeitos da exceção prevista na alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição. [sublinhado nosso]”

Não tem, assim, sustentação o entendimento seguido pelo tribunal a quo segundo o qual o Requerente, ora Recorrido, sendo militar da GNR, não é um membro das Forças Armadas ou militarizadas, não cabendo na letra da lei expressa na alínea k) do n.º 1 do artigo 82.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Na verdade, o que se extraí da Lei e da jurisprudência citadas, é a conclusão contrária, sustentada pela aplicação do estatuto da “condição militar” aos militares da GNR e pela prossecução de atribuições mediante um esquema organizatório que é decalcado totalmente do que se verifica em relação aos militares das Forças Armadas, estando os seus membros organizados segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos, o pessoal distribuído por "Armas" e "Serviços" e organizado por unidades de comando e regimentos. Ou seja, é inequívoca a natureza militar da GNR.

Deste modo, tem que proceder o recurso e revogar-se a sentença recorrida.

De acordo com o que se vem de deixar estabelecido, o exercício de funções pelo ora Recorrido – militar da GNR - no seio de tal instituição encontra-se abrangido pela previsão legal constante da alínea k) do nº 1 do artigo 82º do Estatuto da Ordem dos Advogados, não podendo proceder a sua pretensão de ser inscrito na O.A. como advogado estagiário. Sendo que decorre do preceituado no artigo 6º, nº 2, al. i) do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários - Regulamento n.º 913-C/2015 de 28 de Dezembro -, que “2 - Sem prejuízo de outros elementos ou documentos que venham a ser considerados necessários nos termos legais, o requerimento de inscrição de Advogado estagiário é instruído com os seguintes documentos: (…) i) Declaração, sob compromisso de honra, datada e assinada pelo requerente, de não estar em situação de incompatibilidade com o exercício da Advocacia, nos termos dos artigos 81.º e seguintes do EOA”; o que não logra ocorrer.

Termos em que se terá que julgar a intimação improcedente.



III. Conclusões

Sumariando:

i) A GNR, além das atribuições policiais que de ordinário lhe competem, pode ser chamada a desempenhar tarefas que consistem na aplicação extrema da força do Estado e no controlo da violência, o que justifica a sua organização militarizada e o estatuto militar dos seus agentes. Desde sempre legalmente definida como tendo natureza militar, cabia e cabe na sua missão geral colaborar na execução da política de defesa nacional nos termos da Constituição e da lei, podendo em caso de guerra ou em situação de crise as forças da Guarda ser chamadas a cumprir, em colaboração com as Forças Armadas, as missões militares que lhe forem cometidas.

ii) O exercício de funções no seio de tal instituição encontra-se abrangido pela previsão legal constante da alínea k) do nº 1 do artigo 82º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

iii) Pelo que tem que soçobrar a pretensão do ora Recorrido, militar da GNR, em ver aceite pela Ordem dos Advogados a sua inscrição como advogado estagiário.



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da secção do contencioso administrativo deste tribunal central administrativo sul em:

- Conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida; e

- Julgar improcedente a intimação e absolver a Entidade Requerida, ora Recorrente, do pedido.

Sem custas (art. 4.º, n.º 2, al. b), do RCP).

Lisboa, 12 de Setembro de 2019



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Pedro Marchão Marques


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Paula de Ferreirinha Loureiro


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Jorge Pelicano