Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:594/06.7BELSB
Secção:CT
Data do Acordão:10/22/2020
Relator:VITAL LOPES
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL;
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO;
INTERESSE EM AGIR.
Sumário:1. A proposta acção administrativa comum de simples apreciação negativa não pode ser julgada como acção administrativa especial sem que se profira despacho de convolação, com prévio contraditório, em que se enunciem as razões por que se entende ser o meio usado pelo autor inadequado em vista do pedido e da causa de pedir que o fundamenta.

2. Uma irregularidade como a descrita, comporta nulidade processual por se tratar de omissão de acto e de formalidade susceptíveis de influir no exame e decisão da causa.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 2.ª SUBSECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL


1 – RELATÓRIO


J............, recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo do despacho saneador – sentença proferido a fls. 313/316 pelo Tribunal Tributário de Lisboa de 30 de Setembro de 2011, o qual julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade do autor, por falta de interesse em agir, nos autos de acção administrativa comum sob forma ordinária, para simples apreciação do (não) preenchimento de condições de aplicação do Decreto-Lei n.º 248-A/2002, de 14 de Novembro por ele interposta contra o Ministério das Finanças e da Administração Pública e A............ e, em consequência, absolveu os réus da instância.

Termina as alegações do recurso, formulando as seguintes e doutas conclusões:
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O recorrido, A............ apresentou as suas contra-alegações com as seguintes e doutas conclusões:

«imagem no original»


».

A recorrida Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.

Por douto Acórdão de 4 de Novembro de 2015, exarado a fls.399/411, o Supremo Tribunal Administrativo julgou-se incompetente em razão da hierarquia para conhecer do recurso e competente para tanto a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, para onde ordenou a baixa dos autos.

Neste TCA Sul, a Exmo. Senhor Procurador-Geral-Adjunto emitiu mui douto parecer em que conclui pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais e nada mais obstando foram os autos submetidos à Conferência para julgamento.

2 – DO OBJECTO DO RECURSO

Da análise da decisão recorrida e dos fundamentos invocados pelo recorrente para pedir a sua alteração e lembrando que são as conclusões que delimitam o objecto do recurso (cf. artigos 634.º, n.º4 e 639.º, n.º1 do CPC), a questão objecto do recurso consiste em saber se padece de erro de julgamento a decisão recorrida ao julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade do autor, por falta de interesse em agir nos autos de acção administrativa comum sob a forma ordinária, para simples apreciação do (não) preenchimento de condições de aplicação do Decreto-lei n.º 248-A/2002, de 14 de Novembro e ao absolver os réus da instância nos termos dos artigos 89.º alínea d), do CPTA e 493.º, n.º2 e 494.º do Código de Processo Civil. Cumulativamente, suscita o recorrente a questão da legalidade da redistribuição da originariamente intentada acção administrativa comum sob a forma ordinária em acção administrativa especial, na sequência do despacho interlocutório de fls.228 que, constatando que o objecto da acção se reportava «a matéria de direito fiscal e a dívida resultante de execução fiscal» determinou a correcção da distribuição dos autos como «de matéria tributária».
3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É este o teor da decisão recorrida, na parte que interessa:
«



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«Imagem no original»









(…)



».

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


Como resulta dos autos, a decisão proferida não é uma decisão de mérito: o Mmo. juiz recorrido absteve-se de conhecer do pedido na acção administrativa especial por verificar a existência de uma excepção dilatória, tendo considerado haver ilegitimidade do autor por falta de interesse em agir.

Mas comecemos por fazer uma sinopse dos factos para melhor esclarecimento.

O autor e ora recorrente, J............, é réu na acção cível que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto sob o n.º 3456/04.9TVPRT;

Aquela instância foi suspensa (decisão confirmada, em recurso, pelo Tribunal da Relação do Porto), a fim de ser apreciada e decidida no tribunal competente questão de natureza tributária, objecto de acção a intentar pelo ali réu e ora autor e recorrente (cf. fls. 61 a 66).

