Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 397/12.0BELLE |
Secção: | CA |
Data do Acordão: | 11/26/2020 |
Relator: | ANA CELESTE CARVALHO |
Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO EM AUTOESTRADA; DEVER DE VIGILÂNCIA; CANÍDEO; PRESUNÇÃO LEGAL DE INCUMPRIMENTO; ARTIGO 12.º, N.º 1, B) DA LEI 24/2007, DE 18/07. |
Sumário: | I. A responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos emana da prática de atos jurídicos e da realização de operações materiais, e pode decorrer quer de atos comissivos (por ação), quer omissivo(por omissão), segundo o artigo 486.º do CC. II. Desde que exista o dever legal de atuar, a omissão dos atos devidos é suscetível de determinar a obrigação de reparar o dano causado. III. Cabe à Ré, na qualidade de concessionária da conservação e exploração da autoestrada A22, a obrigação de zelar pela segurança da circulação, devendo tomar todas as medidas necessárias para cumprir esse objetivo, onde se inclui o dever de vigilância em relação aos animais. IV. A Ré ao não diligenciar no sentido de impedir a entrada de animais na faixa de rodagem na A22, através da vedação segura e eficaz, incumpriu a obrigação de zelar pela segurança da circulação rodoviária, sendo, consequentemente, responsável pelos danos daí decorrentes. V. Nos termos do artigo 12.º, n.º 1, b) da Lei n.º 24/2007, de 18/07, em caso de acidente rodoviário nas autoestradas, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que, entre outras, a respetiva causa diga respeito a atravessamento de animais, como no presente caso. |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: |
1 |
Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
I – RELATÓRIO
M.............., devidamente identificado nos autos, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, datada de 15/10/2016, que, no âmbito da ação administrativa comum, sob a forma sumária, para efetivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, instaurada contra a E…………………., julgou a ação improcedente, absolvendo a Ré do pedido de condenação a pagar ao Autor a indemnização no valor de € 5.603,35, acrescida de juros calculados, à taxa legal, a partir da citação e até efetivo pagamento. * Formula o aqui Recorrente nas respetivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem: “1- Face à matéria de facto provada (e não provada) nos presentes autos, a Ré, ora Apelada, não logrou afastar a presunção constante da alínea b (do nº 1 do artigo 12° da Lei nº 24/2007 de 18 de Julho. 2 - A Ré logrou efectivamente demonstrar a realização de um cumprimento genérico de algumas das suas obrigações de vigilância e de conservação das vedações, decorrentes do contrato de concessão, nomeadamente naquele troço da auto-estrada. 3 - Embora tal demonstração possa criar a dúvida sobre a responsabilidade da Ré concessionária, não conduz à prova efectiva de que a culpa não lhe pode ser imputada. 4 - Da prova produzida não resultou provado de que modo o cão entrou na Auto- Estrada A22 (Via do Infante de Sagres), não tendo ainda resultado da prova apresentada que a rede instalada no local impedia efectivamente a entrada de um cão com o porte daquele que esteve envolvido no acidente a que os autos respeitam. 5 - Não tendo sido alegado tal facto e não resultando da prova produzida que a rede em causa tinha esta capacidade, é irrelevante que não tenha sido detectada pelos funcionários da Ré qualquer anomalia da rede no local onde ocorreu o acidente. 6 - É também irrelevante a existência de patrulhamentos, se não ficar demonstrado que estão instalados na auto-estrada em causa os meios técnicos que visem impedir a entrada de canídeos na via. 7 - Competia à Ré a demonstração dos específicos meios que instalou na auto estrada para prevenir a entrada de canídeos com o porte daquele que foi interveniente no acidente dos autos, bem como da sua apetência para evitar a entrada de animais e bem assim para detectar e remover os mesmos da via de imediato. 8 - Em face da jurisprudência constante dos Tribunais Superiores, a Ré teria ainda que demonstrar que o cão surgiu na auto-estrada de uma forma incontrolável, por um motivo de força maior, nomeadamente através de um acto de terceiro que não podia impedir. 9 - Não sendo conhecida a efectiva do aparecimento inusitado do animal na faixa de rodagem, é a favor do Autor e ora Apelante (lesado e utente) e não da Ré (concessionária), que a respectiva dúvida terá de resolver-se, de acordo com o preceituado no n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.0 24/2007, conjugado com o n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil. 10 - Como resulta dos factos provados B), C), D) e E), a causa do acidente foi o surgimento de um canídeo na Auto-estrada A22 (Via do Infante) por onde o Apelante circulava. 11 - A confirmação da causa do acidente foi verificada no local por autoridade competente, no caso a GNR, que elaborou o respectivo relatório (nº 108/10. 12 - Pelo facto de o Apelante não ter provado "a velocidade a que circulava na altura, que não lhe foi possível desviar-se, ou sequer que tivesse travado e que circulava com a atenção e prudência necessária" não pode extrair-se a conclusão, como fez o Tribunal a quo, de que não é possível concluir que o que motivou o dano foram as faltas de condições de segurança exigidas à Ré enquanto concessionaria da A22. 13 - Tal entendimento constitui um desvirtuamento do disposto no preceituado no n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, uma vez que ao Autor apenas competia provar, como fez, que a causa do acidente foi a existência de um canídeo na Auto- Estrada e que tal foi verificado no local onde o acidente ocorreu pela autoridade competente, no caso a GNR. 14 - O Tribunal a quo fez uma incorrecta aplicação do direito aos factos, quando decidiu que a factualidade apurada não permite descortinar a ocorrência do facto que possa considerar-se como ilícito e como tal os pressupostos de que depende a responsabilidade da Ré pelos danos sofridos pelo Autor. 15 - Estando provado que o valor da reparação do veículo propriedade do Autor ascende a € 5.603,35 (alínea G dos fatos provados), deverá a douta sentença agora em crise ser revogada e proferida decisão que condene a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 5.603,35, acrescida de juros contados desde e a data da citação da Ré até efectivo e integral pagamento. 16 - Consequentemente deverá ainda ser a Ré, ora Apelada, condenada no pagamento das custas judiciais e demais encargos do processo.”. Pede que seja concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença e proferindo-se decisão que condene a Ré no pedido. * O ora Recorrida, notificada, apresentou contra-alegações, tendo aí concluído do seguinte modo: “Não deverá o recurso jurisdicional apresentado pelo Réu ser aceite, nem tão pouco convolado em reclamação para a conferência uma vez que foi largamente excedido o prazo para tal;”. Pede que o recurso apresentado não seja aceite. * Por despacho datado de 12/12/2016 foi decidida a tempestividade do recurso, por o recurso ter sido apresentado dentro do prazo legal. * O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso. Entende que a sentença recorrida não fez uma correta apreciação dos factos, optando por uma solução de natureza jurídica que não se mostra conforme ao regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual do Estado. Alega que de acordo com o artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18/07, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respetiva causa diga respeito a atravessamento de animais. A Ré não logrou afastar a presunção em causa, além de não lhe bastar demonstrar que foi diligente, tendo de estabelecer positivamente o evento concreto que levou à intromissão do animal na via e que tal processo lhe foi inteiramente alheio, não bastando, por isso, a prova genérica do cumprimento dos deveres de segurança para afastar a presunção. Conclui que a sentença não fez uma correta apreciação dos factos, nem a uma correta subsunção desses factos ao direito. * A Ré, ora Recorrida, veio pronunciar-se sobre o parecer emitido concordando que de acordo com o artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18/07, lhe cabe o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança respeitante ao atravessamento de animais, mas alega que tudo fez em sede de patrulhamentos, dia e noite nos 130 Km da via A 22, sendo-lhe impossível ter um guarda permanente que obstaculize a intromissão pelos nós, de animais. Defende que deve ser mantida a sentença recorrida. * O processo vai, com vistos, dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento.
II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso. A questão suscitada resume-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento no tocante à responsabilidade civil da Ré, por não ter afastado a presunção constante do artigo 12.º, n.º 1, c) da Lei n.º 24/2007, de 18/07.
III. FUNDAMENTOS
DE FACTO O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos: “A) No dia 17 de Agosto de 2010, pelas 5.50horas, ocorreu um acidente de viação onde foi interveniente o Autor, de nacionalidade espanhola, proprietário e condutor do veículo de matrícula .............. (cfr docs nºs 1 e 2 juntos com petição inicial); B) O veículo referido na alínea precedente, no dia e hora supra mencionados, circulava na Auto-Estrada A22 Via do Infante Sagres, no sentido Albufeira/Faro (cfr docs nºs 1 e 2 juntos com a petição inicial); C) No dia e hora supra mencionados o veículo identificado na alínea A) embateu frontalmente com um animal de raça canina (cfr doc nº 2 junto com a pi); D) A via onde circulava o veículo identificado na alínea A) está abrangida pelo contrato de concessão de serviço público celebrado com a E.............., S.A. (por acordo); E) No Relatório nº 108/10 elaborado pelo guarda da GNR, R............., pode ler-se designadamente que “No dia 17 de Agosto de 2010 pelas 06H00 fui informado pela central do DT Faro que na A22 ao Km 71,7 no sentido de marcha Albufeira/ Faro, um veículo teria