Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:04625/08
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:02/26/2015
Relator:CATARINA JARMELA
Descritores:ARTIGO 690º-A, DO CPC - RESPONSABILIDADE POR ACTO LÍCITO - ARTIGO 9º DO DL 48 051 – PREJUÍZO ESPECIAL E ANORMAL - VACINAÇÃO
Sumário:I – Do art. 690º-A, do CPC de 1961, decorre que a impugnação da decisão relativa à matéria de facto obriga ao cumprimento de ónus a cargo do recorrente, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa um julgamento “ex novo” e global dessa matéria, mas sim a possibilidade do tribunal de 2ª instância fiscalizar os erros concretos do julgamento já realizado.

II - O não cumprimento dos ónus especiais de alegação previstos no referido art. 690º-A, é cominado com a rejeição imediata do recurso, ou seja, a mesma não é precedida de qualquer despacho de aperfeiçoamento, o que se compreende, já que os ónus impostos ao recorrente pelo referido normativo legal visam o corpo das alegações (com excepção do previsto na al. a) do seu n.º 1, o qual também visa as conclusões das alegações), insusceptível, no nosso ordenamento processual, de ser aperfeiçoado por via de convite.

III – São pressupostos da responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, por actos lícitos praticados no domínio da gestão pública, prevista no art. 9º n.º 1, do DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967:
i) - um acto lícito do Estado ou de outra pessoa colectiva pública;
ii) - praticado por motivo de interesse público;
iii) - um prejuízo especial e anormal;
iv) - a existência de nexo de causalidade entre tal acto e o prejuízo causado.

IV – Por prejuízo especial entende-se aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma específica posição relativa, e por prejuízo anormal aquele que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração.

V – A questão da anormalidade do dano é melindrosa, sendo que a jurisprudência tem lançado mão da teoria do gozo standard como critério operativo para fazer a determinação do sacrifício relevante, teoria que parte da garantia do gozo médio ou standard dos bens que pertencem os particulares, de tal forma que será anormal o prejuízo que se traduz numa ablação total ou parcial desse gozo ou fruição normal da coisa.

VI – É especial e anormal o dano que se traduz em crias mortas e nados mortos e que decorre de vacinação do gado bovino propriedade do recorrido, tendo em vista o combate à brucelose.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: *
I – RELATÓRIO
José ………….. intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada acção administrativa comum, sob a forma ordinária, contra a Região Autónoma dos Açores (Secretaria Regional de Agricultura e Pescas), na qual peticionou a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de € 38 730, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data da citação.

Por decisão de 30 de Agosto de 2008 do referido tribunal, a presente acção foi julgada parcialmente procedente e, consequentemente, a ré condenada a pagar ao autor a quantia de € 7 072, acrescida de juros vencidos no montante de € 332 e de juros vincendos, calculados à taxa legal, até efectivo pagamento.

Inconformada, a ré interpôs recurso jurisdicional para este TCA Sul, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:

1ª) Os agentes da recorrente actuaram de acordo com o plano de erradicação da brucelose, aprovado, e na sua execução, o qual previa a vacinação sistemática do gado bovino. Por outro lado;

2ª) A vacina RB51 mostra-se aprovada pela Comissão das Comunidades Europeias por decisão de 15 de Julho de 2002, publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias de 23 de Julho de 2002, para ser aplicada ao gado bovino, designadamente para a "imunização de fêmeas da espécie bovina (...) contra a brucelose bovina" (Cfr. artigo 2°, alínea a). Por outro lado ainda;

3ª) As consequências abortivas da vacina em causa, são da ordem dos 0 a 2%, percentagem que, pela sua expressão mínima, revela que tais consequências são perfeitamente marginais e por isso desprezíveis, não obrigando a especiais cuidados de abstenção na sua aplicação. Ora;

4ª) Nos termos do disposto no artigo 6° do Decreto-Lei n.º 48051, de 21.11.67, são considerados actos ilícitos, para efeitos de responsabilidade civil por parte dos entes públicos, os que "violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos que infrinjam estas normas e os princípios ou ainda regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração". Acontece que;

5ª) A actuação dos agentes da recorrente - não apenas - não violou quaisquer normas legais ou regulamentares, ou princípios ou regras, que devessem ser observadas, pelo que não constitui o acto ilícito, como e;

6ª) Ao contrário, pelas razões invocadas nas presentes alegações de recurso - e sintetizadas nas conclusões 1ª e 2ª, supra, acrescendo que as mesmas se inseriam no programa de combate e erradicação da brucelose do gado bovino na Região Autónoma dos Açores e do imposto pelo Decreto Lei nº 244/2000, de 27/9 - pelo que constituiu um acto lícito. E;

7ª) Assim sendo, só haveria lugar à obrigação de indemnizar nos termos do n.º 1 do art.º 9° do citado Decreto-Lei 48051. Ou seja;

8ª) Se mediante tal acto, a recorrente, tivesse imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais. Porém;

9ª) Tal não se verificou, pois que, o dano eventualmente sofrido, pelo recorrido, não ultrapassa o risco normal de qualquer outro proprietário de gado bovino, objecto de vacinação pela vacina RB51, para a erradicação da brucelose.

10ª) Violou, por conseguinte, a sentença recorrida, o estatuído nos artigos 6° e 9°, nº 1 do Decreto-Lei n.º 48051, de 21.11.67, vigente à data dos factos.

Sem prescindir,

11ª) Como resulta dos factos assentes, os agentes da recorrente não impuseram ao recorrido a efectivação da vacinação do seu gado, limitando-se a informar que, não se fazendo a vacinação em causa, o recorrido não teria direito a subsídio por morte de animais (em conformidade, aliás, com o estabelecido n.º 4 do art.º 2° da Portaria 48/2004, de 17 de Junho).

12ª) A vacinação do seu gado bovino, foi consentida pelo lesado, e como se viu, resulta dos factos provados, não imposta pela recorrente. Ora;

13ª) Estabelece o 340°, n.º 1 do Código Civil que, o acto (no caso supostamente) lesivo, é lícito, quando consentido pelo lesado. Deste modo;

14ª) Face à licitude do acto imputado à recorrente como acto lesivo, em virtude de com ele o recorrido ter concordado, só haveria lugar à obrigação de indemnizar nos já invocados e apertados termos do n.º 1 do art.º 9° do citado Decreto-Lei 48051, que, como se alegou já, não se verificam no caso sub Júdice.

