Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1960/20.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:08/24/2021
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:LEI DO ASILO
REGULAMENTO DE DUBLIN III
RETOMA A CARGO
FATORES DE VULNERABILIDADE
ESTADO DE SAÚDE DOS REQUERENTES
Sumário:I. A saúde dos requerentes de proteção internacional é um fator de vulnerabilidade, pois que pode comportar necessidades especiais – cfr. art. 2.º, n.º 1, alínea y), e art. 52.º, n.º 5, ambos da Lei do Asilo;

II. A situação em apreço, embora possa colocar questões idênticas sobre as quais o Supremo Tribunal Administrativo se tem pronunciado, são delas distintas, pois que se prendem com a análise da matéria de facto e não sobre a matéria de direito.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

1. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, aqui recorrente, não se conformando com a decisão sumária proferida pela relatora a 28.05.2021, que acompanhou o sentido da decisão recorrida, veio daquela reclamar para a conferência, requerendo que sobre o recurso jurisdicional que interpôs da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, de 10.10.2021, recaia acórdão.

O Recorrido, A..., notificado para o efeito, respondeu à reclamação apresentada, defendendo que o sentido da decisão sumária proferida fosse mantido em conferência.

1.1.A reclamação para a conferência constitui um meio adjetivo próprio, ao dispor da parte que se sinta prejudicada por decisão individual e sumária do relator, podendo aqui o recorrente/reclamante restringir o objeto do recurso, mas não ampliá-lo – cfr. art. 635.º, n.º 4, e art. 636.º, n.º 1, ambos do CPC, ex vi art. 140.º CPTA. A reclamação para a conferência faz retroagir o conhecimento do mérito do recurso, desta feita, em conferência, ao momento anterior à decisão sumária proferida.

Vejamos então.

O Recorrente, nas alegações de recurso que apresentou havia culminado com as seguintes conclusões – cfr. fls. 238 e ss., ref. SITAF:

«(…)

1ª - Com a devida Vénia, afigura-se ao recorrente que a Sentença, ora objeto de recurso, carece de fundamentação legal, porquanto não logrou fazer a melhor interpretação do regime que regula os critérios de determinação do estado membro responsável, em conformidade com o Regulamento (EU) que o hospeda;

2ª – Verifica-se, assim, que a Entidade Demandada observou as exigências previstas no artigo 5º do Regulamento supra mencionado, tendo realizado, antes da decisão que determinou a transferência, uma entrevista pessoal com o requerente, ora Autor e, bem assim, elaborado um resumo escrito, através de relatório/formulário, do qual constam as principais informações facultadas pelo requerente e facultada ao requerente a possibilidade de pronúncia quanto à eventual decisão de tomada a cargo a proferir pelo Estado onde o pedido foi apresentado, bem como alegar elementos suscetíveis de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade e, consequentemente, a sua transferência para França;

3ª - Não se vislumbra, por força das declarações do próprio Recorrido, que a Entidade Demandada omitiu qualquer dever instrutório, isto é, que devesse ter averiguado outros factos que se revelassem adequados e necessários à tomada de decisão, antes de ditar a transferência do A. para França;

4ª - Quer no tocante ao sistema de análise dos pedidos de asilo da França, quer nos elementos constantes nos autos, inexistem quaisquer indícios que permitam concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento de Asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes, que impliquem um risco de tratamento desumano ou degradante, no que respeita em especial ao acesso aos cuidados de saúde, para que Portugal não proferisse a decisão de transferência ora impugnada;

5ª - Mais se dirá que, nos autos não são apresentados elementos suficientes comprovativos que o requerente apresente um estado de saúde particularmente grave que uma transferência para a França iria provocar um agravamento do mesmo, com efeitos significativos e irremediáveis.

6ª No âmbito do Regulamento (UE) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, o intercâmbio dos dados pessoais dos requerentes, efetuado antes da sua transferência, incluindo os dados sensíveis em matéria de saúde, garantirá que as autoridades competentes estão em condições de prestar aos requerentes a assistência adequada e de assegurar a continuidade da proteção e dos direitos que lhes foram conferidos.;

7ª - O nº 1 do art.º 31º do Regulamento Dublin estabelece que “O Estado-Membro que procede à transferência de um requerente ou de outra pessoa a que se refere o artigo 18º, nº 1, alíneas c) ou d), comunica ao Estado-Membro responsável os dados pessoais relativos à pessoa a transferir que sejam adequados, pertinentes e não excessivos, unicamente para efeitos de assegurar que as autoridades competentes de acordo com a legislação nacional do Estado-Membro responsável podem proporcionar à pessoa em causa a assistência adequada, nomeadamente a prestação dos cuidados de saúde imediatos necessários para proteger o interesse vital da pessoa em causa, e garantir a continuidade da proteção e dos direitos previstos no presente regulamento e noutros instrumentos jurídicos relevantes em matéria de asilo. Essas informações são comunicadas ao Estado-Membro responsável num prazo razoável antes da realização da transferência, a fim de assegurar que as autoridades competentes de acordo com a legislação nacional do Estado-Membro responsável disponham de tempo suficiente para tomar as medidas necessárias.PT 29.6.2013 Jornal Oficial da União Europeia L 180/47”

8ª – E no nº 2 que “O Estado-Membro responsável todas as informações essenciais, na medida em que a autoridade competente de acordo com a legislação nacional delas disponha, para salvaguardar os direitos e as necessidades especiais imediatas da pessoa em causa, nomeadamente: a) As medidas imediatas que o Estado-Membro responsável tenha de tomar para assegurar que as necessidades especiais da pessoa a transferir sejam adequadamente consideradas, incluindo os cuidados de saúde imediatos eventualmente necessários;(…)”.

9ª – E no art.º 32º, relativamente ao intercâmbio de dados de saúde a efetuar antes de a transferência ser efetuada “1. Exclusivamente para efeitos de prestação de cuidados médicos ou de tratamento médico, (…) o Estado-Membro que procede à transferência transmite ao Estado-Membro responsável (…) informações sobre eventuais necessidades especiais da pessoa a transferir que, em casos específicos, podem incluir informações acerca do seu estado de saúde físico e mental. (…). O Estado-Membro responsável certifica-se de que é dada resposta adequada a tais necessidades especiais, incluindo, em especial, cuidados médicos eventualmente necessários.”

10º - A isto acresce o facto de, apesar de nos encontrarmos a atravessar uma crise epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, essa crise apresenta hoje uma natureza marcadamente global, afetando, de igual modo, Portugal e França.

11ª - Em suma, o entendimento plasmado pelo recorrido conduz à ilegalidade da sentença, devendo, por isso, ser revogada. (…).»

Por seu turno, o Recorrido, contra-alegando, concluiu, em suma, e na parte que releva para o âmbito do recurso, como se segue – cfr. fls. 249 e ss., ref. SITAF:

«(…)

42. No tocante à sua transferência para França, a jurisprudência supra citada não conflitua com o dever do SEF ponderar se em face das declarações do requerente este se encontra, em concreto, uma situação de especial vulnerabilidade, para além da vulnerabilidade inerente à situação de migrante.
43. Ora, em sede procedimental, o Requerente declarou que foi apanhado na fronteira franco-italiana, tendo sido enviado de volta para Itália, onde permanecera antes.
44. Mais referiu que entrou em França indocumentado e quando estava em Lyon foi apanhado pela Polícia, tendo sido levado para a esquadra, onde permaneceu das 10h00 até às 19h00.
45. Adiantou que, na esquadra, lhe entregaram um papel e lhe forneceram a morada de uma Associação, à qual se dirigiu, onde lhe esclareceram que havia pedido asilo.
46. Relatou também que, como não tinha sítio para ficar, acabou na rua com uns conhecidos, arranjando, por vezes, alguns trabalhos, até que lhe marcaram uma entrevista.
47. No entanto, o Requerente descuidou-se e não foi à entrevista, razão pela qual o seu processo foi anulado, sendo cortados todos os apoios que tinha; por outro lado, não lhe deram mais dinheiro.
48. Esclareceu que não se dirigiu à referida associação procurar um advogado, porque não quis, sendo sua intenção vir para Portugal.
49. Referiu que padece de problemas cardíacos, bem como, ao nível do órgão genital e dos joelhos, tendo dado conta de tal situação à assistente social em Portugal.
50. No entanto, quando chegou a Portugal apenas foi vacinado; não está a ser medicado.
51. Em suma, o Requerente alegou que padece de vários problemas de saúde, a nível cardíaco, urológico e ortopédico, mais referindo que, em virtude de ter faltado à entrevista com a associação onde se dirigira, o seu processo foi anulado e cessou todo o apoio que lhe davam (cfr. al. H) dos factos assentes).
52. Ora, em Portugal, por força do Despacho n.º 3863-B/2020, publicado no Diário da República n.º 62/2020, 3º Suplemento, Série II de 2020-03-27, pontos 1 a 3, conjugado com o artigo 52.º da Lei do Asilo, o requerente de protecção internacional tem direito a cuidados médicos (cfr. Despacho n.º 10944/2020 de 08/11/2020, que determinou o alargamento do âmbito e a manutenção do Despacho n.º 3863-B/2020).
53. Assim perante as alegações do Requerente e perante os factos de conhecimento geral, considerando também, a situação de emergência sanitária global provocada pelo vírus SARSCoV2 deveria o SEF ter ponderado a possibilidade da transferência para França vir a implicar o risco sério do Requerente nem sequer ter a oportunidade de aceder aos cuidados médicos que possa vir a necessitar e ficar numa situação de sem abrigo e indigência.
54. É certo que as alegações do Requerente quanto à sua condição física não são suficientemente concretizadoras. Porém, deveria o SEF ter solicitado que o Requerente esclarecesse completamente a sua condição de saúde e, em face desses esclarecimentos, deveria indagar sobre as condições de acesso em França a tratamentos médicos de que possa necessitar.
55. No Comunicado COVID-19 é salientado que as «(…) circunstâncias específicas decorrentes de uma situação de pandemia não foram previstas pelo legislador. (…)». Com efeito, trata-se de uma situação nova, volátil e que tem um enorme impacto nas diversas dimensões da nossa sociedade, entre elas, como não podia deixar de ser, na apreciação e decisão dos pedidos de proteção internacional, pelo que há que adaptar os princípios e regras vigentes supra enunciados, à especificidade do momento em que vivemos. No referido Comunicado é dito que a situação pandémica não impede as transferências ao abrigo do Regulamento Dublin, porém «Antes de efetuar qualquer transferência, os EstadosMembros devem ter em conta as circunstâncias relacionadas com o surto de COVID-19, incluindo as consequências da forte pressão exercida no sistema de saúde no Estado-Membro responsável.».
56. Por outra banda, resulta das declarações do Requerente que, em França, o mesmo viveu na rua e que foi cessado todo o apoio de que beneficiava, tendo o seu processo sido anulado.
57. É verdade que o Requerente reconheceu que a cessação de tais apoios se prendeu com o facto de ter faltado a uma entrevista e, bem assim, por não ter procurado ajuda jurídica nesse domínio.
58. Contudo, com a execução do acto ora impugnado o Requerente provavelmente vai voltar à situação que tinha antes de sair, ou seja, sem alojamento, sem dinheiro e, eventualmente, sem acesso a cuidados de saúde.
59. Acresce que, como é facto notório e, consequentemente, não carecido de alegação, estamos em pleno Inverno, com condições meteorológicas adversas, decorrentes do frio, da chuva e da neve que normalmente se faz sentir em França nesta época do ano, muito propícias à propagação do vírus SARSCoV2, a que o Requerente estará mais exposto, nomeadamente:
60. por não dispor de alojamento, sendo o confinamento a forma adoptada pelos diversos governos europeus e mundiais de evitar a propagação do referido vírus;
61. ii) decorrentes dos seus alegados problemas de saúde, em particular, cardíacos.
62. A este propósito note-se que as autoridades de saúde francesas referiram esta quarta-feira que foram detectados 25.387 novos casos de contaminação por SARS-CoV-2 e que se registaram mais 296 óbitos provocados pela Covid-19, contabilizando, assim, aquele país, um total de 3.385.622 casos confirmados e 80.443 vítimas mortais (cfr. https://www.noticiasaominuto.com/).
63. Do exposto resulta que os factores de vulnerabilidade são:
64. Os alegados problemas de saúde do Requerente, cujos contornos não estão esclarecidos e que o SEF não diligenciou por esclarecer;
65. ii) As condições conhecidas nos autos de abandono do Requerente à sua sorte em França, por força da cessação dos apoios de que beneficiava e, consequentemente,
66. iii) A existência de indícios de que o Requerente poderá não ter acesso a cuidados de saúde em França.
67. Assim, deveria o SEF ter diligenciado por forma a obter mais informações sobre o real estado de saúde do Requerente e as concretas condições de acolhimento do mesmo em França (designadamente quanto ao acesso a cuidados de saúde e alojamento).
68. Pois que, tendo o Requerente alegado que padecia de problemas de saúde, o facto de o acto ora impugnado ter desconsiderado essa circunstância, não permite saber se o mesmo inspira ou pode inspirar cuidado e se têm de lhe ser prestados alguns cuidados de saúde antes de o transferir para França, em cumprimento do art.º 35.º-B n.º 9 da Lei do Asilo. (…)».

Neste tribunal, o DMMP não se pronunciou.

2. Dá-se por reproduzida, nos termos do disposto no art. 663.º, n.º 6, do CPC, ex vi art. 140.º do CPTA, a decisão sobre a matéria de facto constante da decisão sumária reclamada.

3. Apreciando.

Atentemos, pois, no discurso fundamentador da decisão sumária proferida:

«(…) II.2. De direito

i) Do erro de julgamento imputado à sentença recorrida, ao ter decidido pela verificação de um deficit instrutório na decisão impugnada, em virtude de, por força das declarações do próprio Recorrido, o Requerido, ora Recorrente, não ter omitiu qualquer dever instrutório, não sendo devida qualquer outra averiguação de factos que se revelassem adequados e necessários à tomada de decisão, antes de ditar a transferência do Recorrido para França.

Vejamos.

Sobre esta questão, o discurso fundamentador da sentença recorrida, foi o seguinte:

«(…) Da factualidade provada resulta que, na sequência do pedido de asilo formulado pelo Requerente, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras verificou na base de dados Eurodac que existia um pedido de asilo formulado por aquele em Itália, em 12/05/2017 e dois em França, em 22/11/2018 e 10/07/2019, tendo o SEF, em 04/09/2020, efectuado um pedido de retoma a cargo do Requerente às autoridades italianas, que o recusaram (cfr. als. C) a E)).

Consta ainda do probatório que, na sequência da recusa das autoridades italianas, em 21/09/2020, o SEF efectuou um pedido de retoma a cargo do Requerente às autoridades francesas, que o aceitaram [alínea F) e G) e dos factos provados].

(…) nos presentes autos, verificada a existência de um pedido de asilo formulado em França (na sequência da recusa prestada por parte das autoridades italianas), e perante a sua aceitação cabia ao Director Nacional Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras proferir, no prazo de 5 dias, decisão de transferência da responsabilidade, atento o disposto no artigo 37º, nº2 da Lei nº27/2008, de 30 de Junho, decisão impugnada nos presentes autos.

(…) O sistema de asilo comum assenta, assim, no princípio da confiança mútua, pelo que deve presumir-se que o tratamento dado aos requerentes de asilo em cada estado membro está em conformidade com as exigências da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, com a Convenção de Genebra de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados e com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem [cf. neste sentido acórdão do TJUE de 05/04/2016, processos n.ºs C-404/15 e C-659/15; de 16/02/2017, processo n.º C-578/ 6; de 19/03/2019, processos n.ºs C-163/17].

Porém, a transferência de um requerente de protecção internacional para um estado membro determinado como o responsável nos termos do Regulamento (UE) 604/2013 não deve ocorrer quando, de acordo com elementos objetivos apresentados pelos requerente e/ou recolhidos pelas autoridades nacionais junto de fontes credíveis, seja possível concluir que: (i) existem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante ou (ii) dadas as particulares condições do requerente (designadamente quanto ao seu estado geral de saúde) a transferência implica o risco de vir a sofrer tratamento desumano ou degradante.

(…) No caso vertente, (…) No tocante à sua transferência para França, a jurisprudência supra citada não conflitua com o dever do SEF ponderar se em face das declarações do requerente este se encontra, em concreto, uma situação de especial vulnerabilidade, para além da vulnerabilidade inerente à situação de migrante.

Ora, em sede procedimental, o Requerente declarou que foi apanhado na fronteira franco-italiana, tendo sido enviado de volta para Itália, onde permanecera antes.

Mais referiu que entrou em França indocumentado e quando estava em Lyon foi apanhado pela Polícia, tendo sido levado para a esquadra, onde permaneceu das 10h00 até às 19h00.

Adiantou que, na esquadra, lhe entregaram um papel e lhe forneceram a morada de uma Associação, à qual se dirigiu, onde lhe esclareceram que havia pedido asilo.

Relatou também que, como não tinha sítio para ficar, acabou na rua com uns conhecidos, arranjando, por vezes, alguns trabalhos, até que lhe marcaram uma entrevista.

No entanto, o Requerente descuidou-se e não foi à entrevista, razão pela qual o seu processo foi anulado, sendo cortados todos os apoios que tinha; por outro lado, não lhe deram mais dinheiro.

Esclareceu que não se dirigiu à referida associação procurar um advogado, porque não quis, sendo sua intenção vir para Portugal.

Referiu que padece de problemas cardíacos, bem como, ao nível do órgão genital e dos joelhos, tendo dado conta de tal situação à assistente social em Portugal.

No entanto, quando chegou a Portugal apenas foi vacinado; não está a ser medicado.

Em suma, o Requerente alegou que padece de vários problemas de saúde, a nível cardíaco, urológico e ortopédico, mais referindo que, em virtude de ter faltado à entrevista com a associação onde se dirigira, o seu processo foi anulado e cessou todo o apoio que lhe davam (cfr. al. H) dos factos assentes).

Ora, em Portugal, por força do Despacho n.º 3863-B/2020, publicado no Diário da República n.º 62/2020, 3º Suplemento, Série II de 2020-03-27, pontos 1 a 3, conjugado com o artigo 52.º da Lei do Asilo, o requerente de protecção internacional tem direito a cuidados médicos (cfr. Despacho n.º 10944/2020 de 08/11/2020, que determinou o alargamento do âmbito e a manutenção do Despacho n.º 3863-B/2020).

Assim perante as alegações do Requerente e perante os factos de conhecimento geral, considerando também, a situação de emergência sanitária global provocada pelo vírus SARSCoV2 deveria o SEF ter ponderado a possibilidade da transferência para França vir a implicar o risco sério do Requerente nem sequer ter a oportunidade de aceder aos cuidados médicos que possa vir a necessitar e ficar numa situação de sem abrigo e indigência.

É certo que as alegações do Requerente quanto à sua condição física não são suficientemente concretizadoras. Porém, deveria o SEF ter solicitado que o Requerente esclarecesse completamente a sua condição de saúde e, em face desses esclarecimentos, deveria indagar sobre as condições de acesso em França a tratamentos médicos de que possa necessitar.

No Comunicado COVID-19 é salientado que as «(…) circunstâncias específicas decorrentes de uma situação de pandemia não foram previstas pelo legislador. (…)». Com efeito, trata-se de uma situação nova, volátil e que tem um enorme impacto nas diversas dimensões da nossa sociedade, entre elas, como não podia deixar de ser, na apreciação e decisão dos pedidos de proteção internacional, pelo que há que adaptar os princípios e regras vigentes supra enunciados, à especificidade do momento em que vivemos. No referido Comunicado é dito que a situação pandémica não impede as transferências ao abrigo do Regulamento Dublin, porém «Antes de efetuar qualquer transferência, os Estados Membros devem ter em conta as circunstâncias relacionadas com o surto de COVID-19, incluindo as consequências da forte pressão exercida no sistema de saúde no Estado-Membro responsável.».

Por outra banda, resulta das declarações do Requerente que, em França, o mesmo viveu na rua e que foi cessado todo o apoio de que beneficiava, tendo o seu processo sido anulado.

É verdade que o Requerente reconheceu que a cessação de tais apoios se prendeu com o facto de ter faltado a uma entrevista e, bem assim, por não ter procurado ajuda jurídica nesse domínio.

Contudo, com a execução do acto ora impugnado o Requerente provavelmente vai voltar à situação que tinha antes de sair, ou seja, sem alojamento, sem dinheiro e, eventualmente, sem acesso a cuidados de saúde.

Acresce que, como é facto notório e, consequentemente, não carecido de alegação, estamos em pleno Inverno, com condições meteorológicas adversas, decorrentes do frio, da chuva e da neve que normalmente se faz sentir em França nesta época do ano, muito propícias à propagação do vírus SARSCoV2, a que o Requerente estará mais exposto, nomeadamente:

i) por não dispor de alojamento, sendo o confinamento a forma adoptada pelos diversos governos europeus e mundiais de evitar a propagação do referido vírus;

ii) decorrentes dos seus alegados problemas de saúde, em particular, cardíacos.

A este propósito note-se que as autoridades de saúde francesas referiram esta quarta-feira que foram detectados 25.387 novos casos de contaminação por SARS-CoV-2 e que se registaram mais 296 óbitos provocados pela Covid-19, contabilizando, assim, aquele país, um total de 3.385.622 casos confirmados e 80.443 vítimas mortais (cfr. https://www.noticiasaominuto.com/).

Do exposto resulta que os factores de vulnerabilidade são:

i) Os alegados problemas de saúde do Requerente, cujos contornos não estão esclarecidos e que o SEF não diligenciou por esclarecer;

ii) As condições conhecidas nos autos de abandono do Requerente à sua sorte em França, por força da cessação dos apoios de que beneficiava e, consequentemente,

iii) A existência de indícios de que o Requerente poderá não ter acesso a cuidados de saúde em França.

Assim, deveria o SEF ter diligenciado por forma a obter mais informações sobre o real estado de saúde do Requerente e as concretas condições de acolhimento do mesmo em França (designadamente quanto ao acesso a cuidados de saúde e alojamento).

Pois que, tendo o Requerente alegado que padecia de problemas de saúde, o facto de o acto ora impugnado ter desconsiderado essa circunstância, não permite saber se o mesmo inspira ou pode inspirar cuidado e se têm de lhe ser prestados alguns cuidados de saúde antes de o transferir para França, em cumprimento do art.º 35.º-B n.º 9 da Lei do Asilo.

Só na posse dessas informações poderia o SEF ter concluído que inexistem razões obstem à transferência do Requerente para França.

Pelo que se julga procedente o aduzido deficit instrutório, ínsito no art.º 58º do CPA, cujo desvalor é conducente à anulabilidade do acto (cfr. art.º 163º do CPA) e, bem assim, a invocada especial vulnerabilidade do Requerente.

Do exposto resulta que o tribunal não dispõe de todos os elementos que permitam condenar o SEF a não transferir o requerente para França e assumir a responsabilidade pela apreciação do pedido de protecção internacional que apresentou em território português.

Por este motivo, deverá, a final, o SEF ser condenado a instruir o procedimento de determinação do Estado responsável com informações concretas relativas ao estado de saúde do requerente e, em face dessas informações, trazer ao procedimento informação sobre as expectáveis condições de acolhimento do Requerente em França, designadamente quanto ao acesso a cuidados médicos e alojamento e, após, decidir ponderando as informações recolhidas (artigo 71.º, n.º 3, do CPTA).(…)».

Desde já se adianta que o assim decidido é para manter, acrescentando-se apenas o seguinte:

Em sede de entrevista que o Requerente, ora Recorrido, prestou junto do CEJ – cfr. facto constante da alínea H) da matéria de facto supra, no campo, “Vulnerabilidade” – cfr. fl.s 7 - , terá dito que:

É certo que Recorrido, é novo – nasceu em 1999 – cfr. alínea A) da matéria de facto supra, mas importa ter presente que deambulou por África com irmãos, mas que deixou de ver na Líbia, desde a sua saída da República da Guiné, seu País de origem. O Recorrido saiu do seu País de origem e viajou para o Mali, Burkina Faso, Níger, Argélia, Líbia, tendo chegado a Itália em 2016, ainda menor - com 17 anos – não tendo sequer sido acolhido num centro apropriado para menores – cfr. fls. 5 e 6 das declarações que prestou, cfr. alínea H) da matéria de facto.

Considerando que é um dever do Estado não proceder à transferência do requerente de asilo em caso de risco sério de sujeição do requerente a tratamentos desumanos ou degradantes no Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo (1).

Considerando que são relevantes, neste contexto, todo o tipo de tratamentos desumanos e degradantes, independentemente da fonte dos mesmos: quer se trate de falhas sistémicas de acolhimento do Estado-Membro responsável, ou de riscos atinentes às circunstâncias ou contexto do requerente de proteção internacional.

Considerando que por forma a cumprir o seu dever de não proceder a tal transferência, deve o Estado certificar-se da inexistência do referido risco de sujeição a tratamentos desumanos e degradantes no Estado-Membro responsável.

Visto que poderá ser adotada uma perspetiva maximalista de tal dever, no sentido de que o Estado deve averiguar, sempre, por sua iniciativa e pelos seus meios, nomeadamente junto das autoridades do Estado-Membro responsável e das fontes fidedignas que deve recolher, qual o tratamento que ao requerente de asilo será ali prestado.

Visto que esta perspetiva maximalista tem sido afastada por jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal Administrativo (2).

Visto que, em sentido contrário, Ana Rita Gil (3), considera que esta perspetiva é a que melhor preveniria uma condenação do Estado Português por parte do TEDH por violação do art. 3.º do CEDH. E que, a mesma autora avança que «ainda que assim não se entenda sempre se aplicaria o nível já firmado pelo TJUE, que reconheceu um dever de averiguação junto das entidades competentes do Estado-Membro destino sobre o tratamento a dar ao requerente de ailo após a transferência quando o mesmo invoque receio de sujeição a tratamentos desumanos ou degradantes no mesmo.»

Assim como, entende também a mesma autora, que «o dever de procura de informação será especialmente importante em caso em que são publicamente conhecidas as dificuldades com que o Estado-Membro responsável pela análise do pedido se confronta no que respeita ao sistema de asilo como um todo», assim concluindo que «só após a recolha de toda a informação estarão as autoridades em condições de decidir se existem ou não indícios suficientes para considerar haver risco sério de sujeição do requerente a tratamentos desumanos ou degradantes no Estado-Membro responsável pela análise do pedido, e decidir informadamente sobre a possibilidade ou impossibilidade de transferência.».

Visto que, de uma interpretação conjugada das citadas disposições do Regulamento de DublinIII, e face ao que resulta da matéria de facto provada - factos constantes das alíneas C) a G), da matéria de facto supra -, França é o Estado Membro responsável pela apreciação do primeiro pedido de asilo do Requerente, ora Recorrido.

Considerando, porém, a pertinência do princípio do non refoulement em matéria de asilo, dada a inquestionável relevância do mesmo para o Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA), conforme resulta da jurisprudência do TEDH supra citada e, em parte, transcrita, na sentença recorrida.

Visto que o requerente, ora Recorrido, em sede de entrevista, afirmou que tinha problemas de saúde, potencialmente graves e reveladores de cuidado, designadamente, os de índole cardíaca, não tendo sido ainda visto por um médico – cfr. facto constante da alínea H) da matéria de facto supra.

Conclui-se que, perante estes factos, deveria o SEF ter ponderado a possibilidade de a transferência do Requerente, ora Recorrido, para França, implicar um risco sério para a sua saúde, considerando que o próprio invocou que tinha problemas de saúde e que não tinha sido devidamente acompanhado aquando a sua passagem por França.

Na medida em que a saúde dos requerentes de proteção internacional é um fator de vulnerabilidade, pois que pode comportar necessidades especiais – cfr. art. 2.º, n.º 1, alínea y), e art. 52.º, n.º 5, ambos da Lei do Asilo, o que justifica, designadamente, a necessidade de diligenciar junto das autoridades francesas sobre quais as concretas condições de acolhimento que este vai ter quando regressar àquele País, pois, não sendo evidentes quais os riscos da retoma do Recorrido, tal deficit não poderia, como bem decidiu o tribunal a quo, ser nesta sede colmatado.

De onde resulta que a situação em apreço, embora possa colocar questões idênticas sobre as quais o Supremo Tribunal Administrativo se tem pronunciado, são delas distintas, pois que se prendem estas com a análise da matéria de facto e não sobre a matéria de direito, razão pela qual improcede o presente recurso e imperioso se torna manter a decisão recorrida, ao ter decido pela verificação de um deficit de instrução material e também formal, dado que as queixas referentes ao estado de saúde do Requerente, ora Recorrido, constam dos documentos que suportam o procedimento administrativo, mas não foram tidas na devida conta no ato impugnado.

Em face do que, se acompanha in totum o sentido da decisão recorrida, negando-se provimento ao presente recurso.» (sublinhados nossos).

A decisão sumária proferida pela relatora é para manter integralmente, nos exatos termos que resultam da respetiva fundamentação e que aqui se reiteram.

4. Face a todo o exposto, acórdão os juízes da formação de julgamento em turno, do Tribunal Central Administrativo Sul, em indeferir a reclamação apresentada e em confirmar a decisão sumária da relatora.

Sem Custas (cfr. art. 84.º da Lei do Asilo).

Lisboa, 24.08.2021.

Dora Lucas Neto

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A relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.°- A do Decreto-Lei n.° 10- A/2020, de 13.03., aditado pelo art. 3.° do Decreto-Lei n.° 20/2020, de 01.05., têm voto de conformidade com o presente acórdão as senhoras juízas desembargadoras integrantes da formação de julgamento, Paula Loureiro e Cristina Carvalho.

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(1) Seguimos de perto a posição de ANA RITA GIL, Regulamento de Dublin e o risco de sujeição a tratamentos desumanos e degradantes no Estado-Membro responsável, anotação ao Ac. do STA de 16.1.2020, Proc. 02240/18.7BELSB, in CJA n.º 139, fls. 24-49, aqui, muito em particular, as conclusões de fls. 47.
(2) A título de exemplo, v. o ac. de 05.11.2020, proferido no P.01108/19.4BELSB, disponível em www.dgsi.pt
(3) Op. cit., idem., fls. 47 e 49.