Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1437/09.5BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:06/04/2020
Relator:BENJAMIM BARBOSA
Descritores:IRC – FACTURAS FALSAS
Sumário:O acto tributário vale pelos elementos e pela fundamentação que integra e não por quaisquer outros que venham a ser invocados a posteriori, sendo irrelevante a alegada irregularidade formal das facturas desconsideradas que estão na base da liquidação adicional, se tal irregularidade não consta da fundamentação da liquidação impugnada.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

1. Relatório

1.1. As partes

L….., Ld.ª, não se conformando com a sentença do TAF de Sintra que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional relativa a IRC do exercício de 2005, veio interpor recurso jurisdicional.


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1.2. O objecto do recurso

1.2.1. Alegações

Nas suas alegações a recorrente formulou as seguintes conclusões:

1.ª Vem o presente recurso interposto da Douta Sentença proferida no âmbito dos presentes autos, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, no âmbito do processo n.° 1437/09.5BESNT, a qual julgou totalmente improcedente a impugnação judicial apresentada pela ora Recorrente contra o acto de liquidação de IRC, relativa ao exercício de 2005, com o número ….., emitida pelo Serviço de Finanças de Oeiras — 3 (Algés) em 24 de Agosto de 2009, no valor de €21.558,57, e, bem assim, da liquidação de juros compensatórios n° ….. de 28 de Agosto de 2009 no valor de €2.740,59, ambas incorporadas na demonstração de acerto de contas n° ….. de 28 de Agosto de 2009 no valor total de €24.299,12.

2.ª Entende a ora Recorrente que, salvo o devido respeito, na Douta Sentença se verifica uma falta de fundamentação de facto e de direito, violação de normas jurídicas e erro de julgamento e erro de subsunção dos factos ao direito, o que impunha outra decisão do Meritíssimo Juiz a quo.

3.ª Invocou a aqui Recorrente que a liquidação impugnada, não está de todo fundamentada, nos termos do artigo 77.° e seguintes da LGT, devendo por conseguinte ser declarada nula nos termos dos artigos 133° n.° 2 al. d) e 134° n°. 1 do CPA, argumento que não logrou colher qualquer procedência na sentença recorrida, pois que, na verdade, nem sequer mereceu a devida apreciação.

4.ª Ora, considerando ser o relatório de inspecção a fundamentação do acto tributário impugnado, - que não se concede, porquanto a fundamentação tem de ser contemporânea do acto, devendo igualmente integrar o mesmo, o que, in casu, não sucede, o que foi devidamente invocado na petição inicial de impugnação, não tendo o tribunal a quo se pronunciado, o que configura manifesta omissão de pronúncia, que a lei cominada com nulidade, nos termos da al. d) do n.° 1 do art.° 615.° do CPC - sempre o mesmo padece de vício grave de falta de fundamentação.

5.ª Com efeito, o relatório de inspecção tributária referido no artigo anterior não preenche os requisitos exigidos pelo n.° 3 do artigo 268.° da Constituição da República Portuguesa nem pelo artigo 77.° da Lei Geral Tributária, uma vez que a AT não identifica expressamente quais são as facturas desconsideradas que levam à decisão de correcção e não identifica o valor individual de cada uma das facturas que foi desconsiderada.

6.ª Ora, da fundamentação do acto de liquidação impugnado, rectius, relatório de inspecção tributária, resulta que, pela AT, foram apurados "indícios sérios e credíveis de que determinada operação titulada por uma factura não é real' — cfr. relatório de inspecção inserto nos autos.

7.ª E esses "indícios sérios e credíveis" resultam do facto de ter concluído a AT que as facturas emitidas pela B….. Lda. em benefício da Recorrente são falsas porque o Sr. B….., ouvido em auto de declarações, terá afirmado que no início de actividade apenas terá mandado fazer três livros de facturas numa tipografia em Odivelas e um livro numa tipografia no Cacém, tendo acrescentado que, a partir daí, todas as facturas têm sido impressas em Beja, na T….., Lda.

8.ª Ora, segundo um juízo de normalidade, não é razoável que seja utilizado como único meio de prova da falsidade das facturas o depoimento de um contribuinte, que, além do mais, é o principal Arguido indiciado pelo crime de falsificação de facturas!

9.ª Pelo que é manifesto que a fundamentação do acto de liquidação, bem como do relatório de inspecção tributária, não proporcionaram à Recorrente a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela AT para tomar a decisão.

10.ª Nem tão pouco poderá justificar a inversão do ónus da prova ocorrido.
a. Pelo que incorreu a sentença de erro de julgamento e violação de lei, concretamente dos artigos 268.° n.° 3 da Constituição da República Portuguesa e 77.° da Lei Geral Tributária.

Acresce-que:

11.ª Pelas razões acima aventadas, permanece a Recorrente no desconhecimento de quais as prestações "concretamente desconsideradas pela Adm. Fiscal'.

12.ª Ora, tal como resulta do artigo 72.° da LGT bem como do artigo 114.° e 115.° n.° 1 do CPPT, no processo judicial tributário, para prova dos factos alegados pela Recorrente valem os meios gerais de prova previstos no Código de Processo Civil, nomeadamente a prova documental junta aos autos, e a prova testemunhal produzida em audiência.

13.ª E no que à prova testemunhal produzida logrou-se provar, pela coerência e unanimidade das testemunhas, que as facturas em crise correspondem a trabalhos efectivamente prestados à Recorrente, tendo as facturas sido integralmente pagas pela Recorrente.

14.ª Com efeito, por todas as testemunhas foi unanimemente e de forma coerente e credível afirmado que todas as facturas emitidas pela B….. Lda. à Recorrente correspondem a serviços que foram efectivamente prestados.

15.ª De todo o acabado de expor, resulta à abundância que da prova testemunhal produzida se devia ter considerado suficientemente demostrado que os serviços presentes nas facturas emitidas pela B….., Lda. correspondiam a serviços efectivamente prestados pela subempreiteira à Recorrente.

16.ª Sendo que o tribunal a quo não efectuou uma análise crítica ao depoimento de cada uma das testemunhas.

17.ª Pois que o tribunal a quo deveria ter indicado expressamente, por um lado, quais dos factos provados que cada testemunha revelou conhecer e, por outro, explicitar quais os elementos que dos mesmos permitem inferir a interpretação e conclusão a que o tribunal chegou.

18.ª Não o tendo feito, violou o Tribunal a quo o estatuído no actual n° 4 do artigo 607° do Código de Processo Civil.

19.ª Pelo que é a sentença de que ora se recorre nula, por manifesta insuficiência de fundamentação, nos termos da al. b) do art.° 615.° do CPC.

20.ª Acresce que, como acima se deixou demonstrado, os factos alegados pela AT para fundamentar a decisão de aplicação de correcções técnicas, não constituem prova que revele qualquer indício fundado de que as operações tituladas pelas facturas não foram efectivamente realizadas,

21.ª Uma vez que, o único elemento probatório apresentado pela AT limita-se às declarações prestadas pelo principal suspeito do processo-crime por fraude fiscal,

22.ª Prova essa que aliás, é contrariada não só pelas declarações apresentadas pela Recorrente, bem como por toda a documentação fiscal apresentada pela mesma durante o procedimento de inspecção tributária e junta aos presentes autos, e, bem assim pela produção da prova testemunhal.

23.ª Posto isto, é indiscutível que a AT não cumpriu o ónus da prova dos pressupostos constitutivos do direito a efectuar correcções, imposto pelo artigo 74.° n.° 1 da LGT.

24.ª Porquanto o único e singelo facto em que a AT se alicerçou para proceder às correcções que resultaram no acto de liquidação impugnado foi, tão-somente, o depoimento do gerente da sociedade prestadora de serviços quanto ao facto de não se recordar de ter requisitado a emissão de facturas a uma determinada tipografia.

25.ª Pelo que ao considerar que a AT cumpriu o ónus da prova a que estava obrigada dos pressupostos constitutivos do direito a efectuar correcções, violou o Tribunal a quo o princípio da legalidade em sentido material e, bem assim, o art.° 74.° n.° 1 e 3 da LGT.

26.ª Incorrendo a sentença  ora recorrida de manifesto erro de julgamento.

27.ª Resulta também da sentença de que ora se recorre que "Quanto às obras efectuadas verifica-se que não obstante a facturação aos clientes, não possuía a Recorrente uma contabilização por obra em que se reflectisse os custos incorridos e os ganhos verificados, nem de contratos de empreitada, não resultando qualquer documentação comprovativa da realização de qualquer subempreitada relativamente às facturações ora controvertidas."

28.ª Ora, não alcança nem da sentença ora recorrida nem dos elementos de prova juntos aos autos donde resulta a ilação retirada pelo Tribunal a quo e acima transcrita.

