Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11559/14
Secção:CA-2º. JUÍZO
Data do Acordão:11/06/2014
Relator:CRISTINA DOS SANTOS
Descritores:INTERESSE EM AGIR CAUTELAR – LEGITIMIDADE PROCEDIMENTAL URBANÍSTICA E REGISTAL
ARTºS. 9º Nº 1 RJUE E 9º Nº 1 CREG.PREDIAL
Sumário:1.O interesse em agir é o pressuposto processual que traduz a necessidade efectiva, em função das concretas circunstâncias, de recorrer à intervenção dos tribunais.
2.O disposto no artº 9º nº 1 RJUE está em linha com o princípio da legitimação registal consagrado no artº 9º nº 1 CReg.Pred., isto é, enquanto o registo não for cancelado ou rectificado é o titular registal que permanece legitimado, formalmente, para desencadear seja as modificações de direito civil que entenda seja para desencadear junto da Administração os procedimentos necessários às operações urbanísticas que pretenda levar a efeito no prédio de que é titular inscrito.
3.Não carece de tutela judiciária no domínio da acção cautelar administrativa em matéria de direito do urbanismo para prevenir efeitos prejudiciais pela demora da acção principal em que a causa de pedir substancia um litígio de direito privado, em que o requerente cautelar reivindica como sendo de sua propriedade a maior parte da área do prédio de terceiro constante da descrição predial levada ao registo, onde este pretende efectivar a obra de construção de uma moradia
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:S......, Lda., com os sinais nos autos, inconformada com a sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, dela vem recorrer, concluindo como segue:

A. Ao julgar que a Recorrente carece de interesse em agir cautelarmente através da pretensão deduzida no presente processo e que a providência requerida não é adequada, com o fundamento de que a licença suspendenda, por ser emitida sem prejuízo de direitos de terceiros, não é imediatamente lesiva para a Recorrente, a douta sentença recorrida enferma de erro de direito na interpretação e aplicação das normas jurídicas que regem os efeitos das licenças de operações urbanísticas e, consequentemente, daquelas normas jurídicas que exigem o interesse em agir cautelarmente e a adequação da providência cautelar requerida como pressupostos da tutela cautelar (normas jurídicas não identificadas na douta sentença recorrida e que apenas implicitamente se retiram de vários textos normativos vigentes, salva a norma que exige a adequação da providência cautelar requerida, decorrente do art. 268. 2 4 CRP e do art. 122.5, l CPTA).
B. É pacífico que, em geral, as licenças de construção são concedidas sob reserva de direitos de terceiros, no sentido de que se limitam a averiguar a conformidade da pretensão de quem os requer com as normas aplicáveis de direito público, não conformando direitos privados do requerente ou de terceiros, mas esta regra tem como pressuposto que as situações jurídicas dos terceiros não são consideradas na emissão da licença e que os direitos de terceiros não são abrangidos pelos seus efeitos.
C. Assim sendo, a cláusula de reserva de direitos de terceiros não se pode aplicar a licenças que, como aquela cuja suspensão se requer no presente processo, permitam a realização de operações urbanísticas num terreno da propriedade de um terceiro, pois, em primeiro lugar, nos termos do art. 9º/l RJUE, o interessado na realização de uma operação urbanística tem que ser «titular de qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística», facto que cabe ao órgão competente apreciar, ainda que com base em prova por presunção, e, em segundo lugar, porque uma licença como a emitida em tais condições tem necessariamente, em virtude do respectivo conteúdo, um efeito permissivo da realização de determinadas operações materiais de edificação e, em virtude do respectivo objecto, essa permissão respeita a um determinado prédio, que precisamente um terceiro, neste caso a Recorrente, alega ser seu.
D. Assim, se se pode afirmar que a licença suspendenda foi emitida sem prejuízo de direitos de terceiros no sentido em que não constituiu, modificou ou extinguiu relações jurídicas privadas, não se pode afirmar o mesmo no sentido de a mesma licença ser irrelevante para a Recorrente por dela não resultarem efeitos directamente lesivos, sendo claro que, pelo contrário, a licença de construção suspendenda implicou a atribuição de uma permissão para que o seu beneficiário introduza modificações na realidade material relativamente a um prédio que é da propriedade da Recorrente, permissão essa que de forma óbvia e inescapável constitui um efeito lesivo do direito de propriedade da mesma Recorrente sobre o mesmo prédio.
E. Pelas razões apontadas nas conclusões anteriores, a jurisprudência administrativa e a doutrina, incluindo os arestos e autores citados na douta sentença recorrida, inequivocamente consideram que as licenças relativas a prédios da propriedade de terceiros não podem ser consideradas como emitidas sem prejuízo dos direitos destes, sendo em simultâneo inoponíveis pelo seu titular em relação ao verdadeiro proprietário e inválidas por falta do pressuposto consistente na titularidade de direitos que legitimassem o seu beneficiário a realizar a construção pretendida; e não menos inequivocamente consideram que o terceiro titular de direitos reais sobre o prédio a que se refere a licença preserva a possibilidade de reagir junto dos tribunais judiciais contra as condutas materiais que o titular da licença nele pretendesse realizar e, em simultâneo, o poder de reagir junto dos tribunais administrativos contra a licença e os seus efeitos jurídicos.
F. Sendo uma matéria do âmbito da jurisdição administrativa e estando um particular legitimado para obter tutela definitiva dos seus interesses através de um meio processual principal dessa jurisdição (que, no caso vertente, é a acção administrativa especial da qual dependem os presentes autos), o princípio da tutela jurisdicional efectiva impõe, sob pena de inconstitucionalidade por violação do art. 268.5, 4 CRP, que, na mesma jurisdição administrativa, lhe seja facultado um meio processual cautelar adequado (que, no caso vertente, é precisamente o presente processo cautelar).
G. É, assim, manifesto que, ao contrário do julgado na douta sentença recorrida, a Recorrente tem interesse em agir mediante a providência cautelar requerida, na medida em que, como a própria sentença recorrida reconhece, é «óbvio [...] que da efectivação deste poder [conferido pela licença suspendenda], traduzida na actuação material da contra-interessada - com a realização das ditas intervenções e transformações da realidade material - resultam, evidentemente, prejuízos para a requerente», sendo certo que a anulação da licença suspendenda e a suspensão da sua eficácia só podem ser obtidas mediante a intervenção judicial, designadamente a título cautelar; e é também manifesto que a providência cautelar requerida é adequada, já que é a única que, dentro da jurisdição administrativa, permite à Recorrente assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal, a correr na mesma jurisdição, de impugnação do acto administrativo suspendendo.
H. Ademais, os fundamentos da sentença em caso algum serviriam para afastar o carácter lesivo do direito de propriedade da Recorrente sobre a área controvertida resultante da cedência para o domínio público de parte daquela área, que também foi alegada no requerimento inicial, uma vez que não é possível argumentar que os efeitos permissivos da realização de uma operação urbanística só lesariam a esfera da Recorrente de forma mediata e através de actividades materiais do titular da licença às quais aquela Recorrente se poderia opor na jurisdição comum e por meios de direito privado, sendo, pelo contrário, a referida cedência um efeito imediato da licença suspendenda que, na esfera do direito administrativo, directamente põe em relação o Recorrido Público, enquanto entidade para cujo domínio reverte a área cedida, e a Recorrente, enquanto verdadeira proprietária dessa área, efeito esse ao qual a Recorrente só se pode, naturalmente, opor por meios de direito administrativo e no âmbito da jurisdição administrativa. Assim, nos termos do art. 149º CPTA, deve o douto Tribunal ad quem proferir decisão pela qual:
a) Revogue a decisão recorrida e decida directamente o objecto da causa, decretando a providência cautelar de suspensão de eficácia requerida ou, quando assim não se entenda,
b) Revogue a decisão recorrida e mande baixar o processo ao Tribunal a quo para prolação de nova decisão que incida sobre o objecto da causa.

*
O Município de Portimão contra-alegou, sustentando a bondade do decidido.

*
A Contra-Interessada C…… contra-alegou, sustentando a bondade do decidido.

*
Com substituição legal de vistos pela entrega das competentes cópias aos Exmos. Desembargadores Adjuntos, vem para decisão em conferência.

*
Pelo Senhor Juiz foi julgada provada a seguinte factualidade:

a. A requerente consta inscrita, no registo predial, como proprietária do prédio misto sito em A….. ou A….., na freguesia de A……, concelho de P……, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.° …, com a área total de 100392 m2, e inscrito sob o artigo .. da Secção .. da matriz predial rústica, e sob o artigo … da matriz urbana, e bem assim, dos prédios que deste foram desanexados (cf. documentos n.°s l a 3 juntos com o requerimento inicial);
b. A requerente explora, nos referidos prédios, diversos estabelecimentos hoteleiros e turísticos;
c. A contra-interessada consta inscrita, no registo predial, como proprietária do prédio sito em C……, freguesia de A……, concelho de Portimão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o nº …., com a área total de 6475 m2, e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo .. da Secção .. e na matriz urbana sob o artigo … da referida freguesia (cf. documentos n.°s 7 a 9 juntos com o requerimento inicial);
d. A contra-interessada apresentou, junto da Câmara Municipal de Portimão, um requerimento para licenciamento de obras de construção referente a uma moradia a edificar no prédio identificado na alínea c), que deu origem ao processo administrativo nº 862/08 (cf. documento nº 11 junto com o requerimento inicial);
e. Por despacho proferido pelo Vice-Presidente da Câmara Municipal de Portimão no âmbito do referido processo, em 8 de Novembro de 2013, notificado à contra-interessada por ofício com data de 18 de Novembro, foram aprovados os projectos de especialidades e deferido o pedido de licenciamento para a realização das obras em causa (cf. documento nº 10 junto com o requerimento inicial);


DO DIREITO


A ora Recorrente peticiona a suspensão de eficácia do “acto administrativo … de 18 de Novembro de 2013, pelo qual foram aprovados os projectos de especialidades no âmbito do procedimento de licenciamento referenciado com o nº ../08, adt. nº …/03, e que consubstancia a respectiva licença de construção”, acto praticado no procedimento de controlo prévio em matéria urbanística instaurado a requerimento da sociedade aqui Contra-interessa e Recorrida C…….
Como fundamento da providência requerida sustenta a ora Recorrente a desconformidade entre a área levada ao registo predial e a área real relativamente ao prédio misto de implantação da construção licenciada no mencionado procedimento nº ../08 – cfr. alíneas c. e d. do probatório – de que deriva, no seu entender, que a Contra-interessada “não dispunha de qualquer título jurídico para a pretensão construtiva, carecendo, portanto de legitimidade para requerer a emissão da correspondente licença. Que será ilegal e nula por violação do conteúdo essencial do direito de propriedade da Requerente (artº 133º nº 2 d) CPA)”. – vd. artigo 88 do requerimento inicial.
Face ao concreto objecto processual, em sede de sentença foi recusado o decretamento da providência requerida com fundamento em “(..) falta de interesse em agir cautelarmente junto deste tribunal administrativo, quando pede o decretamento da providência de suspensão de eficácia de um acto que, perante si, é ineficaz e cujos efeitos produzidos ou a produzir não lhe podem, enquanto verdadeira proprietária, ser opostos pela contra-interessada, não sendo aptos a lesar directamente o seu direito de propriedade (..)” – vd. segmento da sentença a fls. 234 dos autos.
Cabe, pois, saber a que acto do procedimento urbanístico se refere o pedido cautelar.


a. apresentação dos projectos de especialidades – artº 20º nº 4 RJUE;

No tocante às operações urbanísticas elencadas no artº 4º nº 2 als. c) a f) RJUE, o controlo preventivo concentra-se no acto de aprovação do projecto de arquitectura, cfr. artº 20º nºs 1, 2 e 3 RJUE, acto administrativo autónomo que assume a natureza de acto prévio no domínio do procedimento, e pelo qual a Administração “(..) se pronuncia, de forma definitiva sobre a conformidade do projecto com das normas legais e regulamentares definidoras das condições urbanísticas da sua realização, (..) com efeito, a aprovação do projecto de arquitectura concentra e esgota o exercício dos poderes constitutivos urbanísticos dos órgãos municipais (..)” (1)
Já no que respeita à fase procedimental subsequente, iniciada pelo interessado com a apresentação dos projectos de especialidades, cabe dizer que o artº 20º nº 4 RJUE na redacção dada pela Lei 60/2007 de 04.09 deixou de exigir uma aprovação autónoma por parte da câmara municipal e passou a prever que o interessado deve “apresentar” os projectos de especialidades que “(..) são objecto de pronúncia (aprovação, certificação, etc.) de entidades externas, limitando-se a câmara municipal, para deferir o pedido, a confirmar que esta pronúncia foi favorável. (..)” (2)
Logo por este factor perde sustentação jurídica a peticionada suspensão de eficácia do acto de aprovação dos projectos de especialidades de 18.11.2013, pela simples razão de que tal acto de aprovação autónoma dos projectos de especialidades não existe no universo normativo do RJUE.


b. gestão urbanística; cláusula de reserva de direitos de terceiros;

A cláusula de reserva de direitos de terceiros significa que em matéria de licenciamento o acto administrativo que legitima a actividade edificatória define a situação jurídica do titular da licença urbanística no domínio da relação jurídico-administrativa estabelecida entre esse titular e a Administração, no quadro do complexo normativo de direito de urbanismo e de ordenamento do território ao abrigo do qual foi concedida.
O mesmo regime se aplica no tocante às operações urbanísticas que seguem o procedimento de comunicação prévia.
De acordo com o regime legal em matéria de controlo preventivo municipal das operações urbanísticas tipificadas no artº 4º nº 2 RJUE, o acto de licenciamento – licença urbanística ou de construção – pode assumir a forma de “(..) deliberação da câmara municipal que defere o pedido de licenciamento, o que configura a situação regra divisada pelo RJUE, muito embora possa consistir numa decisão de um órgão individual sempre que haja delegação ou subdelegação de poderes. (..)” nomeadamente nos vereadores por sub-delegação do presidente da câmara, sucedendo que no caso concreto nada é dito nos autos quanto a esta matéria – vd. artºs. 5º nº 1, 23º nº 4 a) e 26º do RJUE. (3)
Nos termos gerais de direito administrativo ex vi princípio da legalidade, a competência para a prática de actos de gestão urbanística decorre do complexo normativo habilatante, cujos efeitos jurídico-públicos se confinam, exclusivamente, ao domínio do controlo preventivo da actividade construtiva dos particulares ou de entidades públicas, em articulação com o regime de ocupação, uso e transformação do solo definido no plano urbanístico, v.g. nos planos municipais de ordenamento do território (PMOT’s) - vd. artº 5º nº 1 com referência às operações urbanísticas elencadas no artº 4º nº 2, ambos do RJUE, em estreita relação com o regime da Lei nº 169/99 de 18.09.
Seguindo a doutrina especializada, em matéria de direito do urbanismo o campo de actuação da gestão urbanística abrange “(..) todas as actividades relacionadas com a concreta ocupação e transformação dos solos, quer sejam realizadas directamente pela Administração Pública, quer pelos particulares sob a direcção, promoção, coordenação ou controlo desta. (..)”. (4)

*
Exactamente porque a licença urbanística ou de construção constitui um acto administrativo, são-lhe inerentes todas as funções próprias dos actos jurídico-públicos, nomeadamente, para o que importa ao caso concreto, a função concretizadora e estabilizadora na vertente da definição do direito aplicável ao caso concreto e condições de exercício do poder em que o respectivo titular fica investido, sendo que vista no contexto da “(..) sua força jurídica vinculativa, a licença, enquanto decisão administrativa que “está no mundo”, tem de ser considerada e respeitada por todas as instâncias terceiras (privadas ou públicas), embora não desencadeie um efeito conformador de relações jurídicas de direito privado (direito das coisas) (..) em relação ao destinatário (interessado) é um acto constitutivo de direitos ou de interessas legalmente protegidos criando ainda algumas posições jurídicas instrumentais da realização desse poder (direito ao lavará) (..) [podendo] tocar desfavoravelmente a esfera jurídica de terceiros (no contexto das relações de vizinhança) (..)”. ( Pedro Gonçalves/Fernanda Paula Oliveira, A nulidade dos actos administrativos de gestão urbanística, Revista do CEDOUA, nº 3 – Ano II – 1.99, págs.29/30.)
Assim sendo, “(..) a consequência imediata da submissão exclusiva da licença de construção a regras de direito do urbanismo é a de que ela é concedida sob reserva de direitos de terceiros. (..)” (6)
Sustenta a ora Recorrente que “(..) a cláusula de reserva de direitos de terceiros não se pode aplicar a licenças que, como aquela cuja suspensão se requer no presente processo, permitam a realização de operações urbanísticas num terreno da propriedade de um terceiro (..)” – vd. alínea C das conclusões de recurso.
Salvo o devido respeito, não assiste razão ao Recorrente neste segmento, na medida em que tendo por referência os actos procedimentais que estão em causa – v.g. licenças urbanísticas ou comunicações prévias - a fórmula “reserva de direitos de terceiros” vem aplicada fora do contexto jurídico que lhe é próprio, pois que, com esta fórmula, pretende-se afirmar a submissão exclusiva de tais actos a regras de direito do urbanismo e, consequentemente, a inaptidão jurídica dos actos administrativos emanados ao abrigo do direito de urbanismo para interferir de forma válida e eficaz no âmbito de direitos subjectivos de terceiros constituídos ao abrigo de normas de direito privado, v.g. no domínio dos direitos de propriedade sobre a coisa (o prédio) objecto mediato dos efeitos jurídicos visados pela licença, na veste de acto administrativo real.
Exactamente por se tratar de acto administrativo inapto para desencadear efeitos jurídicos conformadores de relações jurídicas de direito privado (direito das coisas), a licença urbanística não atribui ao interessado direitos subjectivos em relação a terceiros, legitimando-o exclusivamente no domínio da actividade edificatória subordinada às regras de direito do urbanismo aplicáveis à operação urbanística licenciada.
O regime legal de controlo administrativo das operações urbanísticas é, exclusivamente, objectivo, na medida em que a apreciação da legalidade dos projectos não extravaza do bloco de legalidade que o caso concreto convoque em matéria de urbanismo e instrumento(s) de ordenamento do território, sendo certo que desse bloco de legalidade não deriva, a nenhum título, a atribuição de competências de apreciação da conformidade dessas operações na vertente seja do direito civil, seja do direito comercial.
O que significa que o interessado em obter a emissão de um acto positivo de controlo administrativo de uma dada operação urbanística, quando desencadeia o procedimento de licenciamento ou de comunicação prévia há-de munir-se e levar ao procedimento o competente meio probatório, segundo as formas admitidas em direito, “da qualidade de titular de qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística”- vd. artº. 9º nº 1 RJUE.


c. princípio da legitimação registal – artºs. 9º nº 1 RJUE e 9º nº 1 CReg.Pred.;

O artº 9º nº 1 RJUE configura como ónus a cargo do interessado a junção ao procedimento do meio de prova da respectiva legitimidade no tocante à operação urbanística pretendida, pressuposto procedimental cuja competência de apreciação é atribuída ao presidente da câmara, na fase de saneamento e apreciação liminar procedimental, nos termos do artº 11º nº 1 RJUE.
O que, de acordo com as alíneas c. e d. do probatório, foi observado pela Contra-interessada aqui Recorrida mediante a apresentação do competente meio probatório de inscrição registal sob o nº …. na Conservatória do Registo Predial de Portimão do prédio misto levado à matriz rústica sob o artº ..-Secção .. e urbana sob o artº …, C…… freguesia do A……, prédio de implantação da construção da moradia a que se refere o procedimento de licenciamento nº …/08 da Câmara Municipal de Portimão.

*
Como sabido, no Código do Registo Predial vigora a regra de que “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo”, artº 5º do CReg.Pred., regra já decorrente do artº 7ºdo CReg.Pred/1967, o que significa que a Contra-interessada ora Recorrida beneficia do efeito básico da publicidade registal, a saber, a oponibilidade erga omnes dos direitos reais sobre imóveis (e móveis sujeitos a registo) levados ao assento registal derivada da função declarativa ou consolidativa do registo positivo e definitivo (a inscrição).
Neste sentido, o disposto no artº 9º nº 1 RJUE está em linha com o princípio da legitimação registal consagrado no artº 9º nº 1 CReg.Pred., isto é, enquanto o registo não for cancelado ou rectificado é o titular registal que permanece legitimado, formalmente, para desencadear as modificações de direito civil que entenda e, para o que ora importa, desencadear junto da Administração os procedimentos necessários às operações urbanísticas que pretenda levar a efeito no prédio de que é titular inscrito.
Naturalmente que atendendo ao acto (modo) que substancia a aquisição do direito real sobre o prédio, rege o princípio da causalidade, o que necessáriamente indica que a estabilidade do direito real em causa depende da existência, validade e procedência da causa jurídica que, na circunstância concreta, preceda a consequência aquisitiva. (7)
Mas esta é questão a dirimir nos tribunais judiciais em caso de eventual conflito, não nos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal e, muito menos, em sede cautelar preventiva de actos de gestão urbanística tendo por causa de pedir a invocação da ilegitimidade procedimental.

*
Neste sentido, a propósito dos poderes de saneamento do presidente da câmara e da suspensão do procedimento prevista no artº 11º nº 7 RJUE diz-nos a doutrina especializada que “(..) tendo em consideração que as licenças ou comunicações prévias estão sujeitas exclusivamente a regras de direito do urbanismo, .. a sua concessão deve ser feita sob reserva de direitos de terceiros, considerando ainda que os actos urbanísticos têm carácter real.
Deste modo, não pode considerar-se motivo de suspensão dos procedimentos nos termos normativos aqui em referência, as questões de competência judicial referente à discussão de direitos que, por não terem sido consideradas pelos actos urbanísticos, não podem ser vistas como verdadeiras questões prévias destes actos já que, atendendo àquelas características, não há qualquer inconveniente em que a Administração licencie ou admita a comunicação prévia, mesmo que seja suscitada judicialmente qualquer questão de direito privado.
No pressuposto por nós assumido de que o nº 7 do artº 11º se refere a questões prévias (delas estando excluídas, por não o serem, as questões de direito privado) serão muito poucas as situações de aplicação do disposto no nº 8 do artigo aqui em anotação já que uma questão prévia caracteriza-se, precisamente, por ser uma questão sem a decisão da qual não se pode determinar o sentido da decisão principal do procedimento de gestão urbanística.(..)
(..) No que concerne à questão da legitimidade, a Administração deve avançar com o procedmento, mesmo que exista um litígio entre o requerente ou comuncante e terceiros que tenha, precisamente, por objecto a titularidade do direito que foi invocado, e mesmo que tal litígio esteja a ser resolvido no tribunal competente.
O procedimento apenas não deverá prosseguir, devendo ser rejeitado o pedido de licenciamento, admissão de comunicação prévia ou autorização nas seguintes situações:
(i) quando o requerente não faça prova da legitimidade;
(ii) quando resulta claramente dos documentos entregues que ele não é, efectivamente, o titular do direito que invoca ou se o faz, no procedimento, prova disso;
(iii) quando o direito que se invoca não permite realizar a operação em causa (..)” (8)


d. interesse em agir;

O que nos leva à questão do interesse em agir, pressuposto processual que traduz a necessidade efectiva, em função das concretas circunstâncias, de recorrer à intervenção dos tribunais, sendo “(..) que essa necessidade de recorrer às vias judiciais, não tem de ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou o puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial.
O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção – mas não mais do que isso. (..)”(9)
Não é esta a situação que flui do processo, na medida em que a Contra-interessada, ora Recorrida, beneficia do efeito derivado da função declarativa de ter registo positivo e definitivo a seu favor assente na inscrição sob o nº …. na Conservatória do Registo Predial de Portimão do prédio misto levado à matriz rústica sob o artº ..-Secção .. e urbana sob o artº …, C……, freguesia do A….., prédio de implantação da construção da moradia a que se refere o procedimento de licenciamento nº …/08 da Câmara Municipal de Portimão, o que significa que beneficia da oponibilidade erga omnes dos direitos reais sobre o citado imóvel.
Em conjugação, acresce à legitimação registal da Contra-interessada ora Recorrida, como também já posto em evidência, que no tocante aos actos de gestão urbanística – v.g. licenças urbanísticas ou comunicações prévias - a fórmula “reserva de direitos de terceiros” significa a submissão exclusiva de tais actos a regras de direito do urbanismo.
Consequentemente, é patente a inaptidão jurídica dos actos administrativos emanados ao abrigo do direito de urbanismo para interferir de forma válida e eficaz no âmbito de direitos subjectivos de terceiros constituídos ao abrigo de normas de direito privado, v.g. no domínio dos direitos de propriedade sobre a coisa (o prédio) objecto mediato dos efeitos jurídicos visados pela licença, na veste de acto administrativo real.
De quanto vem dito se conclui que a ora Recorrente não carece de tutela judiciária no domínio da acção cautelar administrativa em matéria de direito do urbanismo para prevenir efeitos prejudiciais pela demora da acção principal em que a causa de pedir substancia um litígio de direito privado, a propósito da ora Recorrente reivindicar como sendo de sua propriedade a maior parte da área do prédio de terceiro, a Contra-interessada e Recorrida, constante da descrição predial levada ao registo, onde esta pretende efectivar a obra de construção de uma moradia – vd. artigos 1º a 18, 36 e 37 do requerimento cautelar.

*
Pelo que vem dito improcedem todas as questões trazidas a recurso nos itens A a H das conclusões.


***

Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença proferida.

Custas a cargo do Recorrente.

Lisboa, 06.NOV.2014


(Cristina dos Santos) ………………………………………………………………

(Paulo Gouveia) …………………………………………………………………..

(Nuno Coutinho) ………………………………………………………………….


1)Fernanda Paula Oliveira, Loteamentos urbanos e dinâmica das normas de planeamento, Almedina/2009, pág. 145.
2)Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes, Fernanda Maçãs, RJUE – Comentado, Almedina/2011, 3ª ed., pág.291
3)Fernanda Paula Oliveira, et alii , RJUE – Comentado, Almedina/2011, 3ª ed., págs. 325, 114 e 301.
4)Fernanda Paula Oliveira, Freguesias e urbanismo, in A Reforma do Estado e a Freguesia, NEDAL/2013 – ANAFRE, pág.186.
5)Pedro Gonçalves/Fernanda Paula Oliveira, A nulidade dos actos administrativos de gestão urbanística, Revista do CEDOUA, nº 3 – Ano II – 1.99, págs.29/30.
6)Fernanda Paula Oliveira, As licenças de construção e os direitos de natureza privada de terceiros, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Studia Iuridica-61, Coimbra Editora, pág. 1020.
7)Mónica Jardim, Efeitos substantivos do Registo Predial, Almedina/2013, págs. 53/54, 69, 501 e 524.
8) Fernanda Paula Oliveira, et alii , RJUE – Comentado, Almedina/2011, 3ª ed., págs. 169, 200/201.
9) Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de processo civil, Coimbra Editora/1985, págs.180/181.