Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:00018/04
Secção:CT - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:05/29/2014
Relator:CRISTINA FLORA
Descritores:DIVISIBILIDADE DO ACTO DE LIQUIDAÇÃO; ERRO NA QUANTIFICAÇÃO; MÉTODOS INDIRECTOS
Sumário:I. O acto tributário de liquidação, enquanto acto divisível, é susceptível de anulação parcial, desde que a ilegalidade apenas afecte parte do acto.



II. O erro na quantificação da matéria colectável por métodos indirectos afecta in totum a validade da liquidação.

III. Verificado o erro na quantificação da matéria colectável por métodos indirectos, o juiz deve anular a respectiva liquidação na sua totalidade.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:


PROCESSO N.º 00018/04

I. RELATÓRIO

... – MADEIRAS TROPICAIS, LDA, contribuinte n.º ... , com demais sinais nos autos, vem recorrer da sentença proferida pelo então, tribunal tributário de 1.ª instância de Leiria, que julgou parcialmente procedente a impugnação das liquidações adicionais de IVA, referentes aos anos de 1992 e 1993, e juros compensatórios.

A Recorrente apresentou as suas alegações, e formulou as seguintes conclusões:
A) - Os fundamentos invocados pela recorrente com vista à anulação das liquidações de IVA ora recorridas, embora nesta data na parte tão-só rela­tiva ao IVA e juros não anulados na douta sentença recorrida, consistiu no vício de forma derivado da sua falta de fundamentação na parte relativa à fixação do IVA por estimativas praticado pelo Chefe do Serviço de Finanças de Leiria - 2, do despacho do Presidente da Comissão de Revisão e dos actos finais de liquidação da competência do Chefe do serviço de Finanças de Leiria - 2;
B) - Vício de forma aquele que se reporta directa e exclusivamente na esfera das entidades com competência para a prática de cada um dos actos referidos na alínea antecedente;
C) - Nos termos dos artigos 82°,1 e 85° do Código do IVA a competên­cia para a fixação por estimativas e para as liquidações definitivas subsequen­tes pertence ao Chefe do Serviço de Finanças de Leiria - 2;
D) - Nos termos do artigo 87º, 3° do Código do Processo Tributário, a competência para a decisão das reclamações por estimativas compete ao Pre­sidente da Comissão de Revisão;
E) - A fundamentação dos actos tributários tem de operar-se na esfera das entidades que praticam as liquidações, neste caso as entidades referidas na alínea A) supra;
F) - A fundamentação contida no relatório reproduzido a fls. 24 e segs. destes autos não foi objecto de qualquer despacho de apropriação por parte das referidas entidades pelo que as liquidações recorridas encontram-se destituídas de qualquer fundamentação;
G) - Daí que as liquidações ora recorridas são ilegais por vício de for­ma, devendo as mesmas ser anuladas;
H) - Se o vício da falta de fundamentação ora descrito não vier a pro­ceder e independentemente disso, deverá a douta sentença recorrida ser anu­lada com fundamento na errada aplicação do direito aos factos dados como provados nomeadamente os números 15 a 19, primeira parte;
I) - Com efeito, o desvio de vendas apurado no relatório na quantia de 101.956.596$00 para os quatro exercícios de 1990, 91, 92 e 93, ao ter sido imputado apenas aos exercícios de 1992 e 93 implicará uma anulação na tota­lidade das liquidações de IVA quer de 1992 quer de 93;
J) - Por um lado, sendo o contencioso fiscal de mera anulação, a com­petência do tribunal consiste apenas em declarar se os actos tributários foram ou não praticados de acordo com a lei.
L) - Neste caso, a errónea quantificação dos valores tributáveis relati­vos a 1992 e 93 por parte de quem praticou as liquidações terá de implicar a anulação na totalidade daquelas mesmas liquidações;
M) - Com efeito, a fixação dos valores de vendas por estimativas resul­ta dum procedimento tributário composto de várias fases com início na elabo­ração do relatório, despacho de fixação, reclamação deduzida contra a errónea quantificação, despacho do Presidente da Comissão por falta de acordo dos vogais e liquidações finais definitivas;
N) - Todo o procedimento tributário referido no artigo antecedente terá de ser repetido não cabendo ao tribunal interferir no desenvolvimento proces­sual do mesmo;
O) - Acresce referir que o desvio de 101.956.596$00 tanto poderá ser imputado aos quatro exercícios na proporção do custo das vendas de cada exercício como na proporção das respectivas vendas declaradas, cabendo, no entanto, tão-só aos serviços fiscais definir e concretizar o método da sua repar­tição;
P) - Por outro lado, a imputação das vendas na quantia de 44.395.534$00 e 57.561.062$00, respectivamente, apenas para 1992 e 93, às vendas declaradas em cada um dos anos pela recorrente e a sua subsequente divisão pelo custo das existências vendidas e consumidas declaradas em cada um dos referidos anos pela recorrente reconduziu a sua tributação por uma percentagem de lucro bruto sobre o custo de 74,8% e 10,9%, respectivamente em 1992 e 93;
Q) Ou seja, a repartição das diferenças de venda por estimativa supra referidas reconduziu à tributação da recorrente por uma margem muito diferente da considerada correcta no relatório para cada um dos referidos anos, qual seja a de 36,5%;
R) - O que significa que a aplicação de estimativas nos termos descri­tos no relatório enferma de uma total contradição e errónea quantificação;