A acção intentada pelo réu na acção cível e ora autor e recorrente, foi a “Acção Administrativa Comum, sob a forma ordinária, para simples apreciação do (não) preenchimento de condições de aplicação do Decreto-Lei n.º 248-A/2002, de 14 de Novembro” (cf. fls.6), ou seja, vem pedido que o tribunal administrativo aprecie a situação trazida aos autos, no sentido do “não preenchimento das condições de aplicação do Decreto-Lei n.º 248-A/2002”.

Por despacho de 20/11/2006, da Mma. Juiz do tribunal administrativo foi determinada “a correcção da distribuição dos autos como de matéria tributária” (cf. fls.228).

Em seguimento, a acção foi autuada, tramitada e decidida no tribunal tributário como de acção administrativa especial se tratasse.

Não há noticia nos autos de que o recorrente tivesse sido notificado da alteração do meio processual, de acção administrativa comum de simples apreciação negativa sob a forma ordinária para acção administrativa especial.

Ora, alega justamente o recorrente que tendo sido por ele proposta “acção administrativa comum sob a forma ordinária”, assistiu-se a uma verdadeira convolação em acção administrativa especial sem precedência de despacho e notificação nesse sentido, sendo que o pressuposto processual do interesse em agir foi apreciado como se de uma acção administrativa especial se tratasse e esse facto foi determinante do erro de julgamento apontado ao despacho saneador – sentença (que concluiu pela falta daquele pressuposto processual e, com esse fundamento, absolveu os réus da instância).

Pois bem,

Antes de se apreciar se o Mmo. juiz a quo enquadrou correctamente a acção proposta pelo autor como uma acção administrativa especial em face do concreto pedido formulado e da respetiva causa de pedir, tal como configurada na petição inicial, a questão que aqui deve ser prioritariamente analisada prende-se com a invocada ilegalidade da substancial convolação do meio processual sem precedência de despacho e notificação ao autor.

Na verdade, embora o recorrente invoque ilegalidade da convolação, não restam dúvidas de que poderemos estar perante uma nulidade processual, sendo pertinente chamar à colação o disposto no n.º 3 do art.º 5.º do CPC, segundo o qual, “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”.

Nulidades do processo, como é consensual na doutrina e na jurisprudência, «são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei e a que esta faça corresponder, embora não de modo expresso, uma invalidade mais ou menos extensa de actos processuais». Estes desvios de carácter formal podem revelar-se seja através da prática de um acto proibido, seja na omissão de um acto prescrito na lei, seja ainda na realização de um acto imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.

Dispõe o n.º 1 do art.º 195.º do CPC, ex vi do 2.º, alínea e), do CPPT, que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.

Ou seja, as nulidades, enquanto violações da lei processual, têm que revestir uma de três formas: a) prática de um acto proibido; b) omissão de um acto prescrito na lei; c) realização de um acto imposto ou permitido por lei, mas sem as formalidades requeridas. E, concomitantemente, têm de poder influir no exame ou na decisão da causa. Como salienta o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, in “Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado”, Áreas Editora, 6.ª edição, volume II, anotação 9 d) ao artigo 98.º, pág. 87, «como decorre do citado art. 201.º, n.º 1, do CPC [actual art. 195.º, n.º 1], na falta de norma especial que comine a sanção de nulidade para determinada irregularidade, estas só produzem nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. Isto significa que, quando não há tal possibilidade de influência, não há nulidade, mas também que, para haver nulidade basta a mera possibilidade de influência da irregularidade na decisão da causa, não dependendo a existência de uma nulidade da demonstração de que houve efectivo prejuízo. No entanto, se se demonstrar positivamente que a irregularidade que tinha potencialidade para influenciar a decisão da causa acabou por não ter qualquer influência negativa para a parte a quem o cumprimento da formalidade ou a eliminação do acto indevidamente praticado podia interessar, a nulidade deverá considerar-se sanada, pois, nessas condições, seria cumprir essa formalidade ou eliminar o acto indevidamente praticado».