29.ª Porquanto não resulta da matéria de facto assente, nem, sequer, dos elementos de prova juntos aos autos que a Recorrente não possuía uma contabilização por obra em que reflectisse os custos incorridos.

30.ª Pelo que também pelas razões acima descritas padece a sentença ora recorrida de falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão.

31.ª Vício da sentença que a lei comina com nulidade que expressamente se deixa arguida, nos termos da al. b) do n.° 1 do art.° 615.° do CPC.

32.ª Acresce que, nas facturas estão discriminados os serviços prestados e da prova documental produzida nos autos resultam os cheques emitidos para pagamento das mesmas.

33.ª Prova documental que é inteiramente desconsiderada pelo Tribunal a quo, simplesmente pelo facto de não ser possível conciliar os respectivos meios de pagamento com os autos de medição.

34.ª Sem se atender ao facto de ser possível, sem qualquer margem para dúvida, relacionar os referidos meios de pagamento com as facturas em crise.

35.ª Nas quais, por sua vez, se encontram discriminados os serviços que foram prestados. Sendo que quanto à sua efectivação se encontra devidamente demonstrada nos presentes autos através da prova testemunhal produzida, através da inquirição de seis testemunhas, também ela desconsiderada pelo Tribunal a quo.

36.ª No que respeita ao facto de terem os cheques sido emitidos alegadamente a favor de "pessoas singulares", não resulta da matéria de facto assente a que pessoas singulares se refere o ilustre Tribunal.

37.ª Pelo que resulta patente a falta de fundamentação de facto de que padece a sentença, o que a lei comina com nulidade da mesma, e que aqui expressamente se deixa invocada.

38.ª Face a todo o acabado de expor, padece a sentença de que ora se recorre de falta de fundamentação de facto e de direito, violação de normas jurídicas e erro de julgamento e erro de subsunção dos factos ao direito, o que impunha outra decisão do Meritíssimo Juiz a quo.

Devendo, por tal motivo, ser revogada e substituída por uma decisão que dê provimento à pretensão da Recorrente.


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1.2.2. Contra-alegações

A recorrida Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.


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1.2. Parecer do Ministério Público

Neste TCA Sul a EMMP emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.


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1.3. – Questões a decidir
- Omissão de pronúncia na sentença;
- Erro na fixação da matéria de facto e na motivação desta;
- Sindicar se foram observados os ónus de demonstração dos indícios que justificam a desconsideração de facturas e de demonstração da materialidade das operações alegadamente simuladas.

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2. Fundamentação

2.1. De facto

2.1.1. A sentença considerou provados os seguintes factos:
1. No âmbito de uma acção de fiscalização interna efectuada à sociedade “L….., Ldª” foram efectuadas correcções ao lucro tributável de IRC do exercício de 2005 e procedeu-se a liquidação adicional de imposto, com o nº ….. e respectivos juros compensatórios no valor total de € 24.299,16, tendo sido enviado carta registada a notificar o contribuinte da demonstração da liquidação de imposto e para pagamento do imposto, a qual foi recebida pelo destinatário – cfr Demonstração de Liquidação e Documento de Cobrança de imposto e de juros de fls 33 a 35, dos autos.
2. A correcção mencionada em 1 resultou do Parecer e Despacho, de 04.08.2009 e de 06.08.2009, respectivamente, de fls 37 e 38, efectuadas com base nas “ conclusões do relatório” de fls. 39, fundamentadas no Relatório de análise interna elaborado pelos serviços de inspecção, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido e do qual consta, designadamente que, na análise aos subempreiteiros não são aceites fiscalmente como custos fiscais as facturas do fornecedor aí identificado, em virtude dos mesmos respeitarem a operações de natureza simulada relativamente às prestações de serviços efectuadas pela sociedade ,“ B….., Ldª ”, por dizerem respeito a subempreitadas prestadas por entidade que se verificou não terem requerido a emissão de livros de facturas da tipografia “I….., ldª”, que titulam alguns dos serviços prestados ao sujeito passivo e a falta de comprovação da existência de pagamentos ao fornecedor . – cfr Relatório da I.T. de fls 220 a 286, do P.A. apenso aos autos

3. Tendo sido elaborado o projecto do relatório da I.T nos termos do disposto no n° 1, do art° 60° do RCPIT, enviada ao interessado para o respectivo domicílio fiscal, tendo este exercido o direito de audição no prazo estabelecido para o efeito, foi emitido o Relatório Final devidamente notificado ao interessado - cfr Oficio de fls 36, dos autos e Relatório da I.T. de fls 220 a 286, do P.A. apenso.

4. Dão-se aqui por reproduzidos os documentos de pagamento titulados por cheque, constantes de fls 50 a 68, e de fls 190 a 202, extracto da conta corrente do fornecedor, de fls 76 a 78 , dos autos.

5. No âmbito da angariação da subempreitada referida em 2, intervinha como intermediário o senhor A….., que era funcionário da impte em 2005. – cfr art° 55° da pá. e depoimento das testemunhas arroladas nos autos e “Prints Informáticos” de fls 278 a 280, e “Acta de Inquirição” de fls 281 e segs,dos autos.


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2.1.2. Factos Não Provados na sentença

Dos factos com interesse para a decisão da causa e constantes da impugnação, todos objecto de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita.


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2.1.3. Motivação da decisão de facto

Quanto à MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO, a sentença referiu:

“A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais, não impugnados, que dos autos constam, tudo conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório, sendo que os depoimentos das testemunhas arroladas não permitem comprovar que as operações efectuadas diziam respeito às prestações de serviço concretamente desconsideradas pela Adm. Fiscal, sendo que atento o conhecimento pessoal dos factos em resultado do exercício de funções na impte, resulta confirmado a intervenção do senhor A….., como intermediário nos negócios estabelecidos com a referida prestadora de serviços”.


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2.2. De Direito

2.2.1. Da Nulidade da sentença por omissão de pronúncia

Arguiu a recorrente que a sentença está viciada de nulidade por não ter conhecido da questão da falta de fundamentação da liquidação impugnada, que suscitou (conclusões 3.ª e 4.ª), nulidade que também resulta da sua própria “manifesta insuficiência de fundamentação” (conclusão 14.ª), e de não ter especificado os fundamentos de facto que justificam a decisão (conclusão 37.ª)

Vejamos.

Nos artigos 4.º e ss. da p.i. da impugnação a recorrente refere-se à fundamentação da liquidação, concluindo no artigo 10.º da mesma p.i. que o acto é inválido por falta de fundamentação.

Na conclusão 5.ª insiste que, mesmo que se considere que a fundamentação se corporiza no relatório de inspecção, este não tem a virtualidade de fundamentar a liquidação, por manifesta insuficiência.

Sobre estas questões – e de verdadeiras questões em sentido adjectivo se trata se trata, pois que estes temas, que sinalizam uma das vertentes de discordância da impugnante, ora recorrente, com o acto impugnado, a ser considerados procedentes determinam a erradicação da liquidação do mundo jurídico – a sentença discorreu neste termos:

Quanto à falta de fundamentação do acto tributário dir-se-á que do probatório resulta medianamente claro que as razões da alteração do lucro tributável ao s.p. decorriam necessariamente da desconsideração dos custos incorridos pelo impte, em razão da desconsideração em concreto de determinadas facturas e não todas, i. e. a do relatório da I.T. apura-se que foram consideradas como não representando operações reais da subempreiteira as que foram emitidas através da tipografia “IGM” e não das demais facturas passadas pelo mesmo prestador através da empresa de tipografia “B…..”, pelo que se terá de concluir que efectivamente, a impte terá incorrido naqueles custos titulados por esta última que não foram questionados nem alvo de correcção. Assim bem entendeu o impte na sua pá. que expressamente se refere às operações que alegadamente terá acordado com o referido subempreiteiro, pretendendo demonstrar que as mesmas correspondiam a serviços a si prestados por aquele prestador.

Torna-se já ocioso repetir que a jurisprudência encara uniformemente a nulidade por omissão de pronúncia – prevista para o processo tributário no artº.125, nº.1, do C. P. P. Tributário[1] - como uma nulidade absoluta, isto é, quando o tribunal omite toda e qualquer pronúncia sobre uma questão concreta e não quando apenas se pronuncia de modo insuficiente, medíocre ou contido sobre certa questão. E questão, sublinhe-se, não é todo e qualquer argumento esgrimido pelas partes mas apenas as parcelas ou componentes do pedido posto à apreciação do tribunal, ou seja, as pretensões formuladas, que justificam a sua procedência na perspectiva da parte que a(s) alegou[2].

Nessa apreciação o juiz não está obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos em que as partes suportam o seu ponto de vista, nem tão pouco está sujeito às razões jurídicas por elas invocadas, atento o princípio plasmado no art.º 664.º do CPC, actual art.º 5.º, do mesmo diploma, versão actual.

