Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3068/16.4BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:03/22/2018
Relator:ANA PINHOL
Descritores:RECLAMAÇÃO DE ATO PRATICADO PELO ÓRGÃO DE EXECUÇÃO FISCAL
TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
Sumário:I.Aos procedimentos tributários há que aplicar os princípios gerais que regulam a actividade administrativa (cfr. artigo 55.º da LGT), nomeadamente o principio da boa fé consagrado no artigo 59.º, n.º2 da LGT que pressupõe por parte da administração tributária um dever de actuação segundo a boa fé.
II.No caso, o pagamento questionado embora efectuado no dia seguinte ao terminus do prazo legal para cumprimento, deve ter-se como efectuado em tempo, isto porque, a actuação da Administração Tributária em si mesma e objectivamente, compromete razoavelmente a confiança por parte do contribuinte.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I.RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA, recorre para este Tribunal Central Administrativo da sentença do TRIBUNAL TRIBUTÁRIO DE LISBOA, que julgou procedente a Reclamação Judicial deduzida pela sociedade “... – ..., S.A.”, e, em consequência anulou o despacho de 23.05.2014, da autoria da Adjunta de Serviço de Finanças de ..., proferido no âmbito do processo de execução fiscal n.º ....

A Recorrente formula na sua alegação recursória as conclusões que infra se transcrevem:
«I - O presente recurso visa a decisão proferida no processo em referência, que julgou procedente a reclamação, por provada, anulando o despacho reclamado e condenando o Órgão de Execução Fiscal a apreciar e decidir o requerimento da Reclamante de restituição da garantia considerando o pagamento realizado no dia 31-12-2013 no âmbito do RERD.
II- Especificando, a questão, objecto dos presentes autos, é a de saber se o pagamento efectuado pela ora recorrida em 31/12/2013, ou seja, fora do prazo previsto no Decreto-Lei n°151-A/2013, de 31 de Outubro, deve ser considerado efectuado no âmbito do RERD ou antes um pagamento por conta.
III- O tribunal "a quo" considerou que, em face das regras de experiência e dos factos dados como provados, é lícito concluir que, atento o montante em causa e a data e hora do envio da guia (em 30-12-2013, pelas 18h48) não era exigível à Reclamante que efectuasse o pagamento ainda nesse dia.
IV- Com o devido respeito, não podemos concordar com a conclusão do douto tribunal sobre esta questão.
V- É que nos dias de hoje, há uma diversidade imensa de possibilidades de efectuar pagamentos, através de meios electrónicos, quer no sistema bancário comumente designado "Multibanco", quer através de transferências bancárias e outras formas de pagamentos disponíveis na “Internet", que dificilmente se pode vislumbrar uma hipotética razão ou "impedimento", de todo inultrapassável, que impedisse a ora recorrida de efectuar o pagamento até às 24:00 horas do dia 30-12-2013, dia em que o Serviço de Finanças lhe enviou a respectiva guia para que efectuasse o pagamento.
VI- Há ainda que referir que também não é o montante em causa, que até se pode considerar de alguma monta, que só por si justifica a impossibilidade de a recorrida efectuar aquele pagamento, uma vez que não lhe era de todo impossível calcular aproximadamente o montante em dívida para com o "Estado".
VII- A Reclamante também sabia que o pagamento tinha de ser efectuado até 30-12-2013 para poder beneficiar do RERD.
VII- Pelo que devia ter-se precavido com um montante daquela grandeza, de forma a tê-lo à sua disposição a qualquer momento.
VII- Por fim, conhecendo o prazo estipulado para efectuar o pagamento no âmbito do RERD, estranha-se que não tenha, no último dia desse mesmo prazo, diligenciado junto do Serviço de Finanças, de forma a inteirar-se da situação do pedido que fez, ou seja, se os serviços já tinham calculado o montante em dívida e passado a respectiva guia para pagamento.
VIII- Contudo, nada fez, limitando-se a esperar, comportamento no mínimo negligente visto que também era do seu interesse que o pagamento ocorresse dentro do prazo estabelecido, de forma a beneficiar das facilidades que o legislador quis dar aos devedores ao "Estado".
IX- Por outro lado, nos termos do disposto no n°3 do artigo 85° do CPPT, conjugado com o artigo 30°, n°2 da LGT, é proibido aos serviços da AT concederem qualquer tipo de moratória fora dos casos previsto na lei.
