Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1894/18.9BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:01/28/2021
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:ILEGITIMIDADE PROCESSUAL
ILEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
INTERESSE LEGALMENTE PROTEGIDO
INTERESSE DIRETO
PRESCRIÇÃO
Sumário:I-O ato que determina a notificação ao abrigo do disposto no artigo 105.º, nº4, alínea b), do RGIT, mais não representa que o cumprimento da nova condição de punibilidade, de forma a facultar a exclusão de responsabilidade do infrator, no caso a sociedade.
II-Em matéria tributária, é de considerar ser titular de um interesse suscetível de justificar a intervenção no procedimento tributário quem possa ser diretamente afetado pelo que nele possa vir a ser decidido. Inexiste interesse direto se o benefício decorrente da anulação do ato não tiver uma repercussão imediata no interessado, mas apenas mediata, eventual ou meramente possível.

III-Se a visada notificação ao abrigo do artigo 105.º, nº4 do RGIT não foi endereçada ao Recorrente em seu nome pessoal, nem na qualidade de responsável solidário e subsidiário, e não resultando, tão-pouco, provado que já existam processos de execução fiscal instaurados contra a sociedade atinentes às dívidas em contenda, então, na presente data, o Recorrente não tem um interesse legalmente protegido para requerer, em seu nome pessoal, o reconhecimento da prescrição de dívidas tributárias.

IV-A ilegitimidade substantiva distingue-se da ilegitimidade processual, sendo conceptualmente distintas. Se a relação material controvertida tal como foi configurada pelo Recorrente na p.i., tem lugar entre ele e a Recorrida, e dimana de uma omissão de resposta a um requerimento junto dessa mesma entidade, existe, em virtude dessa configuração, um interesse processual em demandar, porém arrogando-se o mesmo titular de uma relação jurídica material, que se vem a demonstrar não existir, verifica-se a exceção perentória de ilegitimidade substantiva, que conduz à absolvição do pedido.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:

PROCESSO Nº 1894/18.9 BELRS

Descritores

Ilegitimidade processual

ilegitimidade substantiva

interesse legalmente protegido

interesse direto

prescrição



Sumário (663.º, nº7 do CPC)

I-O ato que determina a notificação ao abrigo do disposto no artigo 105.º, nº4, alínea b), do RGIT, mais não representa que o cumprimento da nova condição de punibilidade, de forma a facultar a exclusão de responsabilidade do infrator, no caso a sociedade.

II-Em matéria tributária, é de considerar ser titular de um interesse suscetível de justificar a intervenção no procedimento tributário quem possa ser diretamente afetado pelo que nele possa vir a ser decidido. Inexiste interesse direto se o benefício decorrente da anulação do ato não tiver uma repercussão imediata no interessado, mas apenas mediata, eventual ou meramente possível.

III-Se a visada notificação ao abrigo do artigo 105.º, nº4 do RGIT não foi endereçada ao Recorrente em seu nome pessoal, nem na qualidade de responsável solidário e subsidiário, e não resultando, tão-pouco, provado que já existam processos de execução fiscal instaurados contra a sociedade atinentes às dívidas em contenda, então, na presente data, o Recorrente não tem um interesse legalmente protegido para requerer, em seu nome pessoal, o reconhecimento da prescrição de dívidas tributárias.

IV-A ilegitimidade substantiva distingue-se da ilegitimidade processual, sendo conceptualmente distintas. Se a relação material controvertida tal como foi configurada pelo Recorrente na p.i., tem lugar entre ele e a Recorrida, e dimana de uma omissão de resposta a um requerimento junto dessa mesma entidade, existe, em virtude dessa configuração, um interesse processual em demandar, porém arrogando-se o mesmo titular de uma relação jurídica material, que se vem a demonstrar não existir, verifica-se a exceção perentória de ilegitimidade substantiva, que conduz à absolvição do pedido.


ACÓRDÃO

I-RELATÓRIO

J..... veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a exceção da ilegitimidade do Requerente com a consequente absolvição da instância do Instituto da Segurança Social.