Ora, a esta luz é manifesto que a sentença conheceu das questões relativas à falta de fundamentação do acto impugnado, que a recorrente suscitou na petição inicial.

Não se verifica, por conseguinte, que com tais fundamentos haja qualquer nulidade por infracção ao disposto no actual artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, correspondente ao artigo 668.º na redacção do CPC vigente na data da sentença.


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2.2.2. Dos vícios da matéria de facto fixada na sentença

Mas a recorrente não se restringe, no ataque que faz aos vícios da sentença, a perspectivar a sua nulidade com fundamento, apenas, na referida omissão de pronúncia.

Também a questiona por não ter convocado a matéria de facto pertinente para a decisão.

A tese é de que a sentença não se serviu de factos que foram testemunhal e documentalmente provados, do mesmo passo que se serviu de outros factos que nem sequer foram invocados no RIT.

E temos de reconhecer que, neste aspecto, a recorrente tem razão.

Na verdade, a exígua matéria de facto convocada pela sentença só por milagre poderia permitir uma correcta subsunção dos factos ao direito em ordem a resolver, satisfatoriamente, as questões suscitadas pela recorrente na sua impugnação.

Como também tem razão quando afirma que a sentença “não efectuou uma análise crítica ao depoimento de cada uma das testemunhas”, visto que foi omitida a referência expressa aos “factos provados que cada testemunha revelou conhecer” e aos “elementos que dos mesmos permitem inferir a interpretação e conclusão a que o tribunal chegou”.

De facto, é patente que nenhum esforço foi feito na dita motivação da matéria de facto da sentença que permita perceber porque razão concreta os “depoimentos das testemunhas arroladas” não permitiram “comprovar que as operações efectuadas diziam respeito às prestações de serviço concretamente desconsideradas pela Adm. Fiscal”, sendo até incompreensível que se diga que “atento o conhecimento pessoal dos factos em resultado do exercício de funções na impte, resulta confirmado a intervenção do senhor Abu Sissé, como intermediário nos negócios estabelecidos com a referida prestadora de serviços”.

Por outro lado a sentença, quanto aos factos não provados exarou o seguinte:

“Dos factos com interesse para a decisão da causa e constantes da impugnação, todos objecto de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita”.

Não é possível inferir, desta pretensa descrição dos factos não provados, quais são os que foram efectivamente considerados como tal.

Parece que há uma tentativa de os delimitar pela negativa. Elencados os factos provados todos os demais seriam não provados. Será conforme ao regime processual aplicável esta fórmula?

No processo civil o juiz tem o dever de discriminar os factos que julga provados, como claramente impõe o art.º 607.º, n.º 3, do CPC e impunha o artigo 659.º, n.º 3, do mesmo diploma, na redacção vigente à data da sentença.

Discriminar tem o significado de diferenciar, distinguir, destrinçar, discernir, separar, especificar. Portanto, a observância desta norma por parte do juiz impõe-lhe que concretize os factos provados através da  sua enunciação ou exposição.

Quanto aos factos não provados não parece que a exigência vá tão longe, bastando a mera declaração dos mesmos, como decorre agora do artigo 607.º, n.º 4, do CPC, situação que na versão anterior do CPC não estava prevista.

Neste aspecto o CPC aproximou-se da solução prevista no artigo art.º 123.º, n.º 2, do CPT, que determina que o juiz discrimine “a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões”.

A propósito deste preceito refere JORGE LOPES DE SOUSA:

«A razão da exigência de indicação da matéria de facto não provada, além da provada, que não aparece no art. 659.º, n.º 2, do CPC, «está em que, no contencioso tributário, não há lugar à decisão da matéria de facto, por meio de acórdão ou despacho, próprios e autónomos, como acontece no processo civil - artº 653º nº 2 -, em que se exige a indicação dos "factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados". No contencioso tributário, é na própria sentença que se opera tal julgamento.

Aí, pois, a exigida discriminação dos factos provados e não provados é absolutamente essencial pois que não existe outra peça processual que concretize tal julgamento da matéria de facto. Compreende-se assim a não referência, no art.º 659.º do CPCivil, aos factos não provados pois que, aí, na sentença, não resta se não aplicar o direito aos factos provados, já que, como é óbvio, os não provados não interessam para o efeito.

É, pois, a necessidade absoluta de julgamento da matéria de facto efectuada, no contencioso tributário, na própria sentença, que leva directamente à exigência da predita discriminação entre "a matéria provada da não provada"[3].

Ainda que se admita que o art.º 123.º, n.º 2, do CPPT, não exige uma descrição textual e exaustiva de cada facto não provado, bastando-se com uma simples remissão para os artigos dos articulados, ainda assim parece ser indiscutível que não basta referenciar os factos não provados por mera exclusão daqueles que foram considerados provados.

É que a selecção da matéria de facto abrange, apenas, os factos provados e não provados que o juiz considera essenciais para a solução do litígio, pelo que a indicação dos segundos é fundamental para as partes poderem efectuar um controlo eficaz do julgamento relativo à matéria de facto, designadamente invocando a essencialidade de um facto que não foi considerado como tal pelo julgador.

No caso sub judice o Senhor Juiz a quo limitou-se, como já se disse, a uma declaração negativa dos factos provados, o que não cumpre as exigências processuais.

Donde, sendo patente que a motivação é deficiente e que a indicação dos factos não provados é, de um ponto de vista processual, inexistente, importa reconfigurar o probatório ao abrigo do disposto no artigo 662.º do CPC, não sendo, no entanto, de operar uma reconstrução total do mesmo visto que apesar das deficiências apontadas à matéria de facto fixada na sentença, ainda assim é possível aproveitar os factos provados, alicerçados na documentação dos autos e no PI, em relação aos quais nenhuma dúvida probatória e motivacional se suscita.

Com a achega que resulta da circunstância de se ter produzido supervenientemente um facto com indiscutível relevância na decisão da causa, facto esse que deve ser tido em conta porque assim o impõe o artigo 611.º do CPC.


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2.2.3. Da revogação da sentença e do conhecimento do mérito da impugnação:

Em face do exposto, considerando os vícios em matéria probatória de que padece a sentença, esta deve ser revogada.

Assim, na sequência lógica dessa revogação, para a decisão da impugnação consideram-se fixados os seguintes:

2.2.3.1. Factos provados:

A - Os considerados como tal no probatório da sentença, que aqui se dá como reproduzido nessa parte (Prova: a documentação dos autos e do PI);

B – Aditam-se os seguintes factos:
6. A recorrente foi declarada insolvente por sentença de 14-12-2011 do 2.º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa (proc. n.º 1776/11.5TYLSB), publicada, por extracto, no DR, II Série, n.º 3, de 04-01-2012)
7. Por despacho proferido no processo de inquérito n.º 63/07.9TLSB, em que figurava como arguida a ora recorrente e outros, foi o mesmo arquivado por não se ter indiciado com suficiência a prática de crime de fraude fiscal por parte da recorrente, em relação às facturas em causa nestes autos (Prova: doc. de fls. 376 e ss. dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, documento que não foi impugnado pela recorrida).
8. Consta do RIT, a fls. 226 e 227, o seguinte:

“III-1. — Correcções aritméticas, em sede de IRC III-1-1 — Custos não aceites fiscalmente

111-1.1.1. — B….. Construção Civil Lda

Da análise aos elementos anteriormente referidos, nomeadamente no ponto 11-2., concluiu-se que alguns dos suportes formais (facturas ou documentos equivalentes) aos custos contabilizados pelo sujeito passivo L…. LDA, no exercício de 2005, referentes aos serviços prestados pelo subempreiteiro B….. C o NIPC ….., que contribuíram, para o apuramento e declaração da lucro tributável do prestados pelo mesmo sujeito passivo em análise, não correspondem a serviços efectivamente prestados pelo mesmo.

Conforme consta da informação n.° ….., de 16.01.2007, da Direcção de Serviços de Investigação da Fraude e de Acções Especiais, o sócio gerente da sociedade, sr. B….., ouvido em auto de declarações, em 2006.07.04, o qual se junta como anexo III, afirmou que, no início da actividade, mandou fazer três livros de facturas numa tipografia em Odivelas e um livro numa tipografia no Cacém, tendo acrescentado que, a partir daí, todas as facturas têm sido impressas em Beja, na T….., LDA.

As duas primeiras tipografias utilizadas vieram a ser identificadas, através de facturas da sociedade B….. Construção Civil Lda, COMO sendo V….. e G….. LDA.

Para além das anteriormente mencionadas, foram ainda identificadas 15 outras tipografias, que não foram reconhecidas pelo Sr. B…...

Analisadas as facturas da B….. CONSTRUÇÃO CIVIL LDA contabilizadas pela L….. LDA em 2005, verifica-se que a tipografia identificada nalgumas delas, é a I….. LDA, tipografia esta que não corresponde a nenhuma das tipografias reconhecidas pelo sócio gerente da B….. Lda. A tipografia identificada nas restantes facturas é a T….., LDA.

