Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:534/09.1BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:10/22/2020
Relator:LURDES TOSCANO
Descritores:GERÊNCIA – PROVA
CULPA
Sumário:I - Se é no decurso do exercício efectivo do cargo societário de gerente que se esgota o prazo para o pagamento do imposto, não vindo ele a acontecer (o pagamento não se efectuou no prazo devido), o ónus da prova inverte-se contra o gerente, sendo ele quem tem de provar que não lhe foi imputável a falta de pagamento (o gestor está obrigado a fazer prova de um facto negativo, poupando-se a Fazenda Pública a qualquer esforço probatório - cfr.al. b), do nº 1 do art.24º da LGT).
II - Não pode, pois, considerar-se que o Recorrido tenha logrado ilidir a presunção de culpa pelo não pagamento da dívida exequenda que sobre si impendia. Não fazendo tal prova, deve considerar-se procedente este fundamento do recurso e, consequentemente, julgar parte legítima para a execução fiscal quanto a tais dívidas, contra si devendo prosseguir a citada execução enquanto responsável subsidiário.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I.          RELATÓRIO

O Representante da Fazenda Pública, com os sinais nos autos, veio, em conformidade com os artigos 280.º e 282.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), interpor recurso da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa, a qual julgou procedente, por provada, a oposição deduzida por C….. à execução fiscal n.º ….., instaurada contra a sociedade C….., LDA., movida pela FAZENDA PÚBLICA tendo por objeto a cobrança coerciva de dívida de IVA de 2001 a 2004, no montante total de € 6.079,31.

A Recorrente termina as alegações de recurso formulando as conclusões seguintes:

I. Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou procedente a oposição à margem referenciada, em que o douto Tribunal considerou que a Fazenda Pública não invoca qualquer facto susceptível de assentar a culpa do Oponente, concluindo pela impossibilidade de determinação objectiva da existência de qualquer nexo de causalidade entre a actuação do Oponente e a insuficiência patrimonial da sociedade devedora originária, determinando a extinção da execução na parte que corre contra o oponente, e com a qual a Fazenda Pública não se conforma.

II          - Começamos por referir que é facto confessado e assente que o Oponente exerceu as funções de gerente da sociedade “C….., Lda”., nomeadamente no período em que se completou o prazo de pagamento voluntário/entrega do tributo, que está na origem da dívida em causa.

III         - O artigo 24° da Lei Geral Tributário, delimita as situações passíveis de enquadrar a responsabilidade subsidiária dos corpos sociais das sociedades. Tal responsabilidade é do tipo ex-lege, isto é, caracteriza uma fiança legal, e os seus pressupostos assentam no exercício de funções de administração, direcção ou gerência, de facto ou de direito, e na presunção da existência de culpa funcional.

IV         - Assim, estando registado, no período relevante, como único gerente na Conservatória do Registo Comercial e, sendo facto assente a gerência de facto do oponente, é licito que seja responsabilizado pelas dívidas da empresa.

V          - Neste sentido, conforme consta do título executivo, a obrigação subjacente não foi cumprida, nomeadamente a entrega do IVA suportado por terceiros, ou seja, o imposto repercutido a terceiros (dos quais os executados são tão somente fiéis depositários), não foi entregue nos cofres do Estado.

VI - Não foi apresentada, nem sequer alegada, qualquer dificuldade de recebimentos por parte dos respectivos clientes, pelo que, salvo melhor opinião, tal configura uma especial censura, uma vez que a executada e o ora oponente, seu único gerente, se apropriaram indevidamente desses valores, dado que os repercutiam aos seus clientes, mas não os entregaram.

VII        - Assim sendo, a situação concreta demonstra, para além do incumprimento no pagamento (IVA), a violação dos seus deveres para com a sociedade. E, exteriorizando o gerente ou director, a vontade da sociedade nos mais diversos negócios jurídicos realizados (cfr. Artigos 248°, 249° e 250° do Código Comercial e Artigos 191°, 192°, 193°, 252°, 259°, 260°, 261°, 390°, 405°, 408°, 470°, 474° e 478°, todos do Código das Sociedades Comerciais), é licito que este seja responsabilizado pelo cumprimento das obrigações públicas da sociedade, já que age através daquele.