S) - Por último, sempre se dirá que o próprio recurso a uma percenta­gem de 36,5% relativa ao exercício de 1988 e aplicada aos exercícios de 1992 e 93 se reconduziu a uma falta de fundamentação da própria quantificação por estimativas, em virtude da inexistência de motivos que justificassem a aplicação daquele critério nos anos de 1992 e 93;
T) - Pelo que a douta sentença recorrida violou os artigos 82º, 1 e 85° do Código do IVA, o n° 3 do artigo 87° do CPT.
Finaliza peticionando a procedência do recurso e em consequência, anulando-se o remanescente das liquidações de IVA e juros compensatórios, relativas a 1992 e 1993, na parte ainda não anulada.

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A Recorrida, Fazenda Pública, não apresentou contra-alegações.
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O Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, porquanto o juiz a quo não podia ordenar à AT a reformulação da liquidação, uma vez que o contencioso tributário é de mera anulação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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As questões a apreciar e decidir, delimitada pelas conclusões de recurso, são as seguintes:
_ Aferir se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento, uma vez que, sendo o contencioso fiscal de mera anulação, julgando-se na sentença recorrida verificado o erro na quantificação da matéria colectável relativa a 1992 e 1993, as liquidações impugnadas deveriam ter sido anuladas na totalidade, e não apenas parcialmente (questão que a proceder, prejudica o conhecimento das demais invocadas no recurso, nos termos do disposto no art. 608.º, n.º 2 do CPC, aplicável ex vi art. 663.º, n.º 2 do CPC);
_ Conhecer do invocado vício de forma por falta de fundamentação na parte relativa à fixação do IVA por estimativas praticado pelo Chefe do Serviço de Finanças de Leiria - 2, do despacho do Presidente da Comissão de Revisão e dos actos finais de liquidação da competência do Chefe do serviço de Finanças de Leiria - 2;
_ Saber se a aplicação de estimativas nos termos descri­tos no relatório enferma de uma total contradição e errónea quantificação.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Matéria de facto

A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:

