Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1006/18.9BELRA
Secção:CA
Data do Acordão:06/06/2019
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:FARMÁCIAS,
ORDEM DE APRECIAÇÃO E DECISÃO DE REQUERIMENTOS MUTUAMENTE EXCLUDENTES
Sumário:I - O exame formal ou liminar antecede necessariamente a apreciação material ou substantiva subjacente à decisão final.
II - Do registo de apresentação de requerimentos não decorre necessariamente o dever de a A.P. os “admitir, instruir, apreciar e decidir” pela ordem cronológica desse registo. Tudo depende, pelo menos, das circunstâncias concretas, dos incidentes concretos, das diligências concretamente necessárias.
III - Como as pretensões administrativas da requerente e do contra-interessado são, por causa das exigências legais, mutuamente excludentes em termos do seu mérito, i.e., em termos de uma poder condenar o destino da outra, e estando nós no campo da materialidade, da substância, o critério de ordem de apreciação e decisão dos requerimentos administrativos não pode ser apenas o importante critério legal formal e cronológico resultante do art. 105º do CPA, embora este não deva ser ignorado.
IV - Havendo dois procedimentos com pedidos mutuamente excludentes, vale a data do início de cada procedimento para efeitos de ordem cronológica de apreciação e decisão dos mesmos, independentemente de ter havido ou não necessidade de corrigir deficiências de um requerimento inicial ou de ambos os requerimentos iniciais.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

FARMÁCIA I........... intentou processo cautelar (depois convertido nos termos do art. 121º do CPTA) contra o INFARMED, IP.

É contra-interessado PAULO ....................

A pretensão formulada ao T.A.C. foi a seguinte:

- Suspensão da eficácia da decisão pela qual o INFARMED determinou a suspensão do procedimento de transferência da farmácia da requerente.

- No processo principal, a anulação desse mesmo ato administrativo, a condenação da E.D. a retomar o procedimento iniciado pela requerente e a declarar a aptidão da localização da nova farmácia.

Após a discussão da causa, o T.A.C. decidiu absolver os demandados do pedido.

*

Inconformada, a autora interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação as seguintes longas conclusões:

A. Vem o presente recurso interposto da sentença que indeferiu o procedimento cautelar e, por essa via, a ação principal.

B. Constitui fundamentos do mesmo (i) O erro de julgamento de direito; (ii) O erro de julgamento nos pressupostos de facto; (iii) Pontos de fato incorretamente julgados; (iv) Impugnação da decisão de antecipar o juízo sobre a causa principal; (v) Pedido de condenação do contrainteressado como litigante de má-fé e (vi) Impugnação do valor da causa.”

C. Ab ovo para invocar que a sentença enferma de nulidade, nos termos dos artigos 195.º/1 e 615.º/1 al. d) do CPC, na medida em que não se pronunciou expressis verbis sobre a necessidade de produção de prova do alegado pelos recorridos “…de que o processo do contrainteressado estava corretamente instruído…”, com o que inquinou todo o julgamento.

D. Tal omissão influi decisiva e negativamente na decisão da causa, já que tal alegação, em face dos documentos entretanto obtidos e cuja necessidade de junção hic et nunc resulta do julgamento efetuado, vem, afinal, revelar-se como não verdadeira, sendo que o contrainteressado não só alterou a verdade como induziu o tribunal a quo e, admite-se, a entidade demandada, a representar uma situação fática distinta da realidade.

E. De todo o modo, da matéria de facto dada por assente, vemos que a recorrente apresentou no dia 11.05.2018 um pedido de transferência da sua farmácia, tendo o contrainteressado apresentado um outro requerimento no dia 18.05.2018.

F. Do elenco dos fatos assentes, mais resulta provado que no dia 21.05.2018, a recorrente foi notificada para juntar documentos, tendo a mesma cumprido tal notificação no dia imediatamente a seguir, ou seja, a 22.05.2018.

G. Constitui causa de pedir no presente procedimento cautelar, o ato administrativo consubstanciado na deliberação do conselho diretivo da entidade recorrida de 14.08.2018 que deliberou “que a apreciação do pedido de transferência da Farmácia I....., ficará dependente da análise do pedido de transferência da Farmácia C....., e da decisão que venha a ser adotada sobre este último.”.

H.Cediço convém sublinhar que tendo o requerimento da recorrente sido apresentado no dia 11.05.2018 e o do contrainteressado apresentado no dia 18.05.2018, devia, quando muito, e a não haver motivo para indeferimento liminar, que havia, estamos perante pedidos prejudiciais, já que não se está perante pedidos conflituantes, regulados no artigo 22.º da Portaria n.º 352/2012 de 30 de outubro, e neste caso a norma a aplicar é bastante clara, pois suspende-se o que entrou em segundo lugar, nos termos do artigo 38.º n.º 1 conjugado com o artigo 105.º 1 e 4, ambos do CPA.

I. Devendo esta norma ser interpretada e aplicada no sentido de que a apreciação do requerimento entrado em primeiro lugar não se suspende se não nos casos expressamente previstos na lei e que em caso de prejudicialidade entre requerimentos é indeferido ou suspenso o apresentado em segundo lugar.

J. Ademais, é inconstitucional, por violar os artigos 18.º/1, 20.º/4 e 266.º 1 e 2 da Constituição, a norma extraída da conjugação do artigo 38.º/1 e 105.º/1 do CPA, na interpretação de que suspende-se o requerimento apresentado em primeiro lugar pela mera circunstância terem sido solicitados documentos adicionais, ainda que previstos em Portaria, mas não exigidos pelo balcão eletrónico, a benefício de outro interessado.

K. Quanto mais não fosse o requerimento do contrainteressado, devia ter sido indeferido, por aplicação do artigo 108.º/3 in fine do CPA, já que a pretensão estava ab ovo inviabilizada já que nos termos do disposto no artigo 20.º/1 al. d) da Portaria n.º 352/2012 de 30 de outubro, a certidão camarária de que o preenchimento dos requisitos relativos às distâncias exigidas pelas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 2.º, é condição sine qua non da admissão do requerimento e no caso concreto a Câmara Municipal fez constar expressamente que esses requisitos imperativos de distância não se mostravam, nem se mostram preenchidos.

L. O tribunal a quo, insista-se, sem construir uma base fatual suficientemente sólida, na medida em que não procurou apurar ser verdade o alegado pelos recorridos de que o processo do contrainteressado estava corretamente instruído, como vem a provar- se, por documento de prova plena, não ser verdade, entendeu que o ato administrativo não padece dos vícios que lhe são imputados.

M. Desde logo, o tribunal a quo errou ao considerar ser lícito à entidade demandada suspender e condicionar a apreciação do requerimento da recorrente, favorecendo a apreciação de um requerimento (prejudicado ab ovo) sem indicar uma base normativa em que alicerçou tal fundamento, quando certo é que o princípio da legalidade ou juridicidade, de acordo com a ideia do Direito, assim o impõe, pelo que foi violado o artigo 3.º/1 do CPA.

N. Por outro lado, o tribunal a quo, errou de direito, já que sendo a regra do procedimento administrativo a oficiosidade, a entidade demandada, devia ter providenciado pelo suprimento oficioso dos documentos em falta quer solicitando à recorrente, como o fez, os que não pudesse obter pela interoperacionalidade do sistema, não sendo, em caso algum motivo de suspensão ou interrupção da marcha do procedimento, i. e., do dever de celeridade, nem muito menos para extinguir o direito da recorrente, tendo, pois, sido violado o disposto nos artigos 59.º, 108.º/2, 115.º/1 e 117.º/1, todos do CPA

O. É que sob a administração impende o ónus de realizar ex officio todas as diligências necessárias à instrução do procedimento, não podendo, a pretexto de uma deficiente instrução que, afinal não se verifica, limitar, restringir ou negar o direito da recorrente de ver apreciada em tempo útil, i. e., nos prazos legalmente estabelecidos, a sua pretensão, pelo que foi violado o disposto no artigo 13.º/1 do CPA.

P. Ainda assim, cumpre demonstrar que, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo, a não apresentação dos documentos em falta, não é imputável à recorrente, referindo-se, desde logo, que o requerimento de transferência de farmácia é tramitado única e exclusivamente no balcão eletrónico da entidade recorrida, submetendo-se, pois, à disciplina do artigo 62.º do CPA.

Q. De acordo com o disposto neste artigo, os interessados estão obrigados não só a usar este meio como única forma de comunicação no procedimento, não sendo, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo, admissível v. g., telecópia, correio físico, correio eletrónico, como estão vinculados a preencher os campos disponibilizados pelo balcão e a submeter os documentos que a entidade recorrida considerou como necessários para a pretensão.

R. A recorrente satisfez os requisitos exigidos pelo balcão eletrónico, submetendo os documentos ali referenciados como obrigatórios, não existindo espaço ou campos para quaisquer outros documentos adicionais ou não, sendo certo que, à data da submissão do requerimento, os documentos entretanto solicitados, não constavam no referido balcão eletrónico como necessários ou adicionais, pelo que a decisão recorrida e o ato em crise violaram o disposto no artigo 62.º/1 al. a) do CPA.

S. Note-se que após citação e oposição para esta providência a entidade recorrida modificou o seu balcão eletrónico, resultando que os campos reservados para o carregamento de documentos é dividido em duas áreas sendo uma descrita como “documentos obrigatórios” que grosso modo corresponde ao anterior layout e uma outra área identificada para “documentos adicionais”, o que significa inter alia que a entidade recorrida corrigiu o erro do seu balcão eletrónico e com o qual induziu a recorrente, como qualquer outro cidadão, numa situação omissiva de presentação de documentos, manifestamente, involuntária

T. Não é razoável impor-se à recorrente um ónus de “contornar a dificuldade”, até num contexto da desmaterialização do funcionamento da administração pública, um ónus que, além de não estar consagrado na lei, estava ab initio votado ao insucesso já que as funcionalidades do balcão eletrónico não são suscetíveis de contornar pelos particulares, uma vez que só o seu proprietário tem acesso a tais opções, pelo que o tribunal errou ao assim decidir.

U. Do que vem dito, forçoso é concluir que inexiste uma conduta culposa ou negligente da recorrente, inculpabilidade que, aliás, se antevê de antemão face ao citado artigo 62.º n.º 1 do CPA e com a certeza, porém, de que, em caso algum, o erro ou falha nas instruções ou indicações da administração pode resultar em prejuízo para o interessado, por aplicação do princípio da confiança e também do dever de colaboração com o interessado, plasmado no artigo 11.º n.º 1 do CPA.

V. Também o tribunal a quo errou na asserção de que os documentos não submetidos no portal não estavam na posse da recorrente já que alegado está que “Note-se que os documentos, cuja apresentação foi solicitada no dia,21.05.2018 são de obtenção instantânea, sendo certo que os mesmos, à exceção da certidão do registo comercial já estavam obtidos à data de 11.05.2018 e só não foram carregados no Portal precisamente porque não havia campo reservado para eles, o que se comprova v. g., pela data de emissão dos referidos documentos.

W. Quer a decisão recorrida quer o ato administrativo atacado, assentam no pressuposto de fato manifestamente errado de que o requerimento do contrainteressado, estava corretamente instruído, quando se verifica pela tramitação eletrónica, que a 21.05.2018, foram solicitados documentos e a 10.09.2018 e a 19.09.2018, foram solicitados mais documentos.

X. Assim, a decisão recorrida erra ao não considerar inválido o ato, dado que assente em pressupostos de fato errados, não sendo sequer esse erro de se considerar desculpável, pela simples razão de que no dia 18.08.2018 a entidade recorrida sabia, tinha, e tem obrigação de saber, que o requerimento do contrainteressado não estava corretamente instruído, tanto assim que lhe havia solicitado documentos.

Y. Por outro lado, vemos que o requerimento da recorrente foi apresentado a 11.05.2018 e só foi apreciado a 21.05.2018, portanto, dez dias depois da apresentação do requerimento; ao passo que o requerimento do contrainteressado foi apresentado no dia 18.05.2018 e no dia 21.05.2018, i. e., três dias depois já lhe estavam a ser solicitados documentos, não se compreendendo, nem se aceitando, tamanha diferenciação de tratamento.

Z. Dito isto, não há, não se enxerga, explicação, lógica, razoável e séria para o sucedido, tanto mais que não se pode falar em dualidade de critérios, tratando-se, ao invés, de um puro exercício de arbítrio, inaceitável para um Estado de Direito, com o qual, e isto facilmente se compreende, se violaram os princípios fundamentais do Direito Administrativo da igualdade, da proporcionalidade, da imparcialidade e da boa-fé, o que vale por dizer que foram violados os artigos 6.º, 8.º, 9.º e 10.º do CPA.

AA. O ponto 5 da matéria de fato assentada, além de contradição insanável com o ponto 12, está incorretamente julgado, na medida em que dos documentos 1 e 2 juntos com a contestação do contrainteressado, não consta que o balcão eletrónico da entidade demandada, possuísse outros campos para submissão de outros documentos.

BB.Tanto assim, e como meio de prova que impõe decisão diversa, que só veio a, eventualmente, corrigir as falhas do balcão eletrónico, depois da oposição à presente providência, ampliando ou criando novos campos para submissão de documentos que classifica não como obrigatórios, mas adicionais, sendo que os documentos cuja falta se imputou à recorrente são desta espécie.

CC. O ponto 13 da matéria de fato elencada deve ser corrigido, já que o único documento em falta no dia 11.05.2018, era de facto a certidão do registo comercial, sendo que a mesma é de obtenção automática, até pela própria entidade sendo que os meios de prova que impõem decisão diversa são as datas de cada documento apresentados a 22.05.2018.

DD. O ato administrativo padece, pois, dos vícios de violação de lei, que lhe foram, e são, imputados, pelo que é anulável, nos termos do artigo 163.º/1 do CPA.

EE. Ainda que com alguma dúvida, afigura-se que o ato administrativo é nulo, por aplicação do disposto no artigo 161.º n.º 2 al. i) do CPA, já que o mesmo repousa ou tem fundamento num facto manifestamente inverídico – de que o processo do contrainteressado estava corretamente instruído.

FF. Do que resulta, ainda, que o processo cautelar não contém os elementos suficientes e necessários para a decisão da causa principal, na medida em que o tribunal a quo, não curou de apurar a veracidade dos pressupostos de fato em que assenta o ato administrativo atacado de que o processo do contrainteressados estava corretamente instruído, o que, como aqui se prova, é completamente falso, pelo que foi violado o artigo 121.º/1 do CPTA.

GG. Da factualidade carreada aos autos, resulta manifesto que o recorrido atuou com má-fé substancial e instrumental, induzindo o tribunal em erro de julgamento, na medida em que apresentou o requerimento para transferência da sua farmácia, sabendo que não reunia os requisitos, truncou documentos, omitiu a verdade e deduziu uma oposição cuja falta de fundamento não ignora.

HH. À recorrente assiste o direito a ser indemnizada dos prejuízos sofridos com a litigância de má-fé, prejuízos que se medem pela perda de receita desde a data em que o seu procedimento devia legalmente estar concluído, na fora a existência da conduta do recorrido e que neste caso concreto devem ser apurados ou liquidados em execução de sentença.

II. Deve, assim, o contrainteressado ser condenado em multa condigna e indeminização à recorrente, pela perda de receitas a liquidar em execução de sentença.

JJ. A terminar, o valor da causa fixado pelo tribunal a quo está incorretamente julgado, devendo ser fixado o valor atribuído à ação principal que é de 50 001,00€

KK. Por todo o exposto a decisão recorrida violou as normas jurídicas supra identificadas, devendo as mesmas serem interpretadas e aplicadas no sentido expresso nestas conclusões.

*

O recorrido contra-alegou, sem concluir.

*

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – FACTOS PROVADOS

O tribunal recorrido decidiu estar provada a seguinte factualidade:


1. A autora é proprietária do estabelecimento de farmácia designado por “Farmácia I....’’, titular do alvará n,° 3... cf. cópia do alvará, junto com o RI como Doc. 1.

2. Por requerimento apresentado no portal do [NFARMED no dia 11.05.2018, a autora, através da sua sócia M................, solicitou autorização para a transferência da localização da farmácia identificada em “1.“- cf. doc. 2 junto com o RI e acordo.

3. O pedido de transferência de localização decorre exclusivamente de forma electrónica no ‘Portal Licenciamento” da entidade demandada INFARMED, sendo atribuído o nome de utilizador e a respectiva senha de acesso cf. doc. 3 junto com o RI e acordo.

4. No referido portal, é possível aceder á página de pedidos, na qual, além dos dados de identificação do requerente e do tipo de pedido, sob o título “Documentos obrigatórios”, constam os seguintes campos destinados à submissão de documentos: (i) Memória Descritiva; (ii) Declaração OF Diretor Tècnico; (iii) Planta de Localização; (iv) Requerimento; (v) ped requerente.tipo.documento.certidão distancias; (vi) Demonstração de critérios; (vii) Quadro farmacêutico; e (viii) Registo Criminal Diretor Técnic - cf. doc. 4 junto com o RI.

5. Do portal identificado em “3" mais constam formulários, minutas e informação relativa aos documentos que obrigatoriamente devem acompanhar o pedido de transferência de localização da farmácia cf. docs. 1 e2 juntos com a Contestação do contra-interessado.

