Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1465/19.2BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/19/2022
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:JUNÇÃO DE DOCUMENTOS COM O RECURSO
SUPERVENIÊNCIA OBJETIVA
SUPERVENIÊNCIA SUBJETIVA
CARTÃO DE CIDADÃO
INTIMAÇÃO PARA PROTEÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
Sumário:I - É de admitir a junção de documentos com o recurso, nos termos previstos nos artigos 651.º, n.º 1, e 425.° do CPC, desde que relevantes para a ação, estando em causa comunicação eletrónica dirigida ao recorrente já após a prolação da sentença, caso de superveniência objetiva, e documento anterior a esta, que demonstrou só posteriormente ter chegado ao seu conhecimento, caso de superveniência subjetiva.
II - Na sequência da confirmação da autenticidade da certidão do registo de nascimento do intimante, bem como a autenticidade do seu passaporte e que possui a nacionalidade portuguesa, inexiste impedimento à pretendida emissão e entrega de cartão de cidadão.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I. RELATÓRIO
S.... instaurou ação administrativa urgente de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias contra o Instituto dos Registos e do Notariado, I.P. e o Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qual conclui pedindo (i) se declare a nulidade do ato de emissão de cartão de cidadão a favor do contrainteressado e, bem assim, de todos os atos dele dependentes, (ii) seja intimado o IRN a cancelar o referido cartão de cidadão e eventuais documentos de viagem emitidos ao contrainteressado e a aceitar o pedido de emissão de cartão de cidadão apresentado pelo autor em 22/08/2019, emitindo-o e remetendo-o com urgência ao Consulado Geral de Portugal em Goa; e (iii) seja intimado o MNE para que ordene ao Consulado Geral de Portugal em Goa que proceda à entrega com urgência do cartão de cidadão, após boa receção do mesmo.
Por sentença de 04/11/2021, retificada em 27/12/2021 (após arguição de nulidade no recurso), o TAC de Lisboa julgou a ação parcialmente procedente nos seguintes termos:
- declarou improcedentes as exceções de inadequação do meio processual e de ilegitimidade passiva do réu IRN;
- anulou a emissão do cartão de cidadão com a identificação civil n.º 32…. e intimou o IRN ao respetivo cancelamento e a diligenciar pela informação das entidades competentes para a emissão de documentos de viagem - nomeadamente passaporte – ou outros documentos que tenham sido emitidos ao contrainteressado titular do cartão de cidadão ora anulado;
- absolveu os réus IRN e MNE dos demais pedidos.
Inconformado, o autor interpôs recurso, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“I. A sentença é nula nos termos do disposto no 615º nº 1 al. c) do CPC, aplicável ex vi art. 140º nº 3 do CPTA por contradição entre os fundamentos e a decisão: a fls 23 da sentença recorrida, o Tribunal a quo julgou procedente o pedido de declaração de nulidade do ato de emissão do cartão de cidadão nº 32 ….. e respetivo cancelamento; porém, a final absolveu o recorrido do pedido (onde se inclui o pedido de declaração de nulidade e cancelamento do referido cartão de cidadão).
II. A factualidade ínsita na al. J) da Matéria Assente não é completa e atual, o que se afigura relevante, tendo em conta que o Tribunal a quo considerou que a pendência do processo de averiguações constituía um obstáculo à intervenção judicial no âmbito da presente intimação.
III. O recorrido IRN arquivou o referido processo de averiguações em 16/02/2021, cancelando a cota lavrada no assento de nascimento nº 1…../2019 da Conservatória dos Registos Centrais e confirmando a integridade do assento de nascimento do recorrente e a sua nacionalidade portuguesa; porém, não notificou nem o recorrente, nem o mandatário, nem sequer o Tribunal a quo…
IV. Os referidos documentos são relevantes pois provam que, desde fevereiro de 2021 que o recorrido IRN havia concluído que as suspeitas que o levaram a instaurar o processo de averiguações nº 4…../2019 não se confirmaram e que o recorrente conservava a nacionalidade portuguesa, como aliás foi expressamente referido na referida mensagem eletrónica de 23/11/2021. (vide Doc. nº 1)
V. Os documentos cuja junção ora se requer são, pois, supervenientes, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 651º nº 1 1ª parte e 425º do CPC, pois o Doc. nº 1 apenas foi recebido pelo recorrente em 23/11/2021 e o Doc. nº 2 só foi recebido em 24/11/2021 (na sequência da informação prestada através do Doc. nº 1).
VI. E tal superveniência e apresentação nesta fase é exclusivamente imputável ao recorrido IRN que, tendo decidido arquivar o referido processo de averiguações, não deu conhecimento de tal decisão nem ao recorrente, nem ao Tribunal a quo, mantendo-os assim no completo desconhecimento sobre um facto que o Tribunal a quo veio a valorar como importante.
VII. Atento o teor da informação constante dos Docs. nº 1 e 2 – que o recorrido IRN omitiu ao Tribunal a quo – bem se compreende que o Tribunal a quo nunca poderia ter fundamentado a sentença nos termos supra citados se soubesse que o recorrido IRN havia arquivado o processo de averiguações nº 4…./2019 por não se confirmarem nenhumas suspeitas quanto ao recorrente. A junção do documento ora requerida é, pois, igualmente admissível nos termos do disposto no art. 651º nº 1 2ª parte do CPC.
VIII. Pelo exposto, deve ser alterado o teor do facto I) da Matéria Assente nos termos seguintes:
I) O IRN – Conservatória dos Registos Centrais deu início a 4 de Junho de 2019 ao processo de averiguações n.º 4….., tendo em vista confirmar a autenticidade da certidão de registo de nascimento arquivada no Processo IN n.º 3…../2018, e que serviu de base ao assento de nascimento n.º 1…../2019, bem como para verificação, junto das autoridades locais competentes, da legalidade da emissão do Passaporte n.º R50….., emitido pelas autoridades da República da Índia em 13/12/2017, em nome de S.... e em 16 de fevereiro de 2021 arquivou o referido processo, dando sem efeito a cota anotada no assento de nascimento nº 12741/2019 e comunicando na mesma data ao Departamento do Cartão de Cidadão de que o Impugnante mantem a nacionalidade portuguesa. ─ cfr . PA-averiguações, max. fls. 9 e Docs. nº 1 e 2 juntos com as alegações de recurso.
IX. Conforme resulta do exposto, os concretos meios de prova que impõem a alteração da resposta são os Docs. nº 1 e 2 ora apresentados nos termos do disposto no art. 651º nº 1 2ª parte do CPC.
X. Quanto ao Facto J) da Matéria Assente, ao contrário do que decidiu o Tribunal a quo o contrainteressado não reconheceu “informalmente” a sua verdadeira identidade; bem pelo contrário, o contrainteressado, advertido de que sobre a sua identificação devia responder com verdade e estando acompanhado por defensor e de tradutor reconheceu expressamente que a sua identidade era D...., filho de J….. e de P….., natural Gujarat – India, de nacionalidade indiana, nascido a 01-11-1990 e residente em 245 Bounces Road, N….– Londres – Inglaterra.
XI. Pelo exposto, deve ser alterada a redação do Facto J) da Matéria Assente nos termos seguintes:
j) Está em curso no DIAP 6ª Secção de Lisboa o inquérito 2…./19.1 JDLSB apensado no inquérito 1…/ 19.3ZCLSB (que também apensa os inquéritos 3…./ 19.3JDLSB e 2…./ 19.0JDLSB), resultante de uma participação do SEF, onde são investigados crimes como o de falsificação ou contrafacção de documentos e uso de documento falsificado ou contrafeito, tendo sido constituído arguido o contrainteressado nestes autos que, no 1º interrogatório não judicial de arguido detido realizado em 17/5/2021, respondeu ao Ministério Público que a sua verdadeira identidade era D...., filho de J..... e de P....., natural Gujarat – India, de nacionalidade indiana, nascido a 01-11-1990 e residente em 245 Bounces Road, N…..– Londres – Inglaterra. ─ cfr . fls. 36 e 37 da certidão de inquérito junta pelo Autor e cópia da carta de condução a fls. 30 da mesma. (negrito e sublinhado nossos)
XII. E o concreto meio de prova que impõe tal alteração é o auto de interrogatório de arguido constante de fls 36 e 37 da certidão judicial do processo criminal nº NUIPC 16…… junta pelo recorrente.
XIII. As contradições indicadas a propósito da nulidade da sentença e, bem assim, as incorreções e incompletudes da Matéria Assente conduzem já à conclusão de que, ao contrário do que o Tribunal a quo decidiu, os recorridos deviam efetivamente ter sido condenados integralmente no pedido, pois está assente nos autos que o recorrente é o legítimo titular do assento de nascimento nº 1…./2019 da Conservatória dos Registos Centrais, que foi alvo de usurpação de identidade por parte do contrainteressado e que este até foi detido e descoberta a sua verdadeira identidade e a falsidade do passaporte que apresentou para se fazer passar pelo recorrente. Pelo exposto, não há qualquer réstia de dúvida relevante que justifique que o recorrente continua espoliado da sua identidade e privado de exercer o direito e dever de obter o seu cartão de cidadão e passaporte português.
XIV. A questão de saber se o recorrente é o legítimo titular do assento de nascimento nº 1…../2019 da Conservatória dos Registos Centrais é puramente jurídica, vinculada e não comporta qualquer margem de discricionariedade: o legítimo titular do assento de nascimento nº 1…../2019 é o interessado que promoveu a respetiva inscrição, o que se apura por referência ao processo instrutor de inscrição de nascimento que correu termos na Conservatória dos Registos Centrais sob o nº 3…./2018.
XV. Trata-se, pois, de uma análise absolutamente vinculada, que não comporta qualquer margem para juízos de conveniência ou oportunidade. Pelo exposto, não se alcança a título é que estaria reservada à Administração e excluída dos poderes de conhecimento e pronúncia do Tribunal a quo.
XVI. Mais: ainda que, por absurdo, se entendesse que as dúvidas supervenientes relativamente à legitimidade do interessado no processo de inscrição de nascimento eram relevantes e deviam ser comprovadas ou infirmadas, nada impedia que tal prova fosse feita nos presentes autos, pois também essa matéria é de prova estrita e não comporta qualquer margem de discricionariedade.
XVII. Aliás, reconduzindo-se a questão da identificação do titular do assento de nacimento nº 1…../2019 a um julgamento acerca da legitimidade do interessado no procedimento administrativo, mal seria que o Tribunal a quo não pudesse julgá-lo…
XVIII. As diligências de averiguação referidas no facto i) da Matéria Assente – verificação da autenticidade do assento de nascimento e passaporte do recorrente – podiam perfeitamente ter sido requeridas e produzidas perante o Tribunal a quo e do resultado das mesmas não haveria qualquer margem para juízos de discricionariedade: se se apurasse que o assento de nascimento ou o passaporte eram falsos, o pedido formulado nos autos seria, obviamente indeferido; confirmando-se a autenticidade dos mesmos, o pedido devia ser deferido. Simples e absolutamente vinculado.
XIX. A norma do art. 3º do CPTA não pode deixar de ser articulada com a do art. 2º do mesmo diploma e tampouco pode deixar de estar enformada pelo princípio da plena jurisdição dos tribunais administrativos. Sempre que tal não ocorre, acaba por ser ofendido o princípio da tutela jurisdicional efetiva, ficando o cidadão privado da justiça para o seu caso.
XX. Atenta a prova produzida nos autos, a posição adotada pelo Tribunal a quo e vertida na sentença ora em crise não traduz apenas uma interpretação do princípio da separação e interdependência dos poderes bastante restritiva e limitativa do poder jurisdicional dos tribunais administrativos; traduz, sim, uma verdadeira denegação de justiça que consiste em manter indocumentado e privado da sua identidade um cidadão a quem o Estado, nas várias faces que assume - serviços consulares, serviços de identificação civil e até tribunais – permitiu que fosse espoliado da sua identidade e, mesmo quando o usurpador é apanhado e a moscambilha desarmada, o mantem no limbo, à espera de uma qualquer burocracia kafkiana que nunca chega e nunca permite resolver o problema …
XXI. O procedimento adotado pelo recorrido IRN era irrelevante como causa de suspensão do pedido de emissão do cartão de cidadão a favor do recorrente, as dúvidas suscitadas decorrem não de qualquer ato imputável ao recorrente, mas do facto (provado!!) do mesmo ter sido vítima de usurpação de identidade, tendo inclusivamente sido apanhado o autor de tais ilícitos! O Tribunal a quo podia e devia ter conhecido do mérito e intimado o recorrido a aceitar o pedido de cartão de cidadão, sem ter de aguardar pela conclusão das averiguações que o recorrido IRN decidira levar a cabo.
XXII. E, mesmo na perspetiva adotada pelo Tribunal a quo, é pacífico que o recorrente tem direito a uma decisão, i.e. a que o recorrido IRN concluísse as referidas averiguações e decidisse se afinal havia alguma materialidade nas dúvidas que o assaltaram ou se as mesmas se haviam esfumado. Assim, mesmo adotando a perspetiva seguida pelo Tribuna a quo - o que não se aceita, mas se pondera pelo mais elementar dever de patrocínio – não podia o Tribunal a quo ter pura e simplesmente absolvido os recorridos do pedido, antes se impunha que intimasse o recorrido a concluir a referida instrução, fixando-lhe um prazo para o efeito, nos termos do disposto nos arts. 3º nº 2 e 71º nº 2 do CPTA.
XXIII. Não está em causa nos presentes autos o julgamento de crimes de falsificação de documentos ou de usurpação de identidade (que nem sequer está tipificado no nosso ordenamento jurídico), nem foi pedido ao Tribunal que se pronunciasse sobre tal matéria; a apreciação, conhecimento e decisão do objeto dos presentes autos cinge-se à questão administrativa do alegado direito do recorrente à emissão do cartão de cidadão e à verificação da legalidade/regularidade dos procedimentos administrativos conexos com o exercício desse direito. É, pois, uma questão de Direito e Procedimento Administrativo puro para a qual os Tribunais Administrativos e Fiscais são (exclusivamente!) competentes.
XXIV. Os tribunais administrativos são tribunais de plena jurisdição e não uma jurisdição menor, que peça meças aos tribunais comuns.
XXV. Nem as instâncias criminais podem declarar a nulidade do cartão de cidadão emitido ao contrainteressado que se fez passar pelo ora recorrente, nem a jurisdição administrativa condenará o contrainteressado numa pena ou medida de coação. Tal circunstância não impede uma e outra de apreciar os mesmos factos que serão relevantes para a julgamento da matéria da sua competência.
XXVI. Mais: a decisão de uma e outra instância pouco ou nada condiciona a decisão da outra.
XXVII. Para quem entenda que seria necessária uma sentença criminal condenatória (e transitada em julgado!) para que o Tribunal Administrativo pudesse declarar a nulidade do cartão eventualmente emitido a favor dos falsários, qualquer dos despachos de arquivamento que têm sido proferidos em processos semelhantes ao dos presentes autos deixaria as vítimas impedidas de alguma vez verem reconhecido o seu direito à identidade e identificação, protegendo os usurpadores que continuariam a viajar pelo mundo com uma identidade falsa e sem que nenhuma autoridade lhes tocasse! Como é evidente, tal solução repugna à consciência jurídica mais ignota, o que demonstra bem a insustentabilidade de tal tese.
XXVIII. Ao contrário do que considerou o Tribunal a quo, a tramitação do procedimento criminal não condiciona o processo nos tribunais administrativos, nem impede o Tribunal Administrativo de conhecer e declarar a nulidade do ato de emissão de cartão de cidadão emitido com base em documentos falsos, analisando para esse efeito as provas que lhe são apresentadas.
XXIX. Para que o julgamento criminal constituísse questão prejudicial relativamente à decisão dos presentes autos, seria necessário concluir que este Tribunal Administrativo só poderia conhecer o pedido formulado nos presentes autos depois de existir uma condenação criminal decidida pelos tribunais comuns. Não é esse o caso, sendo absolutamente alheio ao resultado dos presentes autos o apuramento da responsabilidade criminais por falsificação de documentos ou usurpação de identidade.
XXX. Se se apurar a existência de responsabilidade criminal do contrainteressado, essa circunstância é “relevante” ou “útil” como meio de prova da matéria dos presentes autos. Aliás, tanto assim é que se apurou já no referido processo com o NUIPC 1…….3ZCLSB que a verdadeira identidade do contrainteressado é D...., nascido a 1/11/ 1990 na Índia e informou residir em Londres e que o passaporte que o mesmo apresentou para se fazer passar pelo recorrente é falso. (factos j) e k) da Matéria Assente). Esse acquis processual é obviamente útil na medida em que contribui para a descoberta da verdade e boa decisão da causa pendente nos presentes autos. Mas de forma alguma condiciona o Tribunal a quo, impedindo-o de conhecer e decidir os pedidos formulados nos presentes autos e que em nada se confundem com a ação penal promovida nos tribunais comuns.
XXXI. Não tendo essa virtualidade de modificar por si só a situação jurídica a dirimir, a decisão sobre o apuramento de responsabilidade criminal emergente da factualidade discutida nos presentes autos não constitui – nem em abstrato – questão prejudicial relativamente ao objeto dos autos. Portanto, ao absolver os recorridos do pedido por considerar que existia uma questão prejudicial do foro criminal que obstava ao conhecimento do pedido, o Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 2º, 3º e 15º do CPTA.
XXXII. Ainda que, não se provasse a matéria criminal – rectius que se entendesse que os factos em causa não constituíam crime, ou que não era possível identificar os seus agentes -, sempre se teria de concluir pela nulidade do ato de emissão do cartão de cidadão a favor de quem não é o legítimo titular do assento de nascimento no 1…./2019 pois tal ato afeta - rectius aniquila - o direito à identidade pessoal do A., pois, como é da própria natureza das coisas, só pode existir um titular do assento de nascimento no 1…./2019, uma pessoa cujos elementos são os descritos no referido assento de nascimento. Se esses elementos foram apropriados por um terceiro que não o requerente do pedido de inscrição de nascimento que correu termos sob o no 3…./2018 na Conservatória dos Registos Centrais, a sua identidade foi usurpada por esse individuo que dela se apropriou, o que obviamente aniquila o direito à identidade pessoal, previsto no art. 26º no 1 da Constituição.
XXXIII. Consequentemente, a emissão de um cartão de cidadão a quem não é o legítimo titular do assento de nascimento que lhe serve de base e que, por essa via, consagra a usurpação da identidade do legítimo titular é nula, nos termos do disposto no art. 161º nº 1 al. e) do Código de Procedimento Administrativo (CPA), como foi oportunamente alegado na p.i., mas olimpicamente desconsiderado pelo Tribunal a quo.
XXXIV. Além de não estar vedado ao Tribunal Administrativo o conhecimento dos factos e do pedido que lhe é apresentado e para o qual tem competência, a questão da prejudicialidade nem em abstrato de coloca neste segundo fundamento, pelo que o Tribunal a quo tinha todas as condições para conhecer e julgar os pedidos formulados nos autos, sem ter de aguardar pelo resultado do processo criminal.
XXXV. A decisão recorrida viola o disposto nos arts. 27º da Lei n.º 7/2007, de 05/02, art. 1º, n.º 1 da Lei n.º 33/99, de 18/05, art. 2º, 3º e 15º, 109º e ss. do CPTA, art. 6º, 7º e 9º do CPA, art. 20º, n.ºs 1, 4 e 5 e 26º da CRP.”
Não foram apresentadas contra-alegações.

Perante as conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre aferir:
- da admissibilidade da junção de documentos com o recurso;
- da nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão;
- do erro de julgamento da decisão da matéria de facto, quanto aos pontos I) e J);
- do erro de julgamento da decisão da matéria de direito, ao absolver os réus dos pedidos de emissão imediata do cartão do cidadão do autor e da sua entrega pelo Consulado Geral de Portugal em Goa.

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
*

II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
a) O Intimante, S...., reside actualmente em território indiano - acordo.
b) Através do processo de transcrição de nascimento n.º 3…./2018, e por decisão de 14 de Janeiro de 2019, foi-lhe reconhecida nacionalidade portuguesa por atribuição conforme assento de nascimento da CRC Lisboa n.º 1…./2019, de 22/2/2019 - cfr. aquele processo administrativo junto pelo IRN (PA-IRN).
c) Para prova complementar da sua identidade, o Intimante apresentou naquele processo de atribuição da nacionalidade cópia do passaporte estrangeiro (indiano) válido, sob o n.º R50…, da qual se extrai, designadamente o seguinte:
[imagem]
- cfr. DOC 2 junto com a PI, correspondente com fls. 16 ss. do processo administrativo de averiguações junto pelo IRN sob Requerimento (60…) Documento (008….) de 22/10/2019 20:33:54 (PA- averiguações).
d) O Intimante compareceu a 19 de Julho de 2019 no Consulado Geral de Portugal em Goa a fim de solicitar a emissão de cartão de cidadão com base no assento de nascimento mencionado em b) - mediante agendamento solicitado a 28/2/2019 ─, tendo os serviços detectado NIC já emitido pelo LC Odivelas sob o n.º 32….. a 8 de Maio de 2019, razão pela qual não aceitaram o pedido do Autor - cfr. informação a fls. 1 do PA junto peloMNE sob Resposta (59…) Processo Administrativo "Instrutor" (0079….) de 26/08/2019 14:15:33 (PAMNE).
e) A foto constante do passaporte utilizado para obter o Cartão de cidadão mencionado na alínea anterior não coincide com a foto do Autor constante do passaporte por este apresentado junto do CGP Goa nem com os traços fisionómicos deste - «sendo completamente diferente» - tal como observado por aquele serviço - cfr. fls. 6 do PA averiguações e informação a fls. 19 do PA- MNE.
f) Por indicação do Consulado, o Intimante apresentou-se novamente a 23 de Julho de 2019, altura em que foi então recebido o seu pedido inicial de cartão se cidadão - com pedido de serviço urgente -, em cumprimento de instruções recebidas pelo IRN com o intuito de dissipar dúvidas quanto à verdadeira identidade dos cidadãos em causa para correcta instrução de processo de averiguações instaurado, tendo-lhe sido atribuído o n.º 00043…. ─ cfr. DOCS. 10 e 12 juntos com a PI e PA-MNE.
g) Na mesma data, para além da recolha dos dados biométricos inerente à recepção daquele pedido, foi ainda fotocopiado o seu passaporte - cfr. os mesmos DOCS e PA.
h) Existem dois indivíduos distintos que se arrogam a identidade de S...., sendo ambos portadores de passaporte indiano com o mesmo número, data de emissão e fotos distintas - cfr. passaportes mencionados em c) e e).
i) O IRN – Conservatória dos Registos Centrais deu início a 4 de Junho de 2019 ao processo de averiguações n.º 4…., tendo em vista confirmar a autenticidade da certidão de registo de nascimento arquivada no Processo IN n.º 3…./2018, e que serviu de base ao assento de nascimento n.º 1…./2019, bem como para verificação, junto das autoridades locais competentes, da legalidade da emissão do Passaporte n.º R5…., emitido pelas autoridades da República da Índia em 13/12/2017, em nome de S.... e em 16 de fevereiro de 2021 arquivou o referido processo, dando sem efeito a cota anotada no assento de nascimento nº 1…./2019 e comunicando na mesma data ao Departamento do Cartão de Cidadão de que o Impugnante mantem a nacionalidade portuguesa. - cfr . PA-averiguações, max. fls. 9 e Docs. nº 1 e 2 juntos com as alegações de recurso. [conforme decisão infra sobre a impugnação da matéria de facto]
j) Está em curso no DIAP 6ª Secção de Lisboa o inquérito 2…/19.1 JDLSB apensado no inquérito 1…/19.3ZCLSB (que também apensa os inquéritos 3…./19.3JDLSB e 2…./19.0JDLSB), resultante de uma participação do SEF, onde são investigados crimes como o de falsificação ou contrafação de documentos e uso de documento falsificado ou contrafeito, tendo sido constituído arguido o contrainteressado nestes autos que, no 1º interrogatório não judicial de arguido detido realizado em 17/5/2021, respondeu ao Ministério Público que a sua verdadeira identidade era D...., filho de J..... e de P....., natural Gujarat – India, de nacionalidade indiana, nascido a 0….-11-1990 e residente em 245 Bounces Road, N….– Londres – Inglaterra. - cfr . fls. 36 e 37 da certidão de inquérito junta pelo Autor e cópia da carta de condução a fls. 30 da mesma. [conforme decisão infra sobre a impugnação da matéria de facto]
k) Tais autos de inquérito foram remetidos ao SEF para investigação [conforme informação prestada nestes autos pelo DIAP] e aquele serviço de investigação veio informar como segue:
«Com referência ao incorporado Nuipc 26……, verifica-se que uma das situações referenciadas no NUIPC 1…..3ZCLSB é a de um cidadão indiano, cuja verdadeira identidade se julga ser S…., que terá adquirido a nacionalidade portuguesa, apresentando documentação falsa que o identificava como S...., nomeadamente o passaporte da India com o n.º L5….. O referido passaporte foi já sujeito a análise pericial por parte da Direcção Central de Imigração e Documentação deste ISEF, que concluiu tratar-se de um documento falso.
A investigação com o Nuipc 1…...3ZCLSB ainda se encontra em curso, não sendo possível avançar uma data para a sua conclusão, no entanto encontra-se já devidamente comprovado que a nacionalidade portuguesa do suposto S...., foi atribuída com base em documentação falsa- cfr. expediente junto aos autos sob Requerimento (68….) Requerimento (008….) de 22/10/2021 16:07:45.
l) A presente intimação deu entrada neste Tribunal, através do SITAF, no dia 8/8/2019 - cfr. Petição Inicial (59….) Petição Inicial (Comprovativo Entrega) (007….) de 08/08/2019 16:44:17.
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II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

As questões a decidir neste processo, tal como supra enunciado, cingem-se a saber se:
- deve ser admitida a junção de documentos com o recurso;
- ocorre nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão;
- ocorre erro de julgamento da decisão da matéria de facto, quanto aos pontos I) e J);
- ocorre erro de julgamento da decisão da matéria de direito, ao absolver os réus dos pedidos de emissão imediata do cartão do cidadão do autor e da sua entrega pelo Consulado Geral de Portugal em Goa.


a) da junção de documentos

No que concerne aos documentos cuja junção foi requerida nesta fase recursiva, invoca o recorrente a sua superveniência.
Nos termos previstos no artigo 651.º, n.º 1, do CPC, as partes podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.° do CPC: são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.
Estará em causa aquele primeiro pressuposto.
Nos termos dos citados normativos, será de admitir a junção caso o requerente demonstre a superveniência do documento, que pode ser objetiva, por não existir até então, ou subjetiva, por força do seu desconhecimento não culposo.
No caso, tratam-se à evidência de documentos supervenientes.
O primeiro enquadra-se na superveniência objetiva, posto que se trata de comunicação eletrónica dirigida ao recorrente, já após a prolação da sentença.
O segundo enquadra-se na superveniência subjetiva, posto que com a referida comunicação eletrónica demonstrou o recorrente que não fora notificado do arquivamento do processo de averiguações e alteração do seu assento de nascimento, o que não vem disputado pelas entidades recorridas.
Por outro lado, é evidente a relevância de tais documentos, em função da causa de pedir e pedidos formulados na presente ação.
Termos em que se impõe concluir ser de admitir a junção aos autos dos referidos documentos.

b) da nulidade da sentença

Sustenta o recorrente que a sentença é nula nos termos do disposto no 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, aplicável ex vi art. 140.º, n.º 3, do CPTA, por contradição entre os fundamentos e a decisão, ao julgar-se procedente o pedido de declaração de nulidade do ato de emissão do cartão de cidadão nº 32…. e respetivo cancelamento e absolver-se o recorrido do pedido, onde se inclui o pedido de declaração de nulidade e cancelamento do referido cartão de cidadão.
O tribunal a quo veio suprir tal nulidade.
Pelo que nada cumpre apreciar nesta sede.


c) do erro de julgamento da decisão de facto

Sustenta nesta sede o recorrente que deve ser alterada a decisão da matéria de facto, em concreto quanto aos pontos I) e J) do probatório.
Dispõe como segue o artigo 640.º do CPC, sob a epígrafe ‘ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto’:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Daqui decorre que, ao impugnar a matéria de facto em sede de recurso, recai sobre o recorrente o ónus de indicar (i) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e (ii) os concretos meios probatórios que impõem decisão distinta, mais devendo identificar precisa e separadamente os depoimentos caso se trate de meios probatórios gravados.
E cabe-lhe alegar o motivo pelo qual os meios probatórios que indica impõem decisão diversa e também porque motivo os meios probatórios tidos em conta pelo tribunal não permitem se considere provado determinado facto.
Há que ter ainda em consideração que é em função da definição do objeto do processo e das questões a resolver nos autos que deve ser apreciada a relevância da matéria fáctica alegada pelas partes. Assim, nem toda a matéria fáctica que se possa considerar provada deve ser levada, sem mais, ao probatório.
E como é consabido, os factos respeitam à ocorrência de acontecimentos históricos, afastando-se de tal qualificação os juízos de natureza valorativa, que comportam antes conclusões sobre factos.
Outrossim, deve ter-se em consideração que no novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, se optou por reforçar os poderes da 2.ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada, incrementados os respetivos poderes e deveres, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material, conforme consta da exposição dos motivos e se consagra no atual artigo 662.º, n.º 1, “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
No que concerne ao facto indicado no ponto I) do probatório, o teor dos documentos juntos com o recurso permite dar como demonstrado que o processo de averiguações n.º 4…. foi arquivado em 16/02/2021, dando-se sem efeito a cota anotada no assento de nascimento n.º 1…./2019 e comunicando na mesma data ao Departamento do Cartão de Cidadão de que o impugnante mantém a nacionalidade portuguesa.
Relativamente ao facto constante do ponto J) do probatório, resulta do teor de fls. 36 e 37 da certidão de inquérito crime com o NUIPC 1…...3ZCLSB, que o contrainteressado, no âmbito de 1.º interrogatório não judicial de arguido detido realizado em 17/05/2021, respondeu ao Ministério Público que a sua verdadeira identidade era D...., filho de J..... e de P....., natural de Gujarat – India, de nacionalidade indiana, nascido a 01/11/1990 e residente em 245 Bounces Road, N….– Londres – Inglaterra.
Tratando-se de aditamento relevante, igualmente procede a pretendida alteração ao probatório.
Pelo exposto, procede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com alteração dos pontos I) e J) do probatório, conforme vem requerido.


d) do erro de julgamento de direito

Invoca o recorrente, em síntese, que é o legítimo titular do assento de nascimento n.º 1…./2019 da Conservatória dos Registos Centrais e que a emissão do cartão de cidadão não está reservada à Administração e excluída dos poderes de conhecimento e pronúncia do Tribunal.
Consta da sentença a seguinte fundamentação:
Aquela entidade [IRN] instaurou já o competente processo de averiguações, conforme indicado na factualidade em i), o qual ainda não conheceu uma decisão final. Por conseguinte, estando em curso a instrução do procedimento com vista à emissão do cartão de cidadão requerido pelo, ora, Intimante, e dependendo o apuramento da identidade do titular do cartão a emitir com base no Assento de Nascimento n.º 1….., de 2019, também do desfecho do processo de inquérito 1…...3ZCLSB (e apensos) que corre termos no DIAP 6ª Secção de Lisboa, não pode proceder o pedido de intimação do Instituto dos Registos e do Notariado I.P. na emissão imediata do cartão de cidadão.
Bem se percebe que não pode este tribunal substituir-se à Administração na instrução do procedimento (de pedido) de emissão do cartão de cidadão desencadeado pelo, ora, Intimante, pelo que, estando em curso a instrução daquele procedimento de acordo com os trâmites legais e aguardando-se o desfecho de procedimento criminal cujo resultado é determinante, foram já adoptadas as condutas positivas que, aos olhos da lei e de acordo com os vários interesses que esta visa acautelar, garantem ao Intimante o exercício do seu direito à identidade pessoal, na vertente da identificação civil. Não está, pois, o primeiro Réu (IRN) a criar qualquer obstáculo ilegal - que deva este Tribunal remover – ao exercício daquele direito pelo, ora, Intimante.
Conforme decorre da alteração à decisão da matéria de facto, o processo de averiguações instaurado pela Conservatória dos Registos Centrais, que correu termos sob o n.º 4…./2019, foi arquivado.
Nessa sequência, informou o recorrido IRN que tal processo de averiguações destinou-se a confirmar a autenticidade da certidão de registo de nascimento arquivada no Processo IN n.º 3…./2018, e que serviu de base ao assento de nascimento n.º 1…./2019, assim como, para verificação, junto das autoridades locais competentes, da legalidade da emissão do Passaporte n.º R5….., emitido pelas autoridades da República da India em 13/12/2017, em nome de S.....
Mais informou que o Consulado Geral de Portugal em Goa confirmou a autenticidade da certidão do registo de nascimento que instruiu o processo de nacionalidade n.º 3…/2018, desta Conservatória, respeitante a S...., bem como a autenticidade do passaporte do requerente da nacionalidade portuguesa, cuja cópia se encontra arquivada no indicado processo n.º 3…./2018, pelo que foi proferido despacho no âmbito do processo de averiguações n.º 4…./2019, desta Conservatória, no sentido do arquivamento do mesmo, com a consequente eliminação da respetiva cota no assento de nascimento respetivo.
Informou ainda que os seus serviços procederam ao cancelamento do cartão de cidadão inicialmente emitido, após confirmação de que o individuo a quem fora entregue não era o verdadeiro S...., e que ainda não fora emitido o cartão de cidadão ao recorrente, porquanto tal ainda não lhe foi solicitado e importava nova recolha dos respetivos dados biométricos de identificação. Concluindo que não dispõe de qualquer razão ou fundamento que impeça a emissão do cartão de cidadão ao recorrente, caso tal lhe seja solicitado e instruído pela forma legalmente exigível.
Ao que respondeu o recorrente que aguarda o agendamento do pedido de cartão de cidadão que requereu no passado dia 23/11/2021 e cujo interesse e disponibilidade reiterou quando foi contactado telefonicamente pelos serviços consulares portugueses em Goa. Apenas recebeu comunicação destes serviços segundo a qual, de acordo com as instruções recebidas das Autoridades Centrais de Lisboa, informou que os serviços de identificação e registo civil de Portugal declararam que pode requerer um novo cartão, mas até que a decisão judicial seja proferida pelo tribunal, o cartão não pode ser emitido.
Veio entretanto o IRN reiterar que inexiste razão ou motivo para a não emissão do documento de identificação pretendido pelo recorrente, que não seja a resultante do facto de se terem verificados sérios indícios da prática de crimes graves, como sejam, o de usurpação de identidade e de falsificação de documentos, que de resto, justificaram a instauração de procedimento criminal, pelas instâncias judiciais competentes. E que apesar do SEF ter informado que o indivíduo que se arrogou a identidade de S.... a quem foi emitido e entregue o Cartão de Cidadão, inicialmente requerido, não era o verdadeiro titular de tal identidade, as autoridades criminais ainda não concluíram que o aqui requerente seja o verdadeiro titular desta mesma identidade.
Ora, como resulta da matéria de facto dada como assente quanto ao inquérito crime, está ali em causa, designadamente, a usurpação da identidade do aqui recorrente, o que constituirá, ao que se sabe, a única circunstância que o liga àquele processo.
Donde, não se percebe de onde retira o recorrido a ilação quanto a uma pretensa necessidade das autoridades criminais concluírem que o aqui requerente seja o verdadeiro titular desta mesma identidade.
Como bem se vê, as entidades recorridas não disputam que o recorrente é titular do assento de nascimento que instruiu o seu processo de nacionalidade n.º 3…./2018, assim como a autenticidade do seu passaporte enquanto requerente da nacionalidade portuguesa, o que levou ao arquivamento do processo de averiguações n.º 4…./2019, desta Conservatória, com a consequente eliminação da respetiva cota naquele assento de nascimento. Ou seja, não disputam que o recorrente possui efetivamente a nacionalidade portuguesa, à luz do disposto no artigo 1º, n.º 1, al. c) da Lei da Nacionalidade Portuguesa.
Como tal, fica por demonstrar que impedimento subsiste à pretendida emissão e entrega de cartão de cidadão ao aqui recorrente.
Pelo que se impõe intimar as entidades recorridas no sentido de adotarem conduta positiva, a saber, diligenciar pela imediata emissão do cartão de cidadão do recorrente por parte do IRN, IP, e a sua entrega por parte do Consulado Geral de Portugal em Goa.
Veja-se neste sentido, em situação de facto semelhante, o acórdão deste TCAS de 16/04/2015, tirado no proc. n.º 12003/15 (disponível em www.dgsi.pt).

Em suma, será de conceder provimento ao recurso, revogar a sentença quanto ao juízo de absolvição dos réus dos demais pedidos, julgar os mesmos procedentes e condená-los a diligenciar pela imediata emissão do cartão de cidadão do recorrente por parte do IRN, IP, e a sua entrega por parte do Consulado Geral de Portugal em Goa.

*


III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença quanto ao juízo de absolvição dos réus dos demais pedidos, julgar os mesmos procedentes e condená-los a diligenciar pela imediata emissão do cartão de cidadão do recorrente por parte do IRN, IP, e a sua entrega por parte do Consulado Geral de Portugal em Goa.
Sem custas, atento o disposto no artigo 4.º, n.º 2, al. b), do RCP.

Lisboa, 19 de maio de 2022

(Pedro Nuno Figueiredo - relator)


(Ana Cristina Lameira)


(Ricardo Ferreira Leite)