A Recorrente, apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

A)              A douta sentença que aqui se recorre, julgou incorretamente, procedente a exceção de ilegitimidade do Requerente, absolvendo, indevidamente da presente instância intimidatória o Instituto da Segurança Social. I.P.

B)              Alegando para tal, que "Todavia, a tanto, como acima evidenciado, falece em concreto interesse direto do Requerente nele, e, logo, no pedido intimidatório que faz, já que ele o não demonstra, nem se vislumbra qual seja. Donde que na falta de legitimidade própria em formulá-lo, também o Requerido não se achava então na necessidade de lhe responder, ou de lho decidir.

C)              Ora, não pode o Recorrente conformar-se com tal sentença.

D)             Porquanto, em 21 de Setembro do corrente ano, o aqui Recorrente remeteu ao Instituto da Segurança Social, I.P., um pedido de reconhecimento da prescrição das cotizações e contribuições que ao mesmo eram imputadas, solicitando o reconhecimento da prescrição das cotizações peticionadas de dezembro de 2009 a agosto de 2011.

E)              Pois que, o aqui Recorrente foi notificado, na qualidade de responsável solidário e subsidiário, da sociedade por quotas, denominada, D....., Lda., para pagamento da quantia de €41.428,28 (quarenta e um mil quatrocentos e vinte e oito euros e vinte e oito cêntimos), por alegadas dívidas de dezembro de 2009 a agosto de 2011.

F)              Notificação, esta que foi junta aos presentes autos, e onde consta efetivamente que a notificação foi pessoalmente efetuada ao aqui Recorrente na qualidade de responsável solidário e subsidiário.

G)             Desta forma, nunca poderia o Tribunal a quo, concluir que o Recorrente é parte ilegítima.

H)             O artigo 9º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), sob a epígrafe “Legitimidade", estabelece que:

“1 - Tem legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.

2 - A legitimidade dos responsáveis solidários resulta da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária, ainda que em conjunto com o devedor principal.

3 - A legitimidade dos responsáveis subsidiários resulta de ter sido contra eles ordenada a reversão fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários.

4 - Têm legitimidade no processo judicial tributário, além das entidades referidas nos números anteriores, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública.”

I) Atento o acima transcrito, e salvo o devido respeito, é inconcebível que o Tribunal a quo, tenha considerado o Recorrente parte ilegítima.

J)               Pois que, o mesmo juntou aos presentes autos, cópia da notificação que lhe foi efetuada pela Recorrida, e onde conta efetivamente, fica notificado na qualidade de responsável solidário (artigo 9.º n° 1 do CPPT).

K)              Mais, na notificação aqui mencionada é solicitado o pagamento do montante alegadamente em dívida, logo, existe aqui uma exigência em relação ao Recorrido do cumprimento da obrigação tributária (artigo 9.º n° 2 do CPPT).

L)              Mais se dirá, que na notificação objeto dos presentes autos, e ora junta, consta a informação de que o Recorrente, dispõe do prazo de 30 dias para pagamento voluntário sob pena de prosseguimento do processo criminal.

M)             Ora, podendo o Recorrido vir a ser considerado como autor da prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, por alegadas dívidas prescritas, é indubitável que o mesmo tem um interesse legalmente protegido, para intimar a Recorrida, e apurar se os montantes são ou não devidos (artigo 9.º n° 1 do CPPT).

N)             Desta forma, e por tudo supra explanado, fica demonstrado e provada a legitimidade do aqui Recorrente, pelo que no caso dos presentes autos não se verifica a exceção de ilegitimidade do Recorrente.

O)             Pelo que a sentença proferida pelo Tribunal a quo, merece total censura, devendo, consequentemente, ser a mesma revogada e substituída por outra que considere o Recorrido parte legítima e intime a Recorrida a responder ao pedido efetuado pelo Recorrente.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO SEMPRE COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE V/ EXAS. DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE           POR     PROVADO       E CONSEQUENTEMENTE SER INTIMADA A RECORRIDA A PROCEDER NOS TERMOS DO REQUERIMENTO APRESENTADO.”


