Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2365/19.1BEBJA-S1
Secção:CT
Data do Acordão:03/25/2021
Relator:LUISA SOARES
Descritores:
DISPENSA DE PROVA TESTEMUNHAL;
RECURSO EM SEPARADO.
Sumário:I- O despacho que dispensou a prova testemunhal por considerar ser desnecessária não rejeita os meios de prova requeridos pelas partes nos termos previstos no artigo 644.º do CPC.

II- Não podendo ser qualificado como despacho de rejeição de meios de prova, o mesmo só pode ser impugnado no recurso que vier a ser interposto da decisão final, nos termos do nº 3 do art. 644º do CPC aplicável ex vi do art. 281º do CPPT.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 2ª SUBSECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I – RELATÓRIO

Vem E........ recorrer para este Tribunal do despacho proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja datado de 11-10-2020, o qual indeferiu a arguição de nulidade processual deduzida pela recorrente, por não ter sido permitida a produção da prova testemunhal requerida e que visava ilidir a presunção de recepção do relatório de inspeção tributário na data presumida na lei.

A Recorrente conclui as suas alegações de recurso nos seguintes termos:

I. O presente recurso tem como objeto o douto despacho judicial proferido pelo Tribunal a quo datado de 11-10-2020, o qual indeferiu a arguição de nulidade processual deduzida pela recorrente, por não ter sido permitida a produção da prova testemunhal requerida pela recorrente e que visava ilidir a presunção de receção do relatório de inspeção tributário na data presumida na lei.

II. A recorrente não pode concordar com a posição firmada pelo Tribunal a quo no despacho de 11-10-2020 o qual indeferiu definitivamente a produção de prova testemunhal, através do indeferimento da arguição de nulidade processual que recaiu sobre o sobredito indeferimento.

III. Em primeiro lugar, diga-se ab limine que o Tribunal a quo, no despacho recorrido, faz uma conclusão sobre factos baseada em meras suposições, sem qualquer respaldo probatório.

IV. O Tribunal a quo chegou à conclusão apontada, afirmando, talvez arrimado em regras de experiência (que não menciona ou explica), que apesar de estarem outras pessoas a viver no domicílio fiscal tal não implica que a notificação do relatório e do seu conteúdo estivessem fora da esfera de cognoscibilidade da recorrente.

V. Ora, neste âmbito, o Tribunal a quo não cuidou sequer de apurar – nem estava na posse de factos que lhe permitiriam fazê-lo - com a segurança devida, de que a notificação chegou mesmo ao conhecimento da recorrente.

VI. Não apurou, outrossim, que qualquer das pessoas que estavam a habitar a casa da recorrente, tenham recebido a notificação em vez da recorrente e não a tenham entregue a esta a tempo de a mesma reagir contra o conteúdo do ato administrativo que encerrava a notificação.

VII. O Tribunal a quo não estava no local, não assistiu à entrega das notificações, não sabe sequer quantas pessoas estiveram no domicílio da recorrente, em que tempo, e não sabe se a notificação foi ou não recebida por essas pessoas e não sabe se foi entregue à recorrente, a sua previsível destinatária.

VIII. Todos estes factos, que se impunha apurar com produção de prova, foram, na verdade, intuídos pelo Tribunal a quo, tornando assim uma presunção de notificação com natureza iuris tantum, numa presunção iure et de iure, inilidível.

IX. Crê a recorrente que o Tribunal a quo não poderia ter afirmado, como afirmou, temerariamente, que apesar de estarem outras pessoas a viver no domicílio fiscal da recorrente, a notificação lhe foi entregue, e não foi, ao invés, recebida e retida (por qualquer razão não apurada) por essas pessoas.

X. A conclusão avançada pelo Tribunal a quo de que a receção da notificação que continha o relatório de inspeção tributário foi rececionada pela recorrente no espaço de tempo presumido na lei (quando a recorrente imputou a terceiros essa receção), concluindo ainda que o mero envio do relatório o colocava na “esfera de cognoscibilidade” recorrente, sempre seriam conclusões sobre factos que careciam do seu prévio apuramento factual e não de mera dedução judicial.

XI. O que o Tribunal a quo fez, com o devido respeito, foi realizar um ato divinatório, transformando uma presunção iuris tantum (de receção do relatório tributário) numa presunção iure et de iure, violando assim claramente a letra da lei, a sua teleologia e menosprezando a justiça material.

XII. Presumir que certo ato tributário ou administrativo foi remetido e recebido pelo seu destinatário não significa que o mesmo tenha tido conhecimento efetivo dele; a vida real é demasiado profícua em eventos que colocam em causa tal construção teórico-jurídica. Daí que o legislador tenha dotado a legislação vigente de presunções ilidíveis.

XIII. Tratando-se de presunções "iuris tantum", o sujeito passivo poderá ilidi-las provando que o facto presumido, efetivamente, não se verificou. Para isso, tem de ser concedida a faculdade do sujeito passivo realizar essa prova, e não degolá-la à partida, sem mais, como sucedeu no caso presente.

XIV. No caso concreto, com o despacho em crise, o Tribunal a quo decepou qualquer possibilidade de a recorrente ilidir a presunção iuris tantum e de alegar e provar os factos que permitiram colocar em causa o facto presumido de receção do relatório de inspeção na data presumida.

XV. Estando em causa, no caso sub iudicio, a elisão de uma presunção iuris tantum, não podia o Tribunal a quo ter indeferido a produção de prova testemunhal arrolada com o fito de afastar essa presunção.

XVI. Ao indeferir liminarmente prova testemunhal arrolada pela recorrente, a qual tinha por vista ilidir a presunção iuris tantum de receção do relatório de inspeção tributário na data presumida, o Tribunal a quo violou os n.ºs 1 e 2 do art. 62.º, os n.ºs 1 e 2 do art. 64.º do RCPITA, bem como o n.º 1 do art. 74.º da LGT.

XVII. Os n.ºs 1 e 2 do art. 62.º, os n.ºs 1 e 2 do art. 64.º do RCPITA, bem como o n.º 1 do art. 74.º da LGT deveriam ter sido interpretados e aplicados pelo Tribunal a quo no sentido de que pretendendo a recorrente ilidir a presunção de receção do relatório de inspeção tributário no período presumido na lei, tendo para o efeito arrolado prova testemunhal, tem o Tribunal a quo de ordenar a produção dessa prova testemunhal por forma a aquilatar se de facto se confirma a presunção ou se, por outra banda, a mesma é ilidida.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO DE APELAÇÃO SER JULGADJULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE, E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADO O DESPACHO EM CRISE SENDO O MESMO SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE JULGUE PROCEDENTE A ARGUIÇAO DE NULIDADE PROCESSUAL, POR NÃO TER SIDO PRATICADO ACTO QUE A LEI IMPUNHA, SENDO, AFINAL, DEFERIDA A PRODUÇÃO DA PROVA TESTEMUNHAL ARROLADA PELA RECORRENTE.
ASSIM DECIDINDO, V. EXAS. ATRIBUIRÃO COR DE VERDADE À SEMPRE ALMEJADA JUSTIÇA.”.
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A Recorrida não apresentou contra-alegações.
* *
O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
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Colhidos os vistos legais e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.

II – DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635°, n.° 4 e artigo 639°, n.°s 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente.

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões das alegações da Recorrente, a questão controvertida consiste em aferir se o despacho proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja enferma de erro de julgamento de facto e de direito ao ter indeferido a arguição de nulidade processual deduzida pela recorrente, por não ter sido permitida a produção da prova testemunhal requerida e que visava ilidir a presunção de recepção do relatório de inspeção tributário na data presumida na lei.

Contudo, previamente, importa decidir se esse despacho é recorrível autonomamente.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO E DE DIREITO

No decurso da tramitação processual do processo de impugnação judicial nº 2365/19.1BEBJA, foi proferido despacho com o seguinte teor:
Atento o disposto no art.º 38 e no do art.º 62.º do RCPTA, bem como no art.º 39.º n.º 2 do CPPT, considerando os documentos juntos à contestação da Fazenda Pública, dos quais resulta que o relatório final dos procedimentos de inspecção tributária em causa foi remetido à Impugnante através de carta registada, considerando ainda que o relatório final do procedimento de inspecção tributária não é directa e imediatamente impugnável, não vislumbro utilidade na produção de prova testemunhal sobre os factos constantes dos artigos 1.º a 7.º da petição inicial.
Perante a afirmação que a Autora faz no artigo 45.º da sua petição inicial, e caso esse facto venha a relevar para a decisão a tomar, caberá à Entidade Demandada provar a notificação daquela do alegado despacho para derrogação do sigilo bancário, pelo que, também quanto a este facto, se mostra inútil a produção de prova testemunhal requerida.
Os artigos 11.º, 12.º e 13.º do articulado de resposta contêm factos sem relevância para as questões a decidir e o art.º 18.º do mesmo articulado contém meras considerações.
Assim, ao abrigo do disposto no art.º 13.º do CPPT, indefiro a prova testemunhal requerida pela Impugnante.
Notifique.
*
Notifique as partes para, querendo, no prazo de 20 dias, apresentarem as suas alegações escritas. (art.º 120.º ex vi art.º 211.º n.º 1 do CPPT)” (cfr. doc. nº 004060019 - numeração SITAF).

Na sequência deste despacho, a Impugnante apresenta um requerimento a suscitar a nulidade processual formulando os seguintes pedidos:
“a) Que. V. Exa. se digne a reconhecer e declarar a nulidade do despacho judicial com data de conclusão de 08-06-2020, por violação do disposto no art. 3.º do C.P. Civil e, por outro, o disposto nos preceitos ínsitos nos artigos 114. °, 115. ° e 118. ° do C.P.P. Tributário, aplicáveis por via do 211.º n.º 2 do mesmo diploma legal, acabando também por violar o disposto no n.º 1 do art. 74.º da LGT;
b) Em consequência, que V. Exa. se digne a admitir a produção de prova testemunhal quanto a todos os pontos da petição inicial já indicados pela impugnante em requerimento que antecede o presente;
c) Que. V. Exa. se digne a ordenar a junção do presente requerimento aos autos;” (cfr. doc. nº 004060012 - numeração SITAF).

E em 11/10/2020 foi proferido despacho sobre o referido requerimento nos seguintes termos:
“Nos termos do art.º 98.º n.º 1 do CPPT, apenas constituem nulidades insanáveis no processo judicial tributário; A ineptidão da petição inicial; A falta de informações oficiais referentes a questões de conhecimento oficioso no processo; e A falta de notificação do despacho que admitir o recurso aos interessados, se estes não alegarem.
E, nos termos do art.º 195.º do CPC, ex vi art.º 2.º e) do CPPT, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”
Ora, em face do disposto no art.º 13.º do CPPT, do art.º 130.º do art. 411.º CPC ex vi art.º 2.º e) do CPPT, apenas devem ser realizadas as diligências de prova que sejam úteis ao apuramento dos factos que possam ser conhecidos, e naturalmente, desde que sejam factos relevantes para as questões que ao tribunal cabe apreciar e decidir.
Tendo em conta os vícios que são imputados ao acto impugnado, bem como os factos concretos alegados para suportar cada um desses vícios, tendo ainda em conta aquelas que são as obrigações dos sujeitos passivos quanto à comunicação do seu domicílio e às consequências daí resultantes, e tendo também em conta aquelas que são as obrigações da Administração Tributária quanto às formalidades a observar nas notificações das suas decisões, entendeu o tribunal indeferir a prova testemunhal requerida, ao abrigo daquelas disposições legais.
Por outro lado, é a própria Impugnante a admitir que o relatório de inspecção tributário foi enviado através de carta registada para aquele que, não nega, ser o seu domicílio fiscal.
A presença de outras pessoas nesse mesmo local, ou o recebimento da carta por estas pessoas, não a colocam fora da esfera de cognoscibilidade da Impugnante.
Não se vislumbra, por isso, que a decisão de indeferir a prova testemunhal requerida, nestas circunstâncias, configure a prática um acto que não estivesse previsto na lei, nem a omissão de qualquer acto que a lei impusesse.
Ou seja, entendo que não foi cometida qualquer nulidade, muito menos insuprível.
Notifique.” (cfr. doc. nº 004060007 - numeração SITAF).

Discordando do decidido, a Impugnante apresenta recurso jurisdicional para este Tribunal (cfr. doc. nº 004060003 - numeração SITAF).

Salienta-se que o despacho recorrido consiste num despacho interlocutório, inserido na tramitação da causa, pelo que, antes do mais, coloca-se a questão prévia da admissibilidade do presente recurso.

Pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja foi proferido despacho que admitiu o recurso, com subida imediata, em separado, e com efeito suspensivo, tendo mencionado os artigos 644.º, nº 2, alínea d), 645º, nº 2 e 647º todos do CPC, ex vi do art. 281º do CPPT.

O Tribunal ad quem não está vinculado ao teor do despacho de admissão do recurso, como resulta do disposto no art. 652º do CPC.

Vejamos então.

De acordo com o disposto no art. 281º do CPPT “Os recursos das decisões proferidas pelos tribunais tributários, ainda que interlocutórias, regem-se pelo disposto no Código de Processo Civil, salvo o disposto no presente título”.

E o n.º 2 do artigo 644.º do CPC enuncia, de forma taxativa, as decisões interlocutórias que admitem recurso imediato.

Dispõe o artigo 644.º do CPC, na parte que aqui interessa, o seguinte:
1 – Cabe recurso de apelação:
a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente;
b) Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.
2 – Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1ª instância:
(…)
d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova;
(…).

No caso em apreço, a decisão recorrida não procedeu a um verdadeiro indeferimento dos meios de prova requeridos pela impugnante, ora Recorrente. Na verdade, o Tribunal a quo não rejeitou qualquer meio de prova, limitou-se a analisar os factos em relação aos quais a impugnante pretendia a produção de prova testemunhal e concluiu face à prova documental existente nos autos, ser desnecessária a produção de prova testemunhal.

Em suma, o despacho em causa não rejeitou qualquer meio de prova, mas apenas considerou ser desnecessária a produção de prova requerida, o que constitui realidade distinta.

Destarte resulta que o despacho proferido de dispensa de produção de prova testemunhal não configura um “despacho de rejeição de meios de prova”, pelo que só pode ser impugnado no recurso que vier a ser interposto da decisão final, nos termos do nº 3 do artigo 644º do Código de Processo Civil.

A jurisprudência tem entendido, em casos similares aos dos presentes autos, que o despacho que dispensa a realização de determinado meio de prova não configura uma rejeição de meios de prova, e como tal esse despacho só pode ser impugnado no recurso que vier a ser interposto da decisão final. Veja-se nesse sentido o Ac. do TCA Sul de 19/12/2017 – proc. 236/14.7BELSB-A ao afirmar que “I. O despacho, proferido na fase de saneamento da causa, que considerou não haver necessidade em determinar a abertura de um período de produção de prova, que entende que a prova documental patente nos presentes autos e no processo administrativo é suficiente para a decisão da ação, configura um despacho que não procede a uma verdadeira rejeição dos meios de prova requeridos pelas partes, nos termos previstos no artigo 644.º do CPC.
II. Não podendo o despacho recorrido ser qualificado como despacho de rejeição de meios de prova, o mesmo só pode ser impugnado no recurso que vier a ser interposto da decisão final, nos termos do n.º 5 do artigo 142.º do CPTA.”. No mesmo sentido o Acórdão do TCA Norte de 07/04/2017 – proc. 2587/15.4BEBRG-A, e ainda o Ac. da Relação do Porto de 04/11/2019 – proc. 701/17.4T8MAI.PI, que a propósito do indeferimento de realização de 2ª perícia afirmou “I– O indeferimento da realização de uma 2.ª perícia não constitui a rejeição de um meio de prova, no sentido em que o artigo 644, n.º 2, alínea d) do CPC admite apelação.
II – Assim, o despacho que não admite a 2.ª perícia não é passível de recurso autónomo”.

Face ao exposto, não deverá ser admitido, por irrecorribilidade autónoma da decisão recorrida, o requerimento de interposição de recurso jurisdicional, não se conhecendo do objeto do presente recurso.

IV - DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da 2ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em rejeitar o presente recurso.

Custas pela Recorrente
Lisboa, 25 de Março de 2021

[A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, as Desembargadoras Cristina Flora e Tânia Meireles da Cunha].
Luisa Soares