VIII       - Houve, aqui, portanto, um comportamento no mínimo negligente que originou prejuízos para a sociedade, quando o oponente deveria, na sua qualidade de gerente, cumprir as suas obrigações fiscais.

IX         - Pelo que terá de concluir-se que o Oponente contribuiu para a insuficiência patrimonial da sociedade, pois, olhando para a dívida em causa, com a sua actuação expos a firma aos constrangimentos gerados pela aplicação de coimas e pelas cobranças coercivas em execução fiscal.

X.         Na qualidade de gerente, o Oponente, ora Recorrido, teria apenas de exercer um comportamento diligente, exigível a um gerente médio, que toma ou tomou as medidas necessárias e adequadas ao normal exercício da actividade comercial e na prossecução do seu objecto.

XI.        Acresce, ainda, que os gerentes de uma sociedade devem observar os deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o desenvolvimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado, nos termos do art.° 64° do Código das Sociedades Comerciais.

XII.       In casu, é nítido que tais deveres não foram observados.

XIII       - Todavia, no âmbito da al. b) do n° 1 do art° 24° da LGT, à luz do preceituado no anterior art° 13° do CPT, estabelece uma presunção de culpa do gerente - o que faz pesar, materialmente, sobre este, o risco decorrente da necessidade de realizar a prova do contrário.

XIV      - Ora, provada a gerência de facto e de direito, cabe ao oponente demonstrar que não teve culpa na insuficiência do património da sociedade primitiva devedora e que a falta de pagamento do imposto não lhe é imputável, o que pressupõe que prove que a sua actuação como gerente, concretizada quer em actos positivos quer em omissões, foi prudente e adequada às circunstâncias concretas, não tendo qualquer relação causal com a referida insuficiência patrimonial.

XV       - Assim sendo, não basta alegar que geriu a sociedade, devedora originária, com zelo, sem nunca ter tido a intenção de prejudicar o Estado. Torna-se necessário alegar e provar as medidas tomadas com a intenção de ultrapassar as dificuldades financeiras sentidas pela sociedade, nomeadamente cobrança de dívidas a clientes, angariação de novos clientes, diversificação do objecto social, etc., o que não fez.

XVI      - Posto isto, afere que o Oponente não demonstrou que não foi por sua culpa que o pagamento das dívidas fiscais, em causa, não se efectuou, sendo certo que lhe cabia afastar completamente essa presunção de culpa (cf. al. b) do n° 1 do art. 24° da LGT)

XVIl. Destarte, no entender da Fazenda Pública, e sem embargo de melhor opinião, constata-se que a douta sentença recorrida padece de erro de julgamento de facto e de direito, porque não procedeu ao correcto enquadramento da matéria de facto no disposto no artigo 24.°, n.° 1, b) da LGT, na medida em que desresponsabiliza totalmente a Oponente, enquanto gerente da devedora originária, desonerando-o do ónus da prova que sobre ele recai.

Nestes termos, em face da motivação e das conclusões atrás enunciadas, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se, a douta sentença ora recorrida, com as legais consequências, assim se fazendo por Vossas Excelências a costumada JUSTIÇA.”


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O Oponente, aqui Recorrido, notificado, não apresentou contra-alegações.


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Notificado, o Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.


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Sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que a recorrente remate a sua alegação (art. 639º do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do referido tribunal.

De outro modo, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Assim, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, temos que no caso concreto, o objecto do mesmo está circunscrito à questão de saber se ocorre o alegado erro de julgamento porquanto a sentença recorrida não procedeu ao correcto enquadramento da matéria de facto no disposto no art.24º, nº 1, al.b) da LGT.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. De facto

A sentença recorrida deu por provados os seguintes factos:

1. Os autos de execução n.º ….., instaurado em 15/11/2001, contra a sociedade C….. Lda., por dívidas de IVA do período 0103T no montante de € 1.207,99 – cfr. consta de cópia do respetivo PEF aqui em anexo.

2. A estes autos foram apensos os processos que infra se discriminam:

N.º de processo
Período
Montante (€)
…..
200303T
424,98
…..
200306T
1.408,18
…..
200309T
1.076,32
…..
200312T
488,51
…..
200403T
831,15
…..
200406T
881,60

Tudo cfr. fls. 27 a 29 dos autos.

3. No âmbito do processo executivo supra identificado foi proferido pelo Chefe do respetivo Serviço de Finanças de Lisboa 4, em 04/01/2008, o despacho que a seguir parcialmente se transcreve:


“Despacho

Dada a Inexistência de bens penhoráveis por parte da executada – C….. Lda., NIPC ….., (…)e ser conhecido o responsável subsidiário – C….. , (…), sócio gerente, com uma quota de € 2.500,00, determino que se proceda ao direito de audição, (…) para, (…), por escrito se pronunciarem sobre o presente projecto de despacho, ou seja, qual o motivo que obstou ao pagamento de dividas de IVA, cujo período de cobrança voluntária terminou nos exercícios a seu cargo (…)”.

Tudo conforme consta de PEF aqui em anexo

4. Em 14/11/2008 foi endereçada ao aqui Oponente carta registada dando-lhe a conhecer o teor do despacho que supra referimos, concedendo-lhe prazo para o referido exercício – cfr. consta do respectivo PEF aqui em anexo.

5. Em 02/12/2008, no âmbito do processo executivo supra, foi proferido despacho de reversão com a fundamentação que, parcialmente, a seguir se transcrevem:


“DESPACHO

Depois de notificados nos termos legais, os potenciais responsáveis subsidiários não vieram os mesmos ao processo pronunciar-se nem trazer aos autos quaisquer factos que possam alterar a sua responsabilidade subsidiária, a saber:

1. Estão sujeitos à responsabilidade subsidiária os gerentes (…)

2. São susceptíveis de constituir em responsabilidade subsidiária as dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou de entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo (…), competindo ao contribuinte revertido a prova de que o não pagamento não lhe é imputável;

3. A prova referida no n.º anterior não foi demonstrada;

4. C….., segundo a certidão da matrícula da sociedade em crise (C….. Lda) é gerente desde 04/09/1996

5. Verificada a gerência de direito, presume-se a gerência de facto, não sendo nesta fase processual o momento apropriado para apreciação se a gerência nominal ou de direito corresponde efectivamente a uma gerência efectiva de facto

6. O pagamento voluntário a das dívidas terminou no período da sua gerência, ou seja:

Divida
Ano
Termo do prazo de pagamento voluntário
Montante
IVA
0103T
2001-05-15
€ 1.207,99
IVA
2003/03T
2003-05-15
€ 424,98
IVA
2003/06T
2003-08-18
€1.1408,18
IVA
2003/12T
2004-02-18
€488.51
IVA
2004/03T
2004-05-17
€ 831,15
IVA
2004/09T
2004-08-31
€1076,35
IVA
2004/06T
2004-08-16
€ 881,60

Face ao exposto, nada mais resta decidir do que, constatada a inexistência de bens da sociedade originária devedora (…) ORDENO A REVERSÃO DA EXECUÇÃO contra o subsidiário responsável, C….. (…)

(…)”.

Tudo conforme consta da cópia do PEF aqui em anexo.

6. Na mesma data (02/08/2008) foi endereçada ao aqui Oponente carta dando-lhe conta de que, contra si, havia sido revertida a divida a que nos vimos referindo e cuja execução havia sido instaurada em nome da sociedade C….. Lda., - a cópia do PEF, em anexo (fls. 23 a 25).

7. A Oponente tomou conhecimento do teor deste despacho referido em 5., deste probatório através de mandado de citação conforme certidão de notificação / citação que assinou em 09/12/2008 – cfr. consta da cópia do PEF

8. A sociedade devedora originária foi criada por contrato de sociedade inscrito na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa na matrícula n.º …..em Ap. ….., tendo aí sido registados como sócios em partes iguais o aqui Oponente, C….. e M….. e a gerência atribuída a ambos – cfr. fls. 19 e seguintes dos autos.

9. A gerente mulher renunciou à gerência em 23/12/93, conforme consta o registo supra em Ap. …..– cfr. fls. 19 e seguintes dos autos.”


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No que respeita a factos não provados, refere a sentença o seguinte:

Dos autos não resulta provado que o Oponente tenha tido culpa na frustração do património e incapacidade financeira da sociedade para responder às responsabilidades tributárias.

Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afetar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados.”


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Em matéria de motivação na fixação da matéria de facto, na sentença recorrida refere-se que:

No tocante aos factos provados e não provados, a convicção do Tribunal fundou-se na prova documental constante dos autos e, em concreto, no teor dos documentos indicados em cada um dos pontos supra, sendo de salientar no que respeita aos não provados a prova testemunhal produzida.

Na verdade da audição das testemunhas inquiridas não se retira em concreto e de forma objectiva factos capazes de sustentar a culpa do gerente relativamente à incapacidade financeira da sociedade devedora, uma vez que nenhuma das testemunhas ouvidas, todos amigos do Oponente, referiu ter conhecimento direto da empresa em termos físicos e/ou da operacionalidade da mesma, porém os testemunhos foram consensuais e foi possível retirar, uma vez que foi repetidos em todos os depoimentos de forma genuína, que a vida da sociedade teve, como ponto de viragem, “um trabalho que correu mal e que foi necessário repetir” e que colocou a empresa em incapacidade financeira.

Foi também repetido que á data deste acontecimento já a sociedade se debatia com dificuldades criadas pela falta de um dos seus dois principais clientes (a M…..) que por ter sido objecto de fusão deixou de ter a sociedade “C….. Lda,” como seu fornecedor.


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II.2. De Direito

Em sede de aplicação de direito, a sentença recorrida julgou a presente oposição procedente por provada e determinou a extinção da execução na parte que corre contra o oponente. Para tanto, apresentou a seguinte fundamentação:

«“In casu”, conforme decorre do probatório (factos não provados) dos autos não resulta provados quaisquer factos que capazes de sustentar o chamamento do Oponente à execução nem donde lhe advém a culpa pelo incapacidade financeira da sociedade no cumprimento das suas responsabilidades tributárias.

Na verdade, exigia-se à Fazenda Publica que, no exercício da função de cobrança coerciva, perante a verificação da incapacidade financeira da devedora, atuasse de forma a efectivar a responsabilidade subsidiária do gerente, com observância pelas regras de repartição do ónus da prova, clarificando os factos que legitimam tal exigência.

Na verdade o Oponente é identificado no projeto de reversão, mas nada se refere quanto à sua responsabilidade na condução efetiva dos destinos da empresa[1].

Por outro lado, a Fazenda Pública não invoca qualquer facto que seja suscetível de assentar a culpa do Oponente.

Sendo de notar que o despacho de reversão é também omisso quanto a estes elementos[2].

Donde se conclui pela impossibilidade de determinação objetiva da existência de qualquer nexo de causalidade entre a atuação, muito menos culposa, do Oponente e a insuficiência patrimonial da sociedade devedora originária e por conseguinte pela falta dos pressupostos legais de que depende a reversão.

Aqui chegados forçoso se torna concluir pela procedência total do pedido.»

Inconformada, a Fazenda Pública vem recorrer da decisão invocando que é facto confessado e assente que o Oponente exerceu as funções de gerente da sociedade “C….., Lda”., nomeadamente no período em que se completou o prazo de pagamento voluntário/entrega do tributo, que está na origem da dívida em causa. E que no âmbito da al. b) do n° 1 do art° 24° da LGT, à luz do preceituado no anterior art° 13° do CPT, estabelece uma presunção de culpa do gerente - o que faz pesar, materialmente, sobre este, o risco decorrente da necessidade de realizar a prova do contrário. Ora, provada a gerência de facto e de direito, cabe ao oponente demonstrar que não teve culpa na insuficiência do património da sociedade primitiva devedora e que a falta de pagamento do imposto não lhe é imputável, o que pressupõe que prove que a sua actuação como gerente, concretizada quer em actos positivos quer em omissões, foi prudente e adequada às circunstâncias concretas, não tendo qualquer relação causal com a referida insuficiência patrimonial. Assim sendo, não basta alegar que geriu a sociedade, devedora originária, com zelo, sem nunca ter tido a intenção de prejudicar o Estado. Torna-se necessário alegar e provar as medidas tomadas com a intenção de ultrapassar as dificuldades financeiras sentidas pela sociedade, nomeadamente cobrança de dívidas a clientes, angariação de novos clientes, diversificação do objecto social, etc., o que não fez. Posto isto, afere que o Oponente não demonstrou que não foi por sua culpa que o pagamento das dívidas fiscais, em causa, não se efectuou, sendo certo que lhe cabia afastar completamente essa presunção de culpa (cf. al. b) do n° 1 do art. 24° da LGT) [conclusões de recurso II., XIII. a XVI.]