X- Assim sendo, não tendo sido efectuado o pagamento dentro do prazo, o Serviço de Finanças ficou impedido de o considerar efectuado no âmbito do RERD, restando-lhe a possibilidade de o considerar "pagamento por conta", nos termos previstos nos artigos 264°, n°2 e 262°, n°s 2 a 6, ambos do CPPT.
XI- Ora, a recorrida não juntou prova cabal e conclusiva de que não lhe foi dada a possibilidade de efectuar o pagamento dentro do prazo, fixado pelo Decreto-Lei n°151-A/2013, de 31 de Outubro, (cfr. art.74°, n°1, da LGT, conjugado com o art°347° do Código Civil)
XII - Pelo que a douta sentença proferida pela Mma. Juiz a quo fez, a nosso ver, uma incorrecta interpretação das normas legis e da ratio legis que a fundamenta, incorrendo assim em erro de julgamento, devendo, por esse motivo, ser revogada, mantendo-se o despacho ora em crise na ordem jurídica.
Nestes termos, em face da motivação e das conclusões atrás enunciadas, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se, em consequência a douta sentença ora recorrida, com as legais consequências, assim se fazendo por Vossas Excelências a costumada JUSTIÇA.»

**
A Sociedade Recorrida contra-alegou, aí concluindo do modo que segue:
«I. A Recorrente não impugna a decisão da matéria de facto constante da Douta Sentença, e, por isso, aceita, que o Serviço de Finanças, logo no início de Dezembro de 2013 (no dia 5 e, portanto, mais de duas semanas antes do fim do prazo inicialmente concedido para o RERD), deu indicação para que a dúvida da Recorrida fosse colocada por escrito, uma vez que aquele órgão teria de colocar a questão (contabilização do valor a liquidar para efeitos de inclusão no RERD) junto da Direcção de Finanças de Lisboa e só após obter autorização desta direcção poderia proceder à contabilização e emissão dos DUC.
II. Também resulta de tal ausência de impugnação (e, por conseguinte, aceitação da matéria de facto dada como provada em sede de Sentença) que a Recorrente deixa cair a principal alegação em que anteriormente sustentava a sua tese (ou seja, que teria sido possível à Reclamante, por si só, proceder à emissão de guias que permitissem ao contribuinte beneficiar do RERD), bem como que prescindir da alegação (infundada) segundo a qual "no fim do dia 30 de Dezembro, teve o SF o cuidado de entrar em contacto com o mesmo e remeter ainda nesse mesmo dia, a guia solicitada via email".
III. Analisando a materialidade que os autos demonstram o seguinte:
. No dia 30/12/2013, a AT emitiu DUC de pagamento (para liquidação no contexto do RERD), com prazo de pagamento até 31/12/2013;
. No mesmo dia 30/12/2013, com conhecimento da AT, a Recorrida deu, à ... (...), ordem de pagamento (por transferência bancária) do DUC emitido pela AT - ordem essa que era, a partir do mesmo momento do seu envio à ..., irrevogável;
. No dia 31/12/2013, a ... processou a ordem de pagamento, tendo o respectivo sistema de pagamento emitido recibo comprovante do pagamento do DUC emitido pela AT (vide fls. 80), em conformidade com o disposto no artº4º, nº3 da Portaria 1414-1/2003.
IV. O pagamento de impostos encontra-se sujeito ao previsto no artº40º nº1 da L.G.T., no Decreto-Lei nº191/99, de 5 de junho, pelo qual se aprovou o regime de tesouraria do Estado, e na Portaria nº1414-1/2003, de 31/12 que regulamenta a aplicação do mesmo através de "Documento Único de Cobrança". Ora, o documento único de cobrança é, nos termos do disposto no artº11, nº1 do DL 191/99, de 5 de junho, «o título que exprime a obrigação pecuniária decorrente da relação entre o Estado e o devedor», sendo que «[e]stando a dívida a ser exigida em execução fiscal, a competência para (...) O processamento do respectivo documento de cobrança, pertence ao serviço onde correr termos o processo» (cf. artº22).
V. Nos termos do disposto no artº11º, nº3 do Decreto-Lei nº191/99 de 5 de Junho (que estabelece o regime da tesouraria do Estado), cumpre aos serviços que administram as receitas emitir DUC, que enviam directamente ao devedor, dos quais devem constar os elementos aludidos nas alíneas a) a g) desse número e onde se inclui, nomeadamente, a data limite de pagamento. Em convergência com o disposto no nº1 do artº40º da Lei Geral Tributária, o nº1 do artº15º do referido DL 191/99, de 5 de Junho, estabelece que «[o] pagamento das receitas tituladas pelos DUC deve ser efectuado nos termos e condições do presente diploma, através da utilização dos seguintes meios: a) Moeda corrente; b) Cheque, débito em conta, transferência conta a conta e transferência de fundos; c) Outros meios de pagamento do tipo e com as características dos utilizados pelos bancos ou previstos na lei».
VI. No artº2º nº4 da referida Portaria 1414-I/2003 encontram-se previstos os elementos essenciais ao controlo da cobrança, no caso de constar documento de liquidação e que são, entre outros, o ano, a entidade liquidadora, o tipo de receita e o valor. Por outro lado, encontra-se previsto no artº4º desta Portaria os termos em que é emitido o "comprovativo do pagamento": documento emitido pela entidade cobradora (nº1); carimbo comprovativo aposto no documento de liquidação (nº2); ou ainda «Quando o pagamento for efectuado por transferência electrónica de fundos, o respectivo suporte informático deve disponibilizar todos os elementos essenciais ao controlo da cobrança, servindo de recibo o comprovante emitido pelos referidos sistemas de pagamento» (nº3). Cumpre, neste contexto, recordar que o nº2 do artº51º do Decreto-Lei nº191/99, de 5 de Junho, estabelece que «[a]s normas constantes do presente diploma prevalecem sobre quaisquer disposições gerais ou especiais que disponham em contrário, designadamente as que se referem a procedimentos de cobrança».
VII. Ora, uma vez que ao abrigo do que dispõe o nº1 do artº77º do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica (aprovado pelo DL nº317/2009, de 30 de Outubro) «uma ordem de pagamento não pode ser revogada pelo utilizador de serviços de pagamento após a sua recepção pelo prestador de serviços de pagamento do ordenante», resulta a esta luz cristalino - no entender da Recorrida - que se não pode deixar de considerar que a Reclamante procedeu ao pagamento do DUC emitido pela AR dentro do prazo legalmente reconhecido (pois deu a ordem irrevogável de pagamento no próprio dia 30/12/2013) e em conformidade com as indicações constantes do próprio DUC (que prevalecem, nos termos do disposto no artº51º, nº2 do DL191/99 sobre quaisquer outras), tendo sido emitido documento comprovante pelo referido sistema de pagamento (cf. fls. 80) -pelo que, em qualquer caso, não assistiria qualquer razão à Recorrente
VIII. Em todo o caso, mesmo que se considerasse que o DUC emitido padecia de deficiência (nomeadamente por incluir data de pagamento posterior a 30/12/2013), a verdade é que nos termos do disposto no artº13º do DL 191/99, de 5 de Junho, «[n]os casos em que as deficiências sejam imputadas ao serviço processador, deve este emitir um novo DUC para pagamento da respectiva dívida, sem encargos adicionais para o devedor, devendo o pagamento ser efectuado nos prazos referidos no artigo 21º», pelo que na pior das hipóteses, entendendo a AT que o DUC não estava conforme, sempre teria de emitir novo DUC e conceder novo prazo para que a Recorrida cumprisse, estando-lhe vedado proceder conforme procedeu (ou seja, considerar o pagamento como pagamento por conta).
Sem prescindir,
IX. Nos termos do disposto no artº55º da Lei Geral Tributária «A administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários», o que, no essencial, corresponde a uma decorrência dos princípios da confiança e da boa-fé, consagrados nos artºs 2º e 266º, nº2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), o último dos quais determina que «[o]s órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé».
X. Afigura-se cristalino que, mantendo integral validade as considerações aduzidas em sede de petição inicial, o Serviço de Finanças criou, em 5/12/2013, firme convicção na Recorrida de que emitiria, em tempo, DUC para liquidação da obrigação em conformidade com o RERD. Com efeito, caso tivesse o Serviço de Finanças cumprido o disposto no art.º67º, nº2 da LGT (ou seja, emitido o DUC no prazo de 10 dias), sempre teria a Recorrida, pelo menos, 14 dias para proceder ao pagamento do DUC. Além disso, estulto não será referir que a Recorrida acreditava a Recorrida que o Serviço de Finanças lhe enviaria o DUC em dia e hora compatíveis com as possibilidades de pagamento vigentes, nomeadamente facultando-lhe a possibilidade de proceder à liquidação do referido DUC através de pagamento através de sistema de pagamento bancário (possibilidade legalmente obrigatório nos termos do disposto nº1 do artº15º do referido DL 191/99, de 5 de Junho.