1. A impugnante foi sujeita a uma acção de fiscalização referente aos exercícios de 1992 e 1993, que decorreu entre os dias 28/3/1994 e 19/9/1994, no âmbito da qual foi elaborado o relatório da inspecção tributária que consta de fls. 24 e segs. cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
2. A maioria das madeiras que a impugnante adquire são originárias de Africa, especialmente da República do Zaire, as quais são facturadas à impugnante pela empresa "... " sediada em main Street of Memorial Square - Charstow ­Nevis.
3. As madeiras facturadas por esta empresa são vendidas pela impugnante a preços muito idênticos e nalguns casos a preços inferiores ao de custo.
4. Não existe qualquer correspondência entre a "... " e a impugnante, sendo aquela uma empresa isenta de tributação "offshore".
5. As facturas da ... contabilizadas pela impugnante no exercício de 1992 têm numeração seguida do n.º 1 ao 21, sem interrupções.
6. A factura n.º 26/9B, de 28/911993 da ... é enviada pela impugnante ao despachante oficial para efeitos de desalfandegamento em favor do cliente da impugnante ... ... ... Lda.
7. O pagamento desta factura foi feito à impugnante e não à ... .
8. As iniciais C.E. inscritas nas notas de encomenda n.º 618,636,638,643 e 706, as quais não foram objecto de facturação, correspondem às iniciais "... " e "... ", gerente e sócio, respectivamente da impugnante.
9. Mas também as seguintes notas de encomenda:
encomenda n.º 610, anotada de C.E. não foi facturada.
n.º 613, não foi facturada.
n.º 614, Anotada de C.E., não foi facturada. mas foi paga através do cheque n.º 4445908734, de Mário Pereira Carreira (fls. 52 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido), depositado na conta n.º 725/12491158 do BPA de Leiria
n.º 623 Anotada de 50% facturado. 50% C.E . Foram facturadas apenas as duas paletes de carvalho americano por Esc. 188.038$, factura n.º 473 de 16/12/1991.
n.º 626 Anotada de CE - pronto pagamento. Não foi facturado o valor de 1. 150.000$ que nela consta, tendo este montante sido pago através do cheque que consta de fls. 53 verso, emitido por Henrique Jorge Pereira. Este cheque também foi depositado na conta n. ° 725/12491158 do BPA de Leiria.
n.º 634 anotada em relação a dois toros ... . No final da factura outro asterisco e as iniciais C.E dentro de um círculo. Foram facturadas apenas duas paletes de carvalho americano. Os dois toros com asterisco não foram facturados.
n.º 640 Anotada de C.E, não foi facturada.
n.º 644 Anotada com asterisco" de C.E. relativamente a um toro Sepelly. Não foi facturada.
n.º 647, não foi facturada.
n.º 649 Anotada de tudo C.E., não foi facturada. Paga através dos cheques juntos a fls. 56 verso e 57, ambos depositados na conta n.º 725/12491158 do BPA de Leiria. n.º 711 não foi facturada.
n.º 735 não foi facturada.
n.º 741 Anotada de C.E, pronto pagamento, não foi facturada. n.º 862 Anotada de C.E, não foi facturada.
n.º 743 Anotada de C.E, não foi facturada


n.º 647, não foi facturada.
n.º 649 Anotada de tudo C.E., não foi facturada. Paga através dos cheques juntos a fls. 56 verso e 57, ambos depositados na conta n.º 725/12491158 do BPA de Leiria. n.º 711 não foi facturada.
n.º 735 não foi facturada.
n.º 741 Anotada de C.E, pronto pagamento, não foi facturada. n.º 86 Anotada de C.E, não foi facturada.
n.º 743 Anotada de C.E, não foi facturada
n.º 749 não foi facturada, mas consta a menção de ter sido paga através de 5 cheques pós datados (fls. 60 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido) .
n.o 1012 Anotada de C.E relativamente ao Iroko SI Borne. não foi facturado o Iroko S/Borne.
n.O 1013 Anotada de pronto pagamento c/25%. As mercadorias constantes das primeiras 5 linhas no valor de 641 100$ não foram facturadas. Mas este valor, deduzido do desconto de 5% (= 609 045$) foi pago através do cheque n.º 6542275996 de ... (fls. 61 verso cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido).
n.º 1020 não foi facturada.
10. Estas vendas não facturadas são objecto de controlo, existindo na expressa listagens das mesmas.
11. A receita destas vendas são depositadas numa conta existente com o n.º 725112491158, no BPA de Leiria, em nome de ... ... .
12. No âmbito da inspecção foi solicitada à impugnante a apresentação de notas de encomenda, guias de remessa e guias de transporte, ou outros documentos equivalentes ( ... ) emitidas no período decorrido entre a data do início da actividade, 1/4/1990 e 31/12/1993. A esta notificação a impugnante respondeu como consta de fls. 43 verso cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
13. A análise dos inventários de existências de 31/12/1992 e 31/12/1993, permitiu verificar que em 31/12/1992 os preços de venda praticados no mês de Dezembro de 1992 eram em muitos casos inferiores aos de compra, conforme consta do quadro de fls. 31 (fls. 14 do relatório da inspecção tributária) cujo conteúdo sedá por integralmente reproduzido.


14. Em face destes factos, foi efectuada a avaliação indirecta referente aos exercícios de 1992 e 1993.
15. Para o efeito, utilizaram-se as margens médias de lucro previstas na alínea a) do Art. 52.º do CIRC, com recurso aos indicadores obtidos pelos serviços da DGCI para a actividade da impugnante, que corresponde a uma percentagem de 26,21 % sobra as vendas (mediana) o que equivale à percentagem de lucro bruto sobre custo de 36,5%.
16. Com base nestes indicadores, apurou-se um desvio entre as vendas contabilizadas e as presumidas durante os exercícios de 1990 a 1993, no montante de 101 956 596$ .
17. Este desvio foi imputado aos exercícios e 1992 e 1993 na proporção ao CEVC de cada um deles, na medida em que as omissões de vendas praticadas nos exercícios de 1990 e 1991 foram compensadas com o empolamento dos respectivos inventários, com influência nos dados contabilísticos e fiscais declarados.
18. Por via disso, o lucro tributável do exercício de 1992 foi corrigido com base no valor de vendas presumido de 44 395 534$; e o exercício de 1993 com o montante de 57.561.062$.
19. Houve reclamação para a Comissão de Revisão no âmbito da qual se não chegou a acordo, tendo cada um dos peritos lavrado o seu laudo, que consta de fls. 14 e segs. dos autos de reclamação cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
20. O Exmo. Director Distrital de Finanças fixou o rendimento tributável no exercício de 1992 em 45.608.512$ (imposto a pagar no montante de 7.103.285$) e no ano de 1993 o rendimento tributável foi fixado em (89.471.355$).
20. O Sr. Almeida Monteiro, não exercia funções de Chefe da Repartição de Finanças de Leiria na data em que as liquidações adicionais foram feitas.

FACTOS NÃO PROVADOS
Com interesse para a decisão não se provou que:
_ Os anexos 31 a 40 do relatório da inspecção tributária não tenham sido emitidos pela impugnante e lhe sejam, totalmente estranhos;
_ Os anexos em causa nunca tenham existido nas suas instalações;
_ Muitas das notas de encomenda não viessem a ser concretizadas através do fornecimento de mercadorias, por falta de crédito bancário, ou por desinteresse na encomenda.
MOTIVAÇÃO
A convicção do tribunal baseou-se na análise crítica do conjunto da prova produzida, com destaque para a seguinte:
Prova documental: As testemunhas arroladas pela impugnante declararam conhecer os autores dos documentos anexos ao relatório de inspecção tributária (facturas com as menções C.E. e C.M. e outros dizeres) e vão ao ponto de dizerem que o carimbo ... não coincide com o carimbo usado no escritório. Tal facto, mesmo que verdadeiro, nada adianta, porque o problema que se levanta não é o de saber se o carimbo era o mesmo que se utilizava no escritório ou era outro. A questão é saber se os anexos em causa traduzem aquilo que mencionam, ou seja, se existe mercadoria vendida e não facturada. Em face desta documentação, apontar para o carimbo e dizer que o do escritório “talvez fosse mais pequeno” é um desviar da questão essencial. Ora como comprovam os sucessivos pagamentos efectuados por meio de cheque, parece claro que havia vendas de mercadorias não facturadas. No entanto, sobre isto, a impugnante nada esclarece. Tão pouco esclarece a razão porque havia vendas de mercadoria com valor inferior, nalguns caos, ao valor de aquisição. Afirma que é uma questão irrelevante e traduz uma errada política comercial (art. 19.º da douta petição inicial), sem que se perceba muito bem porque é que é irrelevante, no contexto dos restantes factos apurados.
As declarações do Sr. ... Gomes Oliveira Fiúza, reproduzidos a fls. 28 do apenso de reclamação, bem como a cópia da factura junta a fls. 27 dos mesmos autos, permite concluir haver relações especiais entre a impugnante e a ... . A existência destas relações é reforçada pelo facto de a impugnante vender alguma mercadoria a preços inferiores aos de aquisição à ... .
2. Do Direito

Conforme resulta dos autos, o recurso vem interposto da sentença do então tribunal tributário de 1.ª instância de Leiria, que julgou parcialmente procedente a impugnação das liquidações adicionais de IVA dos anos de 1992 e 1993, e juros compensatórios.

A decisão recorrida considerou verificados “a existência de indícios sérios de que a contabilidade da impugnante não reflecte a exacta situação patrimonial da empresa nem o lucro efectivamente obtido”, e por conseguinte, julgou verificados os pressupostos para a aplicação dos “métodos indiciários” para apuramento do imposto.

Por outro lado, considerando o relatório de inspecção, entendeu que era suficiente a sua fundamentação na medida em que fornece “ex abundantes”, todos os elementos fácticos e de direito, por força dos quais concluiu pela inidoneidade da contabilidade da impugnante para espelhar a correcta situação patrimonial da sociedade.

Por último, analisando o argumento da errónea quantificação esgrimido na p.i., entendeu que o relatório de inspecção “deixa algumas dúvidas”, “quanto ao critério de repartir o desvio apurado em 4 anos apenas por dois exercícios”, e conclui que considerando que o desvio diz respeito a 4 anos, então, “em obediência à regra da tributação pelo lucro real (a avaliação indirecta constitui o meio de encontrar o lucro real quando a avaliação directa não o permite) esse desvio deveria ser imputado proporcionalmente aos 4 exercícios.”.

Ou seja, a decisão recorrida entendeu haver erro na quantificação da matéria colectável, porquanto o desvio apurado pela Administração Tributária (AT) refere-se a 4 anos, e nessa medida, deveria ter sido imputado aos quatro exercícios, não tendo havido justificação ou invocação de razões ponderosas pela AT para ter apenas imputado a dois exercícios.

É com base neste fundamento que a decisão recorrida julga a impugnação “parcialmente procedente” e determina, no segmento decisório, “a correcção da liquidação devendo a Administração Fiscal imputar o desvio encontrado nos quatro exercícios, no montante de 101.956.596 Escudos, proporcionalmente pelos quatro exercícios e consequentemente reformular a liquidação impugnada.”.

A Recorrente, face ao fundamento da decisão recorrida, não se conforma com a procedência parcial da impugnação, invocando, para além do mais, erro de julgamento por errada aplicação do direito pela sentença, uma vez que, sendo o contencioso fiscal de mera anulação, a errónea quantificação dos valores tributáveis relativos a 1992 e 1993 decidida pela sentença, implica a anulação na totalidade das liquidações, cabendo aos “serviços fiscais” concretizar o método da repartição do desvio encontrado, não cabendo ao tribunal interferir.

Por conseguinte, a questão a decidir no presente recurso, consiste, antes de mais, em saber se, havendo erro na quantificação da matéria colectável por aplicação de métodos indirectos (à época métodos indiciários), tal como decidido na decisão recorrida, as respectivas liquidações deviam ter sido totalmente anuladas conforme defende a Recorrente, sendo certo que, obtendo provimento o recurso quanto esta questão, fica prejudicada a decisão dos demais fundamentos do recurso, nos termos do disposto no art. 608.º, n.º 2 do CPC, aplicável ex vi art. 663.º, n.º 2 do CPC.

Apreciando.

A questão da divisibilidade do acto tributário de liquidação tem sido tratada na jurisprudência de forma uniforme e reiterada no sentido de que os actos de liquidação de tributos são divisíveis (cfr. acórdãos do STA, de 9/7/1997, rec. 5874; de 22/9/1999, rec. 24101; de 16/5/2001, rec. 25532; de 26/3/2003, rec. 1973/02; de 27/9/2005, rec. 287/05. E mais recentemente também no acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário, de 10/4/2013, rec. nº 298/12, se reafirma a jurisprudência vertida nos acórdãos da Secção, de 12/1/2011, rec. nº 0583/10, de 12/1/2012, recurso nº 0965/10, de 10/10/2012, rec. nº 0533/12 e de 5/12/2012, rec. nº 0477/12).

Por outro lado, a própria lei admite a possibilidade da anulação parcial dos actos tributários. Com efeito, dispõe o art. 100.º da LGT sob a epígrafe de “[e]feitos de decisão favorável ao sujeito passivo” que a AT “está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade (…)”.

O critério para determinar se o acto deve ser total ou parcialmente anulado, de acordo com aquela jurisprudência, passa por determinar se a ilegalidade afecta o acto tributário no seu todo, caso em que o acto deve ser integralmente anulado ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial.

Deste modo, se o vício que constitui o fundamento da procedência da impugnação apenas afectar parte da liquidação, e não a sua totalidade, a liquidação deve ser anulada parcialmente, ou seja, apenas na parte que fica afectada por esse vício, subsistindo a liquidação na restante parte.

No entanto, nem sempre a anulação parcial do acto tributário será possível, e nesse caso a liquidação deverá ser anulada na totalidade.

Com efeito, como se escreveu no acórdão do STA de 27/11/2013, proc. n.º 079/13 “[h]á, portanto, casos em que a anulação parcial da liquidação não é possível.
É o que se passa, por exemplo, quando a AT tenha calculado a matéria colectável por métodos presuntivos, supondo uma determinada margem de lucro, e o juiz concluir pela inexistência de razões bastantes para a opção por essa margem de lucro, ficando, por isso, na “dúvida quanto à quantificação efectuada”. Nesta situação, não lhe resta senão anular totalmente a liquidação.”

Nesse mesmo sentido, no acórdão do STA de 13/11/2013, processo n.º 0285/13, sumariou-se que “[n]ão é, todavia, possível proceder-se à anulação parcial do acto, se o vício judicialmente reconhecido resulta de, na fixação da matéria colectável por métodos indirectos, a AT ter presumido uma margem de lucro que o Tribunal entendeu insuficientemente demonstrada, pois não cabe aos tribunais, substituindo-se à Administração, escolher a margem de lucro ajustada ao caso e proceder à correspondente liquidação.”.

No caso dos autos, temos uma situação em tudo semelhante às dos acórdãos supra citados.

Na verdade, in casu, julgaram-se verificados os pressupostos para o recurso a métodos indirectos, no entanto, no que se refere à quantificação da matéria colectável entendeu-se que o relatório de inspecção “deixa algumas dúvidas”, “quanto ao critério de repartir o desvio apurado em 4 anos apenas por dois exercícios”, e deste modo, considerou haver erro na quantificação.

Ora, assim sendo, não poderia o juiz a quo ter julgado a impugnação “parcialmente procedente”, mas antes deveria ter anulado os actos de liquidação na sua totalidade por vício de violação de lei.

Por outro lado, também não poderia ter determinado, no segmento decisório, que a Administração Fiscal deve “imputar o desvio encontrado nos quatro exercícios, no montante de 101.956.596 Escudos, proporcionalmente pelos quatro exercícios e consequentemente reformular a liquidação impugnada.”, pois a prática de tais actos afrontam o núcleo essencial da função administrativa, e nessa medida, constituem um limite à plena jurisdição do contencioso tributário (cfr. Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2ª ed., p. 397).

Com efeito, aplicando o critério jurisprudencial supra referido, in casu, estamos perante uma situação em que a anulação parcial da liquidação não é possível, uma vez que a ilegalidade em causa, erro na quantificação da matéria colectável, afecta o acto tributário na totalidade.

O juiz a quo, ao determinar à AT como deveria proceder concretamente para calcular a quantificação da matéria colectável por métodos indirectos, ou seja, ao determinar à AT os critérios concretos no cálculo da matéria colectável, tal como o fez, está a interferir no núcleo essencial da função administrativa, sendo que a concreta determinação do quantum do imposto é da competência da AT. In casu, ao juiz caberá, apenas, o controlo da legalidade da actuação da AT na determinação desse quantum, anulando ou mantendo a respectiva liquidação.
Ou seja, não cabe aos tribunais, substituindo-se à AT, escolher a margem de lucro ajustada ao caso, nem como deve proceder concretamente para calcular a quantificação da matéria colectável por métodos indirectos. Verificado o vício de violação de lei da liquidação, por erro sobre pressupostos de facto ou por erro sobre os pressupostos de direito na quantificação da matéria colectável por métodos indirectos, ao juiz cabe apenas, reitera-se, declarar esse erro, e anular a liquidação.

Conforme resulta dos autos, o juiz a quo, anulou parcialmente a liquidação impugnada e determinou “a correcção da liquidação devendo a Administração Fiscal imputar o desvio encontrado nos quatro exercícios, no montante de 101.956.596 Escudos, proporcionalmente pelos quatro exercícios e consequentemente reformular a liquidação impugnada.”, o que configura erro de julgamento, e nessa medida, deve a decisão recorrida ser revogada nesta parte, e julgar-se a impugnação procedente na sua totalidade, e consequentemente, anular-se os actos impugnados, também na sua totalidade.

Face ao exposto, o recurso merece provimento, e por conseguinte, fica prejudicada a decisão dos demais fundamentos do recurso, nos termos do disposto no art. 608.º, n.º 2 do CPC, aplicável ex vi art. 663.º, n.º 2 do CPC.

3. Sumário do acórdão

I. O acto tributário de liquidação, enquanto acto divisível, é susceptível de anulação parcial, desde que a ilegalidade apenas afecte parte do acto.



II. O erro na quantificação da matéria colectável por métodos indirectos afecta in totum a validade da liquidação.

III. Verificado o erro na quantificação da matéria colectável por métodos indirectos, o juiz deve anular a respectiva liquidação na sua totalidade.

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso interposto, revogando-se a decisão recorrida, e julgando-se a impugnação procedente, e consequentemente, anulam-se os actos impugnados na sua totalidade.

Sem custas.
D.N.
Lisboa, 29 de Maio de 2014.


(Cristina Flora)

(Joaquim Condesso)



(Anabela Russo)