6. Do portal identificado em “3" consta ainda aviso com o seguinte teor:
"O pedido ao INFARMED, I.P. deve ser instruído com toda a documentação prevista na legislação aplicável, uma vez que a falta de algum dos documentos legalmente exigidos, aquando da entrada do pedido, é motivo para indeferimento do mesmo” - cf. doc. 2 junto com a Contestação do contra-interessado.

7. Em 11.05.2018. a autora carregou na plataforma identificada em “3” os documentos identificados como Declaração OF Diretor Técnico; Quadro farmacêutico; Demonstração de critérios; Registo criminal do diretor técnico; ped. requerente.tipo.documento. certidãodistâncias; Planta de Localização; Memória descritiva e Requerimento transferência- cf. docs. 4 a 12 junto com o RI. cujo teor se dá por reproduzido.

8. Em 19.05.2018 o contra-interessado deu entrada, junto da entidade demandada, de um pedido de transferência de farmácia da sua propriedade para localização que dista menos de 350 metros do local pretendido pela autora,.- cf. acordo.

9. Através da plataforma identificada em “3”, a autora recebeu, no dia 21.05.2018, mensagem da entidade demandada com o seguinte teor:
"Solicita-se a V. Exa. o envio da seguinte documentação:Fotocópia do contrato de sociedade e certidão do registo comercial; Informação adequada à avaliação do cumprimento do critério de salvaguarda da acessibilidade das populações aos medicamentos e sua comodidade (...);Declaração da Ordem dos Farmacêuticos da respectiva inscrição, bem como certidão do registo criminal da Dra. A...............; Planta e memória descritiva do edifício ou fracção para onde se pretende a transferência, incluindo a descrição das instalações das divisões e respectivas áreas (...).Para o efeito acima referido dispôe V. Exa. de um prazo de 10 dias úteis a contar da recepção da presente, sob pena de indeferimento do pedido.(...)" - cf. doc. 12 junto com o RI, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

10. No dia 22.05.2018 a autora carregou na plataforma identificada em “3" os documentos identificados como Planta e Memória descritiva; Salvaguarda Acessibilidade; Certidão Permanente; Contrato da Sociedade; Registo Criminal E..........; Declaração OF E.......... - cf. docs. 13 a 19 juntos com o RI.

11. Através da plataforma identificada em “3" a autora recebeu, no dia 28.08.2018, mensagem da entidade demandada com o seguinte teor:
"Informa-se V. Exa que por deliberação de 14 de agosto de 2018, do do Conselho Diretivo do INFARMED - Autoridade do Medicamento e da Saúde, IP, foi aprovado que a apreciação do pedido de transferência da Farmácia I....., ficará dependente da análise do pedido de transferência da Farmácia C....., e da decisão que venha a ser adotada sobre este último, considerando que deve prevalecer o pedido de transferência da Farmácia C..... que deu entrada em 18.05.2018 e que foi correctamente instruído no momento da instrução, tendo por base o seguinte:
Em 11-05-2018 deu entrada no Portal Licenciamento + um pedido de transferência da Farmácia I....., para a Avenida ......, Edifício ....., Loja ..., na freguesia de ............, concelho de ........., distrito de Santarém. O referido pedido não se encontrava completo, estando em falta documentos legal mente exigidos, pelo que foram solicitados documentos em 21-05-2018.
Acontece que em 19-05-2018 deu entrada um pedido de transferência da Farmácia C....., para a Avenida ....., Lote ..., R/c Fsq., na freguesia de ............., concelho de ..........., distrito de Santarém, cuja localização pretendida dista menos de 330 metros do local pretendido pela Farmácia I...... Este segundo pedido foi corretamente instruído com toda a documentação necessária. Considerando que estamos no âmbito de um procedimento que é apreciado por ordem de entrada dos requerimentos, e que, por esse motivo, a entrada de um pedido de transferência preclude o direito de transferência de outra farmácia que tenha apresentado um pedido para a mesma zona mas em data posterior, em 22-05-2018 foi emitido parecer jurídico sobre qual será o pedido que terá "prioridade": o que entrou em data anterior, mas que não se encontrava completo (apenas ficou completo apôs o pedido de elementos do INFARMED ,LP. ao qual foi dada resposta em 22-05-2018) ou o que entrou em data posterior mas corretamente instruído, que é do entendimento que deverá prevalecer o pedido de transferência da farmácia C....., que deu entrada em 19.05.2018 ,que foi corretamente instruído no momento da instrução.
Com efeito. o problema surge pelo facto de em 11-05-2018 ter dado entrada no Portal Licenciamento + um pedido de transferência da Farmácia I...., incompleto por falta de documentos legalmente exigidos, para a Avenida .........., no concelho de .........., distrito de Santarém e de mais tarde, em 19.05.2018 ter entrado um novo pedido de transferência, corretamente instruído, com toda a documentação, da Farmácia C..... para a mesma Avenida.
A matéria relativa aos pedidos conflituantes não está expressamente regulamentada na legislação em vigor, isto é na Portaria n.º 352/2012, de 30 de outubro. Contudo a luz dos princípios gerais da atividade administrativa tem sido entendido que o pedido apresentado em primeiro lugar preclude a possibilidade de apresentação de um novo pedido de transferência.
Contudo, esta preferência tem subjacente que os pedidos de transferência sejam apresentados com todos os elementos e documentação necessária e exigida. Este raciocínio é conforme o principio da justiça e razoabilidade (artigo 8.º do CPA)r dado que não é legitimo que fique precludido o direito de transferência de farmácia com base num pedido incompleto, existindo outro sujeito que dispõe de toda a documentação. Admitir uma solução contrária seria irrazoável, pois poderíamos estar a admitir uma solução que iria favorecer uma possibilidade de fraude à lei, em que os sujeitos apresentariam pedidos sem dispor de toda a documentação para garantir a "reserva", além disso tal consistiria, outrossim, uma violação ao principio da imparcialidade, previsto no artigo 9.º do CPA, pois o INFARMED, I.P. poderia estar a colocar numa posição mais vantajosa um sujeito, de forma irrazoável e sem motivo justificativo.
Ademais, ao abrigo do principio da boa-fé (artigo 10.º do CPA) e da proporcionalidade stricto sensu (artigo 7.º do CPA) esta é a solução mais conforme. Não é proporcional, nem razoável, face ao fim pretendido, que um pedido de transferência fique "garantido" e que impeça a entrada de novos pedidos, se não estiver corretamente instruído com todos os elementos necessários.
Não obstante o mencionado supra ressalva-se que como esta matéria não está expressamente prevista na lei, sendo a única solução obtida com recurso aos princípios gerais da atividade administrativa previstos no CP A, sendo esta a posição que nos parece mais conforme com a legislação em vigor.
Nestes termos, prevalece o pedido de transferência da Farmácia C....., que deu entrada em 19.05.2018, e que foi corretamente instruído no momento da instrução, sendo que nestes termos, a apreciação do pedido de transferência da Farmácia I...., ficará dependente da análise do pedido de transferência da Farmácia C....., e da decisão que venha a ser adotada. (...)"- cf. doc. 20 junto com o RI.