Prevêem-se, neste normativo, regras em matéria de nulidade dos actos processuais em geral, perpassando no regime consagrado uma preocupação de restringir os efeitos do vício que inquina o acto de modo que só nos casos em que há prejuízo para a relação jurídica litigiosa resultam ou advém efeitos invalidantes.
Tal como sustenta o J. Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código Processo Civil”, vol. I, 3ª edição, págs. 263 e 264) “(…) O princípio fundamental é o de que a declaração da nulidade só é de fazer em função do prejuízo que do vício do acto (por comissão ou omissão) resulte para o processo e para os fins que este visa. O reconhecimento da nulidade não é, pois, um direito das partes mas uma cautela da lei, assegurando a necessária eficácia e idoneidade ao processo.
Umas vezes a lei prescreve que a prática de certo acto ou omissão de um acto ou de uma formalidade acarretam nulidade; nesses casos está ínsito na cominação o reconhecimento do carácter prejudicial do vício; noutros casos, em que não é formulada, isto é, em que pode haver ou não prejuízo para a relação jurídica litigiosa, tem de ser o julgador a medir, com cautela, a projecção que o vício verificado pode ter no perfeito conhecimento e na justa decisão do pleito. (…).”

Já o Prof. J. Alberto dos Reis (in “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. II, págs. 484 a 487) em anotação a normativo idêntico ao ora em referência sustentava que “(…) O que há característico e frisante no artigo 201º é a distinção entre infracções relevantes e infracções irrelevantes. Praticando-se um acto que a lei não admite, omitindo-se um acto ou uma formalidade que a lei prescreve, comete-se uma infracção, mas nem sempre esta infracção é relevante, quer dizer, nem sempre produz nulidade. A nulidade só aparece quando se verifica um destes casos:
a) Quando a lei expressamente a decreta;
b) Quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
(…) O 2º caso em que a infracção formal tem relevância deixa ao juiz um largo poder de apreciação. É ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entenda que a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame ou decisão da causa».

Feitos os considerandos julgados pertinentes de jurisprudência e doutrina, baixemos aos autos. E o que se constata é que no seguimento do despacho de correcção da distribuição da intentada acção administrativa comum de simples apreciação ao tribunal tributário, sem precedência de qualquer despacho, a acção proposta veio a ser tramitada e julgada como acção administrativa especial.

De acordo com o disposto no art.º 98.º, n.º 4 do CPPT, “em caso de erro na forma do processo, este será convolado na forma de processo adequada”.

A adequação formal que hoje constitui um poder-dever do juiz ditado pelos princípios da economia e da gestão do processo pelo juiz – em que se funda a possibilidade de convolação processual – não prescinde, na sua concretização, de um despacho em que se constate a inadequação da acção proposta em vista do pedido e da causa de pedir que o fundamenta. Como também não prescinde de contraditório, pois deverá sempre acautelar-se a possibilidade de diferente interpretação da petição inicial, designadamente se nela é detectável um pedido, ainda que implícito, compatível com a acção intentada (cf. artigos 3.º, n.º 3, 6.º e 7.º do CPC).

Foi, pois, omitido um acto (o de convolação) e formalidade (contraditório prévio) que a lei prescreve, sendo que essa falta é, ou foi, susceptível de influir no exame e decisão da causa, pois como o recorrente alega, a apreciação da questão do (não) preenchimento de condições de aplicação do Decreto-Lei n.º 248-A/2002, de 14 de Novembro, no sentido por si propugnado, redundará num benefício no processo cível onde se discute a sua responsabilidade, o que não foi equacionado nos autos à luz da acção administrativa comum de simples apreciação por si intentada, por omissão do acto e formalidade indicados.

De acordo com o disposto no n.º 2 do já citado art.º 195.º do CPC, “Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes”.

Assim, importará anular todo o processado subsequente ao despacho de 20 de Novembro de 2006, exarado a fls.228, que determinou “a correcção da distribuição dos presentes autos como de matéria tributária”, o que se determinará no dispositivo do acórdão.

5 - DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da 2.ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, julgar procedente a nulidade processual decorrente da falta de despacho de convolação e de contraditório prévio e, consequentemente:

ü Anular todo o processado subsequente ao despacho de 20 de Novembro de 2006, exarado a fls.228, que determinou “a correcção da distribuição dos presentes autos como de matéria tributária”;
ü Julgar prejudicado o conhecimento das demais questões do recurso, nomeadamente as que se prendem com o mérito do despacho saneador-sentença.

Sem custas.

Lisboa, 22 de Outubro de 2020

[O Relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Juízes–Desembargadores integrantes da formação de julgamento, Luísa Soares e Cristina flora].

Vital Lopes