Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:14/20.4BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/16/2020
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR SUMÁRIO;
AUDIÊNCIA DO ARGUIDO;
PRESUNÇÃO INILIDÍVEL;
INCONSTITUCIONALIDADE.
Sumário:i) A audiência do arguido está claramente prevista e descrita como um princípio essencial e uma formalidade obrigatória no âmbito do procedimento disciplinar comum, como decorre do disposto nos art.s 236.º a 246.º do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (doravante RD), comportando diversos momentos em que o arguido, antes da decisão sancionatória, intervém no procedimento disciplinar, como dimana do disposto nos art.s 227.º, 230.º e 231.º do mesmo Regulamento.
ii) No que concerne ao procedimento disciplinar sumário, a norma plasmada no art. 214.º do RD, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da prática do ato punitivo, será de desaplicar por violação dos direitos fundamentais de audiência e de defesa, inscritos nos art.s 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.
iii) A presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa, ao abrigo do art. 13.º, alínea f) do RD, é igualmente aplicada em procedimento disciplinar sumário, atento o prescrito no art. 213.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3.
iv) No domínio do procedimento disciplinar sumário, ao não se prever a audição do arguido antes da decisão punitiva- nos termos supra descritos no ponto ii) -, tal presunção de veracidade dos factos traduz-se numa presunção inilidível.
v) De onde decorre que a norma plasmada no art. 13.º, alínea f) do RD, na medida em que contém uma presunção inilidível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga, será de desaplicar, quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, preceituados no art. 32.º, n.º 2, bem como por violação dos direitos ao contraditório e ao processo equitativo, previstos no art. 20.º, n.º 4, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em Conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:


Decisão

I. Relatório

O F… - Futebol, sad, apresentou junto do Tribunal Arbitral do Desporto contra a Federação Portuguesa de Futebol, impugnação do acórdão proferido a 02.10.2018, nos autos n.º 72/2018, pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina daquela Federação, que, no âmbito do procedimento disciplinar sumário, negou provimento ao recurso hierárquico interposto e, mantendo a decisão recorrida, condenou-o no pagamento de multas no valor total de €2.200,00 pela prática das infrações p. e p. pelos art.s 187.°, n.º 1, alínea b), e 127.°, n.º 1, ambos do Regulamento Disciplinar, por factos ocorridos no jogo entre o Recorrente e o V…, no Estádio do D..., a contar para a Liga NOS, realizado no dia ….

Por decisão do colégio arbitral do Tribunal Arbitral do Desporto (doravante TAD), datada de 07.01.2020, foi decidido, por maioria, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Com aquela não se conformando, veio o Recorrente, F... - Futebol, SAD, interpor recurso jurisdicional para este Tribunal Central, tendo na sua alegação formulado as seguintes conclusões:

«(…)

A. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 07/01/2020 do TAD, que confirmou a condenação da recorrente pela prática de duas infracções disciplinares p. e p. pelos arts. 127.°-l e 187.°-l b) do RD, punindo-a em multa no valor total de € 2.200,00.

B. Acontece que, o acto punitivo proferido em 04/09/2018, e mantido pela Deliberação emitida em 02/10/2018 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol é, desde logo, nulo por violação do direito de defesa da Recorrente, e bem assim por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência.

C. Com efeito, a norma plasmada no art. 13.°, al. f) do RD, na medida em que contém uma presunção inilidível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga, é materialmente inconstitucional quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, preceituados no arts. 32.°, n.° 10 e 2 da CRP, bem como por violação dos direitos ao contraditório e ao processo equitativo, previstos no art. 20.°, n.° 4 da mesma Lei Fundamental - o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais.


-II-

D. Não se conforma a Recorrente com a decisão condenatória, porquanto desprovidos que são os autos de provas que deponham em favor da sua responsabilização, ou seja, que o clube teve uma actuação culposa na verificação dos factos, mostrava-se necessariamente prejudicada a sua condenação pelas infrações disciplinares imputadas.

E. Em primeiro lugar, a mera circunstância de a bancada na qual teve origem a deflagração de engenhos pirotécnicos estar - por princípio - afecta a adeptos da Recorrente, sem sequer haver prova da exclusividade dessa afectação, não permite concluir - com toda a probabilidade próxima da certeza ou, pelo menos, para além de toda a dúvida razoável - que os autores das deflagrações tenham efectivamente sido sócios ou simpatizantes da recorrente.

F. Assim, não se tendo apurado qual a concreta identificação dos adeptos infractores, não bastava à Recorrida, e agora ao Tribunal a quo, invocar que os factos ocorreram em bancada afecta a adeptos desta para que se pudesse concluir (e levar à matéria assente) que os autores das condutas sub judice eram sócios ou simpatizantes da F....

G. Autoria essa que deve ser dada como não provada, o que desde já se requer.

H. Considerando as infracções em causa nos autos, era necessário que o Conselho de Disciplina tivesse carreado aos autos prova suficiente de que não só os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da F... - Futebol SAD, mas ainda que tais condutas resultaram de um comportamento culposo da F... - Futebol SAD.

I. O ónus da prova em processo disicplinar cabe ao titular do poder disicplinar, pelo que, não tem arguido de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada.

J. Aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar, vigora ainda o princípio da presunção de inocência, o qual tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido - in casu a recorrente - o ónus de reunir as provas da sua inocência.

K. E precisamente o princípio de inocência que exigia ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infracções para condenar a Recorrente.

L. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.°,/), do RD, pode contrariar esta quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador, não se permitindo daí inferir um início de prova ou sequer uma inversão do ónus da prova.

M. A míngua de meios de prova demonstrativos da violação de deveres de cuidado, o Tribunal a quo presumiu que a Recorrente falhou nos seus deveres, entendendo que caberia à Recorrente ilidir a presunção de culpa pela qual o Tribunal se segue.

N. Resulta claro da leitura do acórdão que o Tribunal a quo confirmou a condenação da Recorrente somente com base na prova da primeira aparência e num esquema argumentativo e racional fundado numa distribuição de ónus da prova: à demandada, titular do poder punitivo disciplinar, cabe fazer a prova da primeira aparência; e à demandante, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.

O. Este critério decisório viola o princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a Recorrente é titular e, do do mesmo passo, implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.

P. O critério decisório adoptado pelo Tribunal a quo - da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido - contraria aberta e frontalmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, jurisprudência que representa uma expressão consolidada do cânone da dogmática do princípio da presunção de inocência, constante de todos os tratados e comentários de processo penal e afirmado vezes sem conta pelos nossos tribunais superiores (TC, STJ, Relações e TCA’s).

Q. Pelo exposto, cumpre repor a legalidade, revogando-se o Acórdão recorrido e impondo-se ao Tribunal a quo que adopte um critério decisório em matéria de valoração da prova consentâneo com o princípio da presunção de inocência, exigindo-se, designadamente, que a prova de todos os elementos constitutivos da infracção corresponda a um convencimento para para além de qualquer dúvida razoável, e não numa convicção da verificação decorrente da verificação de simples indícios resultantes de uma prova de primeira aparência,

R. e que não se imponha à Recorrente (arguida no processo disciplinar) o ónus de demonstração da não verificação de qualquer elemento tipicamente relevante,

S. Se assim não se fizer, incorrer-se-á em inconstitucionalidade: pois é inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP), a interpretação dos artigos 127.°-1, 187.M, b), e 258.°, n.° 1, do RDLPFP, no sentido de que a indiciação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais.

T. Mas mais, nem mesmo acolhendo a presunção de verdade prevista no art. 13.°, f) do RD ou jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.° 297/2018 de 18-11 -2018) se alcançaria a condenação da aqui recorrente, porquanto sempre se mostra por preencher pressuposto de imputação e condenaçãora a actuação culposa da recorrente.

U. Nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado.

V. Sendo a actuação culposa um dos “demais elementos das infracções" que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelos arts. 127.°-1 e 187.°-1, b) do RD.

W. Como tal, é inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP), a interpretação dos artigos 187.°, n.° 1, alínea b), 127.M e 258.°, n.° 1, do RDLPFP de 2017, no sentido de que se dá como provado que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes quando se prove, com base com base no artigo 13.°, al. f), do RDLFPF, que esses sócios ou simpatizantes adoptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.


-III-

X. Ao condenar a Recorrente simultaneamente pelas infracções tipificadas nos arts. 127.° e 187.° do RD, a decisão do Tribunal a quo viola o princípio do “ne bis in idem”, plasmado no art. 12.° do RD.

Y. Desde logo porque em ambas as normas se tipificam comportamentos incorrectos do público, qualificando-se e agravando-se uma em função da perigosidade para a integridade pessoal de terceiros, pelo que é óbvio que ao clube que deva responder por tais comportamentos só pode imputar-se a mais grave.


-IV-

Z. As custas fixadas pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (art.s 20.°- 1 e 268.°- 4 da CRP).

AA. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (art.s 20.° e 268.°- 4 da CRP) soluções normativas dc tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.

BB. O artigo 2.°, n.°s 1, 4 e 5 da Portaria n.° 301/2015, conjugado com a tabela constante do Anexo I (1 .a linha) dessa mesma Portaria, em acções de arbitragem necessária com o valor de € 2.200,00, é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.°, n.° 2, da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.°, n.° 1, da CRP).»

Mais requerendo, a final, o seguinte:

«(…) Termos em que se requer a V. Exas. seja o presente recurso julgado procedente, revogando-se a decisão arbitrai recorrida e assim também a condenação da recorrente pelas infracções disciplinares p. e p. pelos arts. 187.°, n.° 1, b), e 127.°-1 do RDLPFP, e anulando-se o correspondente acto administrativo do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, conforme o alegado em II supra.

Sempre subsidiariamente, caso se entenda não haver motivo para, de imediato, absolver a recorrente, requer-se a revogação do acórdão recorrido e o reenvio do processo ao TAD para que reaprecie a matéria de facto com base em critérios de valoração da prova consentâneos com o princípio da presunção de inocência do arguido, exigindo-se, nomeadamente, a formação de uma convicção para além de toda a dúvida razoável e a não imposição de um ónus da prova à demandante.

Face à relação de subsidiariedade existente entre os arts. 187.° e 127.° do RD, deve ser revogada a condenação pela infracção p. e p. pelo art. 127.°- 1 do RD, sob pena de violação do princípio do “ne bis in idem” (art. 12.° do RD).

Sem prescindir, e uma vez mais subsidiariamente, requer-se a V. Exas. Se dignem julgar inconstitucional o artigo 2.°, n.°s 1,4 e 5 da Portaria n.° 301/2015, conjugado com a tabela constante do Anexo I (l.a linha) dessa mesma Portaria, em acções de arbitragem necessária com o valor de € 2.200,00, por violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.°, n.° 2, da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.°, n.° 1, da CRP).»

Contra-alegou a Federação Portuguesa de Futebol, concluindo do modo que segue:

«(…)

1. O presente Recurso de Apelação foi interposto pela Recorrente do Acórdão do Tribunal Arbitrai do Desporto, datado de 7 de janeiro de 2020, que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que sancionou a Recorrente em multas por aplicação dos artigos 187.º, n.º 1, al. b) e 127.º do RD da LPFP.

2. Entende a Recorrente que o ato punitivo proferido no dia 4 de setembro de 2018 pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Recorrida será nulo por violação do seu direito de defesa, bem como por violação dos princípios da culpa e da presunção de inocência.

Sem razão, pois vejamos,

3. A consagração constitucional do direito ao desporto (artigo 79.º da CRP) veio conceber, sem margem para dúvidas, o desporto como uma matéria de interesse público.

4. O Direito ao Desporto, constitucionalmente consagrado, tem uma aceção bastante ampla, incluindo o desporto profissional e, ainda, o direito a organizar e participar em competições desportivas.

5. O RD da LPFP é aprovado em Assembleia Geral da LPFP, de que faz parte a Recorrente, assim como todos os outros clubes que integram as ligas profissionais.

6. Em concreto, a Recorrente não se manifestou contra a aprovação do artigo 214.º do RD da LPFP em sede de Assembleia Geral tendo, pelo contrário, aprovado a mesma decidindo conformar-se com ela.

7. A garantia dos direitos de audiência e defesa do arguido no âmbito de processos sancionatórios terá que se harmonizar com o direito ao desporto que, como acima se mencionou, também é um direito constitucionalmente consagrado.

8. Tem lugar a aplicação do processo sumário, que é o que ora importa nos presentes autos, quando estiver em causa o exercício da ação disciplinar relativamente a infrações disciplinares menos graves ou, em qualquer caso, infrações disciplinares puníveis com sanção de suspensão por período de tempo igual ou inferior à de suspensão por um mês ou por quatro jogos (artigo 257.º do RD da LPFP).

9. A celeridade dos procedimentos disciplinares é uma preocupação facilmente constatável ao longo do RD da LPFP e, em especial, nos processos sumários, onde são consagrados prazos de decisão muito reduzidos.

10. Atente-se, neste sentido, ao disposto no artigo 259.º do RD da LPFP.

11. Ora, atendendo à necessidade de garantir o regular e atempado funcionamento das competições desportivas, no âmbito dos processos sumários não é dado, a título excecional, o direito de audiência prévia ao arguido (artigos 259.º, n.º 1 e 214.º, todos do RD da LPFP).

12. E tal exceção encontra-se justificada, por um lado, pelo facto de estarmos perante infrações menos graves diretamente percecionadas pelos árbitros, delegados e forças de segurança, ou por estarmos perante um auto de flagrante delito, e, por outro, pelas especificidades inerentes à atividade desportiva, em concreto, pelo normal e atempado desenrolar das competições.

13. Quer isto dizer que, consoante a gravidade da infração, há uma diferente proteção que se expressa ao nível das garantias de defesa.

14. Mas mais, caso se garantisse o contraditório no âmbito dos processos sumários que, sublinhe-se, pretende sancionar infrações menos graves ou puníveis com sanção de suspensão por período de tempo igual ou inferior à de suspensão por um mês ou por quatro jogos, a própria continuidade das competições desportivas seria colocada em risco e, em última instância, a Recorrida não conseguiria promover e desenvolver a modalidade desportiva para a qual foi constitucionalmente incumbida.

15. Aliás, em bom rigor, a consagração de contraditório no âmbito dos procedimentos disciplinares sumários desportivos, levaria a que nenhuma federação desportiva conseguisse promover e desenvolver cabalmente a modalidade desportiva, funções para as quais foi constitucionalmente incumbida.

16. A concordância/harmonização do direito ao desporto com a garantia de audiência e defesa num momento anterior à prolação do ato punitivo não pode ser outra senão a constante do RJFD e, por conseguinte, no RD da LPFP, leia-se, a preterição excecional de audiência prévia do arguido em momento anterior à prolação do ato punitivo;

17. Não obstante, esta audiência será sempre garantida quando, em sede de recurso, se passa para o Plenário do Conselho de Disciplina, como sucedeu, saliente-se, nos presentes autos;

18. O modelo, assim desenhado, é o único que permite a realização de milhares de competições desportivas federadas, as quais, a sufragar a leitura restrita da Recorrente, pura e simplesmente colapsariam.

19. Por todo o acima exposto, o ato punitivo sub judice proferido pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Recorrida é valido e não viola qualquer norma constitucional.

Prosseguindo,

20. Em causa nos presentes autos está o comportamento incorreto dos adeptos do F… e a responsabilização desta sociedade anónima desportiva por violação de deveres a que estava adstrita de modo a evitar a ocorrência de tais comportamentos.

21. Sinteticamente, de acordo com os relatórios do jogo e de policiamento desportivo, os adeptos da Recorrente entraram no Estádio do D... com objetos proibidos e deflagraram engenhos pirotécnicos. A Recorrente não coloca em causa que estes factos aconteceram, coloca em causa, sim, que tenham sido os seus adeptos a praticar os factos sub judice e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas.

22. O processo sumário é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.º do RD da LPFP) somente por análise do relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais e dos delegados da LPFP. Com efeito, tais relatórios têm, como se sabe, presunção de veracidade dos respetivos conteúdos (cfr. Artigo 13.º, alínea f) do RD da LPFP).

23. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD's que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas a ora Recorrente.

24. Entende a Recorrente que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios dos Delegados da LPFP e do Relatório de Policiamento Desportivo da PSP) que a Recorrente violou deveres de formação, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como se sabe, não é possível.

25. Assim, os Relatórios elaborados pelos Delegados da LPFP, atento o seu conteúdo, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrente nos casos concretos. Ademais, há que ter em conta que existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento (artigo 13.º alínea f) do RD da LPFP).

26. Isto não significa que os Relatório dos Delegados da LPFP contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrente incumpriu os seus deveres.

27. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova, colocando em causa aquela veracidade. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil.

28. Para além da presunção de veracidade dos factos constantes nos relatórios dos Delegados da LPFP, ter-se-á, ainda, que atender à força probatória dos relatórios das forças policiais.

29. Ao contrário do que afirma a Recorrente, em sede sancionatória o "arguido" não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.

30. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido do Relatório elaborado pelos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrente. Isto mesmo entendeu, e bem, o Tribunal a quo.

31. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitrai. Mas a Recorrente nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede.

32. Neste sentido, sublinhe-se que decorre de forma claríssima da Regulamentação aplicável que os clubes e sociedades desportivas podem (e devem) impedir comportamentos como os sub judice através do cumprimento dos deveres informando e in vigilando dos seus adeptos, em especial, do cumprimento dos deveres estatuídos no art.º 35.º, n.º 1, alíneas a), b), c) e o) do Regulamento das Competições da LPFP.

33. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir a Recorrente, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrente e a violação dos respetivos deveres - foi retirado de outros factos conhecidos.

34. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere a Recorrente, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.

35. Há ainda que notar que o próprio Tribunal Arbitral do Desporto, por várias outras ocasiões, já se pronunciou em sentido diverso ao entendimento sufragado pela Recorrente, assim como o STA por 14 vezes em sede de recurso de revista e o TCA Sul uma vez em sede de recurso de apelação.

36. Carece de fundamento a alegação de que as normas dos artigos 13..º, al. f) e 187.º, nº 1, alínea b), 127.º e 258.º do RD da LPFP são inconstitucionais, porquanto o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou em matéria em tudo idêntica, defendendo a responsabilidade subjetiva neste âmbito, o que se revela conforme à CRP.

37. Não existiu dupla penalização pelo mesmo facto, ao contrário do que alega a Recorrente, pelo que andou bem o Tribunal a quo ao manter a decisão impugnada.

38. Efetivamente, foram praticados vários e distintos factos aos quais correspondem várias e distintas infrações disciplinares, previstas em normas com finalidades de proteção de bens jurídicos distintos.

39. Para haver violação do princípio da dupla punição ter-se-ia de verificar o duplo sancionamento do mesmo facto, porém, estão em causa diferentes condutas. A estas condutas correspondem normas disciplinares distintas. E a tais normas disciplinares distintas corresponde a proteção de valores jurídicos também eles distintos.

40. Com efeito, a adoção de medidas de segurança e o cumprimento de deveres que assegurem essa prevenção visam a tutela de bens jurídicos específicos e autónomos, em especial a segurança e a confiança da "comunidade desportiva" e da comunidade em geral na realização de espetáculos desportivos pelo que a tutela destes bens não pode ficar dependente nem ser consumida pela eventual ocorrência de outras circunstâncias, sob pena de se estar a desonerar as entidades organizadoras do específico cumprimento de deveres de prevenção de violência no desporto, a que, precisamente, alude o referido n.º 2 do artigo 79.º da Constituição.

41. Para além disso, as duas normas (o artigo 127.º e o artigo 187.º) visam punir comportamentos diferentes e que podem originar consequências também elas diversas, pelo que, verificando-se os diferentes factos típicos aí elencados, não há qualquer concurso de infrações.

42. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.

43. Assim, não existindo nenhum vicio que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte deste Tribunal Arbitrai, andou bem o Colégio de Árbitros ao decidir manter a condenação da Recorrente pelas infrações disciplinares p. p. pelo artigo 187.º, n.º1, al. b) e 127.º do RD da LPFP.»


Neste Tribunal Central Administrativo, o DMMP não emitiu pronúncia.

Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à Conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

I. 1. Questões a apreciar e decidir

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, consubstanciam-se, em suma, em apreciar se o acórdão a quo padece de erro de julgamento quanto:

i) à apreciação que fez relativamente à suscitada nulidade do acórdão de 02.10.2018, do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Recorrida, no que se prende com as questões da violação do seu direito de defesa, o princípio da presunção da inocência, o princípio da culpa, direito ao contraditório e a um processo equitativo;

ii) à apreciação referente aos pressupostos da ilicitude e da culpa;

iii) à aplicação da “norma resultante da conjugação do disposto art. 2.º, n.º s 1 e 5 (e respetiva tabela constante do Anexo I, 1.ª linha) da Portaria n.º 301/2015, com o previsto nos artigos 76.º/1/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP) e da proporcionalidade (art. 2.º da CRP)”.

II. Fundamentação de facto e de direito

II.1. A matéria de facto pertinente é a constante da decisão recorrida, a qual se dá aqui por reproduzida, ipsis verbis:

«(…)

a) No dia …, no Estádio do D..., no P…, realizou-se o jogo n.º … entre "F... - Futebol, SAD / V… - Futebol, SAD", a contar para a 3.3 jornada da "Liga NOS".

b. ) As bancadas norte e sul do Estádio do D... são as zonas do estádio exclusivamente destinadas e ocupadas por grupos adeptos afectos ao F… - Futebol SAD.

c. ) No jogo dos autos, os membros do Grupo Organizado de Adeptos denominados "S…", afectos ao F…, ficaram instalados na bancada topo sul, setor 9, do Estádio do D..., sector este que lhes está exclusivamente afecto.

d. ) Os referidos adeptos do GOA "S..." afectos ao F..., situados no indicado sector 9 da bancada topo sul do Estádio do D..., identificados com camisolas, bandeiras, e tarjas alusivas ao clube - "Curva S... 1986" - durante o jogo, deflagraram 2 potes de fumo.

e. ) Os adeptos afectos ao F... situados no sector 26 da bancada norte do estádio do D..., identificados com camisolas, bandeiras, e uma tarja a dizer "Colectivo", ao minuto 36 do jogo, rebentaram um petardo, o que motivou a detenção do autor (Auto de Detenção - NUIPC 585/18.5SMPRT).

f. ) O F... não adoptou as medidas preventivas adequadas e necessárias a fim de impedir que os seus adeptos entrassem, permanecessem e deflagrassem no interior do Estádio do D..., os artefactos pirotécnicos descritos nos factos provados d) e e) supra.

g. ) 0 F... não adoptou as medidas preventivas adequadas e necessárias à evitação dos acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos, descritos nos factos provados d) e e) supra.

h. ) O F... agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos factos perpetrados pelos seus adeptos, incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto entidade organizadora do evento desportivo em causa e clube participante no dito jogo de futebol.

i. ) Na presente época desportiva, à data dos factos, o F... já havia sido sancionado, por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo cometimento de diversas infracções disciplinares.

***

B. ) Motivação da decisão sobre a matéria de facto

O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova carreada para os autos, documental e testemunhal em audiência, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e da sua livre apreciação da prova, seguindo as regras do processo penal (art.º 127.º Código Processo Penal) com as garantias daí resultantes para ao arguido, nomeadamente o princípio da presunção da inocência e do princípio in dubio pro reo.

Assim,

• o facto a.) é assumido pela Demandante e confirmado pelo relatório do árbitro {fls 17-22 do RHI), relatório do Delegado {fls 23-24 do RHI) e relatório de policiamento desportivo (fls 25-28 do RHI).

• Os factos b.) e c.) são, também, confirmados pelo relatório do Delegado {fls 23-24 do RHI), relatório de policiamento desportivo (fls 25-28 do RHI), bem como pelos esclarecimentos adicionais prestados (fls 72 e 92/93 do RHI),

• O facto d.) dá-se provado pelo conjunto da seguinte prova: relatório do Delegado (fls 23-24 do RHI) e relatório de policiamento desportivo (fls 25-28 do RHI).

• O facto e.) resulta provado pelo relatório do Delegado (fls 23-24 do RHI) e do relatório de policiamento desportivo (fls 25-28 do RHI).

• Os factos f.) g.) h.). resultam da convicção formada por recurso às regras de experiência e juízos de normalidade e razoabilidade.

• O facto i.) resulta do cadastro disciplinar da Demandante (fls 29-43).»