XI. Neste particular, o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão datado de 21/09/2011 (relatado pelo Venerando juiz Conselheiro Pedro Delgado, acessível em www.dgsi.pt), aduziu que «[o] princípio da boa fé, na sua vertente de tutela da confiança, visa salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem. No âmbito da actividade administrativa são pressupostos da tutela de confiança um comportamento gerador de confiança, a existência de uma situação de confiança, a efectivação de um investimento de confiança e a frustração da confiança por parte de quem a gerou. A violação pela administração tributária dos deveres procedimentais de colaboração e de actuação segundo as regras da boa fé, pode consistir em vício autónomo de violação de lei».
XII. No mesmo contexto, MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS (Direito Administrativo Geral, Tomo l, 3ª edição, págs. 222 e 223), esclarecem que a tutela da confiança pressupõe a verificação de diversas circunstâncias: «primeiro uma actuação de um sujeito de direito que crie a confiança, quer na manutenção de uma situação jurídica, quer na adopção de outra conduta; segunda, uma situação de confiança justificada do destinatário da actuação de outrem (...); terceiro, a efectivação de um investimento de confiança, isto é, o desenvolvimento de acções ou omissões, que podem não ter tradução patrimonial, na base da situação de confiança; quarto o nexo de causalidade entre a actuação geradora de confiança e a situação de confiança, por um lado e entre a situação de confiança e o investimento de confiança, por outro; quinto a frustração da confiança por parte do sujeito jurídico que a criou».
XIII. Neste conspecto, considerando que - no vertente caso - o Serviço de Finanças demorou 24 dias a emitir um DUC para cuja emissão era necessária prévia contabilização e impediu, com o seu comportamento, que fosse possível à Reclamante proceder à liquidação do DUC enviado (às 18:13) no dia 30.12.2013, sabendo (embora deliberadamente omitindo no despacho junto aos autos) que a Reclamante tudo fez para que a mesma fosse imediatamente liquidada (nomeadamente dando ordem de pagamento à ... ainda no próprio dia 30.12.2013, bem andou a Mma. Senhora Juiz a quo quando asseverou, em sede de Douta Sentença (e em conformidade com a posição sustentada pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público) que «a Reclamante viu-se impedida de efectuar o pagamento da guia no dia 30/12/2013, por motivo que lhe foi alheio, tendo efectuado o pagamento logo que o impedimento cessou, isto é, no dia imediatamente seguinte».

Termos em que,
A Douta Sentença Recorrido não merece qualquer reparo, em face do que deve o recurso interposto improceder totalmente, mantendo-se integralmente a Douta Decisão impugnada.

Assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA!»

**
Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo Sul, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido ser negado provimento ao recurso.

**
Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo (cfr. art. 278.º, n.º 5, do CPPT e art.657.º, n.º 4, do CPC), vêm os autos à conferência para decisão.

**
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Perante as conclusões da alegação da recorrente as questões em recurso são:
-saber se o pagamento efectuado em 31.12.2013 pela recorrida deve ser considerado efectuado no âmbito do regime Excepcional de Regularização de Dívidas Fiscais (RERD), previsto no Decreto-Lei nº 151-A/2013, de 31 de Outubro ou antes um pagamento por conta.
**
III. FUNDAMENTAÇÃO
A. DOS FACTOS
Na sentença recorrida fixou-se a matéria de facto nos seguintes termos:
«1) O processo de execução n°... foi instaurado no Serviço de Finanças de ..., contra a Reclamante, por dívida de IRC, do ano de 2002, no valor de €113.070,49 (cfr. fls. 94 a 96);
2) A Reclamante deduziu impugnação judicial contra a liquidação de IRC em cobrança no processo identificado no ponto anterior, que correu termos com o n°482/07.OBELRS, e prestou garantia bancária, no montante de €148.664,79, para suspensão do processo de execução fiscal (cfr. fls 16 a 36 e 37 a 38 e informação de fls. 94 a 96);
3) Em 06/12/2010, foi proferida sentença na impugnação judicial n°482/07.OBELRS, que julgou parcialmente procedente a impugnação, tendo anulado a liquidação impugnada na parte resultante da correcção assente na desconsideração, como custo, do exercício do montante de €54.522,66 pago a título de compensação por quilómetros percorridos em viatura própria e na parte correspondente aos juros liquidados, e improcedente quanto ao mais, reconhecendo à Impugnante o direito a indemnização por prestação de garantia indevida, na proporção do vencimento de causa obtido (cfr. fls. 39 a 68);
4) Da sentença referida no ponto anterior foi interposto recurso, apenas pela Reclamante, relativamente à parte que lhe foi desfavorável (cfr. fls. 69 a 73);
5) Em 05/12/2013, por e-mail, a Reclamante requereu ao Chefe do Serviço de Finanças de ... que fosse emitida guia de pagamento da dívida de imposto correspondente à parte da liquidação do ano de 2002, ainda em apreciação judicial, ao abrigo do Decreto-Lei n°151-A/2013, de 31 de Outubro (cfr. fls. 74 a 75);
6) Em 06/12/2013 o Chefe do Serviço de Finanças-2 solicitou por e-mail ao Chefe de Divisão de Justiça Contenciosa solicitou «(...) confirmação da concretização da sentença, para cálculo e processamento das respectivas guias de pagamento, tal como requerido pelo contribuinte. » (cfr. fls. 76);
7) Em 30/12/2013, por e-mail, remetido às 18H48, o Serviço de Finanças de ... enviou, aos mandatários da Reclamante, a guia de pagamento do montante referente à parte do imposto tendo por base a proporção do decaimento constante da sentença, no montante de €64.374,10, alertando para necessidade do pagamento ser efectuado ainda nessa data, por terminar o prazo de vigência do RERD (cfr. fls. 77 e 78);
8) Em 30/12/2013, por e-mail, remetido às 19h18, com conhecimento ao Serviço de Finanças, a Reclamante solicitou à ... o processamento da transferência para pagamento da guia referida no ponto 7 (cfr. fls. 352 a 354);
9) Em 31/12/2013, pelas 09h45, a Reclamante efectuou o pagamento do montante de € 64.374,10 (cfr. fls. 79 a 80);
10) Em 12/02/2014, por requerimento dirigido ao processo de execução fiscal identificado no ponto 1, a Reclamante requereu a restituição da garantia prestada (cfr. fls. 14);
11) Por despacho de 23/05/2014, da Chefe de Finanças Adjunta, foi deferido parcialmente o requerido pela Reclamante, por a sentença ainda não ter transitado em julgado na parte desfavorável e por ter havido um pagamento por conta (cfr. fls. 11 a 13);
12) Através do ofício n°3665, de 27/05/2014, a Reclamante foi notificada do despacho referido no ponto anterior (cfr. fls. 10 a 13);
13) Em 19/06/2014 a presente reclamação foi remetida por correio ao Serviço de Finanças (cfr. fls. 2 e envelope)».

Consta da mesma sentença a título de Factos não Provadosque «Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.».

E, em sede de “Motivação” consignou-se na sentença recorrida que «O Tribunal formou a sua convicção com base nos documentos indicados relativamente a cada um dos factos, os quais não foram impugnados.».

**
Alteração oficiosa, por ampliação, da decisão sobre a matéria de facto
Por se entender relevante à decisão de mérito a proferir, na medida em que documentalmente demonstrada, adita-se, a coberto do estatuído no artigo 662.º, nº 1, do CPC ex vi artigo 281.º do CPPT ao probatório, a seguinte factualidade:
14) Na guia de pagamento a que alude o ponto 7 do probatório dela consta como data limite de pagamento 31.12.2013 (fls. 78 dos autos)

**
B.DE DIREITO
A sociedade denominada “... – ..., S.A.”, (adiante Reclamante ou Recorrida), invocando o disposto no artigos 276.º e 278.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), reclamou junto do Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa da decisão do Chefe Adjunto de Vila Franca de Xira, proferido no processo de execução fiscal n.º ... que, tendo considerado que foi realizado um pagamento por conta, procedeu à redução da garantia correspondente à parte paga.
O Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa julgou a reclamação procedente e, em consequência, anulou o acto reclamado com a seguinte motivação:
«Conforme resulta da matéria de facto dada como assente, a Reclamante requereu em 05/12/2013 a emissão de guias para pagamento da dívida de IRC ainda em apreciação judicial, tendo sido notificada no dia seguinte do pedido de confirmação superior para efeitos de cálculo e processamento das respectivas guias, em 30/12/2013, pelas 16h48, o Serviço de Finanças remeteu por e-mail à Reclamante a guia, no montante de € 64.374,10 e em 31/12/2013 a Reclamante procedeu ao pagamento da guia (cfr. pontos 5, 6, 7 e 8 da matéria de facto dada como assente).
