Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:52/17.04BECTB
Secção:CA
Data do Acordão:01/21/2021
Relator:RICARDO FERREIRA LEITE
Descritores:DIREITO DE AGIR – CADUCIDADE (ART. 59.º/2 CPTA)
FORMALIDADE ESSENCIAL
NOTIFICAÇÃO DE MANDATÁRIO
Sumário:I. Nos termos e para os efeitos previstos no nº 2 do artº 59º do CPTA, o prazo para a impugnação pelos destinatários a quem o ato administrativo deva ser notificado só corre a partir da data da notificação ao seu mandatário, quando este tenha sido como tal constituído no procedimento.

II. Carece de acolhimento o entendimento segundo o qual impenderia sobre a Entidade Demanda a obrigação de notificar um mandatário, apenas porque foi constituído enquanto tal no âmbito de qualquer outro processo, judicial ou administrativo.

Votação:MAIORIA - VOTO DE VENCIDO
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo – Sul:

I. Relatório
R....., LDA., Recorrente/Autor, melhor identificado nos autos, em que é Réu/Recorrido o IFAP – INSTITUTO DE FINANCIAMENTO DA AGRICULTURA E PESCAS, I.P., também ele melhor identificado nos autos, interpôs recurso da decisão do TAF de Castelo Branco, datada de 01 de Junho de 2017, que decidiu julgar procedente exceção de caducidade do respetivo direito de agir e absolveu o Recorrido da instância em conformidade.

A Recorrente formulou as seguintes conclusões:
“ a) Como consta do processo instrutor, a A. tinha mandatado advogado, com procuração forense, para a representar no processo de recuperação nº ..... e, como também deverá ali constar, já havia sido revogado o acto administrativo anterior no mesmo procedimento, após acção administrativa intentada para o efeito, e que correu nesse Tribunal sob o nº 306/14.1BECTB, na qual foi já então suscitada a deficiente fundamentação do acto entretanto renovado.
B) Tanto assim foi que, com a revogação de tal acto foi de imediato proferido ofício de audição prévia notificado nesses mesmos autos, pelo que o R. IFAP, tendo contestado a acção 306/14.1BECTB precisamente com a revogação do acto administrativo, proferiu também, no mesmo acto, o projecto de nova decisão, para exercício do direito de audição prévia que, assim, começou então a correr.
C) Assim, o R. bem sabia que a A. tinha mandatário, que se pronunciou quanto ao ofício em questão.
D) Foi aliás com estranheza que o mandatário da A. verificou que não foi notificado da decisão impugnada nestes autos, sendo certo que, existindo um mandatário forense constituído, este não foi notificado da decisão final impugnada, ao contrário do que deveria ter sido.
E) É de realçar que o artº 59º/2 do CPTA, na sua redacção actual, alterou profundamente as regime anterior e parece ser clara, a intenção do legislador, em considerar que, estando constituído mandatário forense, as notificações devem ser-lhe endereçadas a ele, precisamente para obstar a situações e práticas como a vertente.
F)- Nessa medida, ao considerar que havia decorrido o prazo constante do artº 58º/1/b) do CPTA, assim fixando a caducidade do exercício da acção violou, a douta sentença recorrida, o disposto no artº 59º/2 do mesmo diploma, sendo que se impunha decisão diversa, a de, em face desta última norma, considerar a acção tempestivamente intentada, por falta de notificação do acto impugnado ao mandatário constituído devendo, assim, a Douta sentença ser revogada e substituída por Acórdão que o fixe.”

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A Recorrida, por sua vez, apresentou contra-alegações nos seguintes termos:


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O M.P. não emitiu parecer.

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II. Delimitação do objeto do recurso (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA)
A questão suscitada prende-se, unicamente, com saber se a decisão em crise incorreu em erro ao considerar que o prazo de caducidade do direito de agir se conta desde a notificação da Recorrente e se foi preterida formalidade essencial, ao não ter sido notificado o respetivo mandatário, nos termos do nº 2 do artº 59º do CPTA.
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III. Matéria factual:
III. 1 - Factos (dados como provados na sentença recorrida):
1. Em 18/10/2016 a autora recebeu o ofício com a referência n.º ....., expedido pela entidade demandada, que tem o seguinte teor:
«(...)

(...)» [cf. quanto ao teor do ofício fls. 10, frente e verso, dos autos em suporte de papel;
cf. quanto à data da recepção fls. 11 dos autos em suporte de papel conjugado com fls. bloco 8
do processo administrativo fls. não numeradas].
2. Em 30/01/2017 a autora remeteu a este tribunal, através, do SITAF, a petição inicial da presente acção, que tem o teor de fls. 2-6, do processo administrativo, que se dá aqui por integralmente reproduzido, da qual consta o seguinte:
«(...)
R....., LDA, sociedade comercial por quotas com o NIPC .....e Sede na Rua ....., vem intentar contra IFAP – INSTITUTO DE FINANCIAMENTO DA AGRICULTURA E PESCAS, IP, com sede na Rua Castilho, nº 45-51, 1269-163, em Lisboa,
Acção Administrativa Especial, ao abrigo do disposto nos artºs 46º e ss do CPTA, nos termos e com os seguintes fundamentos:
(…)
A acção tem por objecto a anulação:
-da decisão, já tomada pelo R. IFAP,IP de considerar indevido o pagamento de ajudas, referenciadas na decisão impugnada, por ele efectuado ao Autor e da concomitante decisão de determinar a este último, por via disso, a reposição da quantia de 7.646,25 €;
-Da decisão, já tomada pelo IFAP, de proceder à compensação de créditos caso o A. não proceda ao pagamento voluntário da pretensa dívida, bem como das compensações ilicitamente efectuadas antes de proferida qualquer decisão;
(…)
10º
Na decisão final impugnada são referidos relatórios de controlo que não foram notificados ao A., nem se encontram transcritos ou, bem assim, anexados à decisão final.
(…)
16º
Nesse ofício não são suficientemente explanados os factos-fundamento para a decisão tomada.
(…)
32º
Assim, faltam na decisão, quer a fundamentação de facto, quer a fundamentação de direito, quer ainda elementos que dela deviam constar, porque servem de fundamento factual para a decisão impugnada, em violação do disposto nos artºs 124º e 125º do CPA.
(…)
37º
Os valores cuja reposição o R. impõe reportam-se ao ano de 2011.
38º
O R. não notificou o A., nos três meses posteriores à realização dessas eventuais acções, da existência de desconformidades entre o pedido e a realidade física.
(…)
45º
Assim, nos termos do disposto no nº 4 referido, já caducou qualquer direito de reembolso das ajudas recebidas pela A. uma vez que a decisão de recuperação ou intenção de recuperação, por parte do R., foi comunicada à A. já após decorridos doze meses sobre os pagamentos,
(…)
48º
Assim, ao tomar a decisão impugnada, incorreu o R. IFAP, IP em vício de violação de lei por violação do disposto no nº 4 do artº 73º do Regulamento (CE) nº 796/2004 da Comissão, de 21 de Abril de 2004, vício esse que determina a anulabilidade do acto recorrido.
(…)
52º
A decisão impugnada foi tomada ignorando que, nos três meses subsequentes às acções de controlo o R. deveria ter notificado a A., sob pena de se fixar tacitamente a conformidade do objecto de controlo.
53º
O acto impugnado revoga, tacitamente, esse acto tácito anterior.
54º
A A., por força desses actos administrativos de deferimento tácito, viu-se constituída na confirmação do seu direito.
55º
Nos termos quer da legislação comunitária referida, quer mesmo do disposto no artº 140º, nº 1, al. b) do Código de Procedimento Administrativo, o referido acto tácito não é livremente revogável, porque constitutivo de direito legalmente protegido.
(…)
58º
O acto tácito anteriormente praticado pelo R., sendo irrevogável como se já alegou, apenas poderia ser anulado nas instâncias jurisdicionais.
59º
Assim, ao revogar o seu acto tácito positivo através do acto administrativo ora impugnado invadiram novamente, Vªs Exºs, a esfera do poder jurisdicional.

(...)» [quanto à data e modo pelo qual a petição inicial foi remetida a tribunal cf. fls. 1, dos autos em suporte de papel].
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IV. Direito:
A questão suscitada prende-se, unicamente, com saber se a decisão em crise incorreu em erro ao considerar que o prazo de caducidade do direito de agir se conta desde a notificação da Recorrente e/ou se foi preterida formalidade essencial, ao não ter sido notificado o respetivo mandatário, nos termos do nº 2 do artº 59º do CPTA.

Segundo agora alega a Recorrente, tinha mandatado advogado, com procuração forense, para a representar no processo de recuperação nº ..... e, como também deverá ali constar, já havia sido revogado o acto administrativo anterior no mesmo procedimento, após ação administrativa intentada para o efeito, e que correu nesse Tribunal sob o nº 306/14.1BECTB, na qual foi já então suscitada a deficiente fundamentação do acto entretanto renovado.

Acrescenta a Recorrente que o Recorrido sabia que aquela tinha mandatário constituído, ainda que constituído no âmbito de outro processo e, por isso, deveria ter sido notificado da decisão final impugnada, ao contrário do que deveria ter sido.

Vejamos, pois.

O tribunal a quo concluiu pela caducidade do direito de agir, depois de afastar a verificação de qualquer nulidade, designadamente por usurpação de poder, e concluir que o que estaria em causa seriam vícios potencialmente conducentes à anulabilidade da atuação em crise.

Foi a seguinte a sua argumentação: “(…) [d]o exposto decorre que, atentos os vícios arguidos na petição inicial, a autora está sujeita ao prazo de três meses previsto no artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do CPTA, contado desde a notificação [artigo 59.º, nº. 3, alínea b), do CPTA], nos termos do artigo 279.º do CC [por força da remissão do artigo 58.º, n.º 2, do CPTA].

Assim, o prazo de três começou a correr em 19/10/2016 e o último dia foi dia 19/01/2017.

Assim, quando em 30/01/2017 a autora remeteu a este tribunal a petição inicial da presente acção já o prazo de caducidade se tinha consumado (…)”
A Recorrente, agora, em sede de recurso, põe apenas em causa a data de início da contagem do prazo de caducidade, defendendo que, nos termos do nº 2 do artº 59º do CPTA o mesmo só correria a partir da data da notificação ao respetivo mandatário.

Efetivamente, nos termos do nº 2 artigo 59.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, “[o] prazo para a impugnação pelos destinatários a quem o ato administrativo deva ser notificado só corre a partir da data da notificação ao interessado ou ao seu mandatário, quando este tenha sido como tal constituído no procedimento, ou da data da notificação efetuada em último lugar caso ambos tenham sido notificados, ainda que o ato tenha sido objeto de publicação, mesmo que obrigatória.”

No entanto, no caso concreto, examinando o P.A. apenso aos presentes autos, constata-se que inexiste qualquer procuração passada pela Recorrente/Autora a qualquer mandatário.

E tanto assim é, que a Recorrente nem diz expressamente que tenha passado tal procuração no âmbito destes autos em concreto. Diz que o fez no âmbito de um outro processo, de recuperação, com o nº ..... e de uma outra ação administrativa no TAF de Castelo Branco, sob o nº 306/14.1BECTB.

Carece acolhimento o entendimento propugnado pela Recorrente, pretendendo que o Recorrido estava obrigado a notificar o respetivo mandatário, apenas porque foi constituído no âmbito de qualquer outro processo, judicial ou administrativo. Se não foi constituído como tal no âmbito do procedimento administrativo que esteve na génese dos presentes autos, corporizado no P.A. apenso, então o Recorrido apenas tinha de notificar a Recorrente, nos termos e para os efeitos previstos no nº 2 do artº 59º do CPTA, acima transcrito. Este preceito é claro quando diz que o prazo para a impugnação pelos destinatários a quem o ato administrativo deva ser notificado só corre a partir da data da notificação ao seu mandatário, quando este tenha sido como tal constituído no procedimento.

Como tal, esteve bem a decisão em crise, quando entendeu que o prazo de 3 (três) meses previsto no nº 2 do artº 58º do CPTA começou a correr em 19/10/2016, com a notificação do ato impugnado à Recorrente.
Aqui chegados, cumpre negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

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Concluindo (sumário elaborado nos termos e para os efeitos previstos no artº 663º, nº 7 do CPC):
I. Nos termos e para os efeitos previstos no nº 2 do artº 59º do CPTA, o prazo para a impugnação pelos destinatários a quem o ato administrativo deva ser notificado só corre a partir da data da notificação ao seu mandatário, quando este tenha sido como tal constituído no procedimento.

II. Carece de acolhimento o entendimento segundo o qual impenderia sobre a Entidade Demanda a obrigação de notificar um mandatário, apenas porque foi constituído enquanto tal no âmbito de qualquer outro processo, judicial ou administrativo.

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V – Decisão:
Assim, face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul, em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a decisão em crise.
Custas pela Recorrente – cfr. artº 527. nº 1 e 2 do CPC e artº 189º, nº 2 do CPTA.
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Lisboa, 21 de janeiro de 2021

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Ricardo Ferreira Leite*
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* O relator consigna e atesta que, nos termos do disposto no art. 15.º -A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 03.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, tem voto de conformidade com o presente Acórdão o Ex. Sr. Juiz-Desembargador, Dr. Pedro Marchão Marques e voto de vencido da Ex.ª Sr.ª Juíza-Desembargadora Dr.ª Ana Celeste Carvalho, nos seguintes termos:


DECLARAÇÃO DE VOTO


Considerando o fundamento do recurso, alicerçado na alegação recursiva do Recorrente, é absolutamente determinante apurar do ponto de vista da matéria de facto se o Autor, em algum momento do procedimento administrativo, juntou procuração forense a favor de mandatário judicial que o represente.

O julgamento da matéria de facto não esclarece tal facto, pois tal facto não resulta provado, nem não provado na sentença recorrida.

Os termos do litígio revelam que a preceder o ato impugnado, existiu um anterior ato administrativo, entretanto revogado, sendo o procedimento administrativo um único, mesmo que no seu âmbito tenham sido praticadas duas decisões administrativas.

Neste sentido, o processo administrativo instrutor deve refletir todo o procedimento administrativo, nele comportando todos os atos da Administração e da parte, sua destinatária.

In casu, o julgamento da matéria de facto também não permite revelar se o processo administrativo junto aos autos está ou não completo.

Sendo o processo administrativo submetido ao princípio do inquisitório, nos termos conjugados do artigo 90.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPTA e do artigo 411.º do CPC (para o qual o artigo 90.º, n.º 2 do CPTA expressamente remete), incumbe ao juiz ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.

Na mesma linha da inquisitoriedade da instrução do processo civil, o novo CPC reforçou os poderes do juiz quanto à possibilidade de modificabilidade da decisão de facto, quando comparado com o anterior CPC, poderes estes que não só podem, como devem ser usados, ao abrigo do disposto no artigo 662.º do CPC.

Tais poderes instrutórios do juiz administrativo são de iniciativa oficiosa, pelo que nem sequer dependem da impugnação da matéria de facto por parte do Recorrente.

Assim, afigurando-se controvertido o facto de ter existido a junção de procuração no âmbito do procedimento administrativo no âmbito do qual o ato impugnado foi praticado, com a particularidade de, no presente caso, este ato ter sido precedido de um ato administrativo anterior, importa submeter tal alegação factual ao crivo dos meios de prova, mediante iniciativa oficiosa do Tribunal de recurso.

Sem o cabal esclarecimento da matéria de facto, de forma a apurar se o Autor juntou ao procedimento administrativo a procuração a favor de mandatário judicial, tal como se mostra alegado como fundamento do recurso, não é possível decidir sobre a questão da perfeição e da regularidade da notificação e, consequentemente, da sua eficácia, nos termos do disposto no artigo 59.º, n.º 2 do CPTA, relevante para o julgamento da questão da extemporaneidade da instauração da ação administrativa em juízo.

Neste sentido, deveria o Tribunal de recuso lançar mão dos poderes conferidos pelo artigo 662.º, n.º 1, c) do CPC, ex vi artigo 1.º do CPTA, os quais, como expressamente previsto no seu n.º 2, são de exercício oficioso para, só após, em função da prova produzida, decidir sobre a censura dirigida contra a sentença recorrida.

(Ana Celeste Carvalho)