Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:66/17.4BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:12/18/2019
Relator:CRISTINA FLORA
Descritores:IRS;
AUTORIDADE DO CASO JULGADO;
FUNDADA DÚVIDA.
Sumário:I. A função negativa do caso julgado material está inerente à excepção de caso julgado, consubstanciando-se no impedimento de a mesma causa ser apreciada pelo Tribunal numa nova acção.

II. Já a função positiva respeita à chamada autoridade do caso julgado, através da qual se obsta a que a situação jurídica material definida por sentença ou acórdão transitados em julgado possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença ou acórdão.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

l – RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por V....... da liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) nº 003l9l99 e respectivos juros compensatórios, com o nº 0……, elaboradas na sequência de uma acção inspectiva de que foi objecto pelos serviços de Inspecção Tributária e ambas de 21 de Novembro de 2000 e com prazo de pagamento terminando a 31 de Janeiro de 2001.

A recorrente FAZENDA PÚBLICA apresentou as suas alegações e formulou as seguintes conclusões:

«A. Vem o presente recurso reagir contra a douta sentença que julgou procedente a Impugnação Judicial intentada por V……, com o contribuinte n.º 1……., contra a liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) n.º 0……. e a dos conexos juros compensatórios n.º 0……., elaborada na sequência de uma ação inspetiva de que foi objeto o Impugnante, pelos serviços de Inspeção Tributária e que teve como base uma declaração de rendimentos apresentada pelo próprio Impugnante.

B. Com o devido respeito não pode a Fazenda Pública conformar-se com tal entendimento porquanto solicitou ao Impugnante para demonstrar em sede de inspeção tributária, qual das duas realidades apresentadas por ele, nas duas declarações de rendimentos, modelo 2, relativas ao IRS do ano de 1995, deveria ser considerada.

C. Ao que ele respondeu que a declaração com maiores rendimentos declarados apenas iria servir para ludibriar um Banco e no intuito do Impugnante obter um crédito junto da entidade bancária e portanto foi por desconhecimento que a "nova" mulher do Impugnante facultou tal documento à administração fiscal.

D. Ora perante tal situação fáctica deveria o Impugnante extrair da documentação contabilística a sua realidade sobre os rendimentos auferidos nesse ano e assim demonstrando à administração fiscal qual das duas declarações de rendimentos apresentadas estaria correta. O que não ocorreu, visto nada ter sido apresentado pelo Impugnante.

E. De acordo com as regras do ónus da prova, plasmadas no ordenamento jurídico no disposto 341.º e seguintes do Código Civil (CC) é ao Impugnante que cabe provar dentro das duas realidades distintas apresentadas, qual é a sua, através da documentação da sua contabilidade como empresário em nome individual, revelando assim os rendimentos efetivos.

F. Portanto digamos que a douta sentença faz uma errada interpretação da subsunção dos factos ao Direito, quando diz que por falta de fundamentação, por falta de averiguação da veracidade dos factos, por estar a considerar uma situação por demais bizarra como normal.

G. Ora a questão fundamental que se impõe é a de saber se as regras sobre o ónus da prova, estarão a ser bem aplicadas na douta sentença, que recai sobre a falha ser da administração fiscal, quando a nosso ver não cabe à administração fiscal demonstrar os rendimentos auferidos pelo Impugnante no ano de 1995.

H. Opera o preceituado no disposto no artigo 342.º do CCivil n.º 1: àquele que invoca um direito, cabe fazer a prova dos factos constitutivos do mesmo.

I. Na petição inicial (a causa de pedir) o Impugnante informa que o relatório sobre a reclamação graciosa apresentado padece de vício insanável, sem no entanto indicar o fundamento de tal conclusão, dizendo apenas que a declaração de modelo 2 do IRS de 1995 que teve como base a liquidação sindicada, não corresponde à realidade, atribuindo como fundamento a inexistência de facto tributável.

J. Ora na realidade conforme a factualidade que nos deparamos, existem duas declarações, uma processada no sistema informático da AT e outra por processar, mas com a informação de que foi entregue no SF da Lourinhã. e portanto igualmente válida apesar de ter valores díspares, pelo que sempre se dirá que cabe ao Impugnante explicar e apresentar quais os valores dos seus rendimentos.

K. E essa demonstração de rendimentos faz-se através da sua contabilidade que não foi apresentada.

L. Face ao exposto, com a devida vénia, entendemos que a douta sentença recorrida ao julgar procedente a presente impugnação judicial, enferma de erro de apreciação da prova na aplicação do Direito, sendo que no caso deve ser considerada que não existiu qualquer violação por parte da administração fiscal, de acordo com a seguinte factualidade: "tal como resulta dos autos, o recorrente apresentou duas declarações na Repartição de Finanças, embora não explique porque têm ambas a mesma data, a mesma enumeração e o mesmo carimbo da Repartição. A peritagem efectuada não conseguiu descobrir qual das declarações corresponderia à realidade tributária do recorrente, sendo certo que a que foi processada correspondia aos dados da contabilidade, mas esta não merecia credibilidade. Assim, não havendo provas de que a segunda declaração do contribuinte constitui uma falsificação de terceiros, bem andou a Administração Fiscal ao liquidar a que corresponde maior imposto"

M. Como emana do art. 59.º n.º 1 e 2 CPPT (que quase decalca os termos dos mesmos n.ºs do art. 76.º CPT) o procedimento de liquidação tributária, por regra e na normalidade das situações, busca a sua génese no conteúdo das declarações dos contribuintes. Em jeito de definição, por "declaração" devemos, aqui e para este efeito, entender o "acto pelo qual o contribuinte leva ao conhecimento (da AT) a existência da matéria tributável que integra o facto tributário, indicando o seu montante e todos os elementos necessários para o cálculo do imposto (...)".

N. Considerando também já terem sido proferidas duas decisões jurisprudenciais no processo de impugnação n.0 ……/2001 que reveste a mesma matéria, relativamente à liquidação correctiva do IRS de 1995, juntamos os referidos documentos (documento 1 - decisão de primeira instancia e documento 2 - Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul} que caracterizam bem a posição que a Representação da Fazenda Pública pretende louvar.

TERMOS EM QUE, CONCEDENDO-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DEVE A DOUTA SENTENÇA, ORA RECORRIDA, SER REVOGADA, ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA!»


*

O recorrido, V……, devidamente notificado para o efeito, não apresentou contra-alegações.

*

O Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

*

Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Tributário para decisão.



****

As questões invocadas pelo Recorrente nas suas conclusões das alegações de recurso, que delimitam o objecto do mesmo, e que cumpre apreciar e decidir são as seguintes:

_ Erro de julgamento de facto e de direito porquanto é sobre o impugnante que recai o ónus da prova, demonstrando quais das duas declarações de IRS é a que corresponde aos valores descritos na contabilidade, o que não o fez nos termos do art. 342.º, n.º 1 do Código Civil (conclusões A) a M) das alegações de recurso);
_ Erro de julgamento porque já foram proferidas decisões jurisprudenciais no processo de impugnação n.º ……/2001 que reveste a mesma matéria relativamente à liquidação de IRS de 1995 (conclusão n) das alegações de recurso).

****

II – FUNDAMENTAÇÃO

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

«1. O Impugnante, V……, iniciou atividade e 26 dejulho de 1994 como mecânico automóvel [CAE 28520 - atividades de mecânica geral], mas em 31 de dezembro de 1995 cessou-a e vendeu todo o imobilizado e existências à sociedade V……, L.dª, da qual é sócio e cuja atividade se iniciou imediatamente a seguir.

2. Nessa sequência, o Impugnante formulou um pedido de reembolso de Imposto sobre o Valor Acrescentado por créditos acumulados no período da atividade em nome individua do terceiro trimestre de 1994 ao quarto de 1995, resultantes do Imposto sobre o Valor Acrescentado dedutível sobre o imobilizado.

3. Em análise e apreciação desse pedido, a Administração Tributária procedeu a uma análise às declarações do Impugnante [e sua mulher de então], modelo 2, para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares dos anos de 1994 e de 1995, que para o efeito lhe pediu.

4. E assim, na referente ao ano de 1995, cuja cópia lhe foi fornecida pelo Impugnante, por intermédio da sua nova mulher, verificou que no quadro 04 do anexo A e no quadro 05 do anexo B l não eram coincidentes os valores inscritos com aqueles da declaração que constava no sistema informático da Administração Tributária.

5. Assim, nos rendimentos brutos do Impugnante inscritos no anexo A quadro 04, constavam 676.000$00 (e dedução específica de 440.000$00) que no sistema informático não constavam.

6. Do mesmo modo, no anexo Bl quadro 05, no apuramento de rendimento do Impugnante, constavam 1.000.000$00 em vendas de mercadorias que não constavam do sistema informático e em prestações de serviços constavam 4.000.000$00 que também não constavam do sistema.

7. Solicitados esclarecimentos ao Impugnante, ele referiu que esta declaração fora elaborada (e recolhido o carimbo de apresentação no Serviço de Finanças) para conseguir que uma instituição bancária lhe concedesse crédito, o que com base na declaração real não obteria.

8. Essa declaração, apesar de nela constar carimbo de receção, não fora do oportuno e efetivo conhecimento da Administração Tributária.

9. Com efeito, a nova mulher do Impugnante, quem providenciara pela resposta à solicitação referida no ponto 3., infine, desconhecia que a declaração referente a 1995 que apresentava não fora efetivamente do conhecimento da Administração Tributária, tendo-a encontrado entre a documentação solicitada, que por isso entregou com o mais à Administração Tributária, conforme referido nos pontos 3.ss.

10. Nessa sequência e com base na declaração de que então tivera conhecimento efetivo, a Administração Tributária procedeu à elaboração de documentos de correção, DC, que deram origem a uma consequente liquidação corretiva de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, relativamente àquele ano de 1995.

11. Do mesmo passo, a Administração Tributária verificou que, em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado, nas declarações periódicas desse ano de 1995 aqueles valores discrepantes, das vendas e das prestações de serviços, não tinham sido relacionados nas operações ativas - apenas tinham sido relacionados 14.228.031$00 -, pelo que igualmente procedeu à correção correspondente, do que resultava estar em falta 850.000$00 [= 5.000.000$00xl 7%] de Imposto sobre o Valor Acrescentado daquele período.

12. As duas declarações para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares referentes a 1995, do Impugnante [e mulher de então], que a Administração Tributária cotejou, eram ambas de 28 de março de 1996, as duas «primeiras declarações do ano» - nenhuma sendo de substituição, portanto -, tendo ambas, ao menos aparentemente, carimbo de receção no Serviço de Finanças da Lourinhã:

• uma, a que havia servido para a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, com o nº5 l 1…….., de 6 de agosto de 1996 [de que havia resultado dívida de imposto no montante de 329.900$00];

• a outra, que não tinha sido enviada para processamento, ainda que como declaração de substituição [daqueloutra].


13. Com base nesta última declaração exibida no âmbito daquele procedimento, a Administração Tributária viria depois a elaborar, em 14 de dezembro de 2000, a liquidação corretiva de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares de 1995, ao Impugnante e mulher, com o nº5……, da qual resultaria uma dívida de imposto no montante de 2.590.588$00.

14. E, com base nos valores supra-referidos não constantes da declaração que tinha sido a base da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares originária, a Administração Tributária viria a elaborar em 21 de novembro de 2000 tributação ao Impugnante, em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado, relativamente a esse ano de 1995:

• a liquidação de imposto, com o nº0……, de que resultava dívida no montante de 850.000$00/€4.239,78, com prazo de pagamento terminando a 31 de janeiro de 2001;

• a liquidação de juros compensatórios por 1739 dias [taxa anual de 13,75%], com o n°0……, num montante que se cifou em 556.837$00/€2.777,49, com prazo de pagamento igual ao da liquidação adicional de imposto.

15. De tanto notificado, o Impugnante reclamou graciosamente das liquidações em 28 de fevereiro de 2001 [reclamação graciosa nº3……. do Serviço de Finanças de Torres Vedras 2], a qual no termo da respetiva tramitação veio a ter decisão de indeferimento de 1 de outubro de 2001, com os seguintes fundamentos: 1. tendo sido apresentada a declaração na base das correções, é ao Impugnante que cabe demonstrar que essa sua declaração não contém os valores reais [informação de suporte à decisão]; 2. «Tendo em conta que o contribuinte não provou [...] qual das declarações corresponde à realidade dos factos, procedeu bem a fiscalização ao corrigir os valores [...] em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado, considerando que o contribuinte infringiu os arts.19º a 25º e 26º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado. § Nestes termos e face ao disposto no art.342º do Código Civil, cabe ao reclamante o ónus da prova, pelo que se propõe o indeferimento do pedido [parecer]».

16. O Impugnante foi notificado dessa decisão a 12 de outubro de 2001 na pessoa de terceiro [B…….], mas já no dia 3 de julho desse ano apresentara a petição na origem dos presentes autos.

17. Entretanto, como não procedera ao pagamento das dívidas de imposto e de juros das liquidações descritas no ponto 14., no dia 23 de julho de 2001 foi instaurada no Serviço de Finanças de Torres Vedras 2 a execução para sua cobrança coerciva, com o nº3……., no âmbito da qual, depois da sua citação, se procedeu a 17 de novembro de 2001 à penhora de três aparelhos do Impugnante, no valor global de 1.900.000$00/€9.477,16, depois do eu foi sustada a aguardar a resolução da citada reclamação graciosa e, depois, da presente impugnação.

Não há outra matéria provada, nomeadamente factos alegados, que relevem para apreciação e decisão das questões. Da prova reunida já não resultou provado, com essa pertinência:

1. Que o acréscimo de rendimentos, em relação à declaração que deu origem à liquidação com o nº5…….., de 6 de agosto de 1996, contido na declaração apresentada no procedimento de reembolso de Imposto sobre o Valor Acrescentado, tivesse ocorrido na realidade e se compreendesse entre os rendimentos do Impugnante na sua atividade individual de 1995.

2. Que esse acréscimo de rendimentos/operações estivesse refletido ou na escrita do Impugnante relativa ao ano de 1995, ou na documentação de suporte, ou em qualquer outro elemento.

3. Como foi obtida a aposição do carimbo desta última declaração, de apresentação no Serviço de Finanças e quem a tanto procedeu.

Não há outros factos não provados com a relevância acima assinalada .

O juízo positivo sobre os factos julgados provados formou-o o Tribunal, quanto ao teor dos pontos 1.-7. e 10.-16., da própria reclamação graciosa e em conjugação com o teor da petição inicial e carimbo da sua apresentação em juízo, sendo na sua objetividade factos consensuais (embora não quanto ao seu sentido jurídico). Outrossim, o teor do ponto 17. o extraímo-lo da certidão da execução aí mencionada, constante de fls.119-127, oficiosamente pedida ao Órgão de Execução Fiscal. Na reclamação graciosa constam os atos, decisões e sua comunicação aos interessados e os documentos das liquidações e o extrato sumativo da ação de fiscalização.

A documentação citada é da própria Administração Tributária, não oferecendo dúvidas sobre a sua fidedignidade e correspondência com os originais, cujo valor probatório decorre dos termos do art.34ºnº2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário e dos dos arts.369º nº1, 370º nº1 e 371º nº1 do Código Civil.

Já o consignado no ponto 8., contudo, retirou-se da análise do proceder, ou da sua omissão, da Administração Tributária, relativamente a tal declaração, do qual surge cogente que jamais deu qualquer sequência à declaração com base na qual depois procederia tanto à liquidação corretiva de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares como às aqui impugnadas, de Imposto sobre o Valor Acrescentado, sendo certo que o desconhecimento e o não processamento dessa declaração resultam forçosos, a partir dos factos. Nesse sentido, aliás, o relatório pericial, por certidão constante constante de fls.37-38, realizado no âmbito da impugnação da paralela liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares impugnação nºl43/2001 do 4° Juízo do extinto Tribunal Tributário de ia Instância de Lisboa. Aliás, resulta que se trata de uma mera cópia, nunca ninguém tendo achado (nem procurado ...) resquício do original, se é que ele existiu, do que o Tribunal tem sérias e severas dúvidas em face do facto, evidente, de nunca lhe ter sido dada sequência. Por fim, o que provado se abrigou sob o ponto 9. retirou-se do depoimento da atual [mais rigorosamente, em 2005, quando depôs nestes autos] mulher do Impugnante. Com efeito, ela descreveu com pormenor como fora ela que providenciara pela reunião da documentação pedida pela Administração Tributária no âmbito do pedido de reembolso de Imposto sobre o Valor Acrescentado e, tendo-a encontrado entre tal documentação de seu marido, levou-a com o mais solicitado à Administração Tributária, a departamento da Administração Tributária que então processava tais matérias e que estava sediado na Avenida Almirante Reis, nesta cidade. A testemunha mais depôs como ela ignorava a origem e as vicissitudes que tinham estado na origem da elaboração dessa declaração, do que teve depois conhecimento em face do questionar que se seguiu pela Administração Tributária, altura em que o Impugnante a pôs a par do que sucedera. O depoimento foi, como dito, claro e linear na descrição que fez, sendo certo que indicou muito mais do ocorrido, a que todavia não se deu já relevo porquanto nessa parte se tratou de factos cujo conhecimento lhe adveio de forma demasiado indireta para firmar segurança no que depôs, não que ela não o tivesse feito convencida da sua veracidade, mas porque, por aquela circunstância do acesso indireto aos factos, se reputa nesta parte prova frágil para nela fundar toda génese da declaração que constitui o cerne do litígio. Do seu depoimento (constante relativamente ao prestado na impugnação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares também elaborada e que se reproduz em certidão de fls.56, a já citada impugnação nºl 43/2001 do 4º Juízo do extinto Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa) se extraiu, sem sombra de dúvida, que a testemunha atuou no desconhecimento da origem dessa declaração. Pelas caraterísticas que reuniu o Tribunal convenceu-se de que a testemunha narrava a verdade quanto aos factos por si protagonizados, e que estava convencida da verdade do mais que lhe relataram, até porque foi pessoalmente, como disse, tirar as suas dúvidas junto da contabilista que elaborara a "primeira" declaração - e que não reconheceu como sua a "segunda" - e, obviamente, questionou o seu marido e Impugnante sobre a matéria, ficando então a par do que ele lhe relatou - conjugando-se, de resto, com o que lhe dissera a tal contabilista e que em síntese está vertido no ponto 7., da matéria de facto, aqui mercê da própria intervenção do Impugnante junto da Administração Tributária.

Assim, o Tribunal respondeu à matéria de facto da forma plasmada supra, ao abrigo das normas invocadas e, bem assim, ao abrigo do disposto no art.396º do Código Civil, em conjugação e análise de toda a prova reunida.

Já a matéria de facto não provada ficou a dever esse juízo negativo sobre ela à absoluta ausência de prova desses factos.»



****

Conforme resulta dos autos, com base na matéria de facto supra transcrita, o Meritíssimo juiz do TT de Lisboa julgou procedente a impugnação judicial referente a liquidações adicionais de IVA de 1995, considerando os valores declarados na declaração de IRS que se encontrava em poder do Impugnante, mas que nunca foi efectivamente entregue à AT, e portanto nunca foi efectivamente processada pelos serviços da AT. Considerou-se na sentença recorrida que existindo uma declaração de IRS efectivamente entregue e processada, à AT cumpria averiguar quais os rendimentos efectivamente auferidos em 1995 pelo Impugnante, o que não fez, não podendo assentar as liquidações impugnadas em valores constantes de declaração de IRS que não foi efectivamente entregue pelo Impugnante. Mais se entendeu que no caso dos autos se verifica uma dúvida a favor do contribuinte nos termos do art. 121.º, n.º 1 do CPPT.

Com efeito, é a seguinte a fundamentação da sentença recorrida:
“Como recenseado antes da fixação dos factos, a primeira questão a apreciar e decidir é a de saber se foi acertada a assunção dos valores da declaração de rendimentos para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, exibida pelo Impugnante no decurso da apreciação de um pedido de reembolso de Imposto sobre o Valor Acrescentado. A reclamação graciosa decidiu que sim, com dois fundamentos:
1. apresentada a declaração na base das correções, é ao Impugnante que cabe demonstrar que essa sua declaração não contém os valores reais
e
2. o Impugnante não provou qual das declarações corresponde à realidade dos factos, cabendo-lhe esse ónus.
Cada uma das proposições parece correta prima facie, tendo por fundamento o disposto no art.77º do Código de Processo Tributário. As expressões em itálico dizem que o fundamento 1. repousa na assunção de que houve apresentação de ambas declarações, já o fundamento 2. admite que uma das declarações não é verdadeira. Ambas são erradas porque a apresentação é o quid a demonstrar, e pela Administração Tributária. Esta última é-o ainda porque então seria igualmente a Administração Tributária a demonstrar qual a prevalente e porquê, para em ambos os casos poder funcionar o disposto no art.76º do Código de Processo Tributário, em que no fundo confluem ambas proposições, ao fazerem apelo aos ónus probatórios que em seu entender impendiam sobre o Impugnante.
A questão subjacente é, portanto, a da apresentação das declarações, a que ambos argumentos fogem ou parecem ficcionar, partindo do pressuposto absolutamente errado, porque insubsistente: o Impugnante nunca apresentou a declaração na base das correções e tributação adicional à Administração Tributária. Com efeito, qualquer que fosse a génese exata dessa declaração e a finalidade que servira, notório e patente se mostra que ela, et pour cause, nunca tinha sido objeto de um qualquer processamento por parte da Administração Tributária, mesmo como declaração de substituição/reclamação graciosa, ou uma qualquer outra atuação da Administração Tributária sobre ela que possível fosse. Isso, só por si, deveria desde logo ter posto de sobreaviso a Administração Tributária, pela óbvia dúvida que cria sobre a real veracidade da apresentação dessa declaração. Aliás, basta perguntarmo-nos: onde o original dessa famigerada cópia?, porque nunca foi esse original processado?, para se evidenciar com clareza que essa declaração, por razões não efetivamente apuradas, nem nestes autos, nunca chegou ao conhecimento da Administração Tributária. Em suma, nunca foi realmente apresentada por forma a que dela se possam retirar efeitos jurídicos que válidos sejam, sem mais passando diretamente a atos de tributação.
Mesmo considerando, como se considera, que naturalmente em face dela a Administração Tributária a tivesse inicialmente tido como verdadeira, já perante a discrepâncias detetadas, para não falar já da oposição do Impugnante a que fosse considerada, impunha-se-lhe, no mínimo, que antes de mais averiguasse o que se passara com a declaração e saber por que razão nunca tinha sido processada. É que a situação com que se deparou era por demais anómala e, o que não é menos, casava quer com as objeções do Impugnante a que fosse tida como sua válida declaração de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares do ano de 1995, quer com o facto de, efetivamente, ela nunca ter sido processada!
Aliás, vistas as coisas no âmbito abrangente do Ordenamento, não podemos deixar de dizer, tal como o Ilustre Mandatário do Impugnante - em jeito de alegações orais no decurso da sessão contraditória -não deixou também de ir dizendo, que os factos que se reúnem - aliás logo na petição inicial - configuram, na sua objetividade, um crime de falsificação de documento: aposição da menção juridicamente relevante, de receção por entidade pública, de um documento que nunca ali deu entrada efetiva, mas no qual constam elementos acerca dos rendimentos de alguém, dos quais obviamente se pode retirar a mais diversa relevância, em diferentes domínios. Como se sabe, o crime de falsificação de documento é comummente um crime instrumental de um outro...
Como quer que seja, essas averiguações que antes de mais se impunham, a Administração Tributária entendeu-as irrelevantes, para tanto considerando a declaração, sem sequer curar de saber da sua efetiva receção, vista a anomalia do seu processamento omisso. Ao não verificar a receção da declaração, com leviandade algo chocante (com ou sem oposição do Impugnante, bastando as discrepância detetadas), a Administração Tributária atuou como se o quadro por demais bizarro que se lhe apresentava fosse normal.
Todavia, mesmo não tendo querido saber de tudo isso, tomando como "boa" esta declaração de rendimentos que nunca ninguém na Administração Tributária tinha antes efetivamente visto, do estrito ponto de vista tributário a situação com que a Administração Tributária se deparava era então a de perda da presunção de veracidade da declaração com base na qual tinha oportunamente elaborado a liquidação originária de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares ao Impugnante e sua mulher de então, art.76ºn.os 1 e 2, a contrario, e 76º do Código de Processo Tributário. Logo, o que se lhe impunha fizesse era averiguar da real factualidade sobre os rendimentos do casal em 1995. O que uma vez mais omitiu.
Neste conspecto, é por motivos desconhecidos que a nova declaração é assumida como boa, opção da Administração Tributária que por isso mesmo surge como perfeitamente ad libitum e arbitrária. Com efeito, desconhece-se com base em quê, então, «preferiu» ela a nova à velha declaração, aquela que tinha servido à elaboração da liquidação originária de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares. Tal é tão mais grave quanto ao assim atuar, implicitamente, a Administração Tributária tomou ambas as declarações como boas, como apresentadas, mas impôs a nova ao Impugnante, como se de uma declaração de substituição se tratasse, o que surge sem qualquer sustentáculo normativo, ou sequer racional ou de sentido. Efetivamente, poderia vir a fazê-lo mais tarde, mas para isso precisava de ter procedido a uma inspeção cujas conclusões, maxime com base na própria contabilidade do Impugnante, demonstrassem que a nova declaração era a correta, que ela deveria sobrepor-se à velha. E tal era necessário em face da anomalia da declaração nova que nada permitia sem mais tê-la como normal, desde logo e como dito, perante as discrepâncias detetadas pela Administração Tributária, no cotejo das duas de que passou a dispor.
Em conclusão, verificando-se uma anomalia, a aparição de uma declaração nunca processada, apesar de aparentemente apresentada à Administração Tributária, discrepante dos dados conservados sobre o Impugnante, impunha-se saber da sua efetividade, da sua validade. Só então, porventura, e se fosse caso disso, é que poderia proceder-se a uma ação inspetiva que demonstrasse uma verdade outra, condizente v. g. com aquela declaração, para por fim poder proceder-se a tributação adicional. Ao omitir um tal iter lógico, procedimental e legal, a Administração Tributária tomou como boa essa declaração, impô-la ao Impugnante e, com base em factos em parte alguma plasmados, criou uma tributação a que falece outro motivo que não uma declaração de rendimentos que o Impugnante nunca apresentou.
A decisão da reclamação graciosa e as liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado que ela mantém ofendem, pelo exporto, o disposto nos arts.76º e 78º do Código de Processo Tributário, e não têm o suporte fático e argumentativos que se lhes exigiria, nos termos dos arts.77º e 88º do mesmo corpo de normas. O que responde também à segunda questão equacionada, sobre a subsistência dos factos que legitimariam a tributação impugnada. Aliás, neste aspeto, o quadro de superveniência da declaração conduz-nos diretamente à dúvida a favor do contribuinte, estabelecida no art.121ºnºl do Código de Procedimento e de Processo Tributário, que sempre implicaria a anulação dos atos.
Assim, os atos impugnados carecem de uma fundamentação fática e normativa, incumprindo o disposto nos arts.268ºnº3 da Constituição da República e 124ºnº1 corpo e alínea a) e 125ºnºl do Código de Procedimento Administrativo, na versão de então e, com isso, especificamente, não cumprem o disposto nas normas já invocadas e nas constantes dos arts.19º corpo e alínea b) e 21º do Código de Processo Tributário à época em vigor, por isso que os anulamos.
Por todo o exposto, sem necessidade de mais alongado excurso, julgamos esta impugnação de V.......da liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado nº00319199 e a dos conexos juros compensatórios, com o nº00319198, de 21 de novembro de 2000, bem como da decisão superveniente, de indeferimento, proferida na reclamação graciosa sobre elas, procedente por provada, atos que anulamos.”

A Recorrente Fazenda Pública não se conforma com o decidido invocando, em síntese, erro de julgamento de facto e de direito, na medida em que o contribuinte não demonstrou à AT qual das duas declarações de IRS estaria correcta, cabendo ao Impugnante o ónus da prova (art. 341.º e ss do CC). Mais invoca que a seu favor já decidiu este TCAS relativamente à dívida de IRS de 1995, resultante da mesma acção de inspecção que a dívida de IVA de 1995 impugnada nos presentes autos.

Antes de mais, cumpre emitir pronúncia sobre a invocação da prescrição das dívidas subjacentes ao presente processo de impugnação judicial efectuada pelo Impugnante no âmbito do presente recurso.

In casu, a questão da prescrição não foi suscitada na 1.ª instância, e por conseguinte, não foi decidida na sentença recorrida. Ora, a prescrição constitui uma questão de conhecimento oficioso, e por essa razão, pese embora estejamos perante questão suscitada pela Recorrente já em sede de recurso, sempre se poderá dela se conhecer oficiosamente (conforme a jurisprudência da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo tem afirmado, reiterada e uniformemente, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais que visam modificar as decisões recorridas, e não criar decisões sobre matéria nova, e por essa razão, regra geral, em sede de recurso, não se pode tratar de questões que não tenham sido apreciadas pela decisão impugnada, salvo questões novas de conhecimento oficioso e não decididas com trânsito em julgado (cfr. Ac. do STA de 05/11/2014, proc. n.º 01508/12, de 01/10/2014, proc. n.º 0666/14, de 13/11/2013, proc. 1460/13, de 28/11/2012, proc. 598/12, de 27/06/2012, proc. 218/12, de 25/01/2012, proc. 12/12, de 23/02/2012, recurso 1153/11, de 11/05/2011, proc. 4/11, de 1/07/2009, proc. 590/09, 04/12/2008, proc. 840/08, de 2/06/2004, proc. 47978 (Pleno da Secção do Contencioso Tributário).


Porém, só se pode conhecer da prescrição da obrigação tributária em impugnação judicial de forma incidental, ou seja, como eventual causa de inutilidade superveniente da lide, e apenas se o processo disponibilizar, sem necessidade de averiguação, todos os elementos factuais necessários.

Com efeito, como a jurisprudência tem afirmado de forma reiterada e pacífica, o conhecimento da prescrição da dívida tributária no âmbito do processo de impugnação judicial apenas poderá ser conhecido a título incidental como eventual causa de inutilidade superveniente da lide, porém, apenas e somente, se o processo disponibilizar, sem necessidade de averiguação, todos os elementos factuais necessários (vide neste sentido por todos, o acórdão do STA de 04/07/2018, proc. n.º 01433/17).

In casu, o processo não oferece todos os elementos necessários para o conhecimento da prescrição, porquanto, e desde logo, verifica-se que foi autorizado o pagamento em prestações das dívidas em 18/11/2009, mas a tramitação do processo de execução fiscal apenas se encontra reflectida nos autos até 20/01/2010, não havendo informação se foram todos os montantes pagos, ou apenas parte, nem a demais tramitação do processo de execução fiscal, imprescindível para o conhecimento da prescrição.

Pelo exposto, não se conhece da prescrição das dívidas subjacentes à presente impugnação judicial.

Prosseguindo.

Conforme vem alegado pela Recorrente Fazenda Pública, relativamente ao IRS de 1995, apurado com base no mesmo relatório de inspecção, e com os mesmos fundamentos que subjazem à liquidação de IVA de 1995 ora impugnada, já decidiu este TCAS em 30/10/2007, processo n.º 01233/06, acórdão este transitado em julgado conforme informação prestada nos presentes autos.



Naquele acórdão decidiu-se, em síntese, que tendo o Impugnante apresentando duas declarações de IRS do ano de 1995 com valores diferentes, e sendo ambas apresentadas como 1.º declaração do ano junto dos serviços de finanças, então a AT tem o direito de proceder à liquidação considerando os elementos que constem nas declarações, mais se considerando que naquele processo o contribuinte não fez prova de que o conteúdo da segunda declaração não estava conforme a realidade.

Ora, o decidido naquele acórdão poderá, eventualmente, impor-se aos presentes autos por força da autoridade do caso julgado, desde que se verifiquem os pressupostos enunciados na lei, tal como se decidiu no acórdão do TCAS de 16/09/2019, proc. n.º 1154/11.6BELRA:

“Com efeito, nos termos do art.º 619.º, n.º 1, do CPC:
“1 - Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”.
Respeita a norma contida nesta disposição legal ao caso julgado material, que ocorre quando a decisão transitada recai sobre o mérito da causa(1). Assim, a definição dada à relação material controvertida tem força dentro e fora do processo(2)
As exigências de segurança jurídica têm sido apontadas como fundamento primordial do caso julgado material(3), sendo um garante da tendencial imutabilidade das decisões transitadas em julgado, fundamental até em termos de manutenção da paz social.
O caso julgado material pode refletir uma dupla função, negativa ou positiva. (4)
Assim, a função negativa do caso julgado material está inerente à exceção de caso julgado, consubstanciando-se no impedimento de a mesma causa ser apreciada pelo Tribunal numa nova ação.
Já a função positiva respeita à chamada autoridade do caso julgado, através da qual se obsta a que a situação jurídica material definida por sentença ou acórdão transitados em julgado possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença ou acórdão.(5) Ou seja, a autoridade do caso julgado impõe à segunda decisão de mérito o decidido na primeira como sendo seu pressuposto indiscutível, subjacente a uma relação de prejudicialidade entre o objeto de ambas as decisões(6).”

In casu, está em causa aferir se estamos perante a função positiva do caso julgado material, ou seja, perante a autoridade do caso julgado resultante da decisão proferida pelo acórdão do TCAS supra referido, já transitado em julgado, que a verificar-se obsta a que a situação jurídica material ali definida seja redefinida de modo diverso no presente processo.

Ora, naquele acórdão o que se decidiu é que a AT tem o direito de proceder à liquidação de IRS considerando os elementos que dispunha, e que a AT estaria legitimada a proceder a liquidação. Porém, importa também considerar que, de igual modo, se entendeu que o contribuinte não fez prova de que o conteúdo da segunda declaração não estava conforme a realidade. Portanto, naquele processo considerou-se que o contribuinte não cumpriu com o ónus da prova com o qual o tribunal entendeu (bem ou mal) que se encontrava onerado.

Ou seja, este segundo juízo quanto à ausência de prova por parte do Impugnante contido no acórdão, e que conduziu à improcedência da impugnação referente ao IRS, poderá não se verificar nos presentes autos, desde que aqui a prova produzida e dada como assente sobre a mesma relação material, permita outro desfecho jurídico, e portanto, não se está a beliscar a autoridade do caso julgado. É que é preciso ter em consideração que naquele processo não foi produzida prova testemunhal, nem fixados factos não provados como sucede nos presentes autos.

Com efeito, no presente processo foi produzida prova testemunhal que foi considerada e valorada pelo juiz a quo que não evidencia erro de julgamento que importe corrigir, sendo que a decisão também assenta numa dúvida a favor do contribuinte ao abrigo do art. 121.º do CPT “que sempre implicaria a anulação dos actos”. Ou seja, na sentença recorrida acaba por se entender que se verifica uma fundada dúvida da existência do facto tributário, e ao abrigo do art. 121.º do CPT.

Portanto, ainda que se pudesse extrair do acórdão do TCAS que a AT estaria legitimada a proceder à correcção, e nesta parte prevalecesse a força da autoridade do caso julgado, a verdade é a questão da veracidade dos elementos declarados nesta segunda declaração poderá ser objecto de um juízo de dúvida a favor do contribuinte, tal como entendeu o tribunal recorrido, porquanto a respeito da veracidade das declarações nada foi decidido por aquele acórdão do TCAS, e portanto, quanto à questão material referente à veracidade dos elementos declarados nas declarações aquele acórdão do TCAS não se pronunciou porque entendeu que o Impugnante não produziu qualquer prova.