12. A plataforma identificada em "3" não continha, à data da submissão dos requerimentos por autora e contra-interessada, um campo destinado à submissão de outros documentos - cf. confissão resultante de requerimento de 17.12.2018, constante de fls. 417 dos autos cautelares e ‘4.º'” da Contestação da acção principal.

13. Os documentos cuja apresentação foi solicitada no dia 21.05.2018 não estavam todos na posse da autora, à data da submissão do pedido - cf. confissão, tal como resulta de “28.°” do Rl e da PI.

*

II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Delimitação do objeto do recurso:

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso - cf. artigos 144º-2 e 146º-4 do CPTA, artigos 5º, 608º-2, 635º-4-5 e 639º do CPC-2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA -, alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas; sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo - cf. artigos 73º-4, 141º-2-3, 143º e 146º-1-3 do CPTA.

Ora, tudo visto, as questões a resolver contra a decisão ora recorrida são as seguintes:

- Violação do art. 121º do CPTA;

- Nulidade prevista no art. 195º-1 CPC e ou nulidade prevista no art. 615º-1-d) CPC, a propósito da necessidade de prova quanto ao p.a. do c-i estar ou não corretamente instruído;

- Erro de julgamento quanto aos arts. 6º, 8º, 9º, 10º, 11º-1, 38º, 59º, 62º, 105º, 108º, 115º-1 e 117º-1 do CPA, e 20º-1 b) da Portaria nº 352/2012 (certidão camarária), uma vez que a recorrente fez o seu pedido em 11-05-2018 e o C-I só fez em 18-05-2018, além do que a recorrente tinha os documentos que não pôde carregar no portal por motivo a si alheio, ao passo que o pedido do C-I não estava corretamente instruído e devia ter sido indeferido;

- Erro de julgamento quanto aos factos nº 5, nº 12 (cf. docs. 1 e 2 da Opos. do C-I) e nº 13 (cf. conclusão CC);

- Má fé processual do contra-interessado;

- Erro de direito quanto ao valor da causa.

Passemos, assim, à análise do recurso de apelação.

*

Não seguiremos a ordem das invocadas ilegalidades como constam da alegação de recurso, porque a isso obsta o Direito e a lógica.

1.

Sobre a violação do art. 121º-1 do CPTA

O Tribunal Administrativo de Círculo aceitou o requerimento do ora recorrente para se decidir a causa principal neste processo cautelar, ao abrigo do art. 121º do CPTA.

Porém, agora, o requerente e recorrente considera que não existiam os requisitos para a convolação processual que ele pedira. Entende agora que, embora a causa seja simples – não é caso de urgência – o processo não tinha, não tem, todos os elementos de facto provados para o efeito, pois o requerente teria feito o seu requerimento ao tribunal no pressuposto de que iria haver ainda produção de prova, embora não identifique os factos alegados controvertidos então.

Ora, este argumentário é inaceitável.

Com efeito, se faltasse provar – e não falta - alguma factualidade relevante e ou se faltasse a produção de meios de prova em juízo (para factos relevantes – cf. art. 5º do Código de Processo Civil), é claro que não se poderia dizer, como disse o próprio requerente-recorrente ao Tribunal Administrativo de Círculo no seu requerimento para aplicação do art. 121º, que era lícita a cit. convolação que ele próprio pretendia.

É que, manifesta e expressamente, o nº 1 do art. 121º exige que o processo cautelar contenha já todos os elementos de facto e de prova para conhecer o mérito da causa principal.

E, com efeito, continha.

Ao contrário do agora referido algo confusamente no recurso, não há falta de elementos factuais e probatórios para julgar o pedido feito no processo principal.

E isso decorre do r.i. e deste recurso.

O que impressiona a recorrente é que, agora, seria importante considerarmos algo que não consta dos articulados, nem da sentença recorrida. A recorrente refere-se a factos novos relativos ao requerimento feito pelo contra-interessado à entidade demandada.

Esses factos – novos – são relativos ao requerimento e seus documentos apresentados pelo contra-interessado àquela entidade pública, bem como a decisões desta para que o contra-interessado apresentasse documentos além dos juntos com o requerimento inicial junto da entidade pública cit.

Só que nada disto foi discutido na 1ª instância por nenhum sujeito processual, em nenhuma peça processual. É matéria nova, que só pode ser considerada se for alegada nos articulados ou se for de conhecimento oficioso, mas não ocorre aqui nenhuma dessas duas situações.