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A Entidade Recorrida não apresentou contra-alegações.

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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) junto deste TCA Sul emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

“1. O Requerente, J....., foi notificado por ofício de 29 de setembro de 2016, pela Direção do Núcleo de Gestão da Dívida Departamento de Fiscalização do Instituto da Segurança Social, I. P., na qualidade de representante legal da sociedade D....., Lda, de que pendiam dívidas desta à Segurança Social, referentes aos meses de dezembro de 2009 a abril de 2016, num valor global de €89.320,89, respeitantes a quotizações e contribuições imputáveis aos membros dos órgãos sociais e aos trabalhadores da sociedade, não tendo os seus montantes sido entregues oportunamente, nem prazo legal nem nos 90 dias que se lhes seguiram – sendo assim , igualmente juros de mora sobre tais quantias –, constituindo tal, objetivamente, indício da prática de um crime de abuso de confiança da Segurança Social, previsto e punido pelo art.107º do Regime Geral das Infrações Tributárias.

2. Assim, nessa missiva dizia-se ainda que [a sociedade, pelo seu representante legal, o Requerente] ficava notificada para proceder ao pagamento de tal quantia, em 30 dias, sob pena de ser instaurado processo crime sobre aqueles factos.

3. Tal notificação era instruída com a relação discriminativa das quantias em causa, por meses e segundo a sua causa ou proveniência.

4. Em setembro de 2018 o Requerente dirigiu, não àquele Núcleo, mas ao Núcleo de Investigação Criminal do Departamento de Fiscalização do Instituto de Segurança Social, I. P., o Requerido, um requerimento em que pedia fossem reconhecidas prescritas, dentre aquelas quotizações e contribuições, as referentes a dezembro de 2009 até agosto de 2011, inclusive.

5. Esse requerimento nunca teve qualquer resposta.

6. No dia 23 de outubro de 2018 o Requerente apresentou a petição na origem dos presentes autos, pedindo a intimação do Requerido e seu Núcleo de Investigação Criminal a responder ao pedido que lhe dirigira, conforme descrito no ponto 4.


***

A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:

“Não há outros factos provados com a referida pertinência. E, com esse interesse, não resultou já provado:

1. Que no Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P, houvesse pendente uma ou mais execuções visando a cobrança coerciva das quantias referidas na notificação ou no requerimento mencionados nos pontos 1. e 4. da matéria de facto provada, movida à sociedade D....., L.da, quando o Requerente formulou o pedido descrito naquele ponto 4..

2. Que no Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P, houvesse pendente uma ou mais execuções visando a cobrança coerciva das quantias referidas na notificação ou no requerimento mencionados nos pontos 1. e 4. da matéria de facto provada, movida à sociedade D....., L.da, em que o Requerente tivesse já sido objeto de audição prévia para eventual reversão, sobre si, dessa execução ou execuções, quando formulou o pedido descrito naquele ponto 4.

3. Que no Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P, houvesse pendente uma ou mais execuções visando a cobrança coerciva das quantias referidas na notificação ou no requerimento mencionados nos pontos 1. e 4. da matéria de facto provada, movida à sociedade D....., Lda, em que o Requerente tivesse já sido objeto de citação, na sequência da sua reversão, sobre si, como responsável subsidiário da sociedade, dessa execução ou execuções, quando formulou o pedido descrito naquele ponto 4..

Não há outros factos não provados com igual relevo.”


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A motivação da matéria de facto assentou no seguinte:

“Os factos provados resultam da análise pelo Tribunal dos dois documentos, a notificação e o requerimento referidos nos pontos 1., 3. e 4., sendo aliás, como o vertido no ponto 5. factos consensuais; o consignado no ponto 6. retirou-se, claro, da própria petição destes autos. Àquele documento cabe a força probatória que os arts.369ºnº1, 370ºnº1 e 371º do Código Civil lhe reconhecem, nos termos dos seus arts.373ºnº1, 374ºnº1 e 376ºnº1 quanto ao requerimento – de resto não postos em causa, nem dúvida gerando, como dito.

Os factos não provados ficaram a dever esse juízo negativo sobre a sua ocorrência à absoluta falta de prova sobre eles.”


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III.) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a exceção da ilegitimidade do Requerente com a consequente absolvição da instância do Instituto da Segurança Social.

Importa, desde já, ter em consideração que em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se a sentença padece de erro de julgamento por, face aos factos apurados, inexistir a ajuizada ilegitimidade do Requerente para requerer a intimação do Instituto da Segurança Social a reconhecer-lhe a prescrição de dívidas referentes a cotizações dos períodos de dezembro de 2009 a agosto de 2011.

A Recorrente defende que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao ter entendido que se verificava a exceção de ilegitimidade do Requerente com a consequente absolvição da instância do Instituto da Segurança Social. I.P, e isto porque ao ter sido notificado, na qualidade de responsável solidário e subsidiário, da sociedade por quotas, denominada “D....., Lda”, para pagamento da quantia de €41.428,28, por alegadas dívidas de dezembro de 2009 a agosto de 2011, nunca poderia o Tribunal a quo, concluir que o Recorrente é parte ilegítima.

Aliás, atentando no teor do artigo 9.º, mormente, seus nºs 1 e 2, do CPPT, resulta clara a aludida legitimidade, visto que, por um lado, da aludida notificação que foi junta ao processo de intimação consta, expressamente, que foi notificado na qualidade de responsável solidário, e por outro lado, porque é, claramente, interpelado para o pagamento do montante, alegadamente, em dívida.

Mais relevando que o interesse em demandar advém, desde logo, da circunstância de lhe estar a ser exigido o pagamento de uma quantia, num prazo estipulado, sob pena de prosseguimento do processo criminal, devendo, por isso, ser revogada a decisão sindicada.

Assim o não entendeu o Tribunal a quo, tendo julgado verificada a ilegitimidade ativa do Requerente sustentando, desde logo, que: “[d]os factos provados decorre que, sendo as dívidas em questão da sociedade D....., L.da, em momento prévio à [possibilidade legal de] instauração de processo crime – a notificação descrita na matéria de facto provada refere-se à integração de um requisito de punibilidade dos crimes em causa e, assim, processualmente, a um pressuposto de procedibilidade sobre os factos que os integrem, art.104ºnº1 corpo do Regime Geral das Infrações Tributárias : «os factos […] só são puníveis se […]» – foi o Requerente notificado pelo tal Núcleo de Gestão da Dívida do Departamento de Fiscalização do Instituto da Segurança Social, I. P., para efeitos do disposto nesse art.104º do Regime Geral das Infrações Tributárias. Foi-o, porém e como não podia deixar de ser, na qualidade de representante legal da sociedade e não a título pessoal, pois que de dívidas à Segurança Social da sociedade se trata.”

Adensando, para o efeito, que “[n]ão só não demonstra o Requerente qual a sua legitimidade na formulação desse requerimento, art.65º  da Lei Geral Tributária, art.9º, maxime nº3, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, como em parte alguma ela surge enquadrada no âmbito de uma execução fiscal em que o Órgão de Execução o tivesse notificado para audição prévia naquele procedimento enxerto na execução, ou o tivesse já considerado responsável subsidiário da sociedade, nomeadamente pelo pagamento das dívidas cuja prescrição ele pediu lhe fosse reconhecida, e o tivesse citado nessa qualidade.”

Desfechando, assim, que “[e]mbora seja evidente o seu interesse, enquanto potencial responsável subsidiário da sociedade, em ver reconhecida a prescrição das quotizações e contribuições pela sociedade devidas, aquelas ou outras, enquanto modo de diminuir o que se integre num «passivo tributário» da sociedade pelo qual pode bem, em abstrato, vir a ter de responder um dia, em vicariato em relação à sociedade, verdade é também que em face dos factos que ficaram assentes ele não demonstra qual o seu interesse atual e direto quer em ter feito antes aquele requerimento em nome pessoal como, subsequentemente e por consequência, em demandar suscitando o presente meio processual, também a título pessoal.”

