Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13361/16
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:06/30/2016
Relator:CRISTINA DOS SANTOS
Descritores:EXTINÇÃO DE SOCIEDADE COMERCIAL – FALTA DE PERSONALIDADE JURÍDICA - ILEGITIMIDADE DO FIADOR
Sumário:1. A personalidade jurídica das sociedades comerciais cessa com a extinção da sociedade, operada pelo registo do encerramento da liquidação – cfr. disposições conjugadas dos artºs. 141º e 146º nº 2 e 160º nº 2 CSC.

2. Sendo o registo do encerramento da liquidação societária anterior à data da instauração da acção de impugnação da deliberação administrativa, conclui-se que a acção foi proposta por ente desprovido de personalidade jurídica e, como tal, insusceptível de ser parte – cfr. artº 11º nº 2 CPC/2013.

3.Sendo a sociedade comercial a pessoa jurídica destinatária da deliberação administrativa, o fiador é parte ilegítima para pedir a anulação da citada deliberação na medida em que carece de interesse directo e pessoal para impugnar - cfr. artº 55º nº 1 CPTA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:José ……………, com os sinais nos autos, inconformado com a sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa dela vem recorrer, concluindo como segue:

1. O M° Juiz "a quo" julgou procedentes as excepções de falta de personalidade judiciária da Autora C………….. e a ilegitimidade ativa dos demais AÃ., quanto à C………….. porque esta foi dissolvida em 30/12/2009 e quanto aos demais AÃ., por estes não terem interesse directo na anulação do ato impugnado, entendimento este que não subscrevemos;
2. Com efeito, a presente acção visa suspender a eficácia do acto administrativo da decisão proferida pelo Conselho Directivo do IFAP proferida em 18/2/2010, notificada à 1a A. através do Ofício 201/DAI/UREC/2010, na qual aquele determinou a devolução da quantia de € 51.315,30 e respectivos juros no valor de € 10.810,24.
3. Com efeito, a C……………. era uma sociedade comercial de âmbito familiar, constituída por dois irmãos, jovens agricultores, os aqui 2° e 3° AÃ., e que se dedicava à actividade agrícola e o 4° A., ora Recorrente, pai dos 2° e 3° AÃ., foi o fiador do projecto agrícola de onde deriva a ordem de devolução dada pelo Recorrido.
4. Para prossecução da sua actividade, a 1a A. candidatou-se ao denominado Programa Agro - Medida 1, tendo apresentado em 2002 um projecto de investimento na actividade agrícola destinado à modernização, reconversão e diversificação das explorações (Projecto n° ……………).
5. A 1a A. investiu o que estava efectivamente programado e adquiriu todos os bens e serviços constantes do seu projecto, o que não é posto em causa pelo IFAP!
6. Contudo, a C……………foi notificada pelo IFAP para "reposição voluntária da quantia em dívida supra, no montante de € 62.125,54", sem o que "será o montante em dívida compensado nos termos legais, com créditos que venham a ser atribuídos a Vexa., seguindo-se, na falta ou insuficiência destes, a instauração do processo de execução fiscal relativamente ao montante em dívida".
7. Ora, nem a C………….. nem o Recorrente tem créditos a receber do IFAP, pelo que este não poderá proceder a qual compensação e irá instaurar processo de execução fiscal, se é que ainda não instaurou.
8. Uma vez que a C…………. já não tem qualquer actividade nem património e foi, inclusive, dissolvida, este processo de execução fiscal será necessariamente instaurado contra o fiador, o aqui recorrente, o que levará, - necessariamente, à penhora dos seus bens.
9. Além disso, o Recorrente é agricultor por conta própria e, consequentemente, tal terá as consequências que facilmente se poderão antever, nomeadamente i) a impossibilidade de recurso a crédito, já que a acção executiva constará no sistema bancário; ii) a impossibilidade de obtenção de declarações de inexistência de dívidas, o que inviabilizará novas candidaturas a projectos agrícolas ou outros e iii) tudo isto levará que o envolvido no processo de execução fiscal fiquem impossibilitados, na prática, de prosseguir a sua actividade agrícola, iv) o que lhes acarretará prejuízos incalculáveis e irremediáveis.
10. Visto isto, parece-nos, salvo melhor entendimento, que o Recorrente tem não só todo o interesse como legitimidade para impugnar desde já uma medida que consideram ilegal e cujo destinatário único será ele próprio.
11. Tem, assim, legitimidade para impugnar quem espera obter da anulação do acto impugnado um certo benefício e se encontra em condições de o poder receber (...) O interesse directo contrapõe-se, assim, a um interesse meramente longínquo, eventual ou hipotético (...)( Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2010, págs. 235 e 236) (destacado nosso)
12. Analisando a afirmação que citámos do Ilustre Professor, cabe-nos perguntar: O interesse dos Recorrentes será meramente longínquo, eventual ou hipotético?
13. Afigura-se-nos que a resposta só poderá ser negativa porque não deixará de ser o Recorrente quem, desde já e em primeira linha, irá responder pela devolução da quantia pretendida pelo Recorrido, uma vez que, como vimos, perante a "morte" da C…………., não há mais ninguém que possa responder pelas responsabilidades desta perante o IFAP.
14. Podemos igualmente questionar se a pretensão dos AA tem efectiva necessidade de tutela judiciária e aqui a resposta não poderá deixar de ser positiva, uma vez que, sem a tutela judiciária nos termos requeridos, o Recorrente irá ter prejuízos directos equivalentes ao valor cuja devolução foi ordenada e avultados prejuízos indirectos relacionados com a prossecução da sua actividade, como expusemos supra.
15. Mais acresce que "essa qualidade de sujeito na relação material controvertida (material significa aqui não adjetiva) basta para assegurar a legitimidade activa em quaisquer processos que respeitem a tal relação, incluindo estes, da acção administrativa especial" ctr. Mário Esteves de oliveira E Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. 1, pág. 363) (destacado nosso)
16. Ora, o Recorrente José Lúcio Ferreira é sujeito na relação material controvertida, já que subscreveu o contrato subjudice de onde emerge o acto administrativo impugnado na qualidade de fiador.
17. Já os demais AA. subscreveram-no na qualidade de sócios gerentes e, como tal, entendemos que, pelo menos, o Recorrente José ………………… tem interesse em agir e legitimidade activa para tal.
18. Uma vez que, em nosso entender, a decisão recorrida viola o disposto no art° 9° e ai. a) do n° 1 do art° 55° do CPTA, deverá revogar-se a mesma e ordenar-se a prossecução dos autos.

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O Recorrido não contra-alegou.

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Pelo Senhor Juiz foi julgada provada a seguinte factualidade:

A. A Autora/sociedade comercial por quotas cujo objecto é a produção e comercialização de produtos hortícolas/ frutícolas e outros produtos agrícolas foi constituída em 8.6.2001.
B. Os 2° e 3° Autores eram são os sócios da ia Autora.
C. Em 20027 a ia Autora apresentou projecto de investimento no âmbito do Programa Agro Medida 1, no valor global de 242.221,70 €, subsidiado em 108.999,77€.
D. O 4° Autor foi o fiador do projecto.
E. O Réu subsidiou a actividade da C……………… no âmbito do referido projecto.
F. Em 30.12.2009, a 1ª Autora foi dissolvida.
G. Em 8.2.2010 o Conselho Directivo do IFAP determinou a devolução da quantia de 51.315,30 €, acrescida de juros, por virtude dos modos de pagamento terem sido emitidos e debitados após a entrega da documentação comprovativa, em violação da regra da elegibilidade n° 1 do Regulamento CE n° 1685/2000 de 28.7 e n° 1 do art 32º do Regulamento CE 1260/99 de 21.7, nos moldes constantes nos autos e aqui dados por reproduzidos.
H. Em 19.5.2010, foi interposta a presente acção.


DO DIREITO

Como nos diz a doutrina da especialidade em anotação ao artº 5º do CSC, “(..) As sociedades comerciais adquirem personalidade jurídica (ou colectiva) com o registo definitivo dos respectivos actos constituintes (que não sejam actos legislativos) (..)”, sendo reconhecida em termos específicos de personalidade e capacidade judiciária para os efeitos do disposto nos artºs. 11º nº 1, 12º d) e 15º CPC/2013, por remissão do disposto no artº 1º CPTA, assumindo a natureza de pressuposto processual que mostrando-se em falta constitui excepção dilatória obstativa do prosseguimento da causa com a consequente absolvição da instância ex vi artº 89º nº 1 b) CPTA. (1)
Por seu turno, conjugando o disposto nos artºs. 141º e 146º nº 2 e 160º nº 2 CSC, temos que “(..) A dissolução constitui um pressuposto para a extinção da sociedade …O que a dissolução não faz e, portanto, extinguir a sociedade … outros factos jurídicos devem produzir-se para que se verifique essa extinção; os factos (e operações) correspondentes à fase de liquidação. … O nº 2 do artº 146º afirma claramente que a sociedade em liquidação mantém a respectiva personalidade jurídica (a qual apenas virá a cessar com a extinção da sociedade, operada pelo registo do encerramento da liquidação - artº 160º nº 2) … No dizer da norma, a sociedade considera-se extinta mesmo entre os sócios – ou seja, o registo tem aqui uma eficácia constitutiva, não significando mera condição de oponibilidade da extinção a terceiros. (..)” (2)
Na medida em que o registo do encerramento da liquidação societária é anterior (30.12.2009) à data da instauração da presente acção (19.05.2010) de impugnação da deliberação de 18.02.2010 do IFAP ora Recorrido, temos que no tocante à sociedade C………….., Exploração …………………….., Lda. a acção foi proposta por ente desprovido de personalidade jurídica e, como tal, insusceptível de ser parte – cfr. artº 11º nº 2 CPC/2013.

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Por outro lado, o ora Recorrente não é destinatário da deliberação de 08.02.2010 do Conselho Directivo do IFAP que determinou a devolução da quantia de 51.315,30 € acrescida de juros por parte da beneficiária dos valores pecuniários recebidos ao abrigo do Programa Agro Medida 1, a sociedade C………….., Exploração …….., Lda., sendo que no artigo 8º da petição incial se assume como fiador do projecto financiado à sociedade C……………….., Exploração …………., Lda.
Ou seja, sendo a fiança, regulada nos artºs. 627º e ss. do C. Civil uma garantia pessoal, tal implica que existe um segundo património, além do património societário, que vai cumulativamente com este responder pelo pagamento da dívida.
Temos então, como nos diz a doutrina, “(..) que o património do devedor continua a responder por uma dívida própria, enquanto o património do fiador response por uma dívida alheia. Da parte do fiador há uma responsabilidade pessoal pelo cumprimento de uma dívida alheia (..)”, qualidades que se designam por acessoriedade (artº 527º nº 2 CC), isto é, a fiança apresenta-se como acessória da dívida principal, e subsidiariedade, referida na lei através do benefício de excussão (artº 638º C.C.), pelo que “(..) o fiador só responde pelo pagamento da obrigação se e quando se provar que o património do devedor é insuficiente para saldar a obrigação por este assumida. (..)” (3)
Neste enquadramento jurídico, o Recorrente na veste de fiador é parte ilegítima na presente causa na medida em que carece de interesse directo e pessoal para pedir a anulação da deliberação de 08.02.2010 do Conselho Directivo do IFAP – cfr. artº 55º nº 1 CPTA.
Pelo exposto improcedem todas as questões trazidas a recurso nos itens 1 a 18 das conclusões.



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Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida.

Custas a cargo do Recorrente.

Lisboa, 30.JUN.2016,

(Cristina dos Santos) ……………………………………………………………………….

(Paulo Gouveia) ……………………………………………………………………………

(Nuno Coutinho) ………………………………………………………………………….

(1) Alexandre Soveral Martins, Código das sociedades comerciais em comentário, Jorge Coutinho de Abreu (coord.), Almedina (reimpressão), pág. 97.
(2) Ricardo Costa, Carolina Cunha, Código das sociedades comerciais em comentário, Jorge Coutinho de Abreu (coord.), Almedina (reimpressão), págs. 564, 565, 619, 681.
(3) Pedro R. Martinez/Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de cumprimento, Almedina/1997, págs. 44-45.