Não se pode acompanhar a argumentação da Administração Tributária quando afirma que não lhe cabia proceder ao cálculo do montante, nem ao envio das guias, uma vez que o seu comportamento denuncia o contrário, conforme resulta da correspondência trocada com a Reclamante, designadamente de fls. 76 e 77, pelo que a data da emissão e envio das guias tem manifesta repercussão na apreciação da questão em análise.
Assim sendo, releva para efeitos de aferição do cumprimento do prazo de pagamento para efeitos de aplicação do RERD, a data de notificação da guia, que como se viu só ocorreu no dia 30/12/2013, pelas 18h48, na pessoa da mandatária da Reclamante.
Ora, o envio da guia naquele momento inviabilizou que a Reclamante efectuasse o pagamento naquele dia, uma vez que, o pagamento de € 64.374,10 obrigava a dar uma ordem de pagamento subscrita por dois administradores dirigida à entidade bancária, como refere a Reclamante.
Com bem refere o Digno Magistrado do Ministério Público «(...) sendo certo que se afigura resultar dos autos que o atraso no pagamento é imputável à demandada que apenas remeteu a guia de pagamento requerida em 30.12.2013, pela 18, 30 horas, inviabilizando assim o seu pagamento nesse mesmo dia. (....)»
Com efeito, em face das regras de experiência e dos factos dados como provados, é lícito concluir que, atento o montante em causa e a data e hora do envio da guia não era exigível à Reclamante que efectuasse o pagamento ainda nesse dia.
Assim sendo, a Reclamante viu-se impedida de efectuar o pagamento da guia no dia 30/12/2013, por motivo que lhe foi alheio, tendo efectuado o pagamento logo que o impedimento cessou, isto é, no dia imediatamente seguinte.».
Em contrapartida, objecta a Fazenda Pública dizendo que não foi produzida prova da impossibilidade de efectuar o pagamento dentro do prazo estipulado por qualquer outro meio designadamente Multibanco, acrescentado ainda que, a recorrida conhecendo «[o] prazo estipulado para efectuar o pagamento no âmbito do RERD, estranha-se que não tenha, no último dia desse mesmo prazo, diligenciado junto do Serviço de Finanças, de forma a inteirar-se da situação do pedido que fez, ou seja, se os serviços já tinham calculado o montante em dívida e passado a respectiva guia para pagamento.». [Conclusão VII].
Conforme já consignado, a questão suscitada no recurso é a de saber se o pagamento efectuado em 31.12.2013 pela recorrida deve ser considerado efectuado no âmbito do regime Excepcional de Regularização de Dívidas Fiscais (RERD), previsto no Decreto-Lei nº 151-A/2013, de 31 de Outubro ou antes um pagamento por conta.
Antes de mais, para melhor se perceber a questão suscitada no recurso, importa ter em conta que o Decreto-Lei nº 151-A/2013, de 31 de Outubro, veio instituir um regime excepcional de regularização de dívidas de natureza fiscal e à segurança social cujo prazo de legal de cobrança tenha terminado antes de 31 de Agosto de 2013.
O pagamento efectuado, ao abrigo deste diploma até 20.12.2013, que foi alargado até 30.12.2013, no todo ou em parte, determina, na parte correspondente, a dispensa de juros de mora, de juros compensatórios e das custas do processo de execução fiscal.
E, como sabemos, o pagamento de impostos encontra-se sujeito ao regime previsto no nº 1 do artigo 40º da LGT, no DL nº 191/99, de 5 de Junho (que aprovou o regime de tesouraria do Estado) e na Portaria nº 1414-I/2003, de 31 de Dezembro (que regulamenta a aplicação do mesmo através de “Documento Único de Cobrança”).
O DL n.º191/99, de 5 de Junho, determina, no artigo 15º que o pagamento das receitas tituladas pelos DUC deve ser efectuado através da utilização dos seguintes meios: «a) Moeda corrente; b) Cheque, débito em conta, transferência conta a conta e transferência de fundos; c) Outros meios de pagamento do tipo e com as características dos utilizados pelos bancos ou previstos na lei.».
Descendo ao caso concreto, ficou assente que a recorrida em 05.12.2013, solicitou ao Chefe do Serviço de Finanças de ... a emissão de guia de pagamento da dívida de imposto correspondente à parte da liquidação do ano de 2002, ainda em apreciação judicial, ao abrigo do Decreto-Lei n°151-A/2013, de 31 de Outubro, pretensão que foi satisfeita apenas em 30.12.2013, pelas 18h48m [factos provados identificados nos pontos 5 e 7 do probatório].
Ficou também provado que a recorrida naquela mesma data (30.12.2013), por e-mail, remetido às 19h18, com conhecimento ao Serviço de Finanças, solicitou à ... o processamento da transferência para pagamento da respectiva guia [facto provado identificado no ponto 8 do probatório].
Chegados aqui, tem-se por adquirido que o pagamento em causa foi efectuado através de transferência bancária (operação abstracta, formada, na sua estrutura, por dois elementos: a ordem de transferência e a execução dessa ordem. Através da qual um cliente ordena ao seu banco que, por débito da sua conta, credite, por determinada importância, a conta de terceiro, aberta nesse ou noutro banco -José Maria Pires, Direito Bancário, 2.º Volume, pág. 346- e acórdão do Tribunal de Lisboa de 29.06.2006, proferido no processo n.º 5155/06, disponível em texto integral em www.dgsi.pt) ordenada em 30.12.2013.
Esta ordem de transferência bancária foi concretizada em 31.12.2013, quer isto dizer que apenas nesta data a quantia aposta no DUC ficou ao dispor do beneficiário (Estado). E sendo, assim, o pagamento ocorreu no dia seguinte ao termo do prazo legal previsto para o efeito.
No entanto, não se aceita o entendimento subjacente à sentença recorrida de que, «[f]ace das regras de experiência e dos factos dados como provados, é lícito concluir que, atento o montante em causa e a data e hora do envio da guia não era exigível à Reclamante que efectuasse o pagamento ainda nesse dia.» para dai concluir que « [a] Reclamante viu-se impedida de efectuar o pagamento da guia no dia 30/12/2013, por motivo que lhe foi alheio, tendo efectuado o pagamento logo que o impedimento cessou, isto é, no dia imediatamente seguinte.».
Com efeito, a nosso ver, tal entendimento não tem suporte legal ou adesão à realidade factual fixada, isto porque, não ficou demonstrado, qualquer facto estranho e imprevisível que impossibilitasse a recorrida de efectuar o pagamento dentro do prazo estipulado, nomeadamente através do recurso ao Multibanco. Na verdade, no DUC enviado à recorrida dele constam os elementos necessários (“Entidade” e “Referência”) para que o pagamento fosso efectuado por aquela via.
Ou seja, quisesse então a recorrida sempre poderia diligentemente ter pago o montante constante do DUC com recurso aquela via.
Esta circunstância poderia, desde logo, numa certa perspectiva das coisas, afastar o entendimento sufragado na sentença recorrida no sentido de que «[a]tento o montante em causa e a data e hora do envio da guia não era exigível à Reclamante que efectuasse o pagamento ainda nesse dia».
Porém, não pode nem devem ser esquecidos, e por isso aqui se repetem os seguintes factos: a recorrida solicitou a emissão da guia de pagamento em 5.12.2013, e esta apenas foi entregue no dia 30 daquele mesmo mês pelas 18h48m, ou seja, no último dia de pagamento fixado na lei, e por último, consta na guia de pagamento a data de 31.12.2013, como a data de limite de pagamento.
Perante este concreto quadro, importa começar por dizer (lembrar) que aos procedimentos tributários (o artigo 54º, da LGT, define o conceito e âmbito de « procedimento tributário» nos termos do qual, compreende toda a sucessão de actos dirigida à declaração de direitos tributários) há que aplicar os princípios gerais que regulam a actividade administrativa (cfr. artigo 55º da LGT), nomeadamente o principio da boa fé consagrado no artigo 266º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa e artigo 59º, n.º2 da LGT que pressupõe por parte da Administração Tributária um dever de actuação segundo a boa fé.
Como salienta PEDRO MACHETE, «[a] boa fé, enquanto princípio constitucional concretizador da ideia de Estado de Direito, protege a confiança na actuação dos poderes públicos, exigindo um mínimo de certeza e de segurança quanto aos direitos e expectativas legítimas de cada um em face das autoridades públicas. Estas, pelo próprio poder que podem exercer, têm de assegurar um mínimo de continuidade nas respectivas posições em face dos particulares.» (Revista da FDUP ano 7 de 2010,pág. 482).
Saliente-se, aliás, que o Supremo Tribunal Administrativo já se debruçou sobre esta questão, designadamente no Acórdão de 21.09.2011, proferido no processo n.º 0753/11, para apurar que: «A presunção de actuação de boa fé é corolário daquele dever de actuação segundo o princípio da boa fé, que é constitucionalmente imposto a toda a Administração, no n.º 2 do art . 266.° da C.R.P (Dispõe este normativo que os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.).
Como referem Diogo Leite de Campos, Benjamim da Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na sua Lei Geral Tributária Anotada, 3ª edição, pag. 278 esta exigência tem um conteúdo de carácter ético, impondo aos intervenientes no procedimento tributário que actuem com lealdade e sinceridade recíprocas no decurso do procedimento tributário, abstendo-se de actuações que possam enganar o outro interveniente, ou ocultando-lhe elementos que possam ter proveito para a defesa das suas posições(Sublinhado nosso.).(disponível em texto integral em www.dgsi.pt).
É face ao que vem dito que entendemos, que o pagamento questionado embora efectuado no dia seguinte ao terminus do prazo legal para cumprimento, deve ter-se como efectuado em tempo, isto porque, a guia de pagamento remetida à recorrente identificou a data limite de pagamento o dia 31.12.2013.
Com efeito, como bem refere a recorrida:« [o] documento único de cobrança é, nos termos do disposto no artº11, nº1 do DL 191/99, de 5 de junho, «o título que exprime a obrigação pecuniária decorrente da relação entre o Estado e o devedor», sendo que «[e]stando a dívida a ser exigida em execução fiscal, a competência para (...) O processamento do respectivo documento de cobrança, pertence ao serviço onde correr termos o processo» (cf. artº22).», portanto, irreleva para o efeito pretendido, que a recorrente “alerta-se” para necessidade do pagamento ser efectuado em, 30.12.2013, por terminar o prazo de vigência do RERD.
Por isso, a recorrida não pode ser prejudicada pelo erro da Administração Tributária por ter enviado a guia com data limite de pagamento em 31.12.2013, nem tão pouco pode ser prejudicada, pela actuação daquela em claro confronto dos deveres procedimentais de colaboração e das regras da boa fé e do princípio da tutela da confiança.
Da factualidade provada emerge, manifestamente que a actuação da recorrente em si mesma e objectivamente, compromete razoavelmente a confiança por parte da recorrida.
Tal como foi entendimento no acórdão do STA de 06.07.2011, proferido no processo n.º 0589/11, o princípio da tutela da confiança «[a]ssume especial relevância, dado que visa, precisamente e como se disse, salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem.» (disponível em texto integral em www.dgsi.pt).
O sentido desta jurisprudência é transponível para a situação presente. Com efeito, tal como a própria recorrente aceita e reconhece expressamente, que «[o] tratamento da situação, aqui em apreço, não tenha sido a ideal, nomeadamente no que se refere ao tempo de resposta por parte dos serviços (…).».
Assim, pelas razões expostas na jurisprudência citada, importa concluir que o despacho reclamado padece de ilegalidade por violação do princípio da boa fé.
Finalmente, nunca podemos falar de qualquer tipo de “moratória”, pois quem dá origem à situação é a recorrente, e esta não demonstrou que apenas satisfez a pretensão naquela data por motivo imputável à recorrida.
Haverá, assim, que concluir que, procede a reclamação com a presente fundamentação, não logrando, por isso, provimento o recurso.
IV.CONCLUSÕES
I.Aos procedimentos tributários há que aplicar os princípios gerais que regulam a actividade administrativa (cfr. artigo 55.º da LGT), nomeadamente o principio da boa fé consagrado no artigo 59.º, n.º2 da LGT que pressupõe por parte da administração tributária um dever de actuação segundo a boa fé.
II.No caso, o pagamento questionado embora efectuado no dia seguinte ao terminus do prazo legal para cumprimento, deve ter-se como efectuado em tempo, isto porque, a actuação da Administração Tributária em si mesma e objectivamente, compromete razoavelmente a confiança por parte do contribuinte.
V.DECISÃO
Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 22 de Março de 2018.
[Ana Pinhol]

[Jorge Cortês]

[Cristina Flora]