15ª) Pelo que violou a sentença recorrida, ainda, o disposto no nº1 do artigo 340° do Código Civil.

Sempre sem prescindir;

16ª) A douta sentença recorrida, limita-se a afirmar conclusivamente, a existência de um nexo causal típico entre a vacinação e o aumento de nadas mortos (...). porém sem indicar quais as premissas que possam válida e seguramente, fundamentar tal conclusão. Acresce que;

17ª) Como pode constar-se dos relatórios técnicos juntos aos autos "podem existir numerosas causas patológicas de abortos, como é o caso de causas físicas, alimentares, tóxicas, infecciosas (fúngicas, bacterianas ou víricas) ou parasitárias, assim como causas de origem desconhecida". Deste modo;

18ª) Se a mera possibilidade de a vacina RB51, poder em escassíssimos casos, (de 0 a 2%) provocar aborto nos animas vacinados gestantes, era já insuficiente para a conclusão da existência de um nexo de causalidade entre tal vacina e os abortos verificados. A verdade;

19ª) É que tal "conclusão" é ainda seriamente abalada pela referência evidenciada na conclusão 17ª (supra) feita às outras causas possíveis de aborto. E;

20°) A dúvida sobre a existência de um nexo causal entre a vacina ministrada e os abortos verificados, sempre teria de ser resolvida contra o autor recorrido.

21ª) Decidindo em contrário a douta sentença recorrida violou o estatuído no nº 1 do artigo 342° do Código Civil.

De resto e acrescendo;

22ª) Nos termos do referido DL nº 244/2000, de 27/9, "É obrigatória a notificação do detentor dos animais, de todos os abortos ocorridos em fêmeas da espécie (...)", facto que o autor não alegou sequer ter praticado e que visaria precisamente a realização "de inquérito epidemiológico e colheita de material para diagnóstico bacteriológico" (artigo 7°, nºs 1 e 2), com vista ao apuramento, fundamentado (técnica e cientificamente) da causa dos abortos. Isto é;

23ª) No mínimo - e por culpa (omissiva) do autor permanece a já referida dúvida sobre o nexo de causalidade entre a vacinação efectuada pelos serviços da recorrente e os abortos verificados, e tal dúvida tem de, necessariamente, ser resolvida contra o autor recorrido. (artigo 342° do CC, já invocado).

Nestes termos e no que mais doutamente se suprirá, deve julgar-se procedente o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, e substituindo-se por outra, que absolva a Ré, ora recorrente, do pedido, como é de direito e de JUSTIÇA.”.

O recorrido, notificado, apresentou contra-alegações, onde pugnou pela improcedência do recurso.

O Ministério Público junto deste Tribunal notificado para os efeitos do disposto no art. 146º n.º 1, do CPTA, não emitiu parecer.


II – FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença recorrida foram dados como assentes os seguintes factos:
(1) O autor é empresário agrícola, sendo proprietário de gado bovino, nomeadamente vacas leiteiras.
(2) A 19 de Julho de 2004, responsáveis dos Serviços de Desenvolvimento Agrário de S. Miguel (Direcção Regional do Desenvolvimento Agrário, Secretaria Regional da Agricultura e Pescas, Região Autónoma dos Açores), dirigiram-se à exploração pecuária do autor e informaram-no que teriam de retirar sangue ao seu gado bovino, informando-o de que teria obrigatoriamente de vaciná-lo com RB51, vacina aplicável no combate à brucelose.
(3) Acrescentaram os responsáveis dos Serviços de Desenvolvimento Agrário ao autor que se a sua manada não fosse vacinada naquela altura não receberia qualquer subsídio.
(4) A equipa dos Serviços de Desenvolvimento Agrário de S. Miguel era constituída por um médico-veterinário, Dr. Frank …………., e dois outros funcionários, Pedro ……….. e um tal Roberto.
(5) Naquele mesmo dia e momento, os responsáveis dos Serviços vacinaram toda a manada, 155 (cento e cinquenta e cinco) cabeças de gado, sendo 103 (cento e três) com mais de 18 (dezoito) meses de idade.
(6) Um litro de leite ao produtor é pago a cerca de € 0,27 (vinte e sete cêntimos).
(7) Quase todas as vacas leiteiras da manada do autor se encontravam prenhas, na altura da inoculação da vacina, para o que foram avisados os funcionários dos Serviços.
(8) A partir de Setembro de 2004 e até fins de 2004, em consequência da vacinação, o número de vacas e novilhas que tiveram nados mortos e crias que vieram a morrer no primeiro mês de vida, aumentou em cerca de 100% relativamente ao que era usual, estimando-se em 5 nados mortos, mais 3 do que o normal anual (a média dos nados mortos nos anos de 2003 e 2005 a 2007 foi de 1,75), e em 12 crias que morreram nos 30 dias que se seguiram ao parto, cerca de metade das 22 que nesse ano morreram nessas condições e em número ligeiramente acima da média das que por essa razão todos os anos morreram (a qual, por referência aos já referidos anos, foi de 9,75).
(9) As vacas com os registos PT ………, PT ………., PT …….., PT ….., PT ………., PT ………, PT ………., PT ………. e PT ……… tiveram crias que vieram a morrer nos primeiros 30 dias após o seu nascimento e as referidas com os registos PT ……. e PT ………. tiveram nados mortos.
(10) As novilhas com os registos PT 7 …………, PT ……… e PT ……… tiveram crias que vieram a morrer nos primeiros 30 dias após o seu nascimento e as com os registos PT …………, PT ……… e PT ………… tiveram nados mortos.
(11) As crias referidas correspondiam a 11 machos e a 6 fêmeas.
(12) Cada cria macho vale € 70,00 (setenta euros).
(13) As crias fêmeas que foram abortadas serviriam para substituição das vacas leiteiras que fossem sendo abatidas, pelo que a sua valorização terá de corresponder a metade do valor de uma vaca leiteira.
(14) Sendo que estas valem no mercado € 1.250,00 (mil e duzentos e cinquenta euros) cada, a metade desse valor será de € 625,00 (seiscentos e vinte e cinco euros).
(15) Das 12 vacas que tiveram crias que morreram nos primeiros 30 dias de vida, as com os registos PT ………., PT …………, PT ……….. e PT …………. tiveram de ser abatidas no matadouro, em 2005, por não conseguirem emprenhar, tendo sido pagas a cerca de 350,00 € cada.
(16) Uma vaca leiteira vale no mercado cerca de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros) e uma novilha cerca de € 1.000,00 (mil euros).
(17) As vacas supra referidas que tiveram de ser abatidas, enquanto não o foram, produziram em média cerca de metade do leite que normalmente produziriam, sendo que as outras vacas e as novilhas referidas vieram a ser abatidas por outras razões ou a emprenhar normalmente em 2005 ou princípios de 2006.
(18) Em um ano normal, uma vaca leiteira produz 7.000 (sete mil) litros de leite e uma novilha 6.000 (seis mil) litros de leite.
(19) As despesas com as cabeças de gado que tiveram nados mortos e crias que morreram no primeiro mês de vida estimaram-se em cerca de 3.000,00 €.
(20) Os custos fixos de produção do leite correspondem a cerca de 60% do preço pelo qual o produtor o vende.
*
Presente a factualidade antecedente, cumpre entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.