Concluindo, nessa medida, que “[o] Requerente não demonstra o seu interesse direto em demandar.”

Vejamos, então, se lhe assiste razão.

Comecemos por convocar o quadro jurídico que releva para o caso vertente.

De harmonia com o consignado no artigo 9.º do CPPT sob a epígrafe de “legitimidade”:

 “1 - Têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.

2 - A legitimidade dos responsáveis solidários resulta da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal.

3 - A legitimidade dos responsáveis subsidiários resulta de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários.

4 - Têm legitimidade no processo judicial tributário, além das entidades referidas nos números anteriores, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública.”

Relevando, em conformidade e outrossim, o artigo 65.º da LGT quanto à legitimidade no procedimento tributário que:
 “Têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”

Dir-se-á, portanto, que no âmbito da legitimidade ativa no domínio do procedimento tributário reportam-se os nºs 1, 2 e 3 do citado artigo 9.º do CPPT, estando a mesma concatenada com a prova de “um interesse legalmente protegido”, enquanto que a legitimidade no processo judicial tributário se encontra contemplada no nº4 do evidenciado preceito legal, devendo ser convocado, neste particular, o consignado no artigo 9.º do CPTA, o qual adota um princípio geral concordante, na sua essência, com a regulação da legitimidade processual civil, constante do CPC, especificamente no artigo 30.º, nºs 1, 2 e 3.

In casu, a apreciação da ilegitimidade realizada pelo Tribunal a quo coaduna-se com a apreciação da legitimidade no âmbito do requerimento apresentado junto do Instituto da Segurança Social, tendente ao reconhecimento da prescrição das dívidas tributárias, donde, procedimento que não processo judicial tributário.

Razão pela qual, se impõe, desde logo, aquilatar do âmbito e alcance da expressão “interesse legalmente protegido”.

Neste particular, doutrina Jorge Lopes de Sousa[1], que:

 “Em matéria tributária, é de considerar ser titular de um interesse susceptível de justificar a intervenção no procedimento tributário quem possa ser directamente afectado pelo que nele possa vir a ser decidido, inclusivamente quando esteja em causa uma mera situação de vantagem derivada do ordenamento jurídico [No sentido de a fórmula «interesse legalmente protegidos» ter, quando comparada com a fórmula “interesse se legítimo», potencialidade expansiva para abranger todas as situações de vantagem» derivadas do ordenamento jurídico, podem ver-se J .J .GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, de 3.4 edição, página 937 ] no sentido de a fórmula, o que será a interpretação que melhor se compagina com o direito constitucionalmente garantido de participação dos cidadãos nas decisões que lhes disserem respeito (art. 267.º, n.º 5, da CRP), como tal se tendo de considerar, necessariamente, todas as que tenham repercussão directa na sua esfera jurídica.

Para haver legitimidade, estes interesses têm de ser afectados, positiva ou negativamente, pela decisão que possa ser tomada no procedimento tributário.”

Densificando quanto ao conceito de interesse direto, o mesmo autor, que: “ Não se verifica a existência de tal interesse directo se o benefício decorrente da anulação do ato não tiver uma repercussão imediata no interessado, mas apenas mediata, eventual ou meramente possível (acórdão do STA de 16-6-99, processo n.º 23630)”[2].

Clarificando, neste particular, o Aresto do STA, proferido no processo nº 0707/07, datado de 19 de dezembro de 2007, que entender-se-á como sendo detentor de um interesse legalmente protegido, aquele que é “[t]itular de um interesse susceptível de justificar a sua intervenção no procedimento tributário” donde “quem possa ser directamente afectado pelo que nele possa vir a ser decidido.”

Visto o direito que releva para o caso vertente, atentemos no recorte probatório dos autos.