Adianta-se, desde já, que assiste razão à recorrente.

Nos presentes autos, a eventual responsabilidade subsidiária do Recorrido deve ser analisada à luz do regime previsto no artº.24 da LGT.

A responsabilidade do gerente pela violação das normas que impõem o cumprimento da obrigação fiscal radica no instituto da responsabilidade por facto ilícito assente em culpa funcional, isto é, em responsabilidade civil extracontratual. O estatuto do gerente/administrador advém-lhe por virtude da sua relação negocial com a sociedade, iniciada com a sua nomeação para o exercício do cargo de gerente e consequente aceitação do mesmo, em virtude do que assume uma situação de garante das dívidas sociais, embora com direito à prévia excussão dos bens da empresa (cfr.artº.146, do C.P.C.I; artº.239, nº.2, do C.P.T; artº.153, nº.2, do C.P.P.T).


Analisemos agora o regime aqui aplicável.

“Artigo. 24º da LGT

Os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.”.

Na previsão da al. a), do normativo em análise pretendem-se isolar as situações em que o gerente/administrador culpado pela diminuição do património societário será responsável pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou de entrega tenha terminado depois deste, competindo à Administração Fiscal fazer a prova de que foi por culpa sua que o património se tornou insuficiente. Já na al. b), do preceito o gerente é responsável pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou de entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, recaindo sobre o mesmo o ónus da prova de que não foi por culpa sua que o pagamento não se efectuou.

Por outras palavras, nas situações em que o gestor exerce, efectivamente, as suas funções e é no decurso desse exercício que se forma o facto tributário ou se inicia o prazo para o pagamento, mas antes que tal prazo se esgote, o gestor cessa as suas funções, o ónus da prova, de que o património da sociedade se tornou insuficiente para a satisfação da dívida por acto culposo do gestor, corre por conta da Fazenda Pública (cfr. alínea a), do nº.1, do artigo 24, da L.G.T.). Se é no decurso do exercício efectivo do cargo societário de gerente que se esgota o prazo para o pagamento do imposto, não vindo ele a acontecer (o pagamento não se efectuou no prazo devido), o ónus da prova inverte-se contra o gerente, sendo ele quem tem de provar que não lhe foi imputável a falta de pagamento (o gestor está obrigado a fazer prova de um facto negativo, poupando-se a Fazenda Pública a qualquer esforço probatório - cfr.al. b), do normativo em exame).


Na alínea b), do nº.1, do artº.24, da LGT, consagra-se uma presunção de culpa, pelo que a Administração Fiscal está dispensada de a provar. Concluindo, se a gestão real ou de facto cessa antes de verificado o momento em que se esgota o prazo para pagamento do imposto, o ónus da prova recai sobre a Fazenda Pública, se a gestão coincide com ele, o ónus volta-se contra o gestor.

A diferença de regimes, em termos de repartição do ónus da prova, prevista nas als. a) e b), do artº.24, da LGT, decorre da distinção entre “dívidas tributárias vencidas” no período do exercício do cargo e “dívidas tributárias vencidas” posteriormente (cfr.al. c) do nº.15, do artº.2, da Lei 41/98, de 4/8 - autorização legislativa ao abrigo da qual foi aprovada a L.G.T.

Aqui chegados, não pode o aplicador do direito esquecer que é pressuposto da responsabilidade subsidiária o exercício de facto da gerência, cuja prova impende sobre a Fazenda Pública, enquanto entidade que ordena a reversão da execução fiscal - cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª. Secção, 27/11/2012, proc.5979/12; ac.T.C.A.Sul-2ª. Secção, 18/6/2013, proc.6565/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 31/10/2013, proc.6732/13.