atropelado um animal de raça canina. Chegado ao local, deparei-me com um animal de raça canina morto na berma e vinte metros à frente um veículo parado na berma” (cfr doc nº 1 junto com a petição inicial); G) No orçamento da “C............., S.A.”, concessionário da Mercedes-Benz respeitante à viatura automóvel, marca Mercedes-Benz, de matrícula .............., o valor a saldar é de € 5.603,35 (cfr docs nº 2 e 5 ambos juntos com a petição inicial); H) Em 9 de Julho de 2012, a Ré elaborou “Relatório” da ocorrência referida em A) (cfr doc nº 1 junto com a contestação); I) O acidente deu-se a seguir ao túnel do Areeiro, no sentido Albufeira/ Faro, o nó de Loulé encontra-se a 2,5 km, é um nó aberto e a via tem uma rede lateral de protecção (cfr testemunho de R.............); J) Em serviço, às 6.00h foi solicitado para um acidente que ocorreu ao km 71, na E............. (cfr testemunho de P.............); K) Do nó de Loulé até ao local do acidente distam 2 km e esse troço tem uma câmara de videovigilância ao km 69 e ao km 73 (cfr testemunho de P.............); L) Chegou ao local, deparou com uma viatura danificada, o cão morto, elaborou um relatório, tirou fotografias, averiguou que o animal tinha microship, sinalizou o local e verificou a vedação dos dois lados da via que tem 1,5 m de altura, e não constatou nenhum dano (cfr testemunho de P.............); M) Durante a noite passou de 2 em 2 h pelo local onde ocorreu o acidente (cfr testemunho de P.............); N) A Via do Infante tem 10 painéis de informação que são activados quando existe um animal na via (cfr testemunho de P.............); O) Ao km 69 fica o nó de Loulé de entrada na A22 existe uma câmara de videovigilância e outra no nó aeroporto/ Faro, a 3 km, não tendo sido detectada a entrada do animal nem apuraram por onde entrou (cfr testemunhos de P............. e de F.............); P) A Ré tem uma brigada de manutenção que verifica diariamente as vedações entre as 8.00 h e as 17.00 h e têm 12 veículos que constituem a brigada de manutenção e vigilância a circular 24 h (cfr testemunho de F.............). * Não se provou
1 – Que o Autor circulava na A22 pela via direita; 2 – A que velocidade conduzia o Autor a viatura automóvel na altura do embate e se cumpria todas as regras estradais; 3 – Que no momento do aparecimento do cão na via de trânsito onde circulava o Autor, circulavam na via da esquerda, no mesmo sentido de marcha daquele, outros veículos automóveis; 4 – Era impossível o Autor desviar-se para a faixa contígua aquela em que circulava para evitar a colisão da viatura automóvel que conduzia e o cão; 5 – O cão entrou pelas redes laterais da via; 6 – O cão entrou pelos nós de acesso da via.
Motivação
O Tribunal firmou a sua convicção: - com base nos documentos dos autos; e, - com base nos depoimentos das testemunhas.
Assim, os depoimentos de cada uma das testemunhas, R............., P............. e F............., pela percepção e memorização privilegiada que tiveram, revelaram, no seu depoimento, conhecimento convincente dos factos a que foram ouvidas. Tendo em conta as máximas indiciárias apuradas e a prova produzida, deram ao Tribunal, na sua compreensão global, a verdade material dos factos.”.
DE DIREITO
Erro de julgamento no tocante à responsabilidade civil da Ré, por não ter afastado a presunção constante do artigo 12.º, n.º 1, c) da Lei n.º 24/2007, de 18/07 A questão suscitada no presente recurso resume-se em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento no tocante à responsabilidade civil extracontratual da Ré, concessionária do contrato de concessão de serviço público que inclui a via em que se deu o acidente de viação, quanto a saber se a mesma é responsável pelos danos causados na viatura, em consequência do embate ocorrido com um canídeo, com o fundamento alegado pelo Autor de existir a omissão ilícita do dever de conservação e segurança da circulação, impedindo a entrada de animais na faixa de rodagem na A 22. Tendo a sentença recorrida absolvido a Ré do pedido, o Autor, ora Recorrente, vem atacar a sentença recorrida, estando em causa aferir do erro de julgamento da sentença na apreciação dos factos e na aplicação do direito. Compulsada a sentença recorrida, dela decorre que foi julgado inexistir o facto ilícito e culposo da Ré, faltando por isso, os pressupostos da ilicitude e da culpa, enquanto requisitos da obrigação de indemnizar. Decidiu-se na sentença recorrida que o atropelamento do animal e o dano no veículo foram causados por um animal, por motivos alheios à ação e à vontade da Ré, responsável pela segurança da via em que um protocolo de vigilância e segurança permanente é efetivo e que a prova produzida nos autos é manifestamente insuficiente para provar o que o Autor vem peticionar, mais se decidindo que a factualidade apurada não permite descortinar a ocorrência do facto que se possa considerar como ilícito, concluindo pela falta dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da Ré. Explanados sumariamente os fundamentos de direito da sentