Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:77/17.0BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:09/16/2021
Relator:VITAL LOPES
Descritores:REGIME DE TRANSPARÊNCIA FISCAL;
LEGITIMIDADE PARA DEDUZIR IMPUGNAÇÃO JUDICIAL;
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA;
JUROS INDEMNIZATÓRIOS.
Sumário:1. O regime de transparência fiscal caracteriza-se pelo facto de o rendimento apurado pela sociedade transparente não ser tributado na esfera desta, mas sim na esfera dos seus sócios.

2. Os recursos jurisdicionais não visam criar decisões sobre matérias novas, pelo que se a questão não foi colocada nem decidida na instância inferior, não se pode da mesma conhecer, a menos que se trate de matéria de conhecimento oficioso.

3. Tal é o caso, se a AT apenas em sede recursiva vem colocar em causa a possibilidade de o sócio impugnar a liquidação do IRS feito na sua esfera com fundamento em ilegalidade das correcções à matéria colectável da sociedade.

4. Se a impugnada liquidação de IRS feita na esfera do sócio não é anulada, por a sentença ter julgado extinta a instância por virtude da sentença entretanto proferida em outro processo que anulou as correcções á matéria colectável da sociedade, não pode depois, por manifesta falta de pressupostos, condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios ao impugnante, nos termos do art.º 43.º da LGT.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 2.ª SUBSECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL


I. RELATÓRIO

O Exmo. Representante da Fazenda Pública recorre da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial apresentada por J... e mulher, A... no seguimento do indeferimento do recurso hierárquico interposto do anterior acto de indeferimento da reclamação graciosa visando as liquidações oficiosas de IRS dos anos de 1993 e 1994 nos montantes respectivos de 41.261,79 euros e 25.661,43 euros.

O Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes e doutas conclusões:
«
4.1. Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou parcialmente procedente a Impugnação judicial, intentada pelos ora recorridos contra as liquidações adicionais de IRS n.º 532037735, referente ao ano de 1993, no valor de 8.272.247$00 (41.261,79 €) e n.º 5320358522, referente ao ano de 1994 e de montante de 5.144.656$00 (25.661,43 €).

4.2. Como fundamento da Impugnação Invocaram os Impugnantes, em suma, a Ilegalidade da liquidação em causa, por, na sequência de correcções técnicas com reflexo no resultado tributário ao IRC dos anos de 1993 e 1994 da sociedade "B... & Associados, S.R.O.C." foi Imputado ao primeiro Impugnante, na qualidade de sócio daquela, a matéria colectável corrigida, na parte proporcional à sua participação social, invocando quanto a elas errónea aplicação do quadro legal vigente à data dos factos, duplicação de colecta, preterição de audição prévia, falta de fundamentação e falta de Indicação do despacho de delegação de competências.

4.3. Concluem o articulado inicial peticionando a anulação das liquidações adicionais de IRS de 1993 e 1994, por falta de fundamento legal, duplicação de colecta e por insuficiente fundamentação.

4.4. Subsidiariamente peticionam a anulação parcial das liquidações adicionais de IRS de 1993 e 1994, por correcção à matéria tributável da referida sociedade, imputando-se aos Impugnantes matéria colectável, para efeitos de IRS, no valor, respectivamente, de 20.979,58 € e 3.543,31 €.

4.5. Finalmente, peticionam a condenação da Administração Tributária ao pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, a serem computados, na proporção de vencimento, entre 22/06/1998 (1994) e 03/08/1998 (1993) e a data efectiva dos tributos indevidamente pagos.

4.6. O Ilustre Tribunal “a quo", por sentença de 9 de Fevereiro de 2017, julgou a impugnação parcialmente procedente, declarando extinta a instância, por Inutilidade superveniente da lide, relativamente à Impugnação da liquidação adicional de IRS de 1994, por força da anulação da liquidação adicional de IRS de 1994·de supra citada sociedade comercial, atenta a procedência da Impugnação n.º 15/2003 por esta intentada.
4.7. Mais julgou procedente o pedido de condenação da Administração Tributária ao pagamento de juros indemnizatórios, a incidir sobre a quantia de 41.261,79 €, referente ao IRS de 1993, bem como sobre o montante de 25.661,43 €, a incidir sobre o IRS de 1994, ambas pagas pelos Impugnantes.

4.8. Ora, é das decisões de procedência do pedido aduzidos pelos Impugnantes relativamente ao IRS de 1993, bem como relativamente à procedência do pedido de condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios relativos ao IRS de 1994, que a Fazenda Pública, por com a mesma não concordar, a coloca em crise, recorrendo para este Venerando Tribunal Superior.

4.9. Como decorre do conteúdo da sentença proferida, decidiu o Tribunal "a quo" focar com Interesse para a sua decisão, a matéria de facto constante do seu ponto III - cfr. págs. 5 a 8 do suporte documental da decisão ora em crise, e que ora se dá por reproduzida.

4.10. Foi a presente impugnação julgada procedente pelo Ilustre Tribunal ora recorrido relativamente à liquidação de IRS do ano de 1993 com fundamento, em suma, na errada contabilização, feita pela Administração Tributária, dos proveitos obtidos pela sociedade "B... & Associados, S.R.O.C.", sociedade esta sujeita ao regime de transparência fiscal, previsto no artigo 6.º do CIRC, e da qual o primeiro impugnante era, à data, sócio, anulando a liquidação de IRS dos ora impugnantes, relativamente ao ano de 1993, por força da supra referida errada contabilização dos proveitos obtidos pela sociedade "B... & Associados, S.R.O.C.".

4.11. Em douto parecer constante de fls. 562 e 563 dos presentes autos o DMMP considerou ser de Improceder a Impugnação, relativamente à liquidação impugnada referente ao IRS de 1993, por entender que as correcções de IRC de 1993 efectuadas à referida sociedade não foram objecto de impugnação, não se verificando, assim e por isso, qualquer ilegalidade que a inquine.

4.12. Relativamente a esta questão suscitada pelo DMMP no seu parecer, entendeu o Ilustre Tribunal a quo que "...não constitui qualquer óbice às correcções à matéria colectável de IRC de 1993 efectuadas à sociedade B... não terem sido Impugnadas, atento o facto das aludidas correcções à matéria colectável serem imputadas aos seus sócios, na parte proporcional à sua participação social, por força do regime de transparência fiscal, pelo que tem o 1.º Impugnante a necessária legitimidade para Impugnar a liquidação de IRS, podendo e devendo ser sindicada a legalidade das correcções em que assenta a liquidação em crise nos presentes autos.".

4.12. É com esta conclusão do Ilustre Tribunal recorrido que a Fazenda Pública não concorda, não tendo o Tribunal a quo, com o devido respeito e salvo sempre melhor entendimento, a correcta aplicação do direito in casu.

Isto porque,

4.13. entende a Fazenda Pública a referida liquidação adicional de IRS efectuada aos impugnantes, referente ao ano de 1993, não padece de qualquer vicio que a inquine de Ilegalidade, pois, se é verdade que os impugnantes, ora recorridos, têm legitimidade - substantiva e processual - para Impugnarem a liquidação adicional de IRS que lhes foi efectuada, relativamente ao ano de 1993, podendo ser sindicada a legalidade das correcções em que assenta a liquidação objecto da presente Impugnação, já não é, no entanto, verdade que possa ser sindicada a determinação da matéria colectável da sociedade "B... & Associados, S.R.O.C." em sede de IRC portanto, relativamente ao exercício de 1993.

4.14. Para aferir acerca da legalidade da liquidação adicional de IRS do ano de 1993, e ora em questão, o Ilustre Tribunal a quo aferiu acerca da legalidade do apuramento da matéria tributável da sociedade "B... & Associados, S.R.O.C.", referente ao exercício de 1993, em sede de IRC, sendo certo que apenas a matéria tributável (entretanto já apurada em sede de IRC) vai transitar, in casu proporcionalmente, para o conjunto da matéria tributável de IRS dos ora Impugnantes.

4.16. A legalidade, ou ilegalidade, do apuramento da matéria colectável, em sede de IRC, apenas pode ser judicialmente aferida através da impugnação judicial da mesma, a ser deduzida por quem teria legitimidade, substantiva e processual, para o efeito, ou seja, pela sociedade "B... & Associados, S.R.O.C.", pois apenas esta é o sujeito passivo da relação jurídico-tributária de imposto (in casu, de IRC).

4.16. A sociedade "B... & Associados, S.R.O.C." não colocou em causa a legalidade do apuramento da matéria tributável relativamente ao seu IRC do ano de 1993, conforme, aliás, o fez relativamente ao exercício de 1994.

4.17. Ao não o fazer, tal matéria tributável da sociedade "B... & Associados, S.R.O.C.", relativamente ao exercício de 1993, firmou-se, consolidou-se, solidificou-se na ordem jurídica.

4.18. Não foram as correcções à matéria colectável efectuadas à sociedade em questão que foram imputadas aos sócios - e, in casu, ao 1.º impugnante -, mas antes a própria matéria tributável da sociedade "B... & Associados, S.R.O.C.ª, por força do disposto no artigo 6.º do CIRC.

4.19. De acordo com a matéria tributável total de IRS dos impugnantes, relativamente ao ano em questão, foi efectuada a liquidação ora impugnada.

4.20. E objecto da presente impugnação é a liquidação adicional de IRS efectuada aos impugnantes, relativamente ao ano de 1993, e não a liquidação de IRC, referente ao mesmo ano de exercício, da sociedade em questão.

4.21.E nem se pode legitimar o recurso à apreciação da matéria colectável do ano em questão da sociedade "B... & Associados, S.R.O.C." em sede de IRC - e, note-se, segundo as regras de apuramento da matéria tributável próprias deste imposto - para aferir a legalidade da liquidação ora Impugnada, com o argumento que tal matéria será imputada aos sócios da referida sociedade por força do regime de transparência fiscal.

4.22. Apenas o resultado apurado da matéria tributável da sociedade em questão, em sede de IRC, é que vai "transitar" para a matéria tributável dos seus sócios, em sede de IRS destes, por força do regime de transparência fiscal a que aquela sociedade de encontra legalmente enquadrada – nisto é que consiste a imputação.

4.23. Assim, é entendimento da Fazenda Pública, com o devido respeito e salvo melhor entendimento, e à revelia do entendido pelo Ilustre Tribunal ora recorrido, que a questão decidenda nos presentes autos é não “... a problemática do método a adoptar para efeitos de periodização do lucro tributável das prestações de serviço efectuadas pela B......".

4.24. Entende a Fazenda Pública que o Ilustre Tribunal a quo, com o devido respeito e salvo sempre melhor entendimento, não ajuizou correctamente o tema decidendum em causa na presente impugnação, violando, assim, o disposto nos n.º 2 e 3 do artigo 607.º do CPC, ora aplicável por força do disposto na al. e) do artigo 2.º do CPPT, bem como o disposto no artigo 20.º n.º 1 e 2, do CIRS, bem como o disposto no artigo 6.º n.º 1, al. b), e n.º 4.º al. a), do CIRC.

4.26. Ao assim decidir, no entendimento da Fazenda Pública, sempre com o devido respeito e salvo melhor entendimento, o Ilustre Tribunal recorrido incorreu em erro de direito no julgamento da causa, sendo que deveria ter-se decidido pela falta de fundamento, de direito, da impugnação em questão.

Posto isto,

4.26. entendeu o Ilustre Tribunal ora recorrido, na decisão ora em crise, condenar a Administração Tributária no pagamento aos impugnantes de juros indemnizatórios, sobre a quantia de 25.661,43 €, referente ao montante pago pelos impugnantes relativamente ao IRS de 1994.

4.27. Para tanto, entendeu o Ilustre Tribunal recorrido que a devolução das quantias pagas são uma "...consequência necessária e directa da anulação das liquidações”, e que “...atendendo ao que acaba de ser exposto quanto às liquidações, que se impõe anular, ..." resulta claro que o pedido de pagamento de juros indemnizatórios aduzido pelos Impugnantes deve proceder.

4.28. Ora, e conforme o constante na al. a) do decisório da sentença ora em crise, o Ilustre Tribunal a quo julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, relativamente ao pedido, deduzido pelos impugnantes, de apreciação da legalidade da liquidação adicional de IRS do ano de 1994.

4.29. É entendimento da Fazenda Pública, com o devido respeito e salvo melhor entendimento, que a liquidação adicional de IRS, efectuada pela Administração Tributária aos Impugnantes, e relativamente aos rendimentos por estes auferidos no ano de 1994, não se encontra anulada.

4.30. O Ilustre Tribunal a quo, na decisão ora em crise, determinou a anulação da liquidação adicional de IRS dos Impugnantes relativa ao ano de 1993.

4.31. Relativamente à liquidação adicional de IRS dos Impugnantes do ano de 1994, considerou o Ilustre Tribunal ora recorrido que "com efeito, a procedência da impugnação n.º 15/2003 tem como consequência a anulação da liquidação de IRS de 1994, que não pode manter-se na ordem jurídica".

4.32. A procedência da Impugnação judicial n.º 15/2003 teve por consequência, apenas e tão só, a anulação da liquidação de IRC do exercício de 1994, relativamente à sociedade "B... & Associados, S.R.O.C." - liquidação esta que, note-se, é o objecto da citada Impugnação n.º 15/2003.

4.33. A liquidação de IRS em questão, do ano de 1994, consubstancia-se num acto administrativo-tributário autónomo e independente relativamente ao acto tributário de IRC impugnado naqueles autos judiciais.

4.34. É certo que a decisão judicial de anulação que recaiu sobre a liquidação de IRC do ano de 1994 efectuada à sociedade “B... & Associados, S.R.O.C." terá consequências no apuramento da matéria tributável de IRS desse ano dos impugnantes.

4.35. No entanto, tal decisão não produz efeitos relativamente ao acto de liquidação de IRS dos Impugnantes, do ano de 1994. - Vd. o disposto no artigo 621.º do CPC, ora aplicável por força do disposto na al. e) do artigo 2.º do CPPT.

4.36. Não tendo sido proferida qualquer decisão judicial que versasse sobre a impugnada liquidação de IRS, efectuada pela Administração Tributária aos impugnantes, do ano de 1994, tal liquidação, juridicamente, mantém-se vigente na ordem jurídica, não se encontrando, por isso, anulada.

4.37. Não existindo qualquer decisão judicial a declarar a ilegalidade da referida liquidação adicional, nem tão pouco qualquer decisão judicial que a declare ilegal por erro que sejai à Administração Tributária, não se encontra verificada a condição constante do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, razão pela qual é entendimento da Fazenda Pública, salvo sempre melhor entendimento, que não são devidos juros indemnizatórios aos impugnantes por parte da Administração Tributária,

4.38. pelo que, com o devido respeito e salvo sempre melhor entendimento, andou mal o Ilustre Tribunal recorrido ao condenar a Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios relativamente ao Imposto pago pelos Impugnantes, referentes à liquidação de IRS do ano de 1994,

4.39. incorrendo o Ilustre Tribunal a quo em erro de julgamento da matéria de direito, violando, neste aspecto, o disposto no artigo 43.º da LGT.

Assim sendo,

4.17. com o devido respeito e salvo sempre melhor entendimento, deve ser revogada a decisão ora recorrida, com as legais consequências daí decorrentes.

Pelo que se peticiona o provimento do presente recurso, revogando-se a decisão ora recorrida, assim se fazendo a devida e acostumada

JUSTIÇA!».

Os Recorridos apresentaram contra-alegações, que culminam com as seguintes e doutas conclusões:
«
A. O presente Recurso vem interposto da Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo que decidiu julgar parcialmente procedente a Impugnação judicial apresentada pelos ora Recorridos contra as liquidações adicionais de IRS nº 5320357735, referente ao ano de 1993, no valor de € 41.261,79 e n.º 5320358522, referente ao ano de 1994, no montante de € 25.661,43.
B. As questões materiais controvertidas objeto do presente recurso prendem-se em determinar se (i) para efeitos de anulação da liquidação de IRS de 1993 na esfera dos ora Recorridos era necessário que a B..., enquanto sociedade transparente, tivesse Impugnado a respetiva matéria coletável em sede de IRC, por ser esta o sujeito passivo da relação jurídico-tributária e ainda se (ii) são devidos aos ora recorridos juros indemnizatórios em consequência da anulação das liquidações de IRS de 1993 e 1994.

C. Na decisão ora recorrida, considerou o Douto Tribunal a quo, em síntese, que as correções à matéria coletável de IRC de 1993 efetuadas à sociedade B... padecem de vício de ilegalidade, devendo assim ser anuladas, confirmando a legalidade do método de contabilização de proveitos utilizado pela B..., o que motiva a ilegalidade do ato tributário objeto dos presentes autos.

D. É contra esta fundamentação que vem a ora Recorrente requerer a reapreciação da sentença recorrida, alegando o erro de direito no julgamento da mesma, alegando em concreto que a B... "não colocou em causa a legalidade do apuramento da matéria tributável relativamente ao seu IRC do ano de 1993", pelo que a matéria se encontra hoje consolidada na ordem jurídica, não tendo os ora Recorridos legitimidade para Impugnar a mesma, uma vez que o sujeito passivo da relação jurídico-tributária do imposto é a B....

E. Entendem os Recorridos que uma vez que as correções efetuadas à matéria colável da B..., enquanto sociedade transparente, são direta e proporcionalmente imputadas à participação social de cada sócio, o facto das mesmas não terem sido impugnadas na esfera da sociedade, não constitui qualquer óbice à Impugnação da liquidação de IRS de 1993 pelos ora Recorridos.
F. Em primeiro lugar, estamos perante uma questão nova, que não é de conhecimento oficioso e que como tal não pode ser objeto de apreciação no presente recurso, sob pena de violação do disposto no artigo 627.º /1 do CPC, o que motivará por si só a improcedência do presente recurso.

G. Ainda que se entenda que deve ser apreciado o referido fundamento, o que se Invoca sem conceder face ao acima exposto, estamos perante uma posição que viola o quadro legal aplicável ao regime da transparência fiscal bem como os princípios básicos de tutela dos direitos dos contribuintes.

H. À data da conclusão do Relatório de Inspeção Tributária era doutrina da administração fiscal, veiculada pelo oficio circulado n.º 14/95, de 14 de Junho, que, as sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal - como é o caso da B... - apenas eram notificadas da matéria coletável fixada por métodos indiciários, para efeitos de reclamação nos termos do artigo 54.º do CIRC ou 84.º do CPT (nas redações em vigor à data dos factos tributários}, das correções de natureza quantitativa susceptíveis de recurso hierárquico, nos termos do artigo 112º do CIRC, ou da alteração de prejuízos fiscais.

I. A contrario, e por ausência de qualquer disposição legislativa ou entendimento administrativo, ainda que notificadas de correções quantitativas, mas insusceptíveis de recurso hierárquico nos termos do artigo 112.º do CIRC, as sociedades sujeitas ao regime da transparência fiscal não podiam, até à entrada em vigor da LGT, ter nessa fase qualquer intervenção em nome próprio.

J. Com efeito, se é verdade que a sociedade transparente pode ser considerada formalmente um sujeito passivo de IRC, pois está sujeita ao cumprimento das obrigações declarativas e de retenção na fonte, não é menos verdade que o sujeito passivo obrigado ao pagamento do Imposto apurado no regime da transparência fiscal é o respetivo sócio, pessoa coletiva ou singular.

K. Daí que, nos termos legais - artigos 6.º CIRC e 20.º do CIRS -, a matéria coletável positiva corrigida seja automaticamente imputada aos sócios, a quem é feita a liquidação adicional correspondente, na modalidade de reforma de liquidação - vide art.º 100.º do CIRC, não lhes podendo estar vedado que nessa sede discutam a legalidade das correções efectuadas à sociedade, pois tal constituiria uma intolerável e inconstitucional denegação da tutela jurisdicional de um interesse legalmente protegido.

L. Não é assim verdade, contrariamente ao Invocado pela Fazenda Pública nos presentes autos, que a legalidade ou ilegalidade da liquidação do apuramento da matéria coletável, em sede de IRC ao abrigo do regime de transparência fiscal, apenas possa ser judicialmente aferida através da Impugnação judicial da mesma, a ser deduzida no presente caso pela B..., por esta ser o sujeito passivo da relação jurídico-tributária de Imposto.

M. Neste sentido, vide o entendimento do Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de 3 de outubro de 2001, no processo 26353: "(…) O que importa - e é demandado pelas exigências constitucionais - é que o sócio seja notificado possa exercer as garantias de defesa graciosa ou contenciosa que a sua posição de interessado demanda, enquanto sujeito passivo do tipo de Imposto em cujo rendimento tributável é considerada a matéria colectável da sociedade sujeita ao regime de transparência fiscal. Desde que o sócio seja notificado desse acto e contra ele possa reagir graciosa e contenciosamente, tem de ver-se por totalmente satisfeitas, relativamente a ele e aos efeitos que para si derivam do acto em causa, as garantias constitucionais que são estabelecidos nos arts. 268º nºs 3 e 4 da CRP e são repetidas e densificadas nos arts. 19º als. b) e c), 21º, 22, 23º e 63º e segs. do CPT. Deste modo não tem sentido fazer depender a eficácia do acto de fixação em relação ao sócio da notificação que possa ser feita também à sociedade" (sombreado nosso).

N. Sejamos claros, os sócios singulares de uma sociedade transparente, tal como sucedeu no caso do ora Primeiro Recorrido, são notificados de uma liquidação adicional de IRS, a qual constitui um ato autónomo, lesivo e, como tal, diretamente impugnável na sua esfera, nomeadamente ao abrigo do artigo 95.º do CPPT.

O. Admitir-se a tese da Recorrente, implicaria reconhecer que um sócio de uma sociedade · transparente ficaria limitado aos argumentos e vícios formais ou materiais invocados por outros sócios da mesma sociedade ou pela própria sociedade, o que constituiria uma inegável denegação dos seus direitos de defesa, sendo que não existe no regime de transparência fiscal qualquer mecanismo de reclamação prévia necessária na esfera da sociedade transparente, nem a Recorrente logrou invocar qualquer norma neste sentido.

P. Os Recorridos não desconhecem que podem atualmente as sociedades abrangidas pelo regime da transparência fiscal reclamar ou impugnar a matéria coletável que lhes for fixada ao abrigo do número 5 do artigo 137.º do CIRC, contudo, tal disposição legal só confere legitimidade de defesa à sociedade transparente no caso de as correções não originarem atos de liquidação na esfera dos sócios, pois, caso originem, a legitimidade para apresentação dos meios de defesa cabe diretamente aos sócios sobre a sua respetiva liquidação de imposto (neste sentido vide acórdãos deste Venerando Tribunal n.º 03644/09, de 14.12.2011e n.º 2522/08, de 30.06.2009).

Q. Por fim, os Recorridos não gostariam de deixar de referir que a Fazenda Pública não coloca em causa em nenhuma passagem das suas alegações de recurso, os fundamentos materiais subjacentes à decisão do tribunal recorrido no sentido anulação da liquidação de IRS de 1993 (legalidade do critério de reconhecimento dos proveitos utilizado pela B...), pelo que deve considerar-se como matéria não controvertida e não objeto do presente recurso a decisão do Douto Tribunal a quo sobre a legalidade material das correções que estão na base da liquidação do exercício de 1993.

R. Delimitado o tema acima, cumpre recordar que as correções efetuadas à matéria coletável da B... no exercício de 1994 foram totalmente anuladas, o que implica necessariamente a ilegalidade de todos os atos tributários que sobrevieram à realização das referidas correções.

S. Por outras palavras, face à anulação das correções à matéria coletável da B... do ano de 1994 e em virtude da aplicação do regime da transparência fiscal, é Inequívoco que as liquidações adicionais de IRS efetuadas na esfera dos respetivos sócios- como é o caso do 1.º Recorrido - se mostram na presente data inevitavelmente feridas de ilegalidade, como aliás decidiu (e bem!) o Douto Tribunal a quo.

T. Ora, em consequência direta da anulação da liquidação adicional de IRS na esfera dos ora Recorridos, com base num vício de ilegalidade, é inequívoco que os mesmos têm direito não só ao reembolso do Imposto indevidamente pago, como também dos juros indemnizatórios devidos nos termos do artigo 43.º da LGT.

U. Nos termos do atual artigo 100.º do CIRC "Sempre que, relativamente às entidades a que se aplique o regime de transparência fiscal definido no artigo 6.º, haja lugar a correcões que determinem a alteração dos montantes Imputados aos respetivos sócios ou membros, a Autoridade Tributária e Aduaneira promove as correspondentes modificações na liquidação efetuada àqueles, cobrando-se ou anulando-se em consequência as diferenças apuradas".

V. À luz do quadro legal acima exposto, tratando-se a B... de uma sociedade sujeita ao regime da transparência fiscal, é inequívoco que a anulação das correções efetuadas na sua esfera devem ser consequentemente anuladas na proporção imputável a cada um dos respetivos sócios, na mesma medida em que foram anteriormente emitidas as liquidações para incorporação das correções efetuadas pela Autoridade Tributária (sobre esta matéria, vide Acórdão do TCA-Sul, de 14 de dezembro de 2011, no processo n.º 03644/09).

W. Face ao exposto, é evidente que as afirmações da ora Recorrente no sentido de que a anulação da liquidação de IRC na esfera da B... não determina qualquer alteração nas liquidações de IRS dos respetivos sócios padecem de suporte legal.

X. Como bem notou o Douto Tribunal a quo na sua decisão, “foram anulados os factos tributários que determinaram a liquidação de IRS de 1994 em crise nos presentes autos, dito por outras palavras, significa que o IRS ficou sem a matéria colectável de que dependia, e, nessa medida, sem objecto."
Y. É assim por demais evidente que a anulação das correções na esfera da B... tem necessariamente de se refletir nos cálculos de apuramento do rendimento tributável em IRS do exercício de 1994 de cada um dos sócios, em particular e no que aos presentes autos respeita, do ora 1.º Recorrido, determinando a anulação proporcional da respectiva liquidação de IRS de 1994, o que motivará a improcedência do presente recurso.

Z. Numa nota lateral, não deixa de ser curioso salientar que a Recorrente ao mesmo tempo que invoca que a liquidação de IRS de 1994 é um ato independente e autónomo e cuja anulação não decorre tão-somente da anulação das correções efetuadas na esfera da sociedade transparente, contesta a decisão de anulação da liquidação de IRS de 1993 salientando que tal anulação estaria dependente de prévia Impugnação das correções na esfera da mesma sociedade transparente.

AA. Face a tudo o exposto, deverá o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se na ordem jurídica a decisão proferida pelo Douto Tribunal a quo e, em consequência, ser anulada a liquidação adicional de IRS do ano de 1993 e ordenado o pagamento de juros indemnizatórios relativos aos anos de 1993 e 1994, tudo com as demais consequências legais.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que os mui Ilustres Juízes DESEMBARGADORES deste Venerando Tribunal assim o julgarem no seu MUI douto juízo, deve o recurso Interposto pela Recorrente ser julgado totalmente improcedente, devendo ser confirmada a sentença recorrida no sentido da anulação da liquidação adicional de IRS do ano de 1993 e do reconhecimento do direito dos Recorridos ao pagamento de juros indemnizatórios relativos aos anos de 1993 e 1994, objeto dos presentes autos, nos termos e com os fundamentos melhor expostos nas presentes contra-alegações.

Assim fazendo, VOSSAS EXCELÊNCIAS,
a costumada Justiça!».

A Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso, mantendo-se o julgado.

Colhidos os vistos legais e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, analisadas as conclusões das alegações do recurso, são estas as questões que importa apreciar: (i) se os sócios da sociedade transparente podem impugnar judicialmente a matéria colectável do IRC apurado com relação à sociedade; (ii) se anulada judicialmente a matéria colectável do IRC da sociedade, tal determina ipso facto, a anulação da subsequente liquidação de IRS efectuada na esfera dos respectivos sócios com base naquela matéria colectável.
***

III. FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Na sentença recorrida deixou-se factualmente consignado:
«
Factos provados:

1) O 1.º Impugnante era, nos anos de 1993 e 1994, sócio da sociedade de revisores oficiais de contas, denominada “B...s & Associados, S.R.O.C." (doravante designada de B..."), a qual sujeita ao regime de transparência fiscal (cfr. relatório de inspecção tributária (RIT) de fls. 31e segs. dos autos);

2) O 1° Impugnante detinha uma quota correspondente a 23,5% do capital social da B..., o qual ascendia ao montante total de Esc.:1.060.000$00 (cfr. fls. 36);

3) A Sociedade B... foi alvo de uma acção de inspecção relativa aos exercícios de 1993 e 1994, tendo abrangido o imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), e o imposto sobre o valor acrescentado (IVA), da qual resultou correcções técnicas à matéria colectável de Esc.64.737.726$00 (€ 322.910,41) no exercício de 1993 e de Esc.46.902510$00 (€ 233.948,73) no exercido de 1994 (cfr. RIT e processo administrativo apenso (PA));

4) Em consequência das correcções à matéria colectável tributável realizadas à sociedade B..., foi efectuada a imputação ao sócio, aqui 1.º Impugnante, na parte proporcional à sua participação social na sociedade, originando as liquidações adicionais de IRS de 1993 e 1994 (cfr. RIT, PA e .fls. 163 e 164 dos autos);

5) Em 26/05/1998 foram emitidas as liquidações adicionais referidas no ponto anterior, a nota n.º 5320357735, referente ao ano de 1993, no montante de Esc.: 8.272.247$00 (€ 41.261,79), com termo voluntário de pagamento em 03/08/1998, e a nota n.º 5320358522 relativa ao ano de 1994, no montante de Esc.5.144.656$00 (€ 25.661,43), com data limite de pagamento em 22/07/1998 (cfr. fls. 163 e 164);

6) Em 31/07/1998 os impugnantes procederem ao pagamento da liquidação de IRS do ano de 1993 e em 22/07/1998 procederam ao pagamento da liquidação de IRS de 1994 (cfr. fls. 163, 164 e 374 a 378);

7) As correcções efectuadas no âmbito da matéria colectável do IRC à sociedade B..., têm a fundamentação, em síntese, de que o procedimento contabilístico utilizado pela sociedade, não obedece à alínea b), do n.º 3 do artigo 18.º do CIR.C, no tocante à periodização do lucro tributável, no entendimento de que os proveitos auferidos, através das prestações de serviço com carácter continuado ou sucessivo, deverão ser levados a resultados numa medida proporcional à da sua execução, por aplicação do método da percentagem do grau de acabamento para o cálculo da imputação dos proveitos ao exercício (cfr. RIT e PAs);

8) Em 22/09/1998, os Impugnantes deduziram reclamação graciosa das liquidações de IRS referentes aos anos de 1993 e 1994 (cfr. fls. 165 a 192 e 193 a 228 e PA);

9) Em 08/06/2001, por despachos do Director de Finanças Adjunto, foram indeferidas as reclamações graciosas relativas a IRS de 1993 e 1994, com a fundamentação constante, respectivamente, do parecer e das informações onde foram exarados, onde consta «(...) No caso concreto, e de acordo coma actividade da sociedade, os proveitos auferidos pela mesma, são prestações de serviço com carácter continuado ou sucessivo, conforme contrato estabelecido entre a sociedade e os clientes, prestações que se iniciam num exercício e terminam no outro e o pagamento das mesmas prestações de serviço, é repartido em várias fases, de acordo com o desenrolar dos relatórios, concluindo-se que a imputação dos proveitos ao exercício, deverá ser de acordo com a excepção prevista na alínea b) do n.º 3 do art.º 18.º do C.LR.C., na proporcionalidade da execução dos relatórios/projectos. (...)» (cfr. procedimentos de reclamação graciosa constantes do PA);

10) Na sequência da notificação dos despachos de indeferimento das reclamações graciosas, os Impugnantes, em 19/07/2001, apresentaram recurso hierárquico, o qual foi indeferido por despacho de 16/07/ 2003, do Subdirector-Geral (por subdelegação) com o seguinte teor «Concordo com os fundamentos constantes desta informação e pareceres, pelo que nego provimento ao presente recurso hierárquico, conforme proposta, com dispensa de audição prévia nos termos da alínea c) do n.º 3, da circular n.º 13/99 de 8 de Julho.»

11) O ofício n.º 23810, datado de 02/09/2003 expedido para notificação aos Impugnantes do despacho de indeferimento do recurso hierárquico veio devolvido com a indicação de «mudou sem deixar endereço» (cfr. PA);

12) Os impugnantes foram notificados do despacho de indeferimento do recurso hierárquico através do ofício n.º 24856, datado de 10/09/2003 (cfr. PA);

13) A sociedade B... prestava nos exercícios em causa serviços no âmbito da certificação legal de contas, nos termos do D.L. n.º 519-Ls/79, e prestava, também colaboração na emissão do Relatório e Parecer do Conselho Fiscal, os honorários eram calculados tendo por base o número de horas a despender, o grau de responsabilidade e a qualificação técnica do pessoal a destacar para cada trabalho e o pagamento era efectuado em prestações, sendo a última a efectuar após a entrega dos relatórios (cfr. RIT e PA);

14) Em 11/11/2003 os Impugnantes deduziram recurso contencioso contra o indeferimento do recurso- hierárquico, que por despacho de fls. 358 a 359 foi convolado em impugnação judicial.

15) A sociedade B... deduziu impugnação contra a liquidação de IRC de 1994, no valor de € 233.984,73, resultante da acção de inspecção a que se alude no ponto 3) supra, que correu termos neste Tribunal Tributário de Lisboa, Juízo Liquidatário, com o n.º 15/2003, no âmbito da qual foi proferida sentença em 07/09/2009, que julgou parcialmente procedente a impugnação, constante de fls. 460 a 481, que aqui se dá por integralmente reproduzida;

16) Apenas a Impugnante B... recorreu da sentença referida no ponto anterior, para apreciação da legalidade das correcções de IRC de 1994 não anuladas em 1.ª instância, cujo recurso correu termos sob o n.º 03645/09, no Tribunal Central Administrativo Sul, que por acórdão proferido em 28/04/2006, revogou a sentença recorrida e julgou procedente a impugnação na parte submetida a recurso, que aqui se dá por integralmente reproduzido (cfr. fls. 508 a 533);

17) No acórdão identificado no ponto anterior foram elaboradas conclusões com o seguinte teor «O contrato de prestação de serviços que tem por objecto a “Certificação Legal de Contas" é um contrato de prestação única ainda que completada com prestações acessórias.
Embora a prestação de serviços se mostre facturada com base nas horas despendidas e ter ocorrido um pagamento de adiantamento do preço, em nada altera a natureza dos serviços que são prestados.
É, que como é comum, a determinação do preço pode obedecer a uma multiplicidade de critérios: por exemplo, à forfait, ou per aversionem, por unidade, por medida, por tempo ou percentagem.
II. Segundo o método de contrato completado, os proveitos apenas são reconhecidos quando a obra contratada estiver concluída ou substancialmente concluída, sendo deduzidos dos respectivos custos acumulados.».
*
Factos não provados
Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.
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Motivação
Os factos provados assentam na análise critica dos documentos e informações oficiais constantes dos autos e dos processos apensos, que não foram impugnados.

B.DE DIREITO

Como já referimos uma das questões que importa resolver prende-se com a indagação da possibilidade de os sócios de uma sociedade profissional sujeita ao regime de transparência fiscal poderem impugnar a tributação cedular do rendimento que lhes é imputado em sede de IRS ou IRC invocando como fundamento erro na determinação da matéria colectável da sociedade.
O regime de transparência fiscal caracteriza-se essencialmente pelo facto de o rendimento apurado pela sociedade não ser tributado na esfera desta, mas sim na esfera dos seus sócios, em IRS no caso de pessoas singulares e em IRC no caso das pessoas colectivas.

De acordo com o disposto no n.º1 do art.º 5.º do CIRC, “é imputada aos sócios, integrando-se, nos termos da legislação que for aplicável, no seu rendimento tributável para efeitos de IRS ou IRC, consoante o caso, a matéria colectável, determinada nos termos deste Código, das sociedades (…) profissionais”.

Dispõe o art.º 12.º do CIRC que “as sociedades e outras entidades a que, nos termos do art.º 5.º, seja aplicável o regime de transparência fiscal, não são tributadas em IRC”.

Constata-se, deste modo, como refere Saldanha Sanches, “Sociedades Transparentes: Alguns Problemas no seu Regime”, Fisco n.º 17, de 15 de Fevereiro de 1990, pp. 35-6, a “desconsideração da personalidade jurídica” das sociedades transparentes para efeitos de tributação, reforçando: “... e estamos, pois, perante um caso de não sujeição a IRC quanto à obrigação principal (dívida de imposto) e sujeição a IRC quanto às obrigações acessórias (deveres de cooperação).”

Por outro lado, dispõe o art.º 78.º do mesmo CIRC: “Sempre que, relativamente às entidades a que se aplique o regime de transparência fiscal definido no artigo 5.º, haja lugar a correcções que determinem a alteração dos montantes imputados aos respectivos sócios ou membros, os serviços referidos no artigo 70.º promoverão as correspondentes modificações na liquidação efectuada àqueles, cobrando-se ou anulando-se em consequência as diferenças apuradas”.

Regressando aos autos, o que se constata é que o recorrente não se conforma com a sentença recorrida na medida em que apreciou a legalidade das correcções à matéria colectável da sociedade transparente em impugnação judicial da liquidação de IRS feita na esfera do sócio com base em rendimento tributável a que foi imputada aquela matéria colectável, nos termos do n.º3 do art.º 5.º do CIRC.

Na óptica do recorrente e se bem entendemos, não tendo sido impugnadas as correcções efectuadas à matéria colectável da sociedade com relação ao ano de 1993, a ilegalidade daquelas correcções não pode servir de fundamento (causa de pedir), nem ser apreciada, na impugnação da subsequente liquidação de IRS feita na esfera do sócio impugnante a cujo rendimento tributável foi imputada.

Não se tratando de questão líquida, não sentimos, porém, necessidade de entrar na controvérsia. Dizemos porquê.

Como sinalizam os recorridos, trata-se de questão nova, nunca antes suscitada no processo. E note-se que não se trata de uma questão de legitimidade processual. Do que se trata, é de saber se na impugnação do IRS liquidado ao sócio a que foi imputado o rendimento colectável da sociedade podem ser invocadas e sindicadas as eventuais ilegalidades das correcções ao rendimento colectável da sociedade transparente.

Ora, de há muito e com unanimidade, a jurisprudência tem repetido que os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo e não a pronúncia do tribunal ad quem sobre questões novas, só assim não sendo quando a própria lei estabeleça uma excepção a essa regra, ou quando esteja em causa matéria de conhecimento oficioso – vd. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Abril de 2005, tirado no proc.º 05B175.

Segundo, constata-se que nas impugnações administrativas precedentes (reclamação graciosa e recurso hierárquico – vd. pontos 8 a 10 do probatório), foi justamente peticionada pelos recorridos a anulação das liquidações de IRS dos anos de 1993 e 1994 com fundamento em ilegalidade das correcções à matéria colectável da sociedade transparente e a AT não só se pronunciou sobre o mérito da pretensão, como indicou o recurso contencioso (que viria a ser convolado em impugnação judicial) como o meio próprio de controlo judicial da decisão de recurso hierárquico.

Tal indica que a questão, ao tempo, era pacífica no interior da própria Administração tributária e, em todo o caso, na óptica do princípio da boa fé que deve conformar a actuação da AT, esta não invoca qualquer condicionante de ordem legal, judicial ou de doutrina administrativa que, entretanto, se tenha produzido no sentido que agora, em sede recursiva, vem propugnar e que importe valorar.

Este segmento do recurso não logra procedência, sendo de manter a sentença recorrida na parte em que anulou a liquidação de IRS de 1993 com fundamento em ilegalidade das correcções à matéria colectável da sociedade transparente.

Não se conhece, pelas indicadas razões, deste fundamento do recurso.

Numa segunda ordem de questões, alega o recorrente que não tendo sido anulada a liquidação de IRS de 1994 – uma vez que o tribunal a quo nessa parte julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide por virtude da sentença entretanto proferida na impugnação n.º 15/2003, que anulou as correcções à matéria colectável da sociedade transparente desse ano (cf. pontos 15 a 17 do probatório) – se mostra ilegal a condenação da AT no pagamento aos impugnantes dos juros indemnizatórios peticionados (com relação ao IRS de 1994), “desde o dia do pagamento do imposto, sobre a quantia de € 25.661,43, i.e., desde 22/07/1998 até à data da emissão da respectiva nota de crédito” (cf. pontos 5 e 6 do probatório).

Neste ponto assiste inteira razão ao recorrente. Vejamos o discurso da sentença recorrida:
«Na pendência da presente causa, as correcções à matéria colectável de IRC do ano de 1994 foram anuladas (pontos 15), 16) e 17) da matéria de facto dada como assente).
Daqui resulta que foram anulados os factos tributários que determinaram a liquidação de IRS de 1994 em crise nos presentes autos, dito por outras palavras, significa que o IRS ficou sem a matéria colectável de que dependia, e, nessa medida, sem objecto.
Assim, extinta aquela obrigação tributária, igual sorte deverá sofrer a liquidação de IRS, e, em consequência, o processo que as tem por objecto, como é o caso da presente impugnação, na parte relativa à liquidação de 1RS de 1994.
Com efeito, a procedência da impugnação n.º 15/2003 tem como consequência a anulação da liquidação de IRS de 1994, que não se pode manter na ordem jurídica.
(…)
No caso em apreço, torna-se inútil o conhecimento dos vícios assacados à liquidação de 1RS de 1994, atento o facto da anulação das correcções à matéria colectável de IRC da sociedade B... - os factos tributários sujeitos no caso em apreço a IRS -, conduzir à anulação do IRS, ou seja, da liquidação impugnada, pelo que os impugnantes já viram satisfeitas a sua pretensão, fora da presente impugnação judicial.».

Como se apreende do seu discurso fundamentador, a sentença não anulou a liquidação de IRS/94, limitou-se a julgar a instância de impugnação extinta nessa parte, o que significa que a impugnada liquidação de IRS/94 feita na esfera nos impugnantes, pese embora com base em matéria tributável que integra a matéria colectável da sociedade transparente imputada ao sócio impugnante/recorrido, se mantém na ordem jurídica.

E, sendo assim, falecem os pressupostos de que depende a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, com relação à liquidação de IRS/94, plasmados no n.º1 do art.º 43.º da Lei Geral Tributária, segundo o qual, «São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».

E que a liquidação do IRS feita ao sócio não deixa de subsistir na ordem jurídica por virtude da anulação das correcções à matéria colectável da sociedade transparente é justamente o que parece resultar do disposto no já citado art.º 78.º do CIRC, ao impor à AT que, verificando-se tais correcções, deverão os serviços competentes promover “as correspondentes modificações na liquidação efectuada àqueles (sócios), cobrando-se ou anulando-se em consequência as diferenças apuradas”, ou seja proceder à reforma da liquidação feita na esfera dos sócios.

Neste segmento, a sentença incorreu em erro de julgamento, não podendo manter-se na ordem jurídica.

IV. DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da 2.ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em:
(i) Conceder parcial provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a AT no pagamento aos impugnantes de juros indemnizatórios referenciados à liquidação de IRS/94;
(ii) Não conhecer dos fundamentos do recurso que consubstanciam questões novas e manter a sentença quanto ao demais.

Custas na proporção do decaimento.



Lisboa, 16 de Setembro de 2021

[O Relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Juízes–Desembargadores integrantes da formação de julgamento, Luísa Soares e MÁRIO REBELO].


Vital Lopes