Nos presentes autos verifica-se a produção de prova testemunhal que foi valorada pelo Juiz a quo, e com base nos elementos junto aos autos proferiu-se um juízo de dúvida sobre a existência do facto tributário que está na origem da liquidação impugnada, o que tanto basta para concluirmos que, a decisão a proferir nos presentes autos não se encontra abrangida pela autoridade do caso julgado daquele acórdão do TCAS.

Por outro lado, pese embora a Recorrente Fazenda Pública assuma a posição de que o Impugnante não cumpriu o ónus da prova que sobre si recaia, o que se poderá entender como uma sindicância, ainda que indirecta, ao segmento da sentença que decidiu ancorando-se na dúvida sobre a existência do facto tributário, a verdade é que também nesta parte não lhe assiste razão.

Se atentarmos à matéria de facto dada como provada, em particular o ponto 8 e 9, da mesma resulta que a declaração de IRS em causa não foi efectivamente levada ao conhecimento da AT em momento anterior à acção de inspecção interna, o que, desde logo, nos leva a duvidar que tenha sido processada pelos serviços, pois dela tomam conhecimento apenas através da mulher do Impugnante. Repare-se que do ponto 4 da matéria de facto resulta que esta declaração entregue pela mulher do Impugnante não constava do sistema informático da AT, pois apenas constam os valores da declaração de IRS que foi efectivamente processada e que era do conhecimento dos serviços.

Por outro lado, a dúvida sobre a existência do facto tributário adensa-se e perante a matéria de facto dada como não provada nos pontos 1 a 3, que de resto não foi impugnada pela Recorrente Fazenda Pública, sendo suficientes para criar no espírito do julgador uma dúvida fundada sobre a existência do facto tributário. Na verdade, as diferenças de valores das declarações não assentam em qualquer outro elemento ou indício que se tivesse apurado, designadamente documentação da contabilidade da Impugnante, ou recolha de depoimentos, etc.

Ou seja, o facto tributário assenta unicamente numa declaração de IRS que apesar de ter o carimbo dos serviços de finanças, não foi processada e não consta do sistema informático da AT, apenas levada ao conhecimento da AT pela mulher do Impugnante, circunstâncias que foram esclarecidas através da prova testemunhal, o que nos parece suficiente para validar o juízo efectuado pelo juiz a quo de que se verifica uma fundada dúvida sobre a existência do facto tributário, nos termos do art. 100.º n.º 1 do CPPT (“sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado”), preceito legal aplicável ao caso dos autos, face ao disposto no art. 4.º do DL n.º 433/99, de 26 de Outubro que estabelece a entrada em vigor do CPPT a 1 de Janeiro de 2000, e a sua aplicação aos procedimentos iniciados e aos processos instaurados a partir dessa data (o que sucede no caso dos autos em que quer o procedimento, quer o processo é posterior àquela data) e que corresponde ao anterior art. 121.º do CPT, revogado por aquele diploma (cfr. art. 2.º).

Em suma, improcedem todos os fundamentos do recurso.

Nos termos do artigo 527.º do CPC aplicável ex vi do artigo 2.º alínea e) do CPPT a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte a que elas houver dado causa (n.º 1), entendendo-se que dá causa às custas do processo a parte vencida na proporção em que o for (n.º 2). Nos presentes autos é vencida a Recorrente Fazenda Pública, porém, esta se encontra isenta de custas, nos termos do art. 3.º, n.º 1, al. a), do Regulamento das Custas dos Processos Tributários, e art. 9.º, do DL n.º 29/98, de 11 de Fevereiro, que aprovou tal Regulamento, na medida em que a presente impugnação judicial foi proposta em data anterior a 01/01/2004.

****


III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, confirmar a sentença recorrida.

****
Sem custas.
D.n.
Lisboa, 18 de Dezembro de 2019.

Cristina Flora


Tânia Meireles da Cunha


Mário Rebelo



--------------------------------------------------------------------------------
(1).Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Vol. V, p. 156.
(2).A este respeito, v. Manuel de Andrade, Noções Elementares de processo Civil, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 1956, p. 285.
(3).A este respeito, v. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Vol. III, p. 94, Manuel de Andrade, Noções Elementares de processo Civil, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 1956, pp. 286 e 287, e Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, 1985, Coimbra Editora, Coimbra, p. 705.
(4).V. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Vol. III, p. 93. Distinguindo as situações consoante a relação entre o objeto da decisão transitada e o do processo posterior e, nesse seguinte, discernindo entre situações com relação de identidade, situações com relações de prejudicialidade e situações com relações de concurso, v. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, 2.ª Ed., Lex. Lisboa, 1997, pp. 574 a 577.

(5).Cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 13.11.2018 (Processo: 4263/16.1T8VCT.G1.S1) e de 27.02.2018 (Processo: 2472/05.8 TBSTR.E1)

(6).V. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.02.2019 (Processo: 4043/10.8TBVLG.P1.S1) e de 13.11.2018 (Processo: 4263/16.1T8VCT.G1.S1), e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 28.02.2019 (Processo: 2143/05.5BELSB).