No presente caso, não é facto controvertido, sendo mesmo facto assente, que o oponente era gerente de direito e de facto da sociedade devedora originária, na data em que o prazo legal de pagamento ou entrega das dívidas terminou, aplicando-se, assim, o art. 24º, nº 1, al. b) da LGT.

Pelo que passamos a ver o outro pressuposto da responsabilidade subsidiária, no que diz respeito à culpa.

Mas que responsabilidade é esta. Segundo a opinião que defendemos, a responsabilidade do gerente pela violação das normas que impõem o cumprimento da obrigação fiscal radica no instituto da responsabilidade por facto ilícito assente em culpa funcional, isto é, em responsabilidade civil extracontratual (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 9/12/2004, rec.28/04, in Revista Fiscal, Vida Económica, Fevereiro, 2006, pág.28; ac.T.C.A.Sul-2ª. Secção, 8/5/2012, proc.5392/12; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 31/10/2013, proc.6732/13).

O estatuto do gerente/administrador advém-lhe por virtude da sua relação negocial com a sociedade, iniciada com a sua nomeação para o exercício do cargo de gerente e consequente aceitação do mesmo, em virtude do que assume uma situação de garante das dívidas sociais, embora com direito à prévia excussão dos bens da empresa (cfr.artº.146, do C.P.C.Impostos; artº.239, nº.2, do C.P.Tributário; artº.153, nº.2, do C.P.P. Tributário).

A lei não define precisamente em que é que se consubstanciam os poderes de gerência, mas, em face do preceituado nos artºs.259 e 260, do Código das Sociedades Comerciais, parece dever entender-se que serão típicos actos de gerência aqueles que se consubstanciam na representação da sociedade perante terceiros e aqueles através dos quais a sociedade fique juridicamente vinculada e que estejam de acordo com o objecto social (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 3/5/1989, rec.10492; ac.T.C.A.Sul-2ª. Secção, 8/5/2012, proc.5392/12; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 31/10/2013, proc.6732/13; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, III volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.465 e seg.).

É no artº.64, do C. S. Comerciais, que se encontra consagrado o dever de diligência dos administradores/gerentes de sociedade, nos termos do qual estes devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores.

A gerência é, por força da lei e salvo casos excepcionais, o órgão da sociedade criado para lhe permitir actuar no comércio jurídico, criando, modificando, extinguindo, relações jurídicas com outros sujeitos de direito. Estes poderes não são restritos a alguma espécie de relações jurídicas; compreendem tantas quantas abranja a capacidade da sociedade (cfr.objecto social), com a simples excepção dos casos em que as deliberações dos sócios produzam efeitos externos (cfr.artºs.260, nº.1, e 409, nº.1, do C.S.Comerciais). O gerente/ administrador goza de poderes representativos e de poderes administrativos face à sociedade. A distinção entre ambos radica no seguinte: se o acto em causa respeita às relações internas entre a sociedade e quem a administra, situamo-nos no campo dos poderes administrativos do gerente. Pelo contrário, se o acto respeita às relações da sociedade com terceiros, estamos no campo dos poderes representativos. Por outras palavras, se o acto em causa tem apenas eficácia interna, estamos perante poderes de administração ou gestão. Se o acto tem eficácia sobre terceiros, verifica-se o exercício de poderes de representação (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 8/5/2012, proc.5392/12; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 31/10/2013, proc.6732/13; Raúl Ventura, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Sociedades por Quotas, III, Almedina, 1991, pág.128 e seg.; Rui Rangel, A vinculação das sociedades anónimas, Edições Cosmos, Lisboa, 1998, pág.27 e seg.).

No caso em apreço, a sentença recorrida conclui pela procedência da oposição, considerando que «Na verdade o Oponente é identificado no projeto de reversão, mas nada se refere quanto à sua responsabilidade na condução efetiva dos destinos da empresa[3]. Por outro lado, a Fazenda Pública não invoca qualquer facto que seja suscetível de assentar a culpa do Oponente. Sendo de notar que o despacho de reversão é também omisso quanto a estes elementos[4]. Donde se conclui pela impossibilidade de determinação objetiva da existência de qualquer nexo de causalidade entre a atuação, muito menos culposa, do Oponente e a insuficiência patrimonial da sociedade devedora originária e por conseguinte pela falta dos pressupostos legais de que depende a reversão.»