As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar:

- se a decisão recorrida incorreu em erro na fixação da matéria de facto dada como provada;

- se a decisão recorrida enferma de erro ao ter julgado parcialmente procedente a presente acção, concretamente ao ter concluído pela existência de um facto ilícito ou, pelo menos, ao não ter considerado o mesmo justificado por consentimento do lesado;

- se a ré, ora recorrente, (não) pode ser responsabilizada nos termos do art. 9º, do DL 48 051, maxime se os prejuízos causados são anormais e se verifica o pressuposto relativo ao nexo de causalidade (cfr. alegações de recurso e respectivas conclusões, supra transcritas).

Passando à apreciação da questão respeitante ao alegado erro da decisão sobre a matéria de facto

Dispõe o art. 690º-A, do CPC de 1961, na redacção do DL 183/2000, de 10/8, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto”, o seguinte:
1 - Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522º-C.
(…)” (sublinhados nossos).

Deste normativo legal decorre que a impugnação da decisão relativa à matéria de facto obriga ao cumprimento de ónus a cargo do recorrente.

Como explicita Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª Edição, 2003, pág. 157, em anotação ao transcrito art. 690º-A:
(…) Impugnando o recorrente a decisão sobre a matéria de facto, encontra-se sujeito a alguns ónus que deve satisfazer, sob pena de rejeição do recurso, de harmonia com o disposto no art . 690.°-A, n.°s 1 e 2.
São eles:
a) Especificar os concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados;
b) Especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão diversa da recorrida sobre os pontos impugnados da matéria de facto;
c) Indicar os depoimentos em que se baseia, por referência ao assinalado na acta, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados.
(…)”.

O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa um julgamento “ex novo” e global dessa matéria, mas sim a possibilidade do tribunal de 2ª instância fiscalizar os erros concretos do julgamento já realizado.

Dupla jurisdição não quer dizer forçosamente repetição.

É o que o legislador pretendeu assinalar no preâmbulo (o preâmbulo não possui força vinculativa, mas não deixa de constituir um elemento histórico importante na função de interpretar o texto legal) do DL 39/95, de 15/2 – diploma que veio regular a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida, aditando ao CPC o art. 690º-A, posterior art. 685º-B e actual art. 640º -, quando aí consignou que o duplo grau de jurisdição visava «apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.
Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (…) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.».

O não cumprimento dos ónus especiais de alegação previstos no referido art. 690º-A é cominado, no corpo do seu n.º 1 e no seu n.º 2, com a “rejeição” do recurso, o que significa, em comparação com o que dispõe o art. 690º, do CPC de 1961 (quanto aos recursos da matéria de direito), que a mesma não é precedida de qualquer despacho de aperfeiçoamento - neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 9.2.2012, proc. n.º 1858/06.5 TBMFR.L1.S1, Acs. da Rel. do Porto de 24.2.2014, proc. n.º 664/10.7 TBLSD.P1, e 15.9.2014, proc. n.º 11/10.8 TBGDM.P1, Acs. da Rel. de Guimarães de 14.3.2013, proc. n.º 1472/08.0 TBFLG.G1, e 19.6.2014, proc. n.º 1458/10.5 TBEPS.G1, e Ac. do TCA Sul de 8.1.2015, proc. n.º 5142/11, e, na doutrina, Fernando Amâncio Ferreira cit., pág. 157, nota 333, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª Edição, 2004, pág. 585, nota III, e José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, 2003, pág. 53.

Compreende-se a rejeição imediata do recurso nessa situação, já que os ónus impostos ao recorrente pelo art. 690º-A n.ºs 1 e 2 visam o corpo das alegações (com excepção do previsto na al. a) do seu n.º 1, o qual também visa as conclusões das alegações), insusceptível, no nosso ordenamento processual, de ser aperfeiçoado por via de convite – neste sentido, Fernando Amâncio Ferreira cit., pág. 157, nota 333, e, na jurisprudência, entre outros, Ac. da Rel. do Porto de 24.2.2014, proc. n.º 664/10.7 TBLSD.P1, e Ac. da Rel. de Évora de 22.5.2014, proc. n.º 237/13.2 TMFAR.E1.

Assim, a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados;
d) Falta de referência ao assinalado na acta – início e termo da gravação -, quando os meios probatórios em que o recorrente se funde tenham sido gravados – também neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 23.2.2010, proc. n.º 1718/07.2TVLSB.L1.S1, Ac. da Rel. do Porto de 21.3.2013, proc. n.º 731/09.0 TBMDL.P1, Acs. da Rel. de Lisboa de 17.9.2013, proc. n.º 450/08.4 TBSTB-B.L1-1, e 9.7.2014, proc. n.º 1021/09.3 T2AMD.L1-1, e Ac. da Rel. de Coimbra de 19.12.2012, proc. n.º 2312/11.9 TBLRA.C1.

Retomando o caso vertente, cumpre verificar se a recorrente logrou cumprir a sua obrigação processual.

Ora, verifica-se que a recorrente nas suas alegações de recurso não dá cumprimento ao ónus previsto no art. 690º-A n.º 1, al. b), o que constitui um obstáculo à reapreciação da matéria de facto que foi objecto de impugnação e implica, nos termos da mencionada norma, a imediata rejeição do mesmo, nesta parte.

Com efeito, do teor da 16ª conclusão da alegação de recurso percebe-se que a recorrente pretende impugnar o facto dado como provado sob o n.º (8), concretamente o segmento “em consequência da vacinação”.

De todo o modo, omite - no corpo da alegação de recurso (sendo certo que as 17ª a 23ª conclusões da alegação de recurso - as quais se reportam a esta questão - nada acrescentam ao que consta do corpo da alegação de recurso) - de todo a indicação de quais os concretos meios de prova constantes do processo que imporiam decisão de facto diversa da recorrida, antes procedendo a uma indicação genérica (“dos relatórios técnicos juntos aos autos”) que manifestamente não cumpre o apontado dever de especificação.

Assim sendo, não se poderá conhecer do recurso interposto na parte em que impugna a decisão da matéria de facto - por falta de cumprimento do ónus prescrito no art. 690º-A n.º 1, al. b), do CPC de 1961.

Nestes termos, improcede a invocação de erro da decisão da matéria de facto, ou seja, só os factos considerados provados pela 1ª instância - com a correcção que de seguida será efectuada - podem servir de fundamento à solução a dar ao litígio.

O facto (9) é rectificado, passando a ter a seguinte redacção:
(9) As vacas com os registos PT 31 207485, PT I 299073, PT I 299067, PT 8 92 492371, PT 6 92 492353, PT 7 92 492348, PT 2 92 492355, PT 8 92 449 825 e PT 9 92 488383 tiveram crias que vieram a morrer nos primeiros 30 dias após o seu nascimento e as referidas com os registos PT 4 92 416916 e PT 5 92 492349 tiveram nados mortos (este facto corresponde à resposta fiel dada ao facto 4º, da base instrutória – cfr. fls. 318, dos autos -, o qual foi consignado com lapsos na sentença recorrida, os quais são agora expurgados).

Por último cumpre apenas esclarecer, e no que respeita à falta de fundamentação alegada na 16ª conclusão da alegação de recurso, que, na verdade, não constam, nem tinham de constar, da sentença recorrida as razões pelas quais o facto acima descrito sob o n.º (8) foi dado como provado.

Efectivamente, e conforme decorre dos arts. 653º n.º 2 e 659º n.º 3, ambos do CPC de 1961, tal fundamentação não teria de constar da sentença, mas da resposta aos factos 2º e 3º, da base instrutória, o que foi feito – cfr. fls. 319 a 321, dos autos.

Passando à análise da questão relativa ao alegado erro da decisão recorrida ao ter julgado parcialmente procedente a presente acção

A recorrente defende que a decisão ora sindicada é ilegal por violação do art. 6º, do DL 48 051, pois considera que não se provou a existência de qualquer facto ilícito ou, a existir, o mesmo encontra-se justificado por consentimento do lesado.

Apreciando.

A sentença recorrida condenou a recorrente a pagar ao recorrido a quantia de € 7 072, acrescida de juros vencidos – no montante de € 332 – e vincendos.

Tal condenação foi proferida ao abrigo dos arts. 2º e 6º, do DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967, e assentou na prática de um facto ilícito e culposo por parte da recorrente que causou tipicamente danos ao recorrido.

Na decisão recorrida escreveu-se a este propósito designadamente o seguinte:

1. Dispõe o artigo 483°, nº 1, do Código Civil que (…) São, assim, pressupostos da responsabilidade civil pela prática de facto ilícito, a ilicitude do facto, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Há naquele preceito uma parcial intersecção entre os conceitos de ilicitude e de culpa. Na verdade, a constatação da ilicitude da ofensa directa a um direito é sempre condicionada pelo juízo a emitir sobre a culpa. Pelo que se poderá concluir que a primeira parte daquela previsão respeitante à ilicitude (violação ilícita do direito de outrem) se reconduz à violação culposa do direito de outrem. Estabelece-se, no contrapolo, como que uma presunção de que actua com culpa quem viola o direito de outrem.

Há, no entanto, uma afinação desses pressupostos no que concerne à responsabilidade por actos de gestão pública. Assim, nos termos do n.º 1 do artigo 2° do Decreto-lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967 (…) É patente o paralelismo entre este preceito e o do já referido artigo 483°, nº 1.

Entretanto, o artigo 6° do mencionado Decreto-lei nº 48.051 considera ilícitos, para efeitos do diploma (…) uma formulação, pois, bastante mais lata e abrangente do conceito de ilicitude.

Por seu turno, o artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa (…)

E a gestão pública consiste, como é sabido, na actividade de órgãos, entes ou agentes públicos, detentores e no exercício de poderes públicos, prosseguindo interesses públicos e com observância de normas de direito público, isto é, que aparecem numa posição de jus imperii face aos particulares.

2. Como supra referi, a simples violação do direito de outrem constitui uma quase presunção de culpa, na medida em que impõe ao violador a obrigação de justificar esse seu acto, afastando o juízo de censurabilidade que lhe está imanente. (…) É na apreensão dessa intersecção que, na linguagem vulgar, se reduz ao conceito de culpa todos os pressupostos da responsabilidade civil. Na verdade, o "culpado" não é mais do que o autor do acto ilícito, culposo e tipicamente determinante do dano. Correspondendo a esta noção menos analítica da responsabilidade civil, consagra-se aliás no direito francês o conceito de faute, figura que abrange todos aqueles pressupostos.

(…) Ora, retomando o fio condutor, tal representará uma ofensa ilícita e culposa do património do autor, na ausência de justificação que satisfatoriamente ilida essa presunção.

O que nos remete para questão fulcral que foi abundantemente discutida por autor e ré. Qual seja a bondade da opção da ré pela vacinação em massa, em detrimento de uma vacinação faseada, que poupasse os animais em fase adiantada de gravidez. Ora, incumbindo à ré a demonstração de que o acto danoso se justificava, era sobre ela que impendia o ónus de demonstrar que só a vacinação simultânea de todos os animais, mesmo os prenhes, era eficaz ao fim pretendido com a vacinação. O que não logrou. (…)

Pelo exposto, terei de concluir que a conduta dos agentes da ré, ilícita e culposa, causou tipicamente danos ao autor.”.

Do ora transcrito decorre que a sentença recorrida considerou que a violação/ofensa por parte da recorrente ao direito/património do recorrido implica uma quase presunção de culpa, cumprindo à recorrente justificar esse seu acto, afastando o juízo de censurabilidade que lhe está imanente.

Este entendimento viola a lei, conforme se passa a demonstrar.

Ao tempo em que decorreram os factos integradores da causa de pedir desta acção, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, no domínio dos actos de gestão pública, regia-se pelo disposto no DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967 (entretanto revogado pelo art. 5º, da Lei 67/2007, de 31/12).

Estatui o art. 2º n.º 1, do citado DL 48 051, que:
O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.

Embora este diploma não disponha de uma regulamentação acabada no domínio da responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, nomeadamente quanto ao nexo de causalidade, tem a jurisprudência do STA reconhecido que, por razões de ordem sistemática, se impõe nesse âmbito também o recurso às previsões do Cód. Civil (cfr. Ac. do STA de 21.4.1994, in AD 400-399).

A jurisprudência do STA tem, assim, decidido, de forma uniforme e pacífica, que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas e dos titulares dos seus órgãos e dos seus agentes, por facto ilícito de gestão pública, assenta, no essencial, nos pressupostos da responsabilidade civil previstos nos arts. 483º e ss., do Cód. Civil – neste sentido, entre outros, Acs. do STA de 13.10.1998, 26.9.02, 6.11.02, 18.12.02, 24.9.2003, 17.3.2005 e de 14.4.2005, procs. n.ºs 43.138, 487/02, 1.331/02, 1.683/02, 1.864/02, 230/05 e 86/04, respectivamente.

Assim, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas e dos titulares dos seus órgãos e dos seus agentes, por facto ilícito e culposo de gestão pública, assenta nos seguintes pressupostos:
a) O facto do órgão ou agente que se traduz num comportamento voluntário, sob a forma de acção ou omissão;
b) A ilicitude;
c) A culpa, nexo de imputação ético-jurídica do facto ao lesante que pode revestir a forma de dolo ou mera culpa e que, na forma de mera culpa (negligência), traduz a censura dirigida ao autor do facto por não ter usado da diligência que teria um funcionário ou agente típico;
d) O dano, como lesão de ordem patrimonial ou não patrimonial;
e) O nexo de causalidade entre a conduta e o dano, apurado segundo a teoria da causalidade adequada.

Quanto ao pressuposto da ilicitude dispõe o art. 6º, do DL 48 051, o seguinte:
Para os efeitos deste diploma, consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.”.

A formulação deste art. 6º levou alguns autores a sustentar que “quanto aos actos jurídicos, incluindo portanto os actos administrativos, (…) a ilicitude coincide com a ilegalidade do acto e apura-se nos termos gerais em que se analisam os respectivos vícios” - cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 10ª ed. (4ª reimpressão), 1991, pág. 1225, e J. A. Dimas de Lacerda, Responsabilidade civil extracontratual do Estado (alguns aspectos), em Contencioso Administrativo – Breve Curso constituído por lições proferidas na Universidade do Minho por iniciativa da Associação Jurídica de Braga, 1986, pág. 248.

Porém, como adverte Gomes Canotilho (O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, 1974, págs. 74 a 78), devemos precaver-nos “contra a completa equiparação da ilegalidade à ilicitude, possivelmente sugerida pela redacção do citado artigo 6º do Decreto-Lei nº 48 051”, e ter presente que no art. 2º desse diploma – supra transcrito - se exige, para a afirmação da responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas, a ocorrência de “ofensas dos direitos (de terceiros) ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses”.

Este entendimento viria a ser acolhido no art. 21º (hoje art. 22º), da Constituição da República Portuguesa, que só responsabiliza civilmente o Estado pelas acções ou omissões praticadas pelos seus órgãos, funcionários ou agentes no exercício das suas funções e por causa desse exercício “de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.

E é este entendimento que foi reiteradamente afirmado pela jurisprudência, como sucedeu, designadamente, nos Acs. do STA de 1.7.97, proc. n.º 41 588, e 4.11.98, proc. n.º 40 165, tendo-se naquele decidido que “não basta a verificação de uma qualquer ilegalidade para haver ilicitude”, exigindo-se para o efeito, “pelo menos que o fim das normas violadas seja também o da defesa do lesado, que haja violação de direitos subjectivos e outras posições jurídicas subjectivas que justifiquem o pagamento de uma indemnização”.

Assim, a definição de ilicitude do art. 6º, do DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967, tem de ser lida à luz do art. 22º, da Constituição da República Portuguesa, que consagra a responsabilidade civil do Estado e das demais entidades públicas por acções ou omissões “de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”, ou em articulação com o art. 2º, do citado DL 48 051.

Dito por outras palavras, o conceito de ilicitude não se reconduz a um comportamento objectivamente antijurídico – violação de normas legais ou regulamentares, de princípios gerais ou de regras de ordem técnica e de prudência (ilicitude objectiva) -, exigindo também um desvalor da conduta quanto ao resultado, traduzido na violação de um direito ou interesse do particular (ilicitude subjectiva), cabendo ao autor, ora recorrido, o ónus de provar este pressuposto da ilicitude – nas vertentes objectiva e subjectiva -, nos termos do art. 342º n.º 1, do Cód. Civil.

Considerando que o caso dos autos configura uma actuação material, há ilicitude se a conduta da recorrente não tiver observado as normas legais e regulamentares, os princípios gerais aplicáveis ou as regras de ordem técnica e de prudência comum (ilicitude objectiva), das quais tenha resultado violação de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos do recorrido (ilicitude subjectiva).

Ora, na sentença recorrida julgou-se verificado o pressuposto relativo à ilicitude com base apenas na sua vertente subjectiva, tendo-se prescindindo, ilegalmente (pois, como acima explicitado, o ónus de provar este pressuposto, em ambas as suas vertentes, cabe ao recorrido), da sua vertente objectiva.

O facto alegadamente ilícito respeita à vacinação, em 19.7.2004, por funcionários da recorrente, de todo o gado bovino propriedade do autor, ora recorrido, com RB 51, vacina aplicável no combate à brucelose.

Está em causa, portanto e como acima referido, um acto material (vacinação), pelo que haverá ilicitude (objectiva) se o mesmo infringir normas legais e regulamentares, os princípios gerais aplicáveis ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum.

Ora, o recorrido não alega, e também não se detecta, que a vacinação do gado bovino, nomeadamente das vacas leiteiras prenhas, com RB 51 – aplicada com vista ao combate à brucelose - infringe normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis.

Além disso, dos factos provados nada resulta no sentido de que a vacinação do gado bovino do recorrido com RB 51 viola regras de ordem técnica e de prudência comum.

Efectivamente, provou-se que quase todas as vacas leiteiras da manada do recorrido encontravam-se prenhas – e que foi dado conhecimento desse facto aos funcionários da recorrente -, mas nada se provou no sentido de que tal actuação violou regras de ordem técnica e de prudência comum, ou seja, de que tais regras impunham que não se vacinassem as vacas leiteiras prenhas. Cumpre salientar que o facto de, em consequência da vacinação, terem ocorrido mortes não significa, só por si, que tenha havido violação de regras de ordem técnica e de prudência comum.

Tem, assim, razão a recorrente quando alega que a decisão recorrida viola o art. 6º, do DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967, pois não se provou a prática de qualquer facto (objectivamente) ilícito que lhe seja imputável.

Assim sendo, fica prejudicado o conhecimento da alegação da recorrente relativa à existência de consentimento do lesado – que se caracteriza como causa justificativa do facto -, pois a mesma só relevaria caso se concluísse no sentido da existência de um facto ilícito.

Passando à apreciação da questão respeitante à (não) responsabilização da recorrente nos termos do art. 9º, do DL 48 051

A recorrente invoca que não poderá ser responsabilizada nos termos do art. 9º, do DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967, pois não causou prejuízos anormais, além de pôr em causa a existência do pressuposto relativo ao nexo de causalidade.

Vejamos.

Estatui o referido art. 9º o seguinte:
1 – O Estado e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais.
(…)”.

Desta norma legal decorre que são pressupostos da responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, por actos lícitos praticados no domínio da gestão pública:
i) - um acto lícito do Estado ou de outra pessoa colectiva pública;
ii) - praticado por motivo de interesse público;
iii) - um prejuízo especial e anormal;
iv) - a existência de nexo de causalidade entre tal acto e o prejuízo causado.

Cumpre determinar se se verificam estes requisitos.

O primeiro e segundo requisitos encontram-se preenchidos.

Efectivamente, a vacinação da manada do recorrido levada a cabo por funcionários da recorrente assentou em motivo – combate à brucelose - de interesse público.

Com efeito, e de acordo com o preâmbulo do DL 244/2000, de 27/9 (diploma que estabelece as normas técnicas de execução do Programa de Erradicação da Brucelose, bem como os procedimentos relativos à classificação sanitária de efectivos e áreas e à consequente epidemiovigilância da doença), “Portugal, à semelhança de outros Estados membros da Comunidade Europeia e de alguns países terceiros, é afectado pela brucelose, zoonose que constitui uma severa ameaça à saúde humana, particularmente nos países da bacia mediterrânea onde é endémica”.

Ou dito por outras palavras, a vacinação da manada do recorrido foi ditada por razões de saúde pública.

Acresce que que tal vacinação com RB 51 é um acto lícito, tendo em conta maxime a Decisão da Comissão 2002/598/CE, de 15 de Julho de 2002 [a qual designadamente aprovou para imunização de fêmeas da espécie bovina a vacina RB 51 contra a brucelose bovina, a ser utilizada por um veterinário oficial – o que in casu se verificou (cfr. factos dados como provados sob os n.ºs (2) a (4)) – e no âmbito de um programa de erradicação da brucelose], publicada no JOCE de 23.7.2002, a Decisão da Comissão 2003/743/CE, de 14 de Outubro de 2003, publicada no JOCE de 18.10.2003 [que aprovou, após análise tanto do ponto de vista veterinário como do ponto de vista financeiro, nomeadamente o programa de Portugal de erradicação e vigilância da brucelose dos bovinos – no montante de € 1 800 000 -, considerando o mesmo elegível para uma participação financeira – de 50% - da Comunidade em 2004], e o disposto no art. 20º, do DL 244/2000, de 27/9.

Relativamente ao terceiro requisito, a recorrente admite que se verifica um prejuízo especial, mas considera que o mesmo não é anormal.

Apreciando.

A jurisprudência tem considerado, de forma unânime, que por prejuízo especial entende-se aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma específica posição relativa e por prejuízo anormal aquele que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração – neste sentido, entre outros, Acs. do STA de 10.10.2002, proc. n.º 48404, 21.1.2003, proc. n.º 990/02, 29.5.2003, proc. n.º 688/03, 30.10.2003, proc. n.º 936/03, 5.11.2003, proc. n.º 1100/02, 2.12.2004, proc. n.º 670/04, 21.6.2007, proc. n.º 110/06, 2.12.2009, proc. n.º 1088/08, 2.12.2010, proc. n.º 629/10, e 19.12.2012, proc. n.º 1101/12, e Acs. do TCA Norte de 18.10.2007, proc. n.º 532/04.1 BEVIS, 8.5.2008, proc. n.º 155/06.0 BEPNF, 10.12.2010, proc. n.º 152/04.0 BEBRG, e 15.3.2012, proc. n.º 1290/06.0 BEBRG.

Passando à análise detalhada de cada um destes conceitos.

Antes, porém, cumpre salientar que o fundamento do direito ressarcitório consagrado no art. 9º, do DL 48 051, funda-se no pressuposto de que a actividade administrativa se exerce no interesse geral e de que, por isso, todos haverão de contribuir de igual modo na repartição dos sacrifícios que ela poderá causar, ainda que de modo lícito, visto a mesma aproveitar a todos do mesmo modo. E, por isso, se essa actividade for causadora de danos apenas para alguns e se os danos a estes causados forem, pela sua dimensão e pelo seu valor económico, muito superiores aos que são causados aos restantes concidadãos, está quebrado o equilíbrio e aberto o caminho à desigualdade e à discriminação. Ora, é para restabelecer esse equilíbrio que está prevista a reparação estabelecida no citado normativo, que tem carácter excepcional e que só existe nos casos em que os prejuízos causados por aquela actividade sejam especiais e anormais.

Como esclarece Maria Lúcia da Conceição Abrantes Amaral Pinto Correia, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, 1998, pág. 456, “Quanto à ideia da igualdade de todos perante os encargos públicos, princípio fundador da chamada “responsabilidade objectiva” – seja ela “pelo risco” seja ela por “facto lícito” – as dúvidas de constitucionalização nem sequer se colocam. Antes de 1976, a sua sede em direito positivo português poderia ser apenas a conferida pelos arts. 8 e 9 do DL 48 051. Hoje, é indiscutível que tal sede se encontra, também, nos princípios gerais da igualdade (art. 13 da CRP) da proporcionalidade da acção estadual (arts. 18, nº 2, e 266, nº 2) e do “Estado de direito democrático”. Todos estes princípios têm em comum o facto de condenarem o arbítrio do Estado. A igualdade perante os encargos públicos e o seu reverso – a necessária compensação de todos os sacrifícios que sejam graves e especiais – não são mais do que refracções, do que concretizações da proibição geral de condutas estatais arbitrárias; assim sendo o locus fundamental da sua positivação há-de situar-se agora nos arts. 2, 13, 18 e 266 da CRP”.

Prejuízo especial
Ensina António Dias Garcia, Da Responsabilidade Civil Objectiva do Estado e Demais Entidades Públicas, in Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública, Coordenação de Fausto de Quadros, 1995, pág. 208, que “A especialidade decorre da incidência desigual do prejuízo sobre um cidadão ou grupo de cidadãos. Por outras palavras: para que um prejuízo se possa ter por especial é necessário que se prove que um cidadão ou grupo de cidadãos tenha sido, através de um encargo público, colocado em situação desigual em relação à generalidade das pessoas. Assim, o sacrifício será especial na medida em que viole o princípio da igualdade, a que a Administração Pública está vinculada na sua actuação – artigo 266.º, n.º 2, da Constituição.
O entendimento a que chegámos do que seja o dano especial encontra o seu fundamento na “teoria da intervenção individual”, que põe o acento tónico na incidência do acto sobre uma só pessoa ou grupo de pessoas – na especialidade do resultado – e não na consideração do aspecto formal do acto impositivo do sacrifício, como acto individual”.

In casu o recorrido sofreu vários prejuízos, os quais se traduziram em crias mortas e nados mortos e outros danos conexos.

Ora, tais prejuízos não recaíram genericamente sobre todos os cidadãos ou sobre categorias amplas e abstractas de pessoas, mas sobre o recorrido, cumprindo salientar que, enquanto o comum dos cidadãos beneficiou com a vacinação do gado bovino propriedade do recorrido, apenas este (e eventualmente outros proprietários de fêmeas da espécie bovina também vacinadas com RB 51) sofreu vários prejuízos, nomeadamente com crias mortas e nados mortos.

A vacinação da manada do recorrido, realizada em nome da saúde pública e, portanto, benéfica para os cidadãos em geral, afecta de modo especial o recorrido, pois é o mesmo que tem o ónus de suportar os prejuízos decorrentes dessa vacinação. Para combater a brucelose, doença que constitui uma severa ameaça à saúde humana, a recorrente procedeu à vacinação de toda a manada do recorrido – a qual não se demonstrou estar de alguma modo afectada por tal doença -, provocando-lhe danos, inexistentes para os cidadãos em geral, em favor de quem essa medida foi tomada.

Tal dano é, por isso, especial, pois todos os cidadãos consumidores aproveitam a vacinação, em termos de saúde pública, mas apenas o recorrido (e eventualmente outros proprietários de fêmeas da espécie bovina também vacinadas com RB 51) sofre com a morte das crias, isto é, tais prejuízos não são genericamente suportados pela generalidade das pessoas, mas apenas pelo recorrido (e eventualmente outros proprietários de fêmeas da espécie bovina também vacinadas com RB 51), justamente em função de uma específica posição relativa - ser proprietário de fêmeas da espécie bovina, as quais tiveram de ser submetidas à vacinação com a vacina RB 51.

Prejuízo anormal
Esclarece António Dias Garcia, cit., pág. 208, que o dano é anormal quando “(…) pela sua gravidade, pela sua importância, pelo seu peso, ultrapasse o carácter de um ónus natural decorrente da vida em sociedade, mesmo no âmbito de um Estado intervencionista como é o Estado moderno. Aceita-se que o cidadão suporte pequenos constrangimentos, contrapartida natural dos benefícios que recebe, mas já não se aceita que cruze os braços em face de danos anormalmente onerosos provocados pela actuação estadual”.

A questão da anormalidade do dano é melindrosa. Para merecer essa qualificação, o dano tem de ser grave, mas a questão que se coloca é a de saber com que critério operativo se há-de fazer a determinação do sacrifício relevante.

Para este efeito, a jurisprudência tem lançado mão da teoria do gozo standard, a qual é enunciada por Gomes Canotilho, O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, 1974, págs. 280 e 281, nos seguintes termos:
Perante a acção dos poderes públicos (...) é garantido o gozo médio ou standard dos bens pertencentes ao particular de modo que quando este gozo é tolhido por um acto normativo ou administrativo, estamos em presença de um acto ablatório gerador de indemnização. O princípio segundo o qual a propriedade privada em sentido lato, no actual sistema jurídico, orientado por determinadas finalidades sociais, é obrigada a admitir limites e vínculos, encontra um critério limite no conceito de gozo standard dos bens privados, como conceito atributivo de um significado à garantia constitucional da propriedade. Nestes termos, o critério indicado poderá constituir um índice de individualização das intervenções ablatórias que, embora feitas com instrumentos diversos da expropriação formal, dão lugar a uma diminuição ou subtracção do gozo standard da coisa”.

