Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11619/14
Secção:CA - 2º. JUÍZO
Data do Acordão:12/04/2014
Relator:ESPERANÇA MEALHA
Descritores:RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA; AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA POR RAZÕES HUMANITÁRIAS
Sumário:I – O artigo 40.º/3 do ETAF e, consequentemente, o artigo 27.º/2 do CPTA, não são aplicáveis à impugnação judicial da decisão sobre pedido de autorização de residência por razões humanitárias, que constitui um processo urgente, regulado na Lei do Asilo, que, mesmo antes da alteração operada pela Lei n.º 26/2914, seguiu, no caso, a tramitação da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.
II – Não estão verificados os pressupostos para admitir liminarmente a concessão da autorização de residência por razões humanitárias, quando as declarações do interessado não permitem formar uma convicção mínima no sentido de relacionar a saída do país de origem com a necessidade de proteção por alegadas, mas nunca descritas,represálias pela opção sexual que invoca ter feito.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo, 2.º Juízo, do Tribunal Central Administrativo Sul


I. Relatório
M…… K…… interpõe o presente recurso jurisdicional da sentença do TAC de Lisboa que julgou improcedente a ação que intentou contra o MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA (SERVIÇO DE ESTRAGEIROS E FRONTEIRAS-SEF), na qual pedia a “concessão de asilo pelo Estado Português por se encontrarem preenchidas as razões humanitárias”.
O Recorrente conclui as suas alegações como se segue:
O ora A. é homossexual, sendo que só por isso se arrisca no seu País de origem, Serra leoa, a ser condenado para toda a sua vida à prisão;
Parece-nos a nós, salvo melhor opinião, que o relato do ora A. é convincente quanto ao facto de caso volte ao seu país de origem, e por ser homossexual, lhe venha a acontecer algo de muito mau, sentindo-se com medo e por isso ter fugido do País de origem e da sua residência habitual, devido à situação de ostracização homofóbica vivida, podendo vir a ser enquadrada tal situação muito bem no artigo 7.º, n.º 2, al. c) da lei de asilo, nomeadamente, pelo facto de não se poder garantir que o ora impugnante venha a ter uma vivência tranquila ao regressar ao seu país de origem, bem como pelo facto de no seu país não ser tolerada a sua opção sexual;
− Pois que face a tal contexto sócio da Serra Leoa não são infundadas as declarações do ora A. quanto ao medo de sofrer ofensa grave à sua integridade física, e ou mal maior lhe infligirem, caso volte ao seu país de origem, derivado do facto da sua escolha sexual, caso o ora A. volte ao seu país de origem;
− O Conselho Português de Refugiados, tendo sido chamado a ser ouvido, pronunciou-se pela admissibilidade do pedido;
− Considerando as afirmações do ora A., são estes motivos suficientes para que lhe seja concedido o asilo que ora se requer, por razões humanitárias;
− A decisão que ora se impugna viola quanto a nós, pelo menos, na parte em que não considerou aplicável o regime de proteção subsidiaria, constante do artigo acima referido, padece de violação da lei por errónea interpretação da mesma, sendo que não foi tido em conta o Princípio do benefício da dúvida e o Princípio “non-refoulement” consagrado no artigo 33 da Convenção de Genebra de 1951, conjugado com os preceitos do artigo 3.º da Convenção europeia dos Direitos Humanos, pelo que deve ser anulável nos termos do artigo 135.º do CPA;
− Nestes termos e nos mais de Direito, contando com o douto suprimento de V.Exa., deve julgar-se procedente a presente impugnação judicial, requerendo-se a concessão do asilo pelo estado Português por se encontrarem preenchidas as razões humanitárias.
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O Recorrido contra-alegou, concluindo o seguinte:
lª A autoridade recorrida deu pleno cumprimento às normas imperativas vigentes atinentes Lei de Asilo, não se encontrando, o acto administrativo praticado, inquinado de qualquer vício de direito ou de forma.
2ª O acto administrativo impugnado satisfaz todos os requisitos legais, não existindo qualquer vício susceptível de gerar a invalidade do mesmo.
3ª Os fundamentos constantes do despacho impugnado estão conformes aos pressupostos de facto e de direito aplicáveis, não violando as normas dos artigos 3.º e 7.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho.
4ª O acto impugnado não sofre de qualquer ilegalidade e o recorrente não tem direito à admissibilidade do pedido de asilo, nem do pedido de concessão ele autorização de residência por razões humanitárias.
5ª O conteúdo específico do interesse público cm causa encontra completa e legitima identificação no procedimento seguido, que respeitou todas as garantias do ora recorrente.
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OMagistrado do Ministério Público junto deste TCASul emitiu parecer no sentido da “revogação do despacho que admitiu o presente recurso jurisdicional, devendo os autos baixar à primeira instância para aí ser equacionada a possibilidade de convolação do presente recurso em reclamação para a conferencia”.
O Recorrente não se pronunciou.
O Recorrido respondeu ao parecer, pugnando pela improcedência da questão suscitada e defendendo a inaplicabilidade, ao caso, do disposto nos artigos 40.º/3 do ETAF e 27.º/1 do CPTA.
Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
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II. Factos
A decisão recorrida considerou assente a seguinte factualidade:
1. Aos 25.05.2014, apresentou-se no Posto de Fronteira do Aeroporto de Lisboa o A.
2. Consultada a lista de passageiros e o CD da TAP referente ao embarque em Dakar, foi possível detectar o passageiro com a seguinte identidade:
Nome: M…… K……,
DN: 01.02.1976
Nac: Serra Leoa
Passaporte ordinário da Serra Leoa nº E……., emitido em 13.12.2012 e válido até 13.12.2017 (cfr. tls. 5 do PA).
3. Foi recusada ao A. a sua entrada em território nacional, em 07.06.2014, por não ser portador de documento de viagem (cfr. doe. de fls. 4 do PA).
4. O A. efectuou pedido de asilo no dia 25.04.2014 (cfr. tls. 1 do PA).
5. Em cumprimento do disposto no n.0 1, art.º 18º da Lei n.0 27/08, de 30 de Junho, foi o A. ouvido quanto aos fundamentos do seu pedido de asilo, tendo prestado as declarações constantes de fls. 29 a 32 e sgts do PA do seguinte teor:
Pergunta (P): Esta é a sua verdadeira Identidade? Tem consigo ou tem forma de obter documentos comprovativos da sua Identidade e nacionalidade?
Resposta(R): Sim, esta é a minha verdadeira identidade, mas não tenho documentos.
Pergunta (P): Que línguas fala?
Resposta (R ). Falo Inglês, KrioeTemne.
P. Em que língua pretende efectuar esta entrevista?
R. Em Inglês.
P. Compreende e comunica claramente em inglês?
R. Sim.
P. Qual li o seu estado civil?
R. Sou casado, com A…… K……, 07/01/1989, ela é serra leonesa.
P. casaram tradicionalmente ou no registo civil?
R. Casámos tradicionalmente,
P. Tem filhos? Em caso afirmativo, como se chamam, quais as suas datas e locais de nascimento e nacionalidades?
R. Sim, tenho 4 filhos, a A…… K……, tem 8 anos, nasceu a 06/02/2006, O…… K……, nasceu em 2007, J…… K……, nasceu em 2008 e A…… R…… nasceu em 2013
P. Onde se encontram a sua mulher e os seus filhos?
R. Não sei do seu paradeiro.
P. Qual é a sua escolaridade?
R. Estudei até ao 5º ano da escola secundária, em Freetown, na A……. em Freetown.
P. Qual é a sua profissão?
R. Vendia pequenas coisas, como biscoitos e cigarros, nas ruas de Freetown.
P. Qual é a sua religião?
R. sou muçulmano.
P. Pertence a algum grupo étnico?
R. Sou Temne.
P. Onde e com quem vivia na Serra Leoa?
R. Em H…., T….. Street em Freetown, vivia com o meu pai, a minha mãe, a minha mulher e os meus filhos.
P, Viveu sempre em Freetown?
R.Sim.
P. Já pediu asilo anteriormente? se sim, onde e quando?
R. Não.
P. Tem ou alguma vez pediu um visto ou autorização de residência em Portugal?
R. Não.
P. Quando saiu da Serra Leoa, para onde queria viajar? Qual era o seu destino final?
R. Não sei, eu viajei com um homem, o senhor D……, foi ele quem tratou de tudo, eu escolhi nenhum país. Eu só queria pedir asilo porque tive problemas com o meu pai.
P. Sabe em que país está?
R. Não, não sabia, foi o polícia na fronteira que me disse.
P. Como chegou até aqui?
R. Ajudaram-me a chegar aqui, foi o senhor D…… que me ajudou.
P. Como conheceu esta pessoa?
R, Em Freetown, ele é nosso vizinho,
P. Quando deixou o seu país, tinha intenção de pedir protecção em Portugal?
R. Sim, mas não era especificamente em Portugal.
P. Sabe o que significa asilo?
R. Sim, é quando uma pessoa tem um problema no seu pais, pede asilo noutro.
P. Por que razão escolheu Portugal para solicitar protecção?
R. Não escolhi, foi o homem, D…… que medisse.
P. Este D…… viajou consigo desde Freewtown até Lisboa? Quando saiu do seu pais e que percurso fez?
R. Saí de Freetwon no início de Maio de 2014, fiz o percurso de carro até à Guiné Conaci, depois para o Mali, ali fiquei mais ou menos 20 dias, depois um dia à noite fomos para um país que não sei qual é e o D…… pôs-me no aeroporto, dentro do avião mesmo, em Dakar. Ele viajou sempre comigo, até Lisboa. Quando chegámos aqui, ele deixou-me aqui no aeroporto, levou o meu passaporte, disse-me parame sentar e esperar por ele e não voltou a aparecer.
P. Tem familiares ou amigos em Portugal ou noutro país europeu?
R. Não.
P. Quais as razões que determinaram a salda da Serra Leoa?
R. Porque eu agora decidi que quero ser homossexual.
P. Porque razão decidiu que queria ser homossexual?
R. Porque me quero juntar a eles.
P. Quando decidiu que queria ser homossexual?
R. Decidi em Abril deste ano.
P. Antes dessa data, alguma vez tinha pensado que poderia ser homossexual?
R. Não, só depois.
P. O queaconteceu na sua vida para que tomasse essa decisão?
R. Eu não queria mais nenhuma relação com as mulheres, e por isso decidi juntar-me aos gay. Gosto da forma deles falarem ede andarem.
P. Tem ou teve alguma relação homossexual até à data de hoje?
R.Sim.
P. Pode explicar, por favor, de quem se trata, onde o conheceu e que tipo de relação têm?
R. Chama-se, A……, conheci-o em Freetown, falamos, dançamos.
P, Conhece outros membros da comunidade homossexual da Serra leoa?
R. Não, só o A…….
P. Teve relaçõessexuais com este homem?
R. Uma vez.
P. Teve ou tem mais alguma relação sexual com algum outro homem?
R.Não.
P. Julga ter nascido homossexual? Sempre sentiu atracção por homens?
R. Não, só agora, nunca tive relações com homens. Eu juntei-me a eles.
P. Oquequer dizer com “Juntei-me a eles”?
R. Eu associei-me a eles.
P. E isso significa o quê, exactamente?
R. Que quando o A…… me telefonava, eu talvez fosse sair com ele.
P. Pode explicar o que significa ser um homem gay? Pode explicar o que é um homossexual?
R. É um homem feliz, contente. Um homossexual associa-se com outros homens.
P. E o senhor o que é, exactamente?
R. Sou um homossexual gay.
P. Que tipo de problemas tem por ter decidido juntar-se aos gay?
R. Eu gosto deleseda sua maneira de ser.
P. Não respondeu à pergunta; que tipo de problemas tem ou teve na Serra Leoa por ter decidido juntar-se à comunidade gay?
R. O meu pai não gostou.
P. E o que se passou com o seu pai? Que tipo de problemas teve com o seu pai?
R. Eledisse que não aceitava e disse que me matava,
P. Vou reformular a questão: pode explicar que tipo de incidentes teve com o seu pai por ter decidido Juntar-se à comunidade gay?
R. Ele um dia viu o A…… chegar à minha casa e percebeu, pela sua maneira de andar, que o A…… era homossexual e foi assim que ele soube.
P. O que aconteceu de seguida?
R. Ele avisou-me e eu disse-lhe que era do que eu gostava, que eu adorava os gay. E ele foi atrás de mim e aí eu decidi ir-me embora, primeiro fui para casa de uma tia, mas ele foi lá, e então eu decidi ir para casa do senhor D…….
P. Quando aconteceu este problema com o seu pai?
R. Em Abril deste ano.
P. A sua mulher sabe que decidiu, em Abril, juntar-se à comunidade gay?
R. Sim, porque ela viu o A…… ir visitar-me e eu disse-lhe.
P. Como reagiu a sua mulher a esta revelação e à sua decisão?
R. Ela ficou bem com a minha decisão, não teve problemas.
P. Apresentou queixa desta situação às autoridades?
R. Não.
P. Porque não?
R. Porque eu não pensei que ele estivesse a falar a sério.
P. Para além do seu pai, tem ou teve outros problemas na Serra Leoa devido a esta situação?
R. Não.
P. Alguma vez foi individualmente alvo de perseguição, de violência ou outro, causado por essa situação na Serra Leoa?
R. Não.
P. Em que país ou países receia a perseguição?
T. Na Serra Leoa.
P. É ou alguma vez foi membro de alguma organização política, religiosa, militar, étnica ou social, no pais onde receia perseguição ou noutro?
R. Não.
P. Que tipo de perseguição receia?
R. O meu pai disse que me ia matar.
P. De quem receia perseguição? (das autoridadesdo seu país, de um grupo, de uma organização?)
R. Do meu pai.
P. Tendo estado na Guiné e no Senegal e noutros países, até chegar a Portugal, porque razão não pediu protecção ali?
R. Não sei, era o homem que viajava comigo que dizia.
P. O que pensa que lhe poderá acontecer se tiver que regressar à Serra Leoa?
R. O meu pai vai matar-me.
P. Caso regresse ao Senegal, o que pensa que lhe poderá acontecer ali?
R. Não conheço ninguém aí.
P. Conhece alguém em Portugal ou na Europa?
R. Não.
P. Alguma vez cumpriu pena de prisão?
R. Não
P.Alguma vez foi condenado por um crime?
R. Não.
P. Quer acrescentar mais alguma coisa?
R. Eu quero asilo.
6. Foi emitido parecer pelo Conselho Português para os Refugiados pronunciando-se pela admissão do pedido de protecção internacional formulado pelo A. (cfr. fls. 68 a 74 do PA).
7. Foi emitida pelos serviços do SEF a infonnação nº 306/GAR/2014, de fls. 56 e sgts. do PA, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, na qual se propõe a não admissão do pedido de asilo do A., com base, designadamente, nas seguintes considerações:(omissis)
8. Foi emitido despacho, em 17.06.2014, pelo Director Nacional Adjunto do SEF recusando, com base na informação referida no ponto anterior, o pedido de asilo formulado pelo A., bem como o pedido para efeitos de concessão de autorização de residência por razões humanitárias (cfr. fls. 55): (omissis)
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III. Direito
A) Questões prévias
A1) Reclamação para a conferência
No seu parecer o Ministério Público suscitou a inadmissibilidade do presente recurso, em síntese, por considerar que da sentença recorrida cabe reclamação para a conferência, nos termos do artigo 27.º/1-i) do CPTA.
Salvo o devido respeito, afigura-se que sem razão.
O presente recurso foi interposto de sentença proferida por juiz singular em processo de impugnação judicial de decisão relativa a pedido de asilo, meio processual que se encontra previsto nos artigos 22.º/2 e 25.º/2 da Lei do Asilo (Lei n.º 27/2008, à data ainda em vigor), como processo urgente cuja apresentação determina ope legis a suspensão do ato impugnado. Nas normas citadas não existe qualquer remissão para a tramitação da ação administrativa especial e, pelo contrário, essa tramitação não se compadece com a urgência e os interesses em causa nas ações enquadradas no citado artigo 25.º da Lei do Asilo.
Por isso mesmo, na linha, aliás, de jurisprudência maioritária nesse sentido, no caso em apreço, a Juiz titular do processo determinou liminarmente que o mesmo seguisse a tramitação da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, regulada nos artigos 110.º e 111.º do CPTA. Embora tal lei não se mostre aplicável ao caso em apreço, não pode deixar de se referir que o entendimento seguido pelo tribunal a quo quanto à tramitação do processo é exatamente aquele que veio a ser consagrado pelo legislador na alteração à Lei do Asilo, operada pela Lei n.º 26/2014, de 5 de maio, passando a prever o respetivo artigo 25.º/2 que “à impugnação jurisdicional referida no número anterior são aplicáveis a tramitação e os prazos previstos no artigo 110.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, com exceção do disposto no respetivo n.º 3”.
Em suma, a presente impugnação judicial é um processo urgente e autónomo, que não se confunde com a ação administrativa especial regulada no CPTA e ao qual, por isso mesmo, é inaplicável o disposto no artigo 40.º/3 do ETAF e, consequentemente, o artigo 27.º do CPTA (uma vez que, em primeira instância, o processo é da competência do juiz singular que, como tal, não assume o papel de “relator”). Além disso, tal disposição sempre seria aqui inaplicável por a presente impugnação judicial ter seguido a tramitação da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, por ser essa a tramitação adequada à urgência e natureza dos interesses em presença.
Pelo que a competência para proferir sentença na presente impugnação judicial cabe ao juiz singular, titular do processo, e dessa decisão cabe recurso jurisdicional para este TCA Sul.
Pelo que improcede a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
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A2) Delimitação do objeto do recurso
As conclusões das alegações de recurso revelam deficiências, na medida em que, de um lado, não incluem todas as questões que o Recorrente pretende suscitar e, do outro, estão direcionadas para a impugnação do ato impugnado, em vez de para a impugnação da sentença recorrida.
Considerando a natureza urgente do processo (desaconselhando a demora inerente a um eventual convite ao aperfeiçoamento) e considerando que a leitura conjugada das alegações e respetivas conclusões permite delimitar, sem margem para dúvidas, quais as questões que o Recorrente efetivamente pretende suscitar, cumpre delimitar o objeto do recurso da seguinte forma:
a) Saber se a sentença recorrida incorreu em omissão de pronúncia (“falta de fundamentação”), por não ter apreciado o défice de instrução procedimental, gerador da ilegalidade do ato final do procedimento;
b) Saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento por não ter considerado que estão reunidas as condições humanitárias que determinam que seja concedido asilo ao autor, aqui Recorrente.
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B) Omissão de pronúncia
É manifestamente improcedente a alegada omissão de pronúnica (que o Recorrente apelida de de “falta de fundamentação”), uma vez que como bem salientou o tribunal recorrido, a questão do eventual “deficit de instrução procedimental” não foi alegada pelo Recorrente na petição inicial. Logo, não constituía questão sobre a qual o tribunal tivesse que se pronunciar. De qualquer modo, sempre se dirá que dos factos provados não emerge um qualquer deficit de instrução do procedimento administrativo que conduziu ao ato impugnado, que o próprio Recorrente foi incapaz de concretizar nas alegações de recurso.Acresce que, como referido na sentença recorrida, os factos provados contrariam frontalmente a alegação de que o CPR não teria sido ouvido, pois esta entidade emitiu parecer (cfr. ponto 6. da matéria de facto provada).
Pelo que o recurso improcede nesta parte.
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C) Erro de julgamento
O Recorrente alegaque estão verificadas as condições para a concessão de asilo, na medida em que o seu relato– que deve ser considerado credível – revela que o mesmo é homossexual e que por esse facto tem fundado receio de sofrer ofensa grave à sua integridade física caso volte ao seu país de origem (Serra Leoa).
A sentença recorrida julgou improcedente a impugnação, com a seguinte fundamentação:
Atentos o pedido do A. e a factualidade subjacente à lide, uma nota prévia há a fazer para circunscrever o objecto dos presentes autos.
Pela presente acção, o A. impugna o acto administrativo que lhe indeferiu o pedido de protecção internacional e peticiona a condenação do R. a conceder-lhe a autorização de residência por razões humanitárias.
Sublinhe-se, contudo, que estes pedidos têm de ser entendidos em termos restritivos, sob pena de se revelarem, desde já, inadmissíveis.
Na verdade, a Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, prevê dois sub-procedimentos dentro do procedimento administrativo que conduz à concessão do asilo ou da autorização de residência por razões humanitárias.
O primeiro procedimento, regulado nos artigos 10° a 22º, destina-se a aferir, com base, desde logo, nos elementos oferecidos pelo requerente do asilo, se o pedido formulado apresenta condições para ser liminarmente admitido.
O segundo procedimento, regulado nos artigos 27° a 32º daquela lei, destina-se a aferir, mediante as diligências instrutórias que se revelarem necessárias, se o asilo ou a autorização de residência por razões humanitárias (cujo pedido foi liminarmente admitido no primeiro procedimento), deve ou não ser concedido.
E o caso dos autos situa-se no âmbito do primeiro desses procedimentos, o que se constata compulsando os factos assentes.
Nesta conformidade, entende-se que o que o A. pede na presente acção, para além do pedido impugnatório, é a condenação do R. a admitir liminarmente a concessão da autorização de residência por razões humanitárias.
O A. imputa ao acto que lhe indeferiu o pedido de protecção internacional vício de violação de lei por preterição dos artigos 7º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, bem como o princípio do benefício da dúvida e do "non-refoulement" consagrado no artigo 33º da Convenção de Genebra de 1951, conjugado com o artigo 3° da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Estabelece o artigo 7º, nºs 1 e 2, da Lei 27/08: (...)
Na p.i., o A. justifica a sua saída da Serra Leoa com o facto de, caso volte ao seu país de origem, poder, por ser homossexual, vir a ter problemas com a sua família, designadamente com o seu pai, que diz tê-lo ameaçado de morte, e ainda porque na Serra Leoa a homossexualidade é punida com pena prisão perpétua.
Contudo, o único receio que ressalta das declarações prestadas pelo A. junto do SEF é o de sofrer a alegada represália por parte do seu pai. E não propriamente o medo de ser preso.
Na verdade, nessas declarações, o A. nada diz sobre o medo de ser preso ou sequer perseguido pelas autoridades do seu país, por ser homossexual. Respondeu até negativamente às questões "Para além do seu pai, tem ou teve outros problemas na Serra Leoa devido a essa situação? Alguma vez foi individualmente alvo de perseguição, de violência, ou outro, causado por essa situação?".
O A. diz até que não apresentou queixa da ameaça de morte do seu pai às autoridades porque não pensou que aquele estivesse a falar a sério. O que permite retirar duas conclusões: a primeira é que não tem qualquer receio de ser preso por ser homossexual, a segunda é que o seu receio relativamente às ameaças do seu pai não é verosímil.
E não é verosímil não só porque é o próprio A. que admite que pensou que o seu pai não estivesse a falar a sério quando o ameaçou de morte, mas também porque, caso, eventualmente este receio fosse real, a atitude lógica e adequada seria que o A. se afastasse do seu pai, indo viver para outra zona do seu país, pelo menos durante algum tempo.
O A. não demonstrou, em momento algum, ter sido sujeito a ameaças ou a actos objectivos de natureza persecutória contra a sua pessoa, e não demonstrou que a sua permanência no país se tivesse tomado insustentável a ponto de ter de abandonar o mesmo.
O discurso do A. não criou a convicção de que a associação que pretende fazer entre a saída do pais e a necessidade de protecção (por recear sofrer represálias pela sua opção sexual) seja verdadeira.
As declarações que prestou junto do SEF são demasiado vagas e desprovidas de qualquer circunstância passível de justificar o pedido de protecção apresentado. Não concretizam qualquer facto ou conjunto de factos com um grau de consistência de discurso que tornem credíveis as circunstâncias que alega enquanto fundamento da sua pretensão. O que impede a aplicação do princípio do benefício da dúvida.
Esta postura do A. abala a sua credibilidade.
O ponto 204 do Manual de Procedimentos do ACNUR refere que '( ..)o beneficio da divida deverá, contudo, apenas ser concedido quando todos os elementos de prova disponíveis tenham sido obtidos e confirmados e quando o examinador esteja satisfeito, no respeitante à credibilidade geral do requerente. As declarações do requerente deverão ser coerentes e plausíveis e não deverão ser contraditórias face à generalidade dos factos conhecidos" - sendo que, por todos os factores atrás expostos, tal não acontece.
A aplicação do beneficio da dúvida está prevista no nº 4 do artigo 18º da Lei nº 27/2008.
Pelas razões apontas, o relato da A. não satisfaz os requisitos previstos nas alíneas d) e e) do nº 4 deste preceito, pelo que se lhe pode aplicar o benefício da dúvida.
Trata-se, portanto, de um pedido de asilo inadmissível (cfr. artigo 19°, nº 2, alínea e) - por via do disposto no artigo 34º da Lei nº 27/08, de 30.06, que manda aplicar às situações previstas no artigo 7°, as disposições constantes das secções 1, II, III e IV do capítulo 1).
Nesta conformidade, o acto impugnado não se encontra inquinado do vício de violação de lei por preterição dos artigos 7º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho (por não se verificar qualquer dos pressupostos da sua aplicação), ou do princípio do beneficio da dúvida e do "non-refoulement" consagrado no artigo 33º da Convenção de Genebra de 1951, conjugado com o artigo 3° da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Nada há a acrescentar ao assim decidido, que faz uma correta interpretação do quadro legal aplicável, que em nada é beliscada pelas alegações do Recorrente, que se limitam a repetir os argumentos já avançados na ação e que improcedem, pelos fundamentos referidos na sentença recorrida.
Além disso, o tribunal recorrido fez uma detalhada e criteriosa análise dos factos provados, dos quais resulta que, contrariamente ao alegado, o discurso do próprio Recorrente não permite criar uma convicção mínima no sentido de relacionar a sua saída da Serra Leoa, e a alegada necessidade de proteção, com a opção sexual que invoca ter feito. Pelo contrário, a única “ameaça” que o Recorrente refere seria a de que seu pai o teria “ameaçado de morte”, mas o próprio Recorrente em determinado momento afirma que não achou que “ele estivesse a falar a sério”, assim como afirma que “não teve outros problemas na Serra Leoa devido a esta situação [homossexualidade]”.
Termos em que, sem necessidade de mais considerandos, deve ser negado provimento ao recurso.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 04.12.2014



(Esperança Mealha)

(Maria Helena Canelas)

(António Vasconcelos)