Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:385/08.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:12/03/2020
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:IVA
COMISSÕES PAGAS A SOCIEDADES EMITENTES SUJEITAS A UM REGIME FISCAL PRIVILEGIADO
FACTURAS FALSAS
Sumário:I - O facto de as sociedades emitentes das facturas estarem sujeitas a um regime fiscal mais favorável não determina, por si só, e para efeitos de IVA, uma inversão do ónus da prova, em termos que faça depender a dedução do imposto da prova de que as operações foram efectivamente realizadas, antes mesmo que a AT reúna indícios fortes e seguros da não materialidade das operações, isto é, da falsidade das facturas.
II – O regime dos pagamentos a entidades não residentes sujeitas a um regime fiscal privilegiado, à data previsto no artigo 59º do CIRC, para o IRC, não encontra paralelo, nos seus exactos termos, para efeitos de IVA.
III - Quando a AT desconsidera facturas que reputa de falsas, aplicam-se as regras do ónus da prova do artigo 74.º da LGT, competindo à Administração fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação, ou seja, de que existem indícios sérios de que a operação constante da factura não corresponde à realidade. Feita esta prova, passa a recair sobre o sujeito passivo o ónus da prova da veracidade da transacção.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul



l – RELATÓRIO


A Fazenda Pública, inconformada com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial deduzida pela O..., SA., contra as liquidações adicionais de IVA de 2004 e respectivos juros compensatórios, no valor global de € 16.286,99, dela veio interpor o presente recurso jurisdicional.

Em sede de alegações, a Recorrente formulou as seguintes conclusões:


«Imagem no original»

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A Recorrida apresentou contra-alegações que concluiu assim:
1.ª A Lei não faz depender a dedução do IVA da demonstração pelo contribuinte da efectividade dos serviços prestados.
2ª. Não obstante, a Recorrida demonstrou a efectividade dos serviços prestados pelas Sociedades “G...” e “B...”, mediante a apresentação dos contratos, facturas e documentos equivalentes, passados em forma legal.
3ª. A efectiva prestação de serviços de mediação pelas Sociedades “G...” e “B...” e o seu know-how foram necessários para que fossem adjudicadas à Recorrida várias prestações de serviços aeronáuticos pelo Estado do Kuwait.
4ª. A contratação desses serviços enquadram-se num determinado contexto de âmbito político e estratégico, tendo tido um peso significativo nas relações comerciais e políticas entre o Estado do Kuwait e o Estado Português que, à data, detinha indirectamente a totalidade do capital social da Recorrida.
5ª. A Recorrida procedeu ao pagamento das comissões contratadas com a G... e a B... nos termos convencionados nos respectivos contratos facultados à Recorrente e após ter facultado e recebido o preço dos serviços prestados à Força Área do Kuweit.
6ª. A decisão da Recorrida de contratar as Sociedades “G...” e “B...” não está sujeita à apreciação discricionária da Autoridade Tributária, nem esta Autoridade fez qualquer prova de quaisquer factos impeditivos à usufruição desse direito da Recorrida.
7ª. A Recorrida fez prova suficiente da ocorrência das transacções em causa, devendo presumir-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na Lei, bem como os dados e o apuramentos inscritos na sua contabilidade.
8ª. Julgou pois correctamente a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo, na Douta Sentença recorrida.
Nestes termos e nos mais que V. Ex.as doutamente suprirão.
Deve ser julgado improcedente o recurso apresentado pelo Digno Representante da Pública, por não provado, devendo em concomitância ser mantida a Douta Decisão proferida, de anulação das liquidações de IVA e respectivos juros compensatórios, com as demais consequências legais.
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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Foram colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Adjuntos, pelo que importa apreciar e decidir, ao que nada obsta.
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II. Fundamentação

1. Matéria de Facto

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

“Compulsados os autos e analisada a prova documental apresentada, encontram-se assentes, por provados, os seguintes factos com interesse para a decisão:

1. A impugnante, O... – I..., SA. tem por objeto, resumidamente, i) a manutenção, reparação e modificação de aeronaves motores aviónicos, acessórios e equipamentos terra; ii) a fabricação e montagem de componentes e estruturas de aeronaves e de equipamento aeroespacial; iii) o estudo, desenvolvimento, ensaio e produção de material aeronáutico e aeroespacial e equipamentos militares, designadamente, armamento e outros sistemas afins; iv) a comercialização de todos os produtos fabricados e reparados bem como a dos direitos a eles inerentes, que constituem propriedade industrial das O..., SA., ou a ela interessam; v) prossegue ainda fins de interesse público dentro deste ramo de atividade – cfr. fls. 59 a 61 dos presentes autos;

2. Em 28/02/2002, é outorgado entre a impugnante e a empresa não residente, “G... TRADING COMPANY, LTD.” Contrato “ Agreement nº GZ/O.../01/02”, a fim desta prestar à impugnante serviços de marketing e intermediação, junto do Estado do Kuwait – cfr. fls. 73 a 98 dos presentes autos;

3. Em 1/06/2004, a impugnante celebrou o contrato (nº 001/2004), com a empresa não residente “B... ENGINEERING CORP”, a qual “se dedica à prestação de serviços de consultadoria para o Médio Oriente e Golfo Pérsico, nas áreas da defesa e desenvolvimento estratégico” – cfr. fls. 121 a 123 dos presentes autos;

4. No contrato referido no ponto anterior, a B... obrigou-se a prestar à impugnante os serviços de consultadoria, incluindo o apoio e aconselhamento das ações a desenvolver para a angariação de eventuais futuros clientes e também para a divulgação do nome e marca O... junto do mercado, e consolidar os existentes – cfr. fls. 121 a 123 dos presentes autos;

5. Entre 2003 e 2006, foram celebrados entre a impugnante e o Estado do Kuwait diversos contratos relativos a encomendas de manutenção, reparação e inspeção de aviões e componentes, que se enumeram seguidamente: contrato nº KU/KAF/03/191; contrato nº KU/KAF/05/236; contrato nº KU/KAF/06/268 e KU/KAF/06/269 e, ainda, o contrato nº KU/KAF/06/270 – cfr. fls. 22 a 212, do processo de reclamação graciosa em apenso aos autos;

6. Tais contratos foram objeto de faturação por parte da impugnante à Kuwait Air Force – cfr. fls. 112 a 117 dos presentes autos;

7. Os valores cobrados pela “G... TRADING COMPANY, LTD.”, pelos serviços de intermediação foram objeto de faturação: facturas nºs GZ/2004/10/0001 de 26/10/2004 e GZ/2004/10/002, de 26/10/2004, nos valores de $14.776,98 e $62.365,49 dólares norte-americanos – cfr. fls. 110 e 111 dos presentes autos;

8. Em 2006, a impugnante foi objeto de análise interna à mod. 22 de IRC e IVA de 2003 e 2004 – cfr. fls. 130 a 162 do processo administrativo em apenso aos autos;

9. No decorrer dessa análise interna, foi detetado pelos serviços da AT que a, ora impugnante, contabilizou na Conta 62141 “Serviços Comerciais” o valor de € 65.933,73 referentes a custos com comissões devidos ao prestador de serviços “G... Trading Company, Ltd”, não efetuando a liquidação de IVA – cfr. fls. 140 do processo administrativo em apenso aos autos;

10. No decorrer dessa análise interna, foi detetado pelos serviços da AT que a, ora impugnante, contabilizou na Conta 62141 “Serviços Comerciais” o valor de € 11.765,00 referentes a custos com comissões devidos ao prestador de serviços “B... Engineering Corporation”, não efetuando a liquidação de IVA – cfr. fls. 140 do processo administrativo em apenso aos autos;

11. Para retificar as situações indicadas nos pontos 9 e 10, supra, a ora impugnante, apresentou em 03/08/2006 e 04/09/2006, declarações periódicas de IVA de substituição, P2-10391… e P3-103…, relativas, respetivamente, a Outubro de 2004 e a Setembro de 2004 (datas de emissão da fatura pelo fornecedor) – cfr. fls. 140 a 141 do processo administrativo em apenso aos autos;

12. Através das declarações de substituição entregues pela impugnante a impugnante procedeu à liquidação de IVA, efetuando a dedução do imposto pelo mesmo montante – cfr. fls. 140 a 141 e 162 a 170 do processo administrativo em apenso aos autos e, fls. 10 a 13 do processo de reclamação graciosa em apenso aos autos;