Perante os factos apresentados, e como referido no ponto 11.2. do presente relatório, conclui-se que os suportes formais (facturas) dos custos contabilizados pelo sujeito passivo em análise e que contribuíram para o apuramento do seu lucro tributável, relativos a s serviços prestados por B….. LDA, titulados pela facturas emitidas ela tipografia I…. LDA indiciam referir-se a serviços que efectivamente não foram prestados por esta entidade.

Procedeu-se à relação e quantificação das facturas, formalmente emitidas, respeitantes a esta última tipografia, com referência ao exercício de 2005, a qual se junta como anexo IV, apurando-se um valor de custos a corrigir, no montante de € 78.394,82.

Pelos factos descritos, nomeadamente a consideração de custos não aceites fiscalmente, infringiu o sujeito passivo o disposto nos art." 23.° e 42.° n.° 1 al. g), ambos do CIRC.

 (…)

(Prova: a documentação dos autos e do PI)


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2.2.3.2. Factos não provados

Não há factos não provados com interesse para a decisão da causa que importe discriminar.


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2.2.4. Da ilegalidade da liquidação

Está em causa nos presentes autos a desconsideração de custos alegadamente suportados por facturação que, na perspectiva da AT, é falsa.

Como é sabido, constitui jurisprudência corrente que em casos de facturação falsa compete à AT provar os pressupostos que legitimam a sua desconsideração, competindo ao sujeito passivo a prova da materialidade das operações tituladas pela facturação alegadamente falsa.

Como resulta evidenciado nos autos, a IT considerou que a “Contabilização de custos, corporizados por facturas formalmente emitida(s) em nome do(s) prestador(es) de serviços B….. Lda. com o NIPC: ….., que não correspondem a serviços efectivamente prestados (negócio jurídico simulado) no(s) montante(s), respectivamente, de € 78.394,82” (fls. 221 do PI).

Dessa desconsideração resultou terem sido efectuadas correcções ao lucro declarado de € 25.535,06, para o montante de € 103.929,88, que face aos prejuízos reportados de anos anteriores deu origem a uma matéria tributável de € 96.708,36.

A tese da recorrente é de que essas facturas titulam serviços efectivamente prestados, sendo que a desconsideração das facturas se apoia exclusivamente nas declarações do legal representante da B….., não apresentando qualquer meio de prova, válido e substancial, de que a facturação é falsa.

Invoca em seu benefício toda a demais documentação, incluindo contratos celebrados e provas relativas ao pagamento dos serviços prestados, que a AT não relevou.

Como se disse no âmbito do inquérito criminal o Ministério Público concluiu que não era possível afirmar que os serviços não foram prestados, tendo arquivado o inquérito contra a recorrente com base nesse raciocínio.

Notificada do documento apresentado pela recorrente a recorrida Fazenda Pública (FP) veio dizer que, não obstante as facturas não conterem “os elementos para tipificar o crime de facturas falsas”, ainda assim não servem para documentar os custos em termos fiscais.

Ao aceitar que as facturas não são susceptíveis de “tipificar o crime de facturas falsas” a FP desloca o punctum saliens da questão sub judice, da inexistência dos serviços para a inidoneidade formal dos documentos que suportam os custos.

Uma alteração importante, radical, como é evidente.

Alteração essa que consubstancia uma nova argumentação em relação à defesa do acto impugnado, visto que anteriormente a FP, apoiando-se no RIT, sempre sustentou a tese da inexistência dos serviços facturados, tese que agora julga não verificada.

Sucede que vigora para o direito administrativo em geral, e portanto também para o direito tributário, o princípio da contextualização do acto, “que significa que este vale por si, pelos elementos intrínsecos que contém e que o compõem. Por isso qualquer argumentação a posteriori é irrelevante, como também o é qualquer alteração legal posterior que venha a acolher a solução contida no acto. Este princípio tem inteira aplicação no contencioso tributário, de resto com o carácter reforçado que resulta do princípio da irretroactividade da lei fiscal. Como assim, o acto tributário vale pela fundamentação que incorpora e não por qualquer outra que seja invocada posteriormente em sede graciosa ou contenciosa”[4].