Não podemos concordar com a sentença recorrida.

Conforme supra vimos, se é no decurso do exercício efectivo do cargo societário de gerente que se esgota o prazo para o pagamento do imposto, não vindo ele a acontecer (o pagamento não se efectuou no prazo devido), o ónus da prova inverte-se contra o gerente, sendo ele quem tem de provar que não lhe foi imputável a falta de pagamento (o gestor está obrigado a fazer prova de um facto negativo, poupando-se a Fazenda Pública a qualquer esforço probatório - cfr.al. b), do nº 1 do art.24º da LGT).

Consideramos que o oponente, ora recorrido (enquanto sócio e gerente único da sociedade), não provou que tenha tomado quaisquer medidas destinadas a satisfazer os interesses da Fazenda Pública enquanto sua credora, nomeadamente, com um processo de recuperação de empresa ou apresentação da devedora originária à falência, o que demonstra que, perante as alegadas dificuldades financeiras da sociedade, não actuou com a necessária e exigida diligência.

Mesmo as testemunhas ouvidas, que eram todas amigas do oponente, não referiram nenhum conhecimento directo da empresa em termos físicos e/ou operacionalidade da mesma.

 

«A análise dos pressupostos sobre os quais assenta a responsabilização dos sujeitos referidos no artigo 24°- pressupõe o conhecimento dos deveres funcionais que lhes assiste, na qualidade de administradores. É no Código das Sociedades Comerciais, designadamente, que encontramos os deveres funcionais dos administradores das sociedades e extraímos em que medida é que a violação dos mesmos é susceptível de determinar a sua responsabilização, no domínio tributário. A responsabilização dos administradores (aqui entendidos no sentido lato da palavra) prende-se, sobretudo, com a necessidade de combater os abusos da utilização da personalidade colectiva, designadamente para prosseguir outros fins que não os fins societários. Saldanha Sanches aponta para a necessidade de “garantir para estes um dever de conduta de modo a que não se verifique a sistemática preterição das obrigações para com o Estado, a favor de outros credores com maiores possibilidades de pressionar a empresa no sentido do cumprimento (em especial, em impostos retidos na fonte ou cobrados pela empresa, como o IVA)."

Dispõe o artigo 64° do CSC que "Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar: a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores." O incumprimento destes deveres é sancionado em termos genéricos pela lei comercial, estatuindo o artigo 78°- que "Os gerentes ou administradores respondem para com os credores sociais da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos."

Compete, pois, aos administradores das sociedades um especial dever de diligência, impondo-lhes a tomada de decisões ponderadas e criteriosas, de modo a salvaguardar os interesses societários, através da prossecução de meios lícitos». [5]

Deste modo, forçoso será concluir que o oponente não usou da diligência devida de modo a impedir o resultado que se veio a produzir.

Não pode, pois, considerar-se que o Recorrido tenha logrado ilidir a presunção de culpa pelo não pagamento da dívida exequenda que sobre si impendia. Não fazendo tal prova, deve considerar-se procedente este fundamento do recurso e, consequentemente, julgar parte legítima para a execução fiscal quanto a tais dívidas, contra si devendo prosseguir a citada execução enquanto responsável subsidiário.


Concluindo, sem necessidade de mais amplas considerações, julga-se procedente o presente recurso.


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III – DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, e consequentemente, revogar a sentença recorrida e julgar a oposição improcedente.

Custas pelo recorrido nas duas instâncias, sendo que nesta não apresentou contra-alegações.

Registe e notifique.

                                                             Lisboa, 22 de Outubro de 2020


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                     [Lurdes Toscano]

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                 [Maria Cardoso]

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              [Catarina Almeida e Sousa]


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[1] Ponto 3. do probatório
[2] Ponto 5. do probatório
[3] Ponto 3. do probatório
[4] Ponto 5. do probatório
[5] Anotação nº 12 ao artigo 24º da Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, José Maria Fernandes Pires e Outros, Ed. Almedina, 2015.