Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2788/17.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:06/06/2019
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:FUNDAMENTAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA TÉCNICA
Sumário:I - Fundamentar uma decisão de administração pública é, sob pena de ilegalidade, justificá-la quanto aos seus aspetos legalmente vinculados e, ainda, motivá-la ou explicá-la quanto aos seus aspetos não vinculados estritamente pela lei, tudo de modo a que os pressupostos de facto e de direito e os raciocínios explicativos das opções ou valorações feitas possam ser compreendidos e questionados racionalmente. Independentemente de a motivação constar de um texto expositivo ou narrativo, de uma grelha ou de outro esquema gráfico previamente tipificado pelo decisor.
II - Especialmente à luz da Constituição de 1976, não tem sentido o antigo argumento da suposta insindicabilidade da suposta discricionariedade administrativa técnica, como se, de entre os tribunais, apenas os tribunais administrativos estivessem impedidos de recorrer a prova pericial quanto a factos controvertidos ou conclusões controvertidas de natureza técnica extrajurídica.
III - Uma fundamentação técnico-médica de um ato administrativo é insuficiente quando consistir apenas num conjunto de puras conclusões aritméticas, sem o mínimo de explanação da base técnico-médica de tais conclusões.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Processo nº 2788/17…

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Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

A……….., residente na rua J…….., 2, ….º Frente, 2611-…, V….. F…. de X….., intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa acção administrativa de anulação de acto administrativo, com tramitação urgente, ao abrigo do disposto no n.º1 do artigo 48.º do Decreto-Lei n.º503/99, de 20 de Novembro contra CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES, com sede na Avenida O……, 1…, 1054-… Lisboa.

A pretensão formulada foi a seguinte: declaração de nulidade do acto administrativo de 07-06-2017 de homologação da junta médica realizada pela Ré a 06/06/207.

Discutida a causa, o Tribunal Administrativo de Círculo decidiu anular o acto impugnado por vício de falta de fundamentação.

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Inconformada com esta decisão, a ré interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

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O recorrido contra-alegou, concluindo assim:

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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – FACTOS PROVADOS

“Texto Integral com Imagem”

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II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO

DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO REURSO

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso - cf. artigos 144º-2 e 146º-4 do CPTA, artigos 5º, 608º-2, 635º-4-5 e 639º do CPC-2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA -, alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de Direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas; sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo - cf. artigos 73º-4, 141º-2-3, 143º e 146º-1-3 do CPTA[1].

Cumpre apreciar e resolver o seguinte:

- erro de julgamento de direito quanto ao incumprimento do dever de fundamentação do ato administrativo impugnado.

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Temos presente (i) tudo o que já expusemos, (ii) bem como o seguinte: (1º) a ordem jurídica ou Direito objetivo refere-se a um conjunto estruturado e unitário de regras e de várias espécies de princípios jurídicos, ordenado em função de um ou mais pontos de vista (sistema), sendo o ordenamento jurídico um sistema da sociedade, funcionalmente diferenciado, autopoiético, coerente e racional, cuja função é manter estáveis as expectativas socio-normativas independentemente da sua eventual violação (N. Luhmann), sistema esse que é aberto e alterável, nomeadamente em consequência de novos objetivos político-sociais (H. Kelsen) e do acoplamento estrutural entre sistemas sociais (N. Luhmann); (2º) hoje, o Direito administrativo é mesmo Direito constitucional democrático concretizado; (3º) existe um correto, objetivo e racional modo jurídico (vulgo “metodologia”) para conhecer e descrever o Direito (cf. H. Kelsen e a “doutrina da construção do direito objetivo em níveis” ou teoria da “estrutura escalonada das normas jurídicas” encimada ou baseada na necessariamente pensada “norma-fundamento”) e ainda uma correta, objetiva e racional metodologia para decidir processos jurisdicionais (cf. os essenciais artigos 8º a 11º do CC português quanto à interpretação e aplicação dos enunciados normativos infraconstitucionais: o omnipresente elemento filológico ou gramatical da interpretação jurídica, o essencial elemento lógico-sistemático, o auxiliar e secundário elemento pragmático-teleológico-objetivo e o inerente elemento genético-histórico; cf. J. Lamego, Elementos…, 2016), no âmbito de um Estado Constitucional, democrático e social (cf. os artigos 1º a 3º, 9º, 110º-1, 112º, 202º-1-2, 203º e 204º da CRP e os artigos 1º a 11º, 335º, 342º e 343º do CC); (4º) para compreender objetivamente o direito objetivo a aplicar pela jurisprudência dos tribunais, é mister assumir que o direito objetivo vigente não é igual à opção político-jurídica ou valorativa que está a montante das fontes (como Kelsen bem explicou), que a metódica da “jurisprudência teorética” ou dogmática jurídica ou “opinio iuris” (“ciência” jurídica), a metódica interpretativa jurisdicional e a metódica filosófica são três realidades muito distintas; (5º) o direito objetivo tem na sua natureza constitutiva o princípio estrutural da Segurança Jurídica e que as máximas metódico-interpretativas - ou postulados aplicativos - da igualdade e da proporcionalidade jurídico-administrativas, fora das vinculações jurídicas estritas, implicam um específico dever de fundamentação expressa - cf. os artigos 1º e 2º da CRP e 7º do CPA.