Como a tese da inidoneidade das facturas para comprovação dos custos que lhes estão associados – não pela sua falsidade mas antes por falta de adequação formal – não foi abordada sequer no RIT (que como se sabe constitui o discurso fundamentador do acto de liquidação subsequente), ela é de todo imprestável para conferir legalidade a um acto que, como aceita a recorrida, está ferido de ilegalidade por erro nos seus pressupostos de facto, uma vez que considerou que as facturas titulavam operações simuladas (facto n.º 8 in 2.2.3 supra), com base, unicamente, nas declarações de B….. e na circunstância das facturas terem sido imprimidas em tipografia que este não reconheceu.

Nada mais foi averiguado, designadamente o circuito dos meios de  pagamento relativos às facturas, que poderia eventualmente demonstrar a simulação que alegadamente lhes estava associada.

E, claro está, não se relevou que B….. não soubesse ler nem escrever como este reconheceu nas suas declarações.

Em sentido inverso a impugnante produziu prova, nestes autos, do pagamento das facturas e do circuito de pagamento, além de ter apresentado testemunhas que corroboraram esses pagamentos e a efectiva prestação dos serviços, como de resto o Ministério Público, no inquérito criminal, assim concluiu.

A circunstância dos depoimentos terem sido prestados por testemunhas que mantiveram relações de trabalho ou outra com a recorrente não pode impressionar, por duas ordens de razões.

Em primeiro lugar a lei é actualmente mais permissiva no tocante à admissibilidade do depoimento de pessoas que tenham uma relação de interesse directo com a causa, como sucede com a prova por declarações de parte, admitida agora pelos artigos 446.º e ss. do CPC, contrariamente ao que sucedia no regime pregresso. As declarações de parte são hoje encaradas numa perspectiva de prova plena, enformadas da mesma credibilidade das demais provas legalmente admissíveis, como decorre do artigo 446.º, n.º 3, do CPC actual, devendo ser apreciadas livremente pelo tribunal (neste sentido, Ac. do TRG de 02/05/2016, proc. n.º 2745/15.1T8VNF-A.G1).

Ora, se assim é em relação a quem tem um interesse pessoal e directo na causa, por maioria de razão o há-de ser em relação a quem esse interesse é meramente indirecto, reflexo ou difuso, como sucede com os trabalhadores, colaboradores, clientes ou fornecedores de um sociedade que figure como parte no litígio onde o seu testemunho é prestado.

É do senso comum que uma testemunha só terá interesse em mentir se tiver alguma conexão com o objecto da causa, de ordem relacional ou de vantagem. Em sentido contrário uma testemunha que não espere qualquer benefício do desfecho da causa, ainda que meramente intelectual, será em princípio uma testemunha idónea e imparcial.

No caso presente bastaria atentar que a inquirição de testemunhas nos autos é posterior ao momento da declaração de insolvência da recorrente para se concluir que qualquer interesse pessoal dessas pessoas há muito que se teria eclipsado.

Donde, ser de concluir, tal como o Ministério Público, que não existem indícios da facturação em causa corresponder a serviços não prestados. O que significa que a Fazenda Pública não integrou o ónus que sobre si recaía.

Pelo contrário, logrou a recorrente demonstrar a materialidade das operações em causa, satisfazendo o ónus que sobre si impendia.

E assim sendo, impõe-se concluir que a liquidação em causa padece de erro nos pressupostos de facto, vício que determina a sua anulação, e concomitantemente, de vício de violação de lei, por indevida aplicação da norma de incidência em sede de IRC, determinada por esse erro de facto cometido pela IT, ao considerar que as facturas em causa não titulavam operações reais e que, como tal, ocorria infracção ao disposto nos artigos 23.º e 42.º, n.º 1, al. g), ambos do CIRC, na redacção então vigente.

O que tanto basta para anular a liquidação, sem necessidade de abordar os demais vícios que lhe foram imputados pela recorrente.


*

3. Dispositivo

Em face de todo o exposto acordam em negar conceder provimento ao recurso e, consequentemente:
- Revogar a sentença recorrida;
- Julgar a impugnação procedente, anulando a liquidação impugnada.

Custas pela Fazenda Pública.

D.n.

Lisboa, 2020-06-04

Benjamim Barbosa

Ana Pinhol

Isabel Fernandes

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[1]     Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e Processo Tributário Anotado e Comentado, I volume, Áreas Editora, 5ª. edição, 2006, pp. 911 e ss..
[2]     Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, pp..53 a 56 e 142 e seg.; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p.690; Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2ª. edição, Coimbra, Almedina, 2009, p.37.
[3]     Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, op. cit. p. 320.
[4] Ac. do TCAS de 25-06-2019, proc. n.º 15/19.5BCLSB