Pelo que é matéria que não poderia, nem deveria ser então considerada. Nem neste recurso.

Quer isto dizer que o art. 121º-1 do CPTA não foi violado e que estes factos novos não podem ser agora considerados, porque não constam, nem deveriam constar, da decisão de antecipar o conhecimento do mérito do processo principal ou da própria sentença.

2.

Sobre a nulidade prevista no art. 195º-1 CPC e ou nulidade prevista no art. 615º-1-d) CPC, a propósito da necessidade de prova quanto a o p.a. do contra-interessado estar ou não corretamente instruído

Do que se disse já, resulta que não havia nem há necessidade de prova quanto a o p.a. do contra-interessado estar ou não corretamente instruído. Não existe nos articulados nenhum facto concreto alegado a esse propósito (cf. art. 5º-1 do Código de Processo Civil), pelo que, logicamente, não existe nenhum facto nessa matéria que, alegado, estivesse ou esteja controvertido.

Por outro lado, cabe assinalar que a recorrente confunde nulidade processual com nulidade de sentença. A violação do direito à prova (havendo factos alegados e dela necessitados) constitui uma nulidade processual e ou um erro de julgamento, mas nunca uma nulidade decisória.

3.

Sobre o erro de julgamento quanto aos factos nº 5, nº 12 (cf. docs. 1 e 2 da Opos. do C-I) e nº 13 (cf. conclusão CC)

Para a recorrente, o facto nº 5 contradiz o facto nº 12 e os docs. 1 e 2 da oposição do contra-interessado.

Ora, lendo tais factos provados, não vemos nenhuma contradição. Não existe. São claros e compatíveis entre si e com os cits. documentos.

Quanto ao alegado erro no facto 13, há um equívoco da recorrente.

O seu teor é, aliás, confirmado pela recorrente, quando diz que já existiam alguns deles, mas que faltava emitir só um. O que é perfeitamente coberto pelo teor do facto nº 13.

4.

Sobre o erro de julgamento quanto aos arts. 6º, 8º, 9º, 10º, 11º-1, 38º, 59º, 62º, 105º, 108º, 115º-1 e 117º-1 do CPA, e 20º-1 b) da Portaria nº 352/2012

Eis-nos no cerne do litígio.

4.1.

O ato administrativo em causa, de 14-08-2018, determinou a suspensão do procedimento de transferência da farmácia da requerente

A cit. portaria (Regulamenta o procedimento de licenciamento e de atribuição de alvará a novas farmácias, bem como a transferência da localização de farmácias e o averbamento no alvará) diz, i.a., o seguinte:

Art. 2º Requisitos

1 - A abertura de novas farmácias depende do preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos:

a) Capitação mínima de 3500 habitantes por farmácia aberta ao público no município, salvo quando a farmácia é instalada a mais de 2 km da farmácia mais próxima;

b) Distância mínima de 350 m entre farmácias, contados, em linha reta, dos limites exteriores das farmácias;

c) Distância mínima de 100 m entre a farmácia e uma extensão de saúde, um centro de saúde ou um estabelecimento hospitalar, contados, em linha reta, dos respetivos limites exteriores, salvo em localidades com menos de 4000 habitantes.

2 - Sem prejuízo dos demais requisitos estabelecidos na lei, a transferência de farmácia no município depende do preenchimento cumulativo das alíneas b) e c) do número anterior.

3 - A distância prevista na alínea b) do número anterior aplica-se também à abertura ou transferência de farmácia em relação a farmácia situada em município limítrofe.

4 - A determinação do número de habitantes é feita em função dos dados mais recentes disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística, I. P.

Art. 20º Pedido de transferência

1 - O proprietário de farmácia que pretenda transferi-la dentro do mesmo município deve apresentar um pedido ao INFARMED, I. P., instruído com os seguintes documentos:

a) Fotocópia do respetivo bilhete de identidade ou cartão do cidadão, no caso de se tratar de uma pessoa singular, ou fotocópia do contrato de sociedade e certidão do registo comercial, no caso de se tratar de uma sociedade comercial;

b) Identificação da farmácia a transferir, incluindo o nome da rua e o número de polícia ou lote;

c) Planta de localização do edifício ou fração para onde se pretende a transferência, à escala de 1:2000, incluindo o nome da rua e o número de polícia, de lote, ou de indicação do prédio com projeto de construção licenciado, ou dele dispensado, que represente a área envolvente da farmácia numa distância de 350 m contada dos limites exteriores da farmácia;

d) Certidão camarária relativa ao preenchimento dos requisitos respeitantes à distância previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 2.º;

e) Demonstração do preenchimento dos critérios estabelecidos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de agosto, na redação dada pela Lei n.º 26/2011, de 16 de junho;

f) Se aplicável, as declarações previstas na alínea c) do n.º 6 do artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de agosto, na redação dada pela Lei n.º 26/2011, de 16 de junho;

g) Identificação do diretor técnico e de outro farmacêutico, quando exigível, e declaração da Ordem dos Farmacêuticos da respetiva inscrição, bem como certidão do registo criminal;

h) Memória descritiva do edifício ou fração para onde se pretende a transferência, incluindo a descrição das instalações das divisões e das respetivas áreas, conforme regulamento do INFARMED, I. P.

2 - Em simultâneo com a apresentação dos documentos, o proprietário da farmácia deve proceder ao pagamento da quantia indicada na alínea b) do n.º 2 do artigo 28.º, sob pena de se considerarem os documentos como não apresentados.

Artigo 22.º Pedidos conflituantes

1 - Os pedidos são conflituantes quando reúnam, cumulativamente, os seguintes requisitos:

a) Sejam apresentados no mesmo dia;

b) Sejam objeto de decisão de aptidão;

c) As novas localizações das farmácias distem menos de 350 m entre si.

2 - De entre os pedidos conflituantes, o INFARMED, I. P., seleciona um, através de sorteio.

3 - O INFARMED, I. P., notifica os proprietários das farmácias que apresentem pedidos conflituantes da data, da hora e do local da realização do sorteio.

4.2.

A recorrente fez o seu pedido em 11-05-2018 e o C-I (com referência à Farmácia C.....) só o fez em 18-05-2018.

Já vimos que a E.D. decidiu, apenas em 14-08-2018, que iria apreciar o pedido da requerente depois de apreciar o pedido do contra-interessado, fundamentando essa decisão no seguinte: cit. o pedido da requerente foi apresentado sem todos os documentos legalmente exigidos; o posterior e cit. pedido do contra-interessado foi apresentado de modo completo; pelo que, como os dois se condicionam – por causa das distâncias entre farmácias cits. – dever-se-á apreciar e decidir em primeiro lugar o pedido do contra-interessado, apesar de o pedido da requerente ter ficado corretamente instruído em 22-05-2018, de modo a se cumprir os princípios gerais da atividade administrativa.

A recorrente alega, de novo, que tinha quase todos os documentos que não pôde carregar no portal por motivo a si alheio, justificação que o Tribunal Administrativo de Círculo não considerou como aceitável, ao passo que o pedido do C-I não estava corretamente instruído e devia ter sido indeferido.

Ora, não foi alegado e, assim, não ficou provado que o pedido do C-I não estava corretamente instruído.

Quanto ao não carregamento eletrónico imediato de todos os documentos por parte da requerente, é manifesto que foi isso que ocorreu, como, objetivamente, é confessado pela recorrente. E não releva, não tem pertinência o facto de serem um ou dois. Bastava ser um só em falta, a certidão camarária cit.

E, por isso, como está confessado pela requerente-recorrente que não tinha todos os cits. documentos no dia da sua apresentação com o requerimento à E.D., não interessa saber se a plataforma eletrónica obrigatória da E.D. impediu ou não a apresentação de alguns dos documentos em falta. Cai assim o argumento principal da requerente.

4.3.

Por outro lado, quanto à importante questão da ordem cronológica de apreciação e decisão dos dois pedidos, temos de aferir se o Direito postula a tese da E.D. e do Tribunal Administrativo de Círculo.

Em 1º lugar, devemos sublinhar que a recorrente parece confundir apreciação do pedido ou requerimento com exame formal do mesmo e seus documentos. São realidades diferentes. O exame formal ou liminar antecede necessariamente a apreciação material ou substantiva subjacente à decisão final.

Mas falta verificar se a tese da E.D. e do Tribunal Administrativo de Círculo sobre a correção legal do ato administrativo impugnado, quanto à cronologia da apreciação e decisão, é mesmo a que resulta do Direito vigente. Ou seja, não estaria a E.D., neste caso concreto, obrigada a apreciar e decidir primeiro o primeiro requerimento que recebeu, ainda que instruído de modo incompleto?

Desde já, devemos dizer que os dois pedidos cits. não são conflituantes para efeitos do art. 22º cit.

Deste art. 22º poderemos retirar pistas para melhor responder ao problema principal deste processo.

E o que resulta, i.a., do CPA?

Dispõe o CPA, acima da portaria cit., o seguinte:

Art. 38º

1 - Se a decisão final depender da decisão de uma questão que tenha de constituir objeto de procedimento próprio ou específico ou que seja da competência de outro órgão administrativo ou dos tribunais, deve o órgão competente para a decisão final suspender o procedimento administrativo, com explicitação dos fundamentos, até que tenha havido pronúncia sobre a questão prejudicial, salvo se da não resolução imediata do assunto resultarem graves prejuízos para interesses públicos ou privados.

2 - A suspensão cessa:

a) Quando a decisão da questão prejudicial depender da apresentação de pedido pelo interessado e este não o apresentar perante o órgão administrativo ou o tribunal competente nos 30 dias seguintes à notificação da suspensão;

b) Quando o procedimento ou o processo instaurado para conhecimento da questão prejudicial estiver parado, por culpa do interessado, por mais de 30 dias;

c) Quando, por circunstâncias supervenientes, a falta de resolução imediata do assunto causar graves prejuízos para interesses públicos ou privados.

3 - Se não for declarada a suspensão ou esta cessar, o órgão administrativo conhece das questões prejudiciais, mas a respetiva decisão não produz quaisquer efeitos fora do procedimento em que for proferida.

Art. 105º

1 - A apresentação de requerimentos, qualquer que seja o modo por que se efetue, é sempre objeto de registo, que menciona o respetivo número de ordem, a data, o objeto do requerimento, o número de documentos juntos e o nome do requerente.

2 - Os requerimentos são registados segundo a ordem da sua apresentação, considerando-se simultaneamente apresentados os recebidos pelo correio na mesma distribuição.

3 - O registo é anotado nos requerimentos, mediante a menção do respetivo número e data.

4 - Nos serviços que disponibilizem meios eletrónicos de comunicação, o registo da apresentação dos requerimentos deve fazer-se por via eletrónica.

É manifesto que o cit. pedido do contra-interessado não é ou não encerra uma questão prejudicial – em sentido próprio ou estrito - ante o cit. pedido da requerente.

E do registo de apresentação de requerimentos não decorre necessariamente o dever de a A.P. os “admitir, instruir, apreciar e decidir” pela ordem cronológica desse registo. Tudo depende, pelo menos, das circunstâncias concretas, dos incidentes concretos, das diligências concretamente necessárias.

Mas, o caso em preço tem uma importante especificidade, a qual, aliás, explica a necessidade sentida pela E.D. para apresentar a fundamentação acima transcrita. É que as pretensões administrativas da requerente e do contra-interessado são, por causa das exigências legais cits., mutuamente excludentes em termos do seu mérito, i.e., em termos de uma poder condenar o destino da outra.

Assim, estando nós no campo da materialidade, da substância, o critério não pode ser apenas o importante critério legal formal e cronológico resultante do art. 105º cit., embora este não deva ser ignorado. Este pode é ser ou não ser confirmado pela materialidade das situações jurídicas.

Ora, o CPA dá importância à data de início de cada procedimento e à cronologia (cf. art. 105º do CPA). Isto tem consequências (i) em termos de prazos como decorre dos arts. 13º e 129º do CPA e (ii) em termos de boa administração como decorre do art. 5º-1 do CPA, de onde se conclui que, formal e materialmente, vale a data de apresentação do requerimento.

E o art. 22º da portaria confirma a importância da data de início de cada procedimento.

Por outro lado, o art. 108º do CPA prevê: “1 - Se o requerimento inicial não satisfizer o disposto no artigo 102.º, o requerente é convidado a suprir as deficiências existentes. 2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, devem os órgãos e agentes administrativos procurar suprir oficiosamente as deficiências dos requerimentos, de modo a evitar que os interessados sofram prejuízos por virtude de simples irregularidades ou de mera imperfeição na formulação dos seus pedidos. 3- São liminarmente rejeitados os requerimentos não identificados e aqueles cujo pedido seja ininteligível.”

Como se vê, a lei não secundariza um requerimento ou a respetiva pretensão com base em questões formais. O importante é a pretensão apresentada em certa data.

De acordo com o art. 110º do CPA, “o início do procedimento é notificado às pessoas cujos direitos ou interesses legalmente protegidos possam ser lesados pelos atos a praticar e que possam ser desde logo nominalmente identificadas. Não há lugar à notificação determinada no número anterior nos casos em que a lei a dispense e naqueles em que a mesma possa prejudicar a natureza secreta ou confidencial da matéria, como tal classificada nos termos legais, ou a oportuna adoção das providências a que o procedimento se destina. A notificação deve indicar a entidade que ordenou a instauração do procedimento, ou o facto que lhe deu origem, o órgão responsável pela respetiva direção, a data em que o mesmo se iniciou, o serviço por onde corre e o respetivo objeto”.

Das seis disposições legais referidas deve-se concluir que, num caso como o presente, em que os pedidos podem ser mutuamente excludentes, vale o critério geral apurado. Conta a data do início de cada procedimento, independentemente de ter havido ou não necessidade de corrigir deficiências do requerimento inicial, ao contrário do entendido vagamente pela E.D.

O CPA aponta nesse sentido, tem-no pressuposto. Especialmente num caso como o presente, em os destinos dos pedidos são mutuamente excludentes.

E contra esta conclusão não vale de todo o argumento de que, assim, estar-se-ia a permitir que alguém fizesse primeiro um requerimento apressado mal instruído, só para ser primeiro apreciado e decidido, no pressuposto forçado de que, no mais, os dois procedimentos administrativos “conexos” teriam a mesma caminhada, o mesmo ritmo.

É que, a acontecer isso objetivamente, não haverá a final qualquer prejuízo substancial, porque o suposto primeiro requerimento apressado e mal instruído terá de ser sempre devidamente instruído (cf. os arts. 108º, 109º e 115º a 119º do CPA), sob pena de ser malsucedido. E é de substância que aqui tratamos, não da forma completa ou incompleta de apresentação do requerimento inicial.

Portanto, tudo visto, decorre do CPA a seguinte norma jurídica: havendo dois procedimentos com pedidos mutuamente excludentes, vale a data do início de cada procedimento para efeitos de ordem cronológica de apreciação e decisão dos mesmos, independentemente de ter havido ou não necessidade de corrigir deficiências de um requerimento inicial ou de ambos os requerimentos iniciais.

Nenhum princípio geral da atividade administrativa permite ou impõe conclusão diferente.

Portanto, o Tribunal Administrativo de Círculo, tal como a E.D., violou a cit. norma jurídica e o princípio fundamental da legalidade administrativa, errando a E.D. na aplicação que diz ter feito dos princípios gerais da atividade administrativa.

4.4.

Quanto ao pedido de condenação da E.D. a declarar a aptidão da localização da nova farmácia, entende-se que não cabe a este tribunal decidi-lo, porque é ponto dependente da instrução, apreciação e decisão pela função administrativa, só podendo os tribunais intervir em substituição da Administração nas circunstâncias especiais densificadas previstas nos arts. 3º-1, 71º e 95º-5 do CPTA, circunstâncias especiais densificadas que aqui não se verificam.

5.

Sobre a má fé processual da E.D.

Tendo presente o atrás referido sobre a matéria de facto discutida no Tribunal Administrativo de Círculo e aqui reapreciável, logo se conclui contra a recorrente neste ponto.

6.

Sobre o erro de direito quanto ao valor da causa

O valor do processo cautelar foi de 30.000,01 euros.

No processo principal, com o nº 1284/18…, o valor processual indicado e não contestado foi o de 50.000,01 euros.

Logo antes de emitir esta sentença de mérito, com a mesma data, o TAC fixou o valor processual de 30.000,01 euros, referindo-se ao processo cautelar.

Porém, decidindo-se o processo principal, vale o valor do processo principal, quer para efeitos de recurso, quer, consequentemente, para os demais efeitos.

*

III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, os juizes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul acordam em conceder parcial provimento ao recurso, revogar sentença e, em substituição do Tribunal Administrativo de Círculo, anular o ato administrativo de 14-08-2018 e condenar o INFARMED a retomar no prazo máximo de dez dias o procedimento iniciado pela ora requerente de modo a decidi-lo antes de decidir o procedimento iniciado pelo contra-interessado.

Custas a cargo da entidade demandada na proporção de 90% e da requerente na proporção de 10%, em ambas as instâncias.

Valor processual: 50.000,01 euros.

Lisboa, 06-06-2019


Paulo H. Pereira Gouveia (Relator)

Pedro Marchão Marques

Alda Nunes