Decorre da factualidade assente-não impugnada- que:

Mediante ofício datado de 29 de setembro de 2016, emitido pela Direção do Núcleo de Gestão da Dívida Departamento de Fiscalização do Instituto da Segurança Social, I. P., foi o Recorrente notificado na qualidade de representante legal da sociedade “D....., Lda”, de que pendiam dívidas desta à Segurança Social, referentes aos meses de dezembro de 2009 a abril de 2016, num valor global de €89.320,89, respeitantes a quotizações e contribuições imputáveis aos membros dos órgãos sociais e aos trabalhadores da sociedade.

Mais dimanando do seu teor que, pelo facto de tais montantes não terem sido oportunamente entregues, ou seja, nem no prazo legal, nem nos 90 dias que se lhes seguiram, tal constituiria, objetivamente, indício da prática de um crime de abuso de confiança da Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 107.º do RGIT, razão pela qual se concedia o prazo de trinta dias para a sociedade visada proceder ao seu pagamento, sob pena de ser instaurado processo crime sobre aqueles factos.

Na sequência de tal notificação, o Requerente, ora Recorrente, remeteu, em nome pessoal, ao Núcleo de Investigação Criminal do Departamento de Fiscalização do Instituto de Segurança Social, I. P., um requerimento no qual requeria o reconhecimento de que tais dívidas fossem declaradas prescritas, o qual não mereceu qualquer resposta por parte da entidade destinatária.

Ora, face ao supra aludido e contrariamente ao evidenciado pela Recorrente, a visada notificação ao abrigo do artigo 105.º, nº4 do RGIT não foi endereçada ao Recorrente em seu nome pessoal, nem na qualidade de responsável solidário e subsidiário.

Conforme, resulta expresso do teor da notificação a mesma contempla clara e inequivocamente que o Recorrente foi notificado “[n]a qualidade de representante legal/membro de órgãos estatutários da sociedade, D....., LDA”.

Com efeito, o n.º 4 do artigo 105.° do RGIT, na redação introduzida pelo artigo 95.º da Lei nº 53º-A/2006 de 29 de dezembro, acrescentou, no que respeita ao crime de abuso de confiança fiscal, e ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, ex vi, art. 107.º, nº 2 do RGIT, uma nova condição objetiva de punibilidade[3]- conforme qualificação atribuída pela jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 9.04.2008, processo 07P4080, publicado no DR 1ª série, de 15.05.2008, p. 2672,-a qual consiste em a falta de entrega das prestações tributárias e das prestações de segurança social, declaradas, deduzidas e não entregues, só serem puníveis se não forem pagas, com os legais acréscimos, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.

Logo, considerando o teor do normativo citado, conclui-se que comete o crime de abuso de confiança fiscal quem, estando legalmente obrigado a entregar à Administração prestação que, tendo recebido, tenha a obrigação legal de liquidar, de valor superior a €7.500,00, omita, total ou parcialmente, tal entrega, desde que, cumulativamente, tenham decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e a prestação comunicada à Administração não tenha sido paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

Portanto, antes que tenham decorrido aqueles 90 dias após a data em que deveria ter sido entregue a prestação tributária e antes que tenha sido realizada notificação admonitória para que seja efetuada a entrega da prestação tributária, e após esta tenham decorridos 30 dias, não se encontram preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo.

Ora, como é bom de ver, o ato administrativo que motivou a interpelação do Recorrente, mais não representa que a notificação para o pagamento no prazo de 30 dias, realizada nos moldes anteditos e em cumprimento da nova condição de punibilidade, facultando-se, assim, a possibilidade de o agente infrator- no caso a sociedade- ver excluída a sua punibilidade[4].

Face ao supra aludido não tendo a aludida notificação sido dirigida ao Recorrente, nem resultando, tão-pouco, provado que já existam processos de execução fiscal instaurados contra a sociedade atinentes às dívidas em contenda, entende-se, efetivamente, que na presente data o Recorrente não tem um interesse legalmente protegido[5].

De relevar, neste particular, que não nos encontramos perante uma questão de ilegitimidade processual, porquanto, in casu, o Recorrente reage na sequência de uma omissão de conduta por parte da Administração Tributária, assistindo-lhe, por conseguinte, legitimidade processual ativa para interpor uma intimação para um comportamento.

Com efeito, a questão entronca na ilegitimidade no âmbito do procedimento tributário, logo ilegitimidade substantiva, donde procedendo não dimana a absolvição da instância, mas sim a absolvição do pedido.

A legitimidade processual, é um pressuposto adjetivo de que depende o conhecimento do mérito da causa, que se afere pelo interesse do autor em demandar e o do réu em contradizer.

Como doutrinam A. Varela, J. M. Bezerra, Sampaio e Nora[6], ser parte legítima na ação “[é] ter o poder de dirimir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista; e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é diretamente atingida pela providência requerida.”

Diferentemente, a legitimidade substantiva é um requisito de procedência do pedido, uma vez que tem que ver com a efetividade da tal relação material, interessando já ao mérito da causa e, constitui, por isso, uma exceção perentória inominada que leva à absolvição do Réu do pedido.

Neste particular, clarifica o STJ, no âmbito do processo nº 5297/12.0TBMTS.P1.S2, que:

 “A legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objecto do processo, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou. A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa.”

No caso vertente, a relação material controvertida tal como foi configurada pelo Recorrente na p.i., tem lugar entre ele e a Recorrida, e dimana de uma omissão de resposta a um requerimento junto dessa mesma entidade, pelo que, em virtude dessa configuração, o Recorrido tem interesse processual em demandar, sendo, de um ponto de vista processual, parte legítima.

Contudo, como visto, o mesmo arroga-se titular de uma relação jurídica material, que se vem a demonstrar não existir, verificando-se, por isso, a exceção perentória de ilegitimidade substantiva, que conduz à absolvição do pedido.

Uma nota final, para evidenciar que com tal decisão não se denega qualquer direito ou coarta qualquer garantia processual ao Recorrente, porquanto sempre poderá o mesmo, seja enquanto representante legal da sociedade após a instauração das respetivas execuções fiscais, seja em nome próprio após a notificação-pessoal-para pagamento da dívida, requerer junto do órgão da execução fiscal o reconhecimento da prescrição das dívidas exequendas, e em caso de indeferimento dessa pretensão reagir judicialmente.

Assim, face ao supra aludido, mantém-se a decisão recorrida quanto à ilegitimidade, apenas se alterando a consequência extraída pelo Tribunal a quo, no sentido da absolvição da instância que não é de manter, nesta parte, o que se determinará no dispositivo.


***

IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

- NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA, apenas se alterando a consequência jurídica extraída da ilegitimidade do Recorrente, determinando-se, nessa medida, a absolvição do pedido.

Custas a cargo da Recorrente.

Registe. Notifique.


Lisboa, 28 de janeiro de 2021

[A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Susana Barreto e Vital Lopes]

Patrícia Manuel Pires

_________________________
[1] CPPT anotado e comentado, Áreas Editora: 6ª edição, 2011, Vol. I., p.120.
[2] Ob, cit, p. 135.
[3] Cavaleiro Ferreira-Direito Penal, vol. II, 1957, p. 132, definia a condição de punibilidade como “uma condição da existência do direito de punir, é pressuposto da relação jurídica punitiva. Sem que se verifique determinado facto, não surge para o Estado o direito de punir. Não é elemento do crime, porque consiste num facto estranho ao facto constitutivo principal: é um facto constitutivo acessório, que condiciona os efeitos que normalmente estão ligados ao crime, isto é, condiciona a responsabilidade penal. Pertence, em consequência, ao direito substantivo, ao direito penal”.
[4] Vide, designadamente, Acórdão deste Tribunal proferido no processo nº 1807/19.0, datado de 21.05.2020, relatado pela, ora, Relatora.
[5] Vide, neste âmbito, ainda que a propósito da legitimidade processual no processo judicial tributário enquanto faculdade de dedução de impugnação judicial de ato administrativo similar, o Acórdão do STA proferido no processo nº 0648/12, datado de 28.11.2012, e deste Tribunal no recente Aresto, proferido nº 1462/19, datado de 14.01.2021.
[6] Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 129.