A teoria do gozo standard parte, portanto, da garantia do gozo médio ou standard dos bens que pertencem os particulares, de tal forma que será anormal o prejuízo que se traduz numa ablação total ou parcial desse gozo ou fruição normal da coisa – neste sentido, entre outros, Acs. do STA de 25.5.2000, proc. n.º 41420, 13.1.2004, proc. n.º 40581, e 28.2.2012, proc. n.º 1077/11, e Acs. do TCA Norte de 18.10.2007, proc. n.º 532/04.1 BEVIS, 8.5.2008, proc. n.º 155/06.0 BEPNF, 5.11.2010, proc. n.º 111/06.9 BEMDL, 10.12.2010, proc. n.º 152/04.0 BEBRG, 15.7.2011, proc. n.º 991/05.5 BEVIS, e 15.3.2012, proc. n.º 1290/06.0 BEBRG.

Significa isto que o critério quantitativo, por si só, não é índice bastante da ocorrência de uma ingerência pública geradora de sacrifício indemnizável nos termos do art. 9º, do DL 48 051, pois só o será se, associado a ele, houver privação – total ou parcial - do gozo standard da coisa.

A recorrente não discute o montante dos danos sofridos pelo recorrido - € 7 072, a que acrescem juros de mora. Ora, num país onde, em 2004, a retribuição mínima mensal era de € 365,6 (cfr. DL 19/2004, de 20/1), uma tal quantia (€ 7 072), só pelo seu montante, assume gravidade que permitirá a sua ressarcibilidade.

Acresce que o prejuízo sofrido pelo recorrido, designadamente com crias mortas e nados mortos, não se pode considerar como um dano normal, no sentido de que é habitual e aceitável como risco usual próprio da vida em sociedade, isto é, como um pequeno transtorno, pois ultrapassa muito o respeito pelo gozo standard da sua manada, o qual foi afectado na sua substância, dado que várias crias morreram, ficando o recorrido privado de gozar, em parte, da sua manada, o que traduz uma grave ingerência na sua esfera patrimonial, ou seja, uma limitação considerável da sua posição jurídica, afectando o seu direito de propriedade, o que pode ser encarado como uma situação equivalente à expropriação parcial de um bem.

Dito por outras palavras, o recorrido ficou colocado numa posição jurídica que, pela gravidade e intensidade do dano sofrido, seria injusto não equiparar à expropriação para efeitos indemnizatórios, isto é, o mesmo terá de ser ressarcido, sob pena de verdadeira ruptura da igualdade na repartição dos encargos públicos.

Conclui-se, assim, que também se verifica o terceiro requisito acima enunciado – existência de um prejuízo especial e anormal.

No que concerne ao pressuposto nexo de causalidade, a jurisprudência do STA tem considerado que à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas se aplica o art. 563°, do Cód. Civil, sendo pacificamente aceite que este normativo legal consagra a vertente mais ampla da teoria da causalidade adequada, ou seja, na formulação negativa de ENNECCERUS-LEHMANN – o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada quando, segundo a sua natureza geral, é indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele em virtude de outras circunstâncias extraordinárias [neste sentido, entre muitos outros, Acs. do STA de 13.10.1998, 19.5.2005 e 2.12.2010, procs. n.ºs 43.138, 590/04 e 0251/09 (“I- O artigo 563 do Código Civil consagra a teoria da causalidade adequada, devendo adoptar-se a sua formulação negativa, correspondente aos ensinamentos de Ennecerus-Lehman, segundo a qual a condição deixará de ser causa do dano, sempre que seja de todo indiferente para a respectiva produção e só se tenha tornado condição dele em virtude de circunstâncias extraordinárias), respectivamente].

O nexo de causalidade tem dupla vertente: de facto e de direito.

Ou dito de outro modo, necessário se torna que, em concreto, isto é, no plano naturalístico, o facto seja condição da verificação do dano [vertente contida no restrito âmbito da matéria de facto] e que, em abstracto, isto é, segundo as regras da vida, o facto constitua causa adequada ou apropriada à ocorrência do dano verificado.

Assim, importa saber se dos factos provados resulta que a conduta da recorrente foi, no plano naturalístico, uma das condições do dano e, em caso afirmativo, se essa conduta, na ordem natural das coisas, constitui causa apropriada à ocorrência do dano verificado.

Ora, tendo em conta a factualidade dada como assente, nomeadamente sob o n.º (8) [o qual, de modo algum, se pode considerar como uma mera conclusão, sem conteúdo fáctico, pois, conforme se sumariou no Ac. do TCA Norte de 5.4.2013, proc. n.º 00335/08.4BEBRG, “II. A causa adequada de determinado dano tem de ser necessariamente sua causa naturalística, pois não poderá ser «adequada» a produzir um dano uma ocorrência, lícita ou ilícita, que no plano dos factos não o provocou”], tem de concluir-se que a vacinação da manada com a vacina RB 51 foi a causa dos prejuízos sofridos pelo recorrido.

Além disso, essa conduta era, em abstracto, apta a produzir tal resultado, pois, desde logo, não se pode afirmar que a mesma, na ordem natural das coisas, era indiferente para a produção do dano.

Conclui-se, assim, que também se verifica este pressuposto relativo ao nexo de causalidade.

Do exposto resulta que se verificam os quatro pressupostos acima enunciados relativos à responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, por actos lícitos.

Nestes termos e uma vez que a recorrente não pôs em causa o cálculo da indemnização efectuado na sentença recorrida, isto é, o montante dos danos sofridos, deverá ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, confirmando-se a sentença recorrida, embora com a fundamentação ora exposta (art. 9º, do DL 48 051).



*
Uma vez que a recorrente ficou vencida no presente recurso jurisdicional deverá suportar as custas (art. 527º n.ºs 1 e 2, do CPC de 2013, ex vi art. 1º, do CPTA).


III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em:

I – Negar total provimento ao presente recurso jurisdicional, e, em consequência, confirmar, com diferente fundamentação, a sentença recorrida.

II – Condenar a recorrente nas custas relativas ao presente recurso jurisdicional.
III – Registe e notifique.

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Lisboa, 26 de Fevereiro de 2015

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(Catarina Jarmela - relatora)

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(Cristina dos Santos)

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(Paulo Gouveia)