II.2. Em face da definição do objeto do recurso supra efetuada, impõe-se conhecer do mesmo, podendo desde já adiantar-se que o recurso merece provimento, não podendo manter-se a decisão proferida pelo tribunal a quo.

Vejamos porquê.



i) Do erro de julgamento em que incorreu o acórdão recorrido, quanto à apreciação que fez relativamente à suscitada nulidade do acórdão de 02.10.2018, do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Recorrida, no que se prende com as questões da violação do seu direito de defesa, o princípio da presunção da inocência, o princípio da culpa, direito ao contraditório e a um processo equitativo.

Em situação análoga à presente e cuja doutrina é aqui replicável, já este TCA Sul se pronunciou, no acórdãos de 10.12.2019, lavrados nos processos n.º 4/19.0BCLSB e 49/19.0BCLSB, no primeiro dos quais se sumariou (1):

«I- (…)

VII- O processo sumário configura uma forma especial do processo disciplinar, regulando-se pelas disposições que lhe são próprias e, na parte nelas não previstas e com elas não incompatíveis, pelas disposições respeitantes ao processo comum, consonantemente com o previsto no art.º 213.º, n.ºs 1, al. b) e 3 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.

VIII- A audiência do arguido está claramente prevista e descrita como um princípio essencial e uma formalidade obrigatória no âmbito do procedimento disciplinar comum, como decorre do estatuído nos art.ºs 236.º a 246.º do aludido Regulamento Disciplinar, subsistindo, até, diversos momentos em que o arguido, antes da emissão da decisão sancionatória, intervém no procedimento disciplinar de que é alvo, como dimana do disposto nos art.ºs 227.º, 230.º e 231.º do mesmo Regulamento.

IX- Ora, constituindo o processo sumário também um procedimento disciplinar, impera assentar que tal procedimento assume natureza sancionatória e pública, o que convoca a aplicação de determinadas garantias constitucionais, por razões de similitude de essência com o próprio processo penal, mormente, as consagradas no art.º 32.º, n.º 10 e no art.º 269.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.

X- A Doutrina (entre outros, J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, artigos 1.º a 107.º, janeiro, 2007, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, e JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, dezembro, 2007, Coimbra Editora) e a Jurisprudência do Tribunal Constitucional são absolutamente claras na afirmação da fundamentalidade da garantia da audiência e defesa do arguido em processo disciplinar, decorrendo essa fundamentalidade, entre o mais, do consagrado nos art.ºs 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição, e significando que “é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas” (como declarado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 659/2006, n.º 180/2014, n.º 457/2015 e n.º 338/2018).

XI- Não obstante constituir um princípio essencial, assumido pelo próprio Regulamento Disciplinar, que a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência prévia pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar, a verdade é que o art.º 214.º do Regulamento exclui expressamente esta garantia no que se refere ao processo sumário.

XII- Com efeito, o art.º 214.º do Regulamento não só afasta explicitamente a audiência do arguido antes de ser proferida a decisão punitiva, como a própria tramitação do procedimento disciplinar sumário não permite enxertar ou acomodar qualquer ato procedimental concretizador daquela garantia constitucional, como dimana do exame do disposto nos art.ºs 257.º a 262.º do mesmo Regulamento.

XIII- O que implica que o arguido apenas conhece a existência de imputações disciplinares contra si no momento em que é notificado da própria decisão disciplinar, e sem que tenha tido qualquer hipótese de esgrimir uma defesa em momento anterior ao daquela notificação.

XIV- Quer tudo isto significar, portanto, no que concerne ao procedimento disciplinar sumário, que a norma plasmada no art.º 214.º do Regulamento Disciplinar, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da edição do ato punitivo, é materialmente inconstitucional, por violação dos direitos fundamentais de audiência e de defesa, preceituados nos art.ºs 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.

XV- Sendo assim, é dever deste Tribunal recusar a aplicação ao caso posto da aludida norma vertida no art.º 214.º, na parte em que exclui e oblitera a audiência do arguido antes da promanação do ato punitivo.

XVI- O que conduz a que o ato punitivo proferido em 21/09/2017, e mantido pela Deliberação emitida em 10/10/2017 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol seja nulo, por violação dos direitos de audiência e de defesa da Recorrente.

XVII- (…)A presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga (…), enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa, inscrita no art.º 13.º, al. f) do Regulamento Disciplinar, é igualmente aplicada em procedimento disciplinar sumário, atento o prescrito no art.º 213.º, n.º 1, al. b) e n.º 3, e subjaz ao regime restritivo da realização de diligências complementares em sede de procedimento sumário, descrito no art.º 260.º do mesmo Regulamento.

XVIII- Subsiste uma certa similitude substancial entre o valor reforçado de que beneficiam os autos de notícia e a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, prevista esta no art.º 13.º, al. f) do Regulamento Disciplinar.

XIX- Tal similitude conduz-nos à conclusão de que a presunção de veracidade agora em exame, na medida em que traduz mera prova prima facie, suscetível de ser abalada com a demonstração de factualidade diversa, não encerra em si, automaticamente, qualquer afronta aos princípios da defesa, do contraditório, do processo equitativo, da culpa e da presunção da inocência.

XX- Realça-se, porém, que a conformidade constitucional da estipulação daquela presunção de veracidade impõe, impreterivelmente, que ao arguido seja concedida a possibilidade de poder esgrimir as suas armas defensivas, por forma a contraditar os factos presumidos, ou os factos descritos nos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga.

XXI- É que, a não ser assim, tal implicaria assumir que os factos presumidos, ou cuja veracidade se presume, decorrem de uma presunção inilidível, uma vez que tais factos estariam definitivamente fixados a partir da sua consignação nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, e sem que se considere, sequer, a possibilidade de demonstração de uma realidade diversa.

XXII- Revertendo ao caso posto, e tendo em consideração que a decisão punitiva em crise foi proferida em sede de procedimento disciplinar sumário - em que não há lugar à audiência do arguido em momento prévio à emissão do ato punitivo, e em que o arguido apenas tem conhecimento das imputações disciplinares que sobre si recaem no momento em que é notificado da própria decisão punitiva, não tendo qualquer oportunidade, antes desta ser proferida, de manifestar a sua posição, contraditar factos ou apresentar quaisquer meios de prova -, resulta forçosa a conclusão de que os factos constantes dos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, na medida em que não podem ser contraditados antes da produção do ato punitivo, derivam, em bom rigor, de uma presunção inilidível, estando, na realidade, definitivamente fixados com a respetiva inserção nos aludidos relatórios.

XXIII- Deste modo, a presunção dos factos contidos nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga pode impor a responsabilidade do Clube de Futebol, independentemente da sua real participação nos factos e mesmo na ausência de qualquer ligação causal ao comportamento adotado por um espectador, supostamente demonstrativo do incumprimento de um dever por banda do mesmo Clube.

XXIV- Face a isto, impõe-se concluir que, no domínio do procedimento disciplinar sumário (descrito, essencialmente, nos art.ºs 257.º a 262.º do RD), a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, por traduzir uma presunção inilidível de factos, viola o conteúdo mínimo do princípio da culpa, bem como os princípios da presunção da inocência, do contraditório e do processo equitativo, consonantemente com o preceituado nos art.ºs 32.º, n.º 2 e 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

XXV- Daí que, a norma plasmada no art.º 13.º, al. f) do Regulamento Disciplinar, na medida em que contém uma presunção inilidível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga, é materialmente inconstitucional quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, preceituados no art.ºs 32.º, n.ºs 10 e 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como por violação dos direitos ao contraditório e ao processo equitativo, previstos no art.º 20.º, n.º 4 da mesma Lei Fundamental, devendo este Tribunal recusar a aplicação ao caso posto daquela norma vertida no art.º 13.º, al. f).

XXVI- O que conduz a que o ato punitivo proferido em 21/09/2017, e mantido pela Deliberação emitida em 10/10/2017 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol seja nulo, por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, do contraditório e do processo equitativo.

XXVII- (…)»


Sendo que, do texto deste acórdão, lavrado no P. 4/19.0BCLSB, consta, além do mais, o seguinte:

«(…)

De acordo com o preceituado no art.º 54.º, n.º 1 do RJFD, o poder disciplinar das federações pode ser exercido diretamente sobre os clubes, dirigentes, praticantes, treinadores, técnicos, árbitros, juízes e, em geral, sobre todos os agentes desportivos que desenvolvam atividade desportiva, sendo que, em sede de regulamentação disciplinar, a levar a cabo através da edição de regulamentos próprios, as federações devem prever os seguintes aspetos (cfr. art.º 53.º): a submissão dos agentes desportivos a deveres gerais e especiais de conduta, especialmente para tutela da ética desportiva; a observância dos princípios da igualdade, irretroatividade e proporcionalidade na aplicação de sanções; a exclusão de penas de irradiação ou de duração ilimitada; a enumeração das circunstâncias agravantes, atenuantes ou extintivas da responsabilidade do infrator; a existência de processo disciplinar para aplicação de sanções quando estejam em causa infrações mais graves ou quando a sanção a aplicar determine a suspensão da atividade por período superior a um mês; a consagração das garantias de defesa do arguido, designadamente exigindo que a acusação seja suficientemente esclarecedora dos factos determinantes do exercício do poder disciplinar e estabelecendo a obrigatoriedade de audiência do arguido nos casos em que seja necessária a instauração de processo disciplinar; e a garantia de recurso para o conselho de justiça quando estejam em causa questões estritamente desportivas.

Ora, concatenando o regime vindo de elencar, descrito no RJFD, com o RD agora em análise, verifica-se que, aparentemente, a Recorrida não extravasou os limites desenhados no sobredito regime no que concerne ao dever de audiência do arguido em sede de processo disciplinar.

Realmente, o art.º 53.º, al. f) do mencionado regime submete a obrigatoriedade de audiência do arguido aos casos em que seja necessária a instauração de processo disciplinar, admitindo-se, portanto e numa interpretação a contrario, que inexistindo processo disciplinar, não há lugar a audiência prévia. Todavia, a verdade é que o RD em exame consagra expressamente o processo sumário como uma das formas de procedimento especial, caracterizando-o, inequivocamente, como um vero procedimento disciplinar, nomeadamente, nos art.ºs 213.º, n.º 1, al. b), 214.º e 257.º e seguintes do RD.

Quer isto significar, por conseguinte, que subsiste um óbvio desalinhamento entre os citados normativos do RJFD e o RD no que concerne ao processo disciplinar sumário, devendo concluir-se que este regulamento desrespeita aquele regime jurídico mestre.

E o aludido desalinhamento é ainda mais gritante quando enquadrado o caso no patamar constitucional.

De facto, constituindo o processo sumário um procedimento disciplinar, impera assentar que tal procedimento assume natureza sancionatória e pública. Desta asserção emerge, de imediato, um apelo à aplicação de determinadas garantias constitucionais, por razões de similitude de essência com o próprio processo penal.

Neste contexto, apresenta-se como imperiosa a convocação de dois preceitos constitucionais, a saber, o art.º 32.º e o art.º 269.º, especialmente, os n.ºs 10 e 3, respetivamente.

O art.º 32.º condensa os mais importantes princípios materiais do processo criminal, assomando como “a constituição processual criminal” (a expressão é empregue na página 515 por J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, artigos 1.º a 107.º, janeiro, 2007, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, pp. 515 a 526), pois que consagra as garantias de defesa do arguido em processo penal.

Dentre as mencionadas garantias da “constituição processual criminal” avultam os direitos de audiência e de defesa consagrados em benefício do arguido, e extensíveis a todos os processos de natureza sancionatória, em conformidade com o prescrito no n.º 10 do art.º 32.º. Realmente, é consabido hodiernamente que é “inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas. A defesa pressupõe a prévia acusação, pois que só há defesa perante uma acusação. A Constituição proíbe absolutamente a aplicação de qualquer tipo de sanção sem que ao arguido seja garantida a possibilidade de se defender. O direito de se defender é por muitos considerado um princípio natural de qualquer tipo de processo, uma exigência fundamental do Estado de Direito material.” (JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, março, 2005, Coimbra Editora, p. 363).

No caso dos processos sancionatórios disciplinares, o legislador constitucional reforçou a essencialidade dos referenciados direitos de audiência e de defesa, estabelecendo expressamente as garantias de audiência e de defesa no caso dos processos disciplinares públicos, nos termos do previsto no art.º 269.º, n.º 3. Como explicam JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, dezembro, 2007, Coimbra Editora, p. 623), “a audiência constitui um dos instrumentos da defesa (…). Sendo ela própria uma garantia do direito de defesa, a audiência é fundamental nesta, merecendo, por isso, menção e proteção autónoma”. Na mesma linha de entendimento situam-se J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, que defendem, a propósito do referido n.º 3 do art.º 269.º, que “o sentido útil da explicitação constitucional do direito de audiência e de defesa é o de se dever considerar a falta de audiência do arguido ou a omissão de formalidades essenciais à defesa como implicando a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa” (in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume II, agosto, 2010, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, p. 841).

Nas palavras de JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (Idem, ibidem), “A audiência constitui um dos instrumentos de defesa, a par de outros, como o de conhecer inteiramente as imputações disciplinares que lhe são feitas, o da assistência e patrocínio por advogado (artigo 20.º), o acesso ao processo (artigo 268.º, n.ºs 1 e 2), o direito de não declarar contra si próprio, o direito de oferecer e/ou requerer meios de prova pertinentes, o de não ter de provar a sua inocência. Sendo ela própria uma garantia do direito de defesa, a audiência é fundamental nesta, merecendo, por isso, menção e proteção autónoma.”

Importa salientar, neste contexto, que o próprio RD agora em análise estabelece a aplicação do estatuto disciplinar aplicável às relações de emprego público como direito subsidiário para efeitos de determinação da responsabilidade disciplinar e da tramitação do procedimento disciplinar, e desde que, em qualquer caso, sejam salvaguardados os princípios elencados no art.º 13.º deste RD (cfr. art.º 16.º, n.ºs 1 e 2 do RD).

Adicionalmente, é de notar que a Jurisprudência do Tribunal Constitucional é absolutamente clara na afirmação da fundamentalidade da garantia da audiência e defesa do arguido em processo disciplinar, decorrendo essa fundamentalidade, entre o mais, do consagrado nos art.ºs 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição, e significando que “é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas” (como declarado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 659/2006, n.º 180/2014, n.º 457/2015 e n.º 338/2018).

Ponderando cuidadosamente o que vem de se expender, é cristalina a conclusão de que o regime do procedimento disciplinar sumário é inconstitucional na medida em que oblitera qualquer possibilidade do arguido conhecer as imputações disciplinares que lhe são dirigidas e sobre as mesmas emitir pronúncia antes do proferimento da decisão disciplinar.

Com efeito, e como se descreveu antecedentemente, nos termos que derivam do estatuído do art.º 214.º do RD, não só está explicitamente afastada a audiência do arguido antes de ser proferida a decisão punitiva, como a própria tramitação do procedimento disciplinar sumário não permite enxertar ou acomodar qualquer ato procedimental concretizador daquela garantia constitucional, como dimana do exame do disposto nos art.ºs 257.º a 262.º do RD. O que implica que o arguido apenas conhece a existência de imputações disciplinares contra si no momento em que é notificado da própria decisão disciplinar, e sem que tenha tido qualquer hipótese de esgrimir uma defesa em momento anterior ao daquela notificação.

Quer tudo isto significar, portanto, no que concerne ao procedimento disciplinar sumário, que a norma plasmada no art.º 214.º do RD, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da edição do ato punitivo, é materialmente inconstitucional, por violação dos direitos fundamentais de audiência e de defesa, preceituados nos art.ºs 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.

Sendo assim, é dever deste Tribunal recusar a aplicação ao caso posto da aludida norma vertida no art.º 214.º do RD, na parte em que exclui e oblitera a audiência do arguido antes da promanação do ato punitivo

(…)

Realmente, o dito art.º 13.º, al. f) consagra, como um dos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, a presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga (…), enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa.

Esta presunção de veracidade é igualmente aplicada em procedimento disciplinar sumário, atento o prescrito no art.º 213.º, n.º 1, al. b) e n.º 3 do RD, e subjaz ao regime restritivo da realização de diligências complementares em sede de procedimento sumário, descrito no art.º 260.º do mesmo RD.

Ora, como já referimos supra, a consagração desta presunção legal, de veracidade dos factos constantes nos relatórios dos árbitros e da equipa de arbitragem, não tem sido isenta de críticas, que se fundam essencialmente na constatação de um certo modo de atuação da Recorrida.

Seja como for, no que concerne à consagração de presunção de veracidade dos factos contidos em determinados documentos elaborados por determinados agentes, no domínio penal e sancionatório, o Tribunal Constitucional já trilhou, em vários Acórdãos, uma posição firme no sentido da sua admissibilidade (entre outros, Acórdãos n.º 87/87, n.º 276/2004, n.º 211/2017 e n.º 338/2018).

Com efeito, a admissibilidade do valor reforçado de determinados documentos, quanto aos factos aí descritos e provenientes da direta perceção dos agentes que elaboram os mencionados documentos, é já questão trabalhada e pacificada pelo Tribunal Constitucional a propósito do valor probatório dos autos de notícia.

Realmente, no Acórdão n.º 87/87, a Colenda Instância Constitucional afirmou, além do mais, o que se segue”(…)”

Ou seja, o Tribunal Constitucional não descortinou qualquer violação dos direitos de defesa, ou do princípio da presunção da inocência, na consagração legal daquele valor reforçado para os autos de notícia.

Por outro lado, também as presunções legais são admissíveis em processos sancionatórios, consubstanciando-se em normas criadas pelo legislador que estabelecem uma relação entre um facto conhecido (provado) e um facto desconhecido ou incerto, inferindo este último a partir daquele (Acórdão n.º 338/2018). Refira-se que, “a presunção legal opera uma inversão do ónus da prova, desonerando desta, aqueles que têm a presunção a seu favor” (Acórdão n.º 211/2017), sendo que, “por regra, as presunções legais estabelecem uma verdade presumida (não provada) que poderá vir a ser infirmada mediante prova em contrário- presunções ilidíveis ou iuris tantum (…)” (Acórdão n.º 338/2018).

Trazendo estes ensinamentos para o regime jurídico regulamentar que enforma o caso que agora nos ocupa, verifica-se que, em boa verdade, subsiste uma certa similitude substancial entre o valor reforçado de que beneficiam os autos de notícia e a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, prevista esta no art.º 13.º, al. f) do RD. Tal similitude conduz-nos à conclusão de que a presunção de veracidade agora em exame, na medida em que traduz mera prova prima facie, suscetível de ser abalada com a demonstração de factualidade diversa, não encerra em si, automaticamente, qualquer afronta aos princípios da defesa, do contraditório, do processo equitativo, da culpa e da presunção da inocência.

Realça-se, porém, que a conformidade constitucional da estipulação daquela presunção de veracidade impõe, impreterivelmente, que ao arguido seja concedida a possibilidade de poder esgrimir as suas armas defensivas, por forma a contraditar os factos presumidos, ou os factos descritos nos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga. É que, a não ser assim, tal implicaria assumir que os factos presumidos, ou cuja veracidade se presume, decorrem de uma presunção inilidível, uma vez que tais factos estariam definitivamente fixados a partir da sua consignação nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, e sem que se considere, sequer, a possibilidade de demonstração de uma realidade diversa (Acórdão n.º 338/2018).

Ora, aqui reside, precisamente, o busílis do caso vertente.

Como se já expendeu, a decisão punitiva em crise foi proferida em sede de procedimento disciplinar sumário, sendo que nesta forma procedimental não há lugar- como explanado antecedentemente- à audiência do arguido em momento prévio à emissão do ato punitivo. Mas mais. O arguido apenas tem conhecimento das imputações disciplinares que sobre si recaem no momento em que é notificado da própria decisão punitiva, não tendo qualquer oportunidade, antes desta ser proferida, de manifestar a sua posição, contraditar factos ou apresentar quaisquer meios de prova.

Esta constatação tem como consequência a conclusão, irremediável, de que os factos constantes dos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, na medida em que não podem ser contraditados antes da produção do ato punitivo, derivam, em bom rigor, de uma presunção inilidível, estando, na realidade, definitivamente fixados com a respetiva inserção nos aludidos relatórios.

Aqui chegados, resta saber, pois, se a presunção de veracidade dos factos contidos nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, prevista no art.º 13.º, al. f) do RD e quando aplicada em sede de procedimento disciplinar sumário, entra em confronto com os princípios da presunção da inocência e da culpa.

A resposta a esta indagação deve ser, quanto a nós, positiva.

É que, o estabelecimento de uma presunção inilidível de veracidade dos factos relatados, com a inerente fixação dos mesmos como provados, pode, em bom rigor, converter uma presunção de factos numa presunção inilidível de autoria da infração.

Deste modo, a presunção dos factos contidos nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga pode impor a responsabilidade do Clube de Futebol, independentemente da sua real participação nos factos e mesmo na ausência de qualquer ligação causal ao comportamento adotado por um espectador, supostamente demonstrativo do incumprimento de um dever por banda do mesmo Clube.

Face a isto, impõe-se concluir que, no domínio do procedimento disciplinar sumário (descrito, essencialmente, nos art.ºs 257.º a 262.º do RD), a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, por traduzir uma presunção inilidível de factos, viola o conteúdo mínimo do princípio da culpa (em termos ilustrativos, sobre presunções legais inilidíveis, incluindo de autoria, veja-se o Acórdão n.º 338/2018 do Tribunal Constitucional).

(…)

Quer tudo isto significar, portanto, que a norma plasmada no art.º 13.º, al. f) do RD, na medida em que contém uma presunção inilidível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga, é materialmente inconstitucional quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, preceituados no art.ºs 32.º, n.ºs 10 e 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como por violação dos direitos ao contraditório e ao processo equitativo, previstos no art.º 20.º, n.º 4 da mesma Lei Fundamental. Pelo que, é dever deste Tribunal recusar a aplicação ao caso posto da norma vertida no art.º 13.º, al. f) do RD, por a mesma padecer de inconstitucionalidade material quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário.»

Assim, ao abrigo do disposto no art. 663.º, n.º 5, in fine, do CPC ex vi art. 140.º do CPTA, e por remissão para a fundamentação do acórdão deste TCA Sul supra citado e, em parte, já transcrito, haverá que conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e, desaplicando, no caso em apreço, quando interpretados, como o foram na decisão recorrida:

i) o art. 214.º do Regulamento Disciplinar, suprimindo a audiência do arguido em momento anterior ao da prolação do ato punitivo, por violação dos direitos fundamentais de audiência e de defesa, preceituados nos art.s 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa; e

ii) o art. 13.º, al. f), do mesmo Regulamento, aplicando-o no âmbito do processo sumário, por violação do conteúdo mínimo do princípio da culpa, bem como os princípios da presunção da inocência, do contraditório e do processo equitativo, tendo presente o disposto nos art.s 32.º, n.º 2 e 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.


Em face do que, fica prejudicado o conhecimento dos demais erros de julgamento invocados, pois que a decisão tomada por este tribunal determina a revogação do acórdão recorrido e, consequentemente, a declaração de nulidade da decisão disciplinar de 02.10.2018 do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Recorrida, tendo de repetir-se todo o procedimento disciplinar sumário, cumprindo-se o contraditório do arguido, seguindo-se depois os demais trâmites legais.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso e, ao abrigo do disposto no art. 663.º, n.º 5, in fine, do CPC ex vi art. 140.º do CPTA, por remissão para a fundamentação do acórdão supra citado, cuja cópia (extraída da base de dados) se anexa, decidir o seguinte:

a) Revogar o acórdão de 07.01.2020, proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto;

c) Declarar a nulidade da decisão disciplinar de 02.10.2018, proferida pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol.

Custas pela Recorrida em ambas as instâncias.

Registe e notifique, com cópia do acórdão deste TCA Sul de 10.12.2019, P. 4/19.0BCLSB, considerando-se que no presente processo, porque urgente, os respetivos prazos não estão suspensos para a prática de atos processuais que possam realizar-se via SITAF (cfr. art. 7.º, n.º 7, alínea a), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 06.04.).

Notifique o DMMP para os devidos efeitos.

Lisboa, 16.04.2020.


Dora Lucas Neto

Pedro Nuno Figueiredo

Ana Cristina Lameira


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(1) Ambos disponíveis em www.dgsi.pt