13. Em 18/11/2006, da referida análise interna, resultaram as liquidações adicionais de IVA (tendo por base as declarações de substituição de Setembro e Outubro de 2004), com o nº 06362793 no valor de € 12.527,41 e nº 06362791 no valor de € 2.235,35 – cfr. fls. 191 do processo administrativo em apenso aos autos;

14. Em 18/11/2006, foram ainda liquidados os correspondentes juros compensatórios, liquidação nº 06362794 no valor de € 937,67 e, a liquidação nº 06362792 no valor de € 174,66 – cfr. fls. 194 do processo administrativo em apenso aos autos;

15. As correções ao IVA, reportam-se ao imposto “deduzido indevidamente”, fundamenta-as a AT no entendimento de que a impugnante não demonstrou a efetividade dos serviços prestados pelas duas sociedades, “G...” e “B...”– cfr. fls. 130 a 151 do processo administrativo em apenso aos autos;

16. A AT, no relatório inspetivo, resumidamente, apresenta as seguintes conclusões “(…) 3.5 IVA Deduzido Indevidamente – O contribuinte efetuou a dedução indevida de IVA no montante total de € 14.762,76, aquando da entrega das declarações periódicas de IVA de substituição referentes aos períodos de Setembro e de Outubro de 2004.

No exercício de 2003, a empresa contabilizou na conta 62141 – “Serviços Comerciais”, a importância de € 65.933,73, referentes a custos com Comissões devidos ao prestador de serviços “G... Trading Company, Lda., sociedade sujeita a um regime fiscal privilegiado, não efetuando a devida liquidação de IVA.

Para retificar esta situação o sujeito passivo apresentou em 03/08/2006 uma declaração periódica de IVA de substituição (P2-103911299653), relativa ao período de Outubro de 2004 (data de emissão das facturas pelo fornecedor) onde consta a devida liquidação de IVA, mas onde este efetua também a dedução do IVA no mesmo montante. (…) Compete ao sujeito passivo a prova dos pressupostos de que depende o seu direito à dedução do imposto, ou seja que os custos contabilizados referentes a comissões devidas no exercício de 2003 à entidade acima referida sujeita a um regime fiscal claramente mais favorável, correspondem a operações efetivamente realizadas. O sujeito passivo não demonstrou a efetividade dos serviços prestados pela “G... Trading Company, LTD.”, pelo que não se pode considerar que o imposto tenha incidido sobre serviços adquiridos ou utilizados pelo contribuinte para a realização de operações tributáveis. Consequentemente, o IVA deduzido pela empresa, no montante de € 12.527,41, foi, nos termos do art. 20º do Código do IVA, nº 1 al. a), deduzido indevidamente, pelo que se procede à sua correção.

No exercício de 2004, a empresa contabilizou na conta 62141 – “Serviços Comerciais”, a importância de € 11.765,00, referentes a custos com Comissões devidos ao prestador de serviços “B... Engineering Corporation”, sociedade sujeita a um regime fiscal privilegiado, não efetuando a devida liquidação de IVA.

Para retificar esta situação o sujeito passivo apresentou em 004/09/2006 uma declaração periódica de IVA de substituição (P3-1039…), relativa ao período de Setembro de 2004 (data de emissão das facturas pelo fornecedor) onde consta a devida liquidação de IVA, mas onde este efetua também a dedução do IVA no mesmo montante. (…) Compete ao sujeito passivo a prova dos pressupostos de que depende o seu direito à dedução do imposto, ou seja, que os custos contabilizados referentes a comissões devidas e pagas no exercício de 2004 à entidade acima referida sujeita a um regime fiscal claramente mais favorável, correspondem a operações efetivamente realizadas. O sujeito passivo não demonstrou a efetividade dos serviços prestados pela “B... Engineering Corporation”, pelo que não se pode considerar que o imposto tenha incidido sobre serviços adquiridos ou utilizados pelo contribuinte para a realização de operações tributáveis. Consequentemente, o IVA deduzido pela empresa, no montante de € 2.235,35, foi, nos termos do art. 20º do Código do IVA, nº 1 al. a), deduzido indevidamente, pelo que se procede à sua correção. (…) “– cfr. fls. 130 a 151 do processo administrativo em apenso aos autos;

17. Em 31/05/2007, é deduzida reclamação graciosa, à qual foi atribuído o nº 3573200704001222, e que não foi objeto de decisão – cfr. fls. 260 e segs. Do processo administrativo em apenso aos autos.

18. Em 26/02/2008, é apresentada junto deste Tribunal Tributário petição inicial que consubstancia a presente impugnação – cfr. fls. 2 e segs. Dos presentes autos.

II. 2- DOS FACTOS NÃO PROVADOS

Não existem factos relevantes para a decisão que importe destacar como não provados.

II. 3 – MOTIVAÇÃO

A convicção do tribunal formou-se com base no teor dos documentos não impugnados, juntos aos autos e expressamente referidos no probatório supra”.


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2. O direito

A ora Recorrente deduziu impugnação judicial contra as liquidações adicionais de IVA (e juros compensatórios) do ano de 2004, no montante total de € 16.286,99.
As liquidações adicionais objecto da impugnação resultaram, em síntese, da concretização de correcções operadas em sede inspectiva, fundadas no entendimento de que o IVA deduzido, no valor de € 14.762,76, o foi indevidamente.
Para os SIT, e nos termos do relatório, compete ao sujeito passivo a prova do seu direito à dedução e, no caso, relativamente às comissões pagas a duas sociedades “sujeitas a regime fiscal privilegiado” impunha-se que a O... fizesse a prova da materialidade das operações. Não o tendo feito, e com invocação do disposto no artigo 20º. nº1, alínea a) do CIVA, foi corrigido o IVA deduzido.
Como resulta do exposto no relatório inicial, a impugnação judicial foi julgada procedente e anuladas as liquidações sindicadas.
Lida a sentença, resulta claro o seguinte: entendeu o Tribunal que a AT considerou que os custos derivados de comissões pagas não correspondem a operações efectivamente realizadas, por o sujeito passivo não ter demonstrado a materialidade de tais serviços. Como tal, não foi aceite a dedução do IVA constante das facturas em causa, emitidas pelas empresas “G...” e “B...”.
No entendimento do Tribunal a conclusão da AT não é correcta, traduzindo uma inversão inaceitável do ónus da prova. De facto, considerou a Mma. Juíza que competia à AT reunir indícios seguros da falta de materialidade das operações subjacentes às facturas e, feita esta prova, recaía sobre a impugnante o ónus de demostrar a materialidade das prestações de serviços em causa.
Neste pressuposto, o discurso do Tribunal recorrido seguiu dois vectores: por um lado, considerou que a AT não reuniu os ditos indícios seguros de que às facturas não correspondem reais operações económicas, o que, por si só, bastaria para julgar procedente a impugnação; por outro, veio a considerar que, ainda assim, a impugnante tinha logrado fazer a prova que lhe competia e, também por isso, a impugnação deveria ser julgada procedente.
Com efeito, lê-se na sentença, além do mais, e naquilo que para aqui importa, o seguinte:
“(…)
In casu, a AT não coloca em crise a valia formal das faturas, apenas considera que a impugnante não comprova a efetividade dos serviços, invocando o disposto no art. 20º, nº 1 al. a) do CIVA.
Refere o art. 20º, nº 1 al. a) do CIVA o seguinte:
“ 1 - Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:
a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas;
(…)
Este dispositivo legal consagra as limitações do direito à dedução, ao determinar que apenas pode ser deduzido o I.V.A. que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização dos seus fins próprios (v.g. objecto social).
Quer o mesmo significar que a empresa só pode deduzir IVA se o mesmo for utilizado para a obtenção de receitas objeto de tributação a jusante. Especificamente a al. a), do nº.1, dá direito a dedução o I.V.A. suportado a montante que se concretize na aquisição de bens e serviços que se destinem à realização de operações tributáveis, isto é, os bens e serviços deverão estar diretamente relacionados com o exercício da atividade do sujeito passivo de imposto. (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 6/11/2012, proc.5637/12; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 2/7/2013, proc.6505/13; e ainda, F. Pinto Fernandes e N. Pinto Fernandes, Código do I.V.A. Anotado e Comentado, Editora Rei dos Livros, 4ª. edição, Janeiro de 1997, pág.511; Clotilde Celorico Palma, Introdução ao Imposto Sobre o Valor Acrescentado, Cadernos do I.D.E.F.F., nº.1, 2ª.edição, Almedina,2006, pág.159).
A AT considera que os custos derivados com comissões não correspondem a operações efetivamente realizadas, porque o sujeito passivo não demonstrou a efetividade desses serviços.
Afigura-se-me que tal conclusão é incorreta, quanto ao ónus da prova.
Com efeito, a AT atua no uso de poderes vinculados, submetida ao princípio da legalidade, cabendo-lhe o ónus de provar a verificação dos pressupostos legais que a determinaram a efetuar as respetivas correções às declarações do sujeito passivo, cumprindo-lhe demonstrar a factualidade que a leva a considerar determinada operação como não verificada, factualidade essa que tem de ser susceptivel de abalar a presunção de veracidade das operações declaradas, que não respeitem a operações tributáveis princípio da declaração e da veracidade da escrita vigente no nosso direito - art.75º da LGT), em conformidade com o disposto no nº 1 do art. 82º do CIVA (redação à data dos factos), só então passando a competir ao contribuinte o ónus de provar a efetividade dos serviços prestados.
Como é sustentado no acórdão do STA de 17/04/2002, rec. nº 026635, in www.dgsi.pt “(…) quando o acto de liquidação adicional de IVA se fundamente no não reconhecimento de deduções declaradas pelo contribuinte, o cumprimento do ónus de prova atribuído à AF basta-se com um juízo administrativo de adequação entre os factos e valorações em que a administração diz, formalmente, suportar a sua atuação e o resultado desse juízo no sentido de se lhe afigurar ter sido declarada uma dedução superior à devida, e com a prova perante o tribunal da pertinência desse juízo, ou seja, com a prova perante o tribunal da existência dos elementos que torna possível ter como adequada a consideração por si feita de que o contribuinte declarou uma dedução superior à permitida pela lei.
É nesta perspectiva que se poderá, de algum modo, falar que a administração apenas terá de fazer a prova, em tribunal, do bem fundado da formação das suas presunções de inexistência dos factos tributários e que, na falta dessa prova, essa questão – ou seja a questão relativa à legalidade do seu agir praticando o acto tributário – terá que ser resolvida contra ela», o que se encontra em «sintonia com o princípio da veracidade que está assumido no art.º 78º do CPTT.
Não importa só que a administração se diga convencida, mas também que diga porque é que se deixou convencer e que este resultado possa ser objetivamente apreciado e controlado pelo tribunal à luz dos critérios adequados.
E sendo assim, para emitir o seu juízo sobre se se deve ter por materialmente fundamentada a consideração da administração, o tribunal não se pode ater apenas à existência de uma fundamentação formal e aos elementos nela externados (...), mas terá formar o seu próprio juízo probatório sobre a correspondência à realidade fáctico-jurídica dos elementos em que a administração disse apoiar a sua consideração e aferir, então, sobre eles se esta deve ter-se por correta.
À administração caberá, assim, o ónus de provar, também em tribunal, os pressupostos de facto suficientes, dentre os afirmados na fundamentação do ato, para que o tribunal possa ajuizar sobre se o juízo administrativo se deve ter por, objetiva e materialmente, fundamentado”.
Ora, do relatório inspetivo transparece um manifesto défice instrutório por parte da AT, pois não carreia factos índice que suportem as correções ao IVA, não aceitando a dedutibilidade do mesmo.
De facto, cabia à AT averiguar os fluxos financeiros (não)/havidos entre os intervenientes das operações com vista a poder concluir pela (i) materialidade das operações referidas nas faturas, por forma a fundamentar os pressupostos da tributação, o que manifestamente não fez.
Se a AT não coloca em causa os requisitos formais das faturas, se não reúne indícios fundados e sérios que fundamentem a constatação de que “as operações se não verificaram”, afigura-se-me que não estavam reunidas as condições para a tributação, ou seja, para que a AT procedesse às liquidações adicionais do IVA, atento o disposto no nº 1 do art. 82º do CIVA.
Por aqui procederia, desde logo, a presente ação.
(…)”
Perante a discordância com o decido em 1ª instância, foi interposto o presente recurso jurisdicional pela Fazenda Pública, o qual ataca os dois apontados vectores que levaram à procedência da impugnação.
Vejamos por partes, tendo presente que, como se sabe, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
Desde logo, considera a Fazenda que o Tribunal fez uma errada interpretação dos factos constantes dos autos e que isso o levou a considerar, erradamente, que a AT não reuniu os tais indícios seguros da não veracidade das operações materiais subjacentes às comissões facturadas.
É importante ter presente que, lido o RIT, percebe-se que o ponto fulcral para a não aceitação do IVA deduzido com base nas facturas emitidas pelas sociedades “G...” e “B...” foi o facto de as mesmas estarem sujeitas a um regime fiscal privilegiado e a Impugnante não ter provado a efectiva realização das operações.
Aliás, lido todo o RIT, percebe-se que a correcção ao IVA deduzido vem na sequência das correcções em sede de IRC, relativamente às quais foi convocado o regime do (então) artigo 59º do CIRC, nos termos do qual se dispunha que “Não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável as importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo puder provar que tais encargos correspondem a operações efectivamente realizadas e não têm um carácter anormal ou um montante exagerado”.
Tal regime dos pagamentos a entidades não residentes sujeitas a um regime fiscal privilegiado está, nos termos expostos, previsto para o IRC e não encontra paralelo, nos seus exactos termos, para efeitos de IVA.
Significa isso que, do nosso ponto de vista, o facto de as sociedades emitentes das facturas estarem sujeitas a um regime fiscal mais favorável não determina, por si só, uma inversão do ónus da prova, em termos que faça depender a dedução do imposto da prova de que as operações foram efectivamente realizadas, antes mesmo que a AT reúna indícios fortes e seguros da não materialidade das operações, isto é, da falsidade das facturas.
Significa isto que, para os efeitos pretendidos, o preceito legal invocado, o artigo 20º, nº1, alínea a) do CIVA – “1 - Só poderá deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes: a)Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas” – é claramente insuficiente, sabido que, tal disposição legal, traduz um vector essencial e geral do direito à dedução do IVA, no sentido de que, não se destinando as aquisições a fins empresariais, não pode o sujeito passivo proceder à respectiva dedução.
Não obstante a invocação de tal artigo, percebe-se – e assim foi entendido pelo Tribunal a quo e pelo Recorrente, Fazenda Pública, como perpassa das conclusões do recurso em apreciação – que a questão em análise não passa pelos fins empresariais (ou não) das comissões em causa mas, antes, pela alegada falta de materialidade das operações subjacentes às facturas emitidas pelas duas empresas sujeitas a regime fiscal privilegiado.
E, nesta medida, se percebe o alcance da afirmação contida na sentença, segundo a qual “A AT considera que os custos derivados com comissões não correspondem a operações efetivamente realizadas, porque o sujeito passivo não demonstrou a efetividade desses serviços.
Afigura-se-me que tal conclusão é incorreta, quanto ao ónus da prova”.
Com isto dito, avancemos, tendo presente que, efectivamente, a lei impede a dedução do IVA que resulte de operação simulada (cfr. artigo 19º, nº3 do CIVA).
Comecemos por nos referir ao ónus da prova no âmbito das correcções em análise.
Como tem sido realçado, reiterada e uniformemente, pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, quando a Administração Tributária desconsidera facturas que reputa de falsas, aplicam-se as regras do ónus da prova do artigo 74.º da LGT, competindo à Administração fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação, ou seja, de que existem indícios sérios de que a operação constante da factura não corresponde à realidade. Feita esta prova, passa a recair sobre o sujeito passivo o ónus da prova da veracidade da transacção – vide, entre muitos outros, os acórdãos do TCA Norte de 24-01-2008, processo n.º 01834/04 Viseu, de 24-01-2008, processo n.º 2887/04 Viseu, de 27-01-2011, processo n.º 455/05.7BEPNF e de 18-03-2011, processo n.º 456/05BEPNF.
Tenha-se em conta, como também é aceite, que não é imperioso que a Administração efectue uma prova directa da simulação. Como em muitos outros casos, haverá que recorrer à prova indirecta, a “factos indiciantes, dos quais se procurará extrair, com o auxílio das regras de experiência comum, da ciência ou da técnica, uma ilação quanto aos factos indiciados. A conclusão ou prova não se obtém directamente, mas indirectamente, através de um juízo de relacionação normal entre o indício e o tema de prova”cfr. Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, pág. 154; também neste sentido, entre outros, o acórdão do TCAN, de 26/04/12 (processo nº 00964/06.0 BEPRT).
Ou seja, a AT não tem que demonstrar a falsidade das facturas, bastando-lhe evidenciar a consistência desse juízo (Acórdão do STA de 27/10/04, Processo 810/04), invocando factos que traduzem uma probabilidade elevada de a operação referida na factura ser simulada, probabilidade elevada capaz de abalar a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados constantes da sua contabilidade – artigo 75º da LGT.
Como se refere no acórdão do TCAN, de 23 de Novembro de 2012 (proc. nº 1523/05.0 BEVIS-Aveiro), “no que concerne à prova que compete à Administração - na repartição do ónus da prova de que demos nota supra -, o que é imprescindível é que aquela a faça de factos suficientes indiciadores a que o Tribunal possa concluir, “em virtude de leis naturais conhecidas pelos homens e que funcionam como máximas de experiência” (expressão de Castro Mendes citado por Saldanha Sanches), pela elevada probabilidade (ou até certeza) de que o negócio declarado por aquelas partes não corresponde à realidade materializada naquela factura”.
Foi neste ponto que a sentença considerou que os SIT tinham falhado, ou seja, não haviam reunido indícios suficientes da falta de materialidade das operações em causa – lê-se na sentença, a este propósito, “Ora, do relatório inspetivo transparece um manifesto défice instrutório por parte da AT, pois não carreia factos índice que suportem as correções ao IVA, não aceitando a dedutibilidade do mesmo”.
Vejamos, então, não perdendo de vista o enquadramento jurídico gizado relativamente ao ónus da prova e considerando os factos apurados em sede inspectiva, com vista a dar resposta à questão de saber se resulta dos factos considerados que a AT fez prova da verificação de indícios que lhe permitiam concluir que as facturas relativamente às quais o IVA nelas incluído foi desconsiderado não tiverem subjacentes quaisquer operações económicas realizadas entre os identificados emitentes e a Impugnante, ora Recorrida.
Em caso afirmativo, importará saber se a Impugnante logrou demonstrar em Tribunal que, não obstante os indícios colhidos, são reais, isto é, existiram efectivamente tais operações económicas entre os sujeitos envolvidos.
E aqui chegados parece-nos muito claro que a AT não cumpriu minimamente com o que lhe competia, como ressalta da parca motivação em que assentou a correção do IVA e que consta do RIT transcrito.
No essencial – repetindo-se a ideia já avançada – a AT fez recair a base fundamentadora da correcção, no essencial, na circunstância de as comissões serem pagas a entidades sujeitas a regime fiscal claramente mais favorável, pelo que, do seu ponto de vista, cumpria ao sujeito passivo demonstrar a efectividade das operações realizadas. Como o sujeito passivo não o fez, concretamente no direito de audição, então foram mantidas as correcções propostas.
Ora, já vimos que assim não é e que este raciocínio não é imediatamente transponível para o IVA.
Era à AT, concretamente no RIT, que cabia aportar um circunstancialismo, através de factos-indíce, suficientemente seguros e credíveis que, devidamente concatenados, nos pudessem levar a concluir que subjacentes àquelas facturas não existiam quaisquer operações materiais. E aqui, com este desiderato, a AT podia ter diligenciado para obter dados indiciadores que, de modo algum, se podem bastar com a singela afirmação de que as emitentes estão sujeitas a um regime fiscal claramente mais favorável.
É verdade, e o Tribunal não desconsidera, que a Fazenda Pública, em sede de alegações de recurso, ensaia uma tentativa de colocar em evidência diversos dados que concorrem para esse quadro indicador. Mas fá-lo, salvo o devido respeito, tarde, pois era no RIT, enquanto discurso fundamentador das correcções ao IVA, que tais dados deveriam ter sido considerados e apreciados.
Em suma, com a sentença, confirmando-a, diremos que a AT não cumpriu o ónus da prova que, nesta sede, lhe competia, o que bastava para julgar procedente a impugnação e anular a liquidação impugnada. Por seu turno, o assim decidido tornava irrelevante a apreciação da questão de saber se a Impugnante tinha, ou não, provado a materialidade das facturas, prova que só seria exigível após o cumprimento daquela que se impunha primeiramente à AT:
Termos em que, sem necessidade de mais desenvolvimentos, se julgam improcedentes as conclusões da alegação de recurso e se nega provimento ao recurso jurisdicional.

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III - DECISÃO

Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do TCA Sul em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique

Lisboa, 03/12/20


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(Catarina Almeida e Sousa)

(Hélia Gameiro)

(Ana Cristina Carvalho)