Destaca-se ainda, na Jurisdição do contencioso de Direito administrativo, o princípio jurídico geral da prossecução do Interesse Coletivo e Bem Comum por parte de todas as atividades de administração pública - cf. os importantes artigos 266º e 268º-3-4 da CRP.

E, por fim, como se sabe e resulta do artigo 8º-2-3 do CC: (i) o dever de obediência à lei – por todos, incluindo o tribunal - não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo[2]; (ii) nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito[3].

Passemos, assim, à ANÁLISE DO RECURSO DE APELAÇÃO.

O Tribunal Administrativo de Círculo expendeu o seguinte:

“…Contudo, não obstante a decisão aqui impugnada ser fundada em juízos técnicos e não discricionários, não significa que seja insindicável, designadamente quanto esteja em causa um vício de falta de fundamentação, tal como é assacado pelo autor nos presentes autos.

Entenda-se que nos termos do disposto no artigo 152.º do CPA “… devem ser fundamentados os atos administrativos que, total ou parcialmente: a) Neguem, extingam, restrinjam ou afectem por qualquer modo direitos ou interesses legalmente protegidos, ou imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções; e do artigo seguinte, 153º do CPA decorre, ainda, que a “… fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituirão neste caso parte integrante do respectivo ato ...” (n.º 1), sendo que equivale “… à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato …” (n.º 2).

Tais normas, ora em parte reproduzidas, correspondem ao cumprimento de directiva constitucional decorrente do actual artigo 268.º, n.º 3 da CRP no qual se consagra o dever de fundamentação e correspondente direito subjectivo do administrado à fundamentação, sendo que com a enunciação de tal dever se visa harmonizar o direito fundamental dos cidadãos a conhecerem os fundamentos factuais e as razões legais que permitem a uma autoridade administrativa conformar-lhes negativamente a sua esfera jurídica com as exigências que a lei impõe à Administração de actuar, na realização do interesse público, com presteza, eficácia e racionalidade.

Em termos de prática administrativa, fundamentar é enunciar explicitamente as razões ou motivos que conduziram o órgão administrativo à prática de determinado acto, acto este que deverá conter expressamente os fundamentos de facto e de direito em que assenta a decisão sem que a exposição dos fundamentos de facto tenha de ser prolixa já que o que importa é que, de forma sucinta, se conheçam as premissas do ato e que se refiram todos os motivos determinantes do conteúdo resolutório, sendo que na menção ou citação das regras jurídicas aplicáveis não devem aceitar-se como válidas as referências de tal modo genéricas que não habilitem o particular a entender e aperceber-se das razões de direito que terão motivado o ato em questão.

Neste sentido, o que importa e se impõe, é que a decisão contenha os preceitos legais aplicados e que conduziram a tal decisão, ou seja, visa-se captar a transparência da actividade administrativa, sendo certo que tal dever, nos casos em que é exigido, constitui um importante sustentáculo da legalidade administrativa e um instrumento fundamental da respectiva garantia contenciosa, para além de um elemento fulcral para a interpretação do ato administrativo.

Desta forma, a fundamentação da decisão administrativa consiste na enunciação de forma expressa das premissas fácticas e jurídicas em que a mesma assenta, visando, desta feita, impor à Administração que pondere antes de decidir e, assim, contribuir para uma mais esclarecida formação de vontade por parte de quem tem essa responsabilidade para além de permitir ao administrado seguir o processo intelectual que a ela conduziu.

Conforme é jurisprudência uniforme e constante dos tribunais superiores, a fundamentação assume-se como um conceito relativo que varia em função do tipo concreto de cada ato e das circunstâncias concretas em que é praticado, cabendo ao tribunal, em face de cada caso, ajuizar da sua suficiência mediante a adopção de um critério prático que consiste na indagação sobre se um destinatário normal, face ao itinerário cognoscitivo e valorativo constante do ato em causa, fica em condições de saber o motivo porque se decidiu num sentido e não noutro.

Para se atingir aquele objectivo basta uma fundamentação sucinta, mas a mesma importa que seja clara, concreta, congruente e de se mostrar contextual., pelo que será a fundamentação do ato administrativo como suficiente se, no contexto em que foi praticado e atentas as razões de facto e de direito nele expressamente enunciadas, forem capazes ou aptas e bastantes para permitir que um destinatário normal apreenda o itinerário cognoscitivo e valorativo da decisão.

É contextual a fundamentação quando se integra no próprio ato e dela é contemporânea. A fundamentação é, por sua vez, clara quando tais razões permitem compreender sem incertezas ou perplexidades qual foi o referido iter cognoscitivo- valorativo da decisão, sendo congruente quando a decisão surge como a conclusão lógica e necessária de tais razões.

Ora, aqui chegados, e não obstante estarmos perante uma decisão eminentemente técnica, de cariz médico, não deixa de ser uma decisão administrativa e bem assim sujeita ao dever de fundamentação de actos, nos termos dos citados artigos do CPA, que possibilite mormente autor saber e compreender a razão pela qual as lesões de que padece não são incapacitantes para o exercício da sua actividade profissional, face aos vários relatórios médicos juntos ao processo administrativo, que apontam no sentido de que se conclua pela “incapacidade para todo o serviço”.

É que uma perícia ou avaliação médica, tal como a que é realizada pela junta médica da Caixa Geral de Aposentações, é uma actividade de interpretação de factos a provar (que pode incluir actividades de observação – exame ou uma quaisquer outros elementos técnicos ou outros dados constantes num processo clínico) que, constituindo um meio de prova, é efectuada por um ou mais profissionais, especialmente habilitados para essa avaliação.

Estes exames de avaliação ou de apreciação médica, devem apresentar-se, na maioria das vezes, sob a forma de um relatório ou parecer onde se descreve o resultado do ou dos exames efectuados e se interpreta esses mesmos resultados, elaborando-se uma conclusão devidamente fundamentada.

Por conclusão devidamente fundamentada deverá entender-se a conclusão relativa aos diversos actos de avaliação médica, que contêm um esclarecimento concreto suficientemente apto para sustentar a decisão médica final, não podendo assentar em meros juízos conclusivos, sob pena de ficar prejudicada a compreensão da sua motivação.

Note-se que a fundamentação de um parecer médico só é considerada suficiente quando proporcione aos destinatários do acto, neste caso o aqui autor, dotados do conhecimento de um homem médio, a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela autoridade médica que o praticou, de forma a poder saber-se claramente as razões por que decidiu da forma que decidiu e não de forma diferente.

Neste sentido, a fundamentação nos pareceres médicos, devem, sob pena de sofrerem de desvalor jurídico de anulabilidade, apresentar uma descrição clara, objetiva, pormenorizada e sistematizada das observações feitas e a indicação das fontes da informação; os conceitos usados devem ser definidos e os tempos verbais adequados à realidade do caso e rigor das informações, sendo que a medida e interpretação do dano deve ser isenta e imparcial, identificando-se os tipos/métodos de instrumentos utilizados (ex: escalas, tabelas, exames, etc.).

Para mais acresce o facto, de que a função da junta médica, é saber dar resposta ao objectivo da avaliação, de forma imparcial e objectiva, e traduzir a complexidade da sua arte médica por palavras simples para que a possam apreciar sobre bases concretas, de modo a que a decisão administrativa final seja perceptível.

Posto este enquadramento legal, regressando aos autos, verifica-se que a decisão final da junta médica de recurso aqui impugnada, a que se reporta a alínea h) do probatório, foi elaborada, em modelo de auto de junta, totalmente padronizado, cujos campo, relativos ao parecer acerca das incapacidades são restringidos a um pequeno espaço de preenchimento de “sim ou não”, e bem assim, o relativo à capacidade residual, que impossibilita, sem qualquer fundamentação acessória perceber a razão pela qual decidiu daquela maneira e não doutra.

Ora, tal obscuridade e insuficiência na fundamentação daquelas menções, votam tal parecer e bem assim o acto de homologação que naquele auto se firma à ilegalidade, por violação do dever de fundamentação, ou seja, um vício de forma, que gera a sua anulabilidade nos termos do artigo 163.º do CPA, e não a nulidade, conforme invocado pelo autor.

Aliás tal como doutamente se sumariou, em recente acórdão do TCA Sul, no proc. n.º 368/17.0BEALM, de 28-06-2018:

Nestes termos, e sem necessidade de mais considerações procede o alegado vício de falta de fundamentação.

Quantos ao outro vício invocados, e tendo em consideração o disposto no n.º2 do artigo 95.º do CPTA, cumpre apenas referir que, atenta a existência de vício de falta de fundamentação absoluta acerca dos juízos técnicos que a Junta formulou, e bem assim da impossibilidade de ser compreender a motivação daquela e que subjaz àquelas considerações que são totalmente desprovidas de fundamento, encontra-se o tribunal impedido de pronunciar-se sobre o seu mérito, ficando prejudicado o conhecimento do restante vício invocado.”.

Como temos sublinhado, a fundamentação expressa dos atos administrativos, através (i) da justificação e ou (ii) da apresentação de motivos, é um imperativo constitucional e um direito dos cidadãos (cf. artigo 268º/3 da Constituição; cf. Gomes Canotilho/V.M., Constituição da República Portuguesa Anotada, II, 4ª ed., no comentário ao artigo 268º; Paulo Otero, D. do Procedimento Adm., I, 2016, pág. 579).

Decorre dos artigos 152º a 154º do atual CPA que toda a fundamentação deve ser uma declaração (em regra) escrita e, sob pena de anulabilidade (artigo 163º-1 do CPA), com exteriorização clara, coerente e suficiente[4] das razões de facto e das razões de direito da decisão administrativa; ou uma declaração de concordância com os (claros, coerentes e suficientes) fundamentos de facto e de direito de anteriores pareceres, informações ou propostas.

Ali, “razões” tanto são

(1) os pressupostos e justificação da decisão administrativa, como

(2) os motivos dessa decisão.

Trata-se, portanto, de uma garantia constitucional fundamental, de tipo procedimental, consagrada expressamente no cit. nº 3 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa, e não de uma mera formalidade sem substância. É, assim, uma formalidade essencial imposta pela lei fundamental. Garante valores essenciais numa democracia que prossiga a tutela jurisdicional efetiva:

-Transparência,

-Rigor,

-Verdade,

-Autocontrolo e

-Heterocontrolo pleno (cf. assim o Ponto B do Acórdão do TJCE de 20-03-1959, Nold c. Alta Autoridade, Processo nº 18/57, in RJC, págs. 114-115).

Ora, a fundamentação da decisão administrativa, por referência ao princípio da obediência à lei e ao Direito, de acordo com o princípio da coerência racional da atividade administrativa[5], deve conter sempre, pelo menos, a indicação dos seus pressupostos de facto e de direito (justificação; “vontade administrativa dirigida pela lei” – cf. Paulo Otero, D. do Procedimento Administrativo, I, p. 467), mas deve ser também, quanto aos aspetos não estritamente vinculados do ato administrativo, uma declaração sobre os motivos da decisão, isto é, sobre os pressupostos subjetivos da decisão; é a motivação das opções, escolhas, avaliações e valorações administrativas (a causa subjetiva), a “vontade administrativa não dirigida por lei estrita”.

Com efeito, é precisamente a ponderação (sobre os elementos, fatores, parâmetros ou critérios) o que está em causa na chamada discricionariedade administrativa, pois aí, inevitavelmente, a motivação ou apresentação dos motivos tem de respeitar regras lógicas de racionalidade, verdade material e coerência, bem como as normas jurídicas decorrentes dos artigos 266º e 268º-3 da CRP e 3º ss do CPA. Fala-se em motivos e não apenas em justificação.

E só será possível ao tribunal fiscalizar essa ponderação se os raciocínios em que ela consistiu forem exteriorizados. Sem isso não há verdadeira fundamentação do ato administrativo não estritamente vinculado à lei; quando muito, haverá um simulacro daquilo que é exigido pela CRP e pelo CPA em sede de fundamentação. E este simulacro, (i) encoberto pela óbvia “relatividade” do dever de fundamentação “in concreto” ou (ii) misturado com uma errada aplicação do princípio da separação e interdependência dos poderes, serve, não raras vezes, para defraudar o exigido ao juiz pelo princípio fundamental da tutela jurisdicional plena e efetiva.

Como escreve HARTMUT MAURER, in Allgemeines Verwaltungsrecht, 9ª ed., Munique, 1994, pág. 224, a fundamentação é uma “janela” de acesso dos tribunais à racionalidade e coerência do trajeto procedimental da decisão administrativa (cit. por PAULO OTERO, in D. do Procedimento Administrativo, I, 2016, pág. 577).

A CRP exige à fundamentação-justificação e à fundamentação-motivação da decisão administrativa que torne acessível, ao detentor do direito ou do interesse legalmente protegido afetado, os raciocínios inerentes à valoração por que se chegou a determinada conclusão (o iter mental com os motivos)-(cf. Acórdão do STA-Pleno de 26-10-2017, p. nº 038/14). Sem motivos expressos, sem prévia ou simultânea explicação racional ou coerente, não haveria decisão administrativa efetivamente fiscalizável, o que seria incompatível com o Estado democrático de Direito.

Assim, a motivação (isto é, a exteriorização dos motivos ou pressupostos subjetivos) de uma decisão de administração pública, não estritamente vinculada à lei, não pode assentar apenas:

(i) em números ou pontuações (cf. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26-10-2004, Processo nº 043240),

(ii) em meras conclusões (cf. o Acórdão do STA de 16-12-2009, Processo nº 0882/09), adjetivantes ou não, ou

(iii) em meras opiniões (cf., i.a., o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 16-06-2016, Processo nº 12565/15[6]).

Se a apresentação dos motivos fundamentadores pudesse assentar apenas em meras pontuações, adjetivações, conclusões ou opiniões, não estaríamos perante verdadeiros motivos, porque as pontuações ou adjetivações resultam sempre de raciocínios. E seria impossível fiscalizar o cumprimento dos respetivos limites legais (cf. artigos 266º/2 e 268º/3 da CRP e artigos 3º ss do CPA) e das respetivas autovinculações lícitas. Ou seja, nunca seria possível tutelar os administrados contra motivos falsos, errados, irrelevantes, contraditórios, deficientes, desviados, incongruentes ou ilegítimos, assim se violando ou defraudando a CRP e o CPA.

Portanto, sem um discurso explicativo e racional da decisão administrativa (não tautológico, explicativo dos “quid” que conduziram ao elemento racional e decisório do ato administrativo), portanto um discurso minimamente densificado (cf. o Acórdão de UJ do STA-Pleno de 21-01-2014), (i) não há verdadeira fundamentação e (ii) a fiscalização de toda e qualquer decisão administrativa fica impedida ou reduzida a uma formalidade vazia. E assim se poderia defraudar o Estado democrático de Direito e os seus princípios jurídico-administrativos fundamentais, maxime, o da tutela jurisdicional efetiva e o da juridicidade administrativa.

Isto quer dizer que um ato administrativo, predominantemente vinculado (onde se deve falar em “fundamentação-justificação”[7]) ou predominantemente discricionário[8] (onde se deve falar em “fundamentação-motivação”[9]), só respeita o direito do administrado à fundamentação dos atos administrativos desfavoráveis quando o (1) respetivo texto expositivo ou narrativo, (2) a respetiva grelha ou (3) outro esquema gráfico previamente tipificado pelo decisor permitam, por conterem densificação suficiente (cf. o Acórdão de UJ do STA-Pleno de 21-01-2014), que o destinatário fique ciente

(i) do sentido da decisão administrativa,

(ii) dos pressupostos e

(iii) dos motivos que a sustentam. O que, naturalmente, só é possível através da exteriorização do itinerário de conhecimento e ou de apreciação-valoração seguido pela entidade administrativa até à decisão final (cf. o Acórdão do STA de 26-04-2018, Processo nº 0287/17; o Acórdão do STA de 23-10-2008, Processo nº 0827/07).

Depois, porque os tribunais terão assim condições reais para aplicar o Direito, o destinatário da decisão administrativa poderá optar, conscientemente, entre concordar com o ato decisório ou promover a tutela jurisdicional efetiva (um direito fundamental), isto é, acionar os meios legais de heterocontrolo, para efeitos de fiscalização da juridicidade em sede de: (i) exigências legais relativas ao sujeito administrativo, (ii) exigências legais relativas ao quid do ato, (iii) exigências legais relativas ao procedimento administrativo, (iv) pressupostos de facto da decisão, (v) pressupostos de direito da decisão e ou (vi) motivos da concreta atuação administrativa.

Em síntese, fundamentar uma decisão de administração pública é, sob pena de ilegalidade, justificá-la quanto aos seus aspetos legalmente vinculados e, ainda, motivá-la ou explicá-la quanto aos seus aspetos não vinculados estritamente pela lei, tudo de modo a que os pressupostos de facto e de direito e os raciocínios explicativos das opções ou valorações feitas possam ser compreendidos e questionados racionalmente. Independentemente de a motivação constar de um texto expositivo ou narrativo, de uma grelha ou de outro esquema gráfico previamente tipificado pelo decisor.

Por tudo isto, especialmente à luz da Constituição de 1976, não tem sentido o velho argumentário da suposta insindicabilidade da velha e suposta discricionariedade administrativa técnica, como se, de entre os tribunais, apenas os tribunais administrativos estivessem impedidos de recorrer a prova pericial quanto a factos controvertidos ou conclusões controvertidas de natureza técnica extrajurídica.

Ora, como se constata no probatório (vd. Factos H e I), é manifesto que a fundamentação técnico-médica de 06-07-2017 deste ato administrativo de 07-07-2017 é insuficiente, sendo, em bom rigor, um conjunto de puras conclusões aritméticas, sem o mínimo de explanação da base técnico-médica de tais conclusões.

Logo, é uma fundamentação meramente aparente, porque (i) insuscetível de ser compreendida em geral e ou medicamente, (ii) de ser objeto de uma heterofiscalização da sua correção e verdade epistemológicas e, ainda, (iii) de ser objeto de uma eventual discordância racional e objetiva, de uma eventual discordância ténico-médica racional e objetiva.

Nenhuma das justificações referidas pela recorrente tem utilidade para a sua defesa. Ou há fundamentação nos termos do art. 153º do CPA orientado pela lei fundamental, ou não há. Não havendo, há uma ilegalidade.

E, portanto, como entendeu a sentença, o ato administrativo de 07-06-2017 aqui sindicado, que adotou aquela fundamentação muito insuficiente, é ilegal, afetando o ato administrativo de anulabilidade (cf. os arts. 153º-2 e 163º-1 do CPA).

Quanto à ampliação do objecto do recurso, o seu conhecimento fica prejudicado face à improcedência do recurso.

*

III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, os juizes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul acordam em julgar o recurso improcedente, assim se lhe negando provimento.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 06-06-2019


Paulo H. Pereira Gouveia (Relator)

Pedro Marchão Marques

Alda Nunes



[1] Por outro lado, nos termos do artigo 149º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule - isto no sentido muito amplo utilizado no CPC – deverá, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e as condições legalmente exigidos para o efeito. decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de Direito.
[2] Já Kant afirmava que “indagar se também os próprios decretos são justos é algo que os juristas têm de rejeitar como absurdo” (in O Conflito das Faculdades, trad., Lisboa, Ed. 70, 2017, p. 27).
[3] Esta regra de Direito substantivo, aliás integrável no escopo do art. 9º do CC de 1966, tem por objeto único o litígio a dirimir, dirigindo-se a cada juiz por causa da Segurança Jurídica e da máxima metódico-interpretativa da igualdade no caso concreto. Não significa o dever de seguimento de linhas jurisprudenciais mais ou menos repetidas ou de doutrinas apenas com base na habitualidade; e não se refere à jurisprudência uniformizante, tal como não se referia aos antigos assentos.
[4] Até porque uma insuficiência relativamente aos “factos que possam condicionar a atividade administrativa” origina a violação do princípio da imparcialidade na sua vertente positiva (dever de atender, expressa e racionalmente, a todos e a cada um dos pressupostos de facto pertinentes e apenas a estes). Afinal, está sempre em causa uma decisão justa.
[5] Cf. PAULO OTERO, D. do Procedimento Administrativo, I, pp. 505 ss.
[6] II - A garantia constitucional da fundamentação do ato administrativo, como concretizada no Código do Procedimento Administrativo, exige que a decisão administrativa exteriorize sempre, tanto (i) na justificação (ii) como na motivação, (iii) os respetivos discursos justificativos, ou seja, os raciocínios fundamentadores (iv) da conclusão ou de cada uma das conclusões em que assenta (iv) a decisão administrativa. III - A evidência de a fundamentação variar em qualidade e quantidade, consoante os casos concretos, não exclui o dever constitucional de exteriorização do processo decisório (necessariamente racional), isto é, dos raciocínios fundamentadores de cada uma das conclusões em que assenta a decisão contida no ato administrativo. V - Violam o “dever constitucional e legal de fundamentar os atos administrativos de um modo expresso, racional, coerente, suficiente e claro” todas as decisões administrativas que se limitem a exteriorizar como seus fundamentos (i) adjetivos qualificativos, (ii) avaliações numéricas e ou (iii) opiniões, já que se tratam de meras conclusões e não de discursos justificativos, isto é, de raciocínios fundamentadores de conclusões. VI – Só se pode contrapor a rara e inexigível figura da “fundamentação da fundamentação” quando a fundamentação apresentada pela decisão administrativa em causa não se limitar a exteriorizar apenas (i) conclusões, (ii) adjetivos qualificativos ou (iii) atribuição de valores numéricos.
[7] Justificar, aqui, é demonstrar que se atuou como manda a lei vinculante.
[8] Ou, o que é o mesmo, com margem de livre decisão administrativa.
Deve relembrar-se que a discricionariedade administrativa é um poder-dever jurídico que a lei confere por causa da melhor prossecução do interesse coletivo.
Na discricionariedade inclui-se ainda a chamada discricionariedade técnica, a antes chamada liberdade probatória e a antes chamada justiça burocrática. E ainda os casos de concretização-valoração objetiva de conceitos indeterminados.
Os motivos principalmente determinantes da discricionariedade administrativa podem ser simplesmente administrativos, mas também podem ser técnicos, económicos, financeiros ou ambientais.
[9] Motivar é expor os motivos concretos.