Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1775/22.1BELSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:11/22/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CONFLITO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO SOCIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
Sumário:I.Visando o pedido de notificação judicial avulsa provocar a interrupção dos prazos da caducidade e da prescrição de alegados direitos às prestações e pensão de sobrevivência tidos por devidos, tal convoca o regime jurídico das prestações sociais que têm enquadramento no sistema previdencial da Lei de Bases da Segurança Social (cfr. art. 50.º e s.).

II.Pelo que a competência material para apreciar a questão relacionada com o sistema previdencial, integra a competência especializada do Juízo administrativo social e não do Juízo administrativo comum

Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

I. RELATÓRIO

A Exma. Senhora Juíza do Juízo administrativo social do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa veio, ao abrigo do disposto na alínea t) do n.º 1 do artigo 36.º do ETAF, na mesma decisão em que se declara materialmente incompetente, requerer oficiosamente junto deste Tribunal Central Administrativo Sul a resolução do conflito negativo de competência suscitado entre si e a Senhora Juíza do Juízo administrativo comum do mesmo tribunal, uma vez que ambas se atribuem, mutuamente, competência, negando a própria, para ordenar a realização da Notificação Judicial Avulsa do Centro Nacional de Pensões, ali requerida por M …………………..

Neste TCA Sul foi cumprido o disposto no artigo 112.º, n.º 1, do CPC, tendo a Requerente na resposta que apresentou pugnado pela competência do “Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa”.

Os autos foram com vista à Digna Procuradora-Geral Adjunta, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que emitiu pronúncia no sentido de a competência ser atribuída ao Juízo administrativo social do TAC de Lisboa.



I. 1. Questões a apreciar e decidir:

A questão colocada consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para proceder à requerida notificação judicial avulsa: se o Juízo administrativo comum do TAC de Lisboa ou se o Juízo de administrativo social, do mesmo Tribunal.



II. Fundamentação

II.1. De facto

Para julgamento do presente conflito, julgam-se relevantes as seguintes ocorrências processuais (documentalmente comprovadas):

1. Em 3.06.2022, M …………………… veio requerer junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, com invocação os artigos 323.º, n.º 1 do CC e 256.º do CPC, a notificação judicial avulsa do Centro Nacional de Pensões, referindo pretender garantir o exercício tempestivo “dos direitos às prestações por morte e pensão de sobrevivência, por efeito do óbito do companheiro C …………….., ocorrido em 10 de Abril de 2018” (cfr. r.i. e seis documentos- Proc. no SITAF).

2. Por sentença de 25.06.2022, a Senhora Juíza do Juízo administrativo comum, a quem os autos foram distribuídos, excepcionou a incompetência em razão da matéria daquele Juízo e determinou a remessa dos autos ao Juízo administrativo social do mesmo Tribunal, por entender ser esse o juízo competente (sentença - Proc. no SITAF).

3. Aí chegados, a Senhora Juíza do Juízo administrativo Social a quem os autos foram atribuídos, em decisão datada de 3.10.2022, declarou esse Juízo igualmente incompetente, em razão da matéria, cometendo a competência para apreciar a presente acção ao Juízo administrativo comum do mesmo Tribunal e suscitou oficiosamente ao Presidente deste TCA Sul a resolução do conflito negativo de competência (cfr. decisão- Proc no SITAF).

4. As decisões em conflito transitaram em julgado (consulta do sitaf).



II.2. DE DIREITO

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional e de atribuições se encontram regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

Estabelece-se no n.º 1 do artigo 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” seguem o regime da acção administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109.º e s. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111.º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

No contencioso administrativo, por força do disposto no artigo 13.º do CPTA, a competência, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.

Tal equivale a dizer que o presente conflito de competência, suscitada oficiosamente pela Senhora Juíza do Juízo administrativo social do TAC de Lisboa, ao abrigo do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, foi levantado por quem tem legitimidade para tal.

Continuando, sob a epígrafe “[c]onflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109.º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.

É sabido que o critério de atribuição de competência material ao juiz projecta a habilitação funcional do tribunal para a matéria que constitui o objecto do seu conhecimento (in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, p.107). Na verdade, a eficiência da organização judiciária com vista à melhor prestação da qualidade da Justiça reclama que se atribua a competência ao tribunal que mais vocacionado estiver para conhecer do objecto da causa respectiva. E quanto mais apurado for o critério atributivo de competência material, que é aquele aqui em causa, melhor surtirá a garantia da qualidade com que a Justiça é administrada ao cidadão a quem se destina.

A questão que nos é trazida a juízo coloca-se por via da alteração ao artigo 9.º e dos aditados artigos 9.º-A e 44.º-A, ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, operada pela Lei n.º 114/2019, de 12/09 (vide, artigos 2º e 3º).

No seguimento desta revisão foi publicado em 13.12.2019 o Decreto-Lei n.º 174/2019 que procedeu – no aqui e, agora, importa – à criação de juízos de competência especializada no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, onde além do juízo administrativo comum e do juízo administrativo social, criou ainda um juízo de contratos públicos, com jurisdição alargada sobre o conjunto das áreas de jurisdição atribuídas aos Tribunais Administrativos de Círculo de Almada, Lisboa e Sintra (cfr. artigo 2.º, n.ºs 1 e 2 deste diploma).

O legislador do ETAF plasmou no artigo 44º-A (aditado pela Lei nº 114/2019, de 12/9) e para os casos em que tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, os critérios de eleição para determinar a sua habilitação funcional.

De acordo com o citado artigo 44º-A do ETAF, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, passou a dispor-se o seguinte:

1- Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

c) Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

d) Ao juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhecer de todos os processos relativos a litígios em matéria de urbanismo, ambiente e ordenamento do território sujeitos à competência dos tribunais administrativos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.

2- Quando se cumulem pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a ação ser proposta no juízo competente para a apreciação do pedido principal.

Daqui resulta que o juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual; i.é, caso as matérias em dissídio não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados, a competência para as apreciar cabe ao juízo administrativo comum.

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pelos pedidos e causas de pedir.

É entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” - MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91 e, por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.07.2006, proc. n.º 11/2006.

Em suma, a competência afere-se pela substância do pedido formulado e pela relação jurídica subjacente ou factos concretizadores da causa de pedir. E em conformidade com o disposto no artigo 13.º do CPTA, o seu conhecimento é oficioso e precede o conhecimento das demais questões.

Recorde-se que in casu a Requerente requereu, junto do TAC de Lisboa, a Notificação Judicial Avulsa do Centro Nacional de Pensões, com vista à interrupção dos prazos de prescrição e de caducidade, e assim, vir a garantir o exercício tempestivo “ dos direitos às prestações por morte e pensão de sobrevivência, por efeito do óbito do companheiro C ………………. ocorrido em 10 de Abril de 2018”.

E, nos termos do disposto no art. 256.º, n.º 1, do CPC “[a]s notificações avulsas dependem de despacho prévio que as ordene e são feitas pelo agente de execução, designado para o efeito pelo requerente ou pela secretaria, ou por funcionário de justiça, nos termos do nº 9 do artigo 231º, na própria pessoa do notificando, à vista do requerimento, entregando-se ao notificado o duplicado e cópia dos documentos que o acompanhem.”.

A notificação judicial avulsa constitui um acto judicial que não se insere em qualquer processo pendente. A mesma é um acto-fim e independente, já que toda a actividade judicial é exercida com vista à notificação requerida e embora se assuma como um acto judicial, não se inscreve em qualquer processo judicial pendente e esgota-se na sua concretização (cfr. o ac. de 2.07.2019 do TR Lisboa, proc. n.º 6301/19.7T8LSB.L1-7 ).

De igual modo, o processo de notificação judicial avulsa não é totalmente “neutro” ou indiferente à natureza da relação jurídica onde se pretende que venham a produzir-se os efeitos jurídicos decorrentes daquela notificação e impõe ao juiz que aprecie liminarmente o requerimento. E se é certo que tal análise não se destina a verificar se existe, em concreto, o direito invocado na notificação, também não pode a notificação ser ordenada sem que antes se verifique a sua regularidade formal, nomeadamente, para saber se “o direito invocado existe abstratamente na lei” (cfr. ac.s do TR Lisboa de 19.09.2007, p. 7678/2007-1, e de 23.01.2014, p. 6650/13.8TBALM.L1-2.)

Ora, no presente pedido de notificação judicial avulsa a Autora visa provocar a interrupção dos prazos da caducidade e da prescrição dos alegados “direitos às prestações e pensão de sobrevivência, por efeito do óbito do seu companheiro”; ou seja, invoca o direito a prestações sociais que têm enquadramento legal no sistema previdencial da Lei de Bases da Segurança Social – cfr. artigos 50.º e s.

Tanto basta para que, tal como sustentado pelo Ministério Público, se tenha que concluir que a competência material para apreciar a presente questão – relacionada com o sistema previdencial - integra a competência especializada do Juízo administrativo social do TAC de Lisboa e não a do Juízo administrativo comum do mesmo Tribunal, por força da conjugação do disposto nos artigos 9.º, n.ºs 4 e 5 e 44.º-A, n.º 1, alínea a) do ETAF (na versão que lhe foi dada pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro), artigo 1.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro e artigo 1.º, alínea h), da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio.



III. Decisão

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição da competência para a tramitação e decisão dos presentes autos ao Juízo administrativo social do TAC de Lisboa.

Sem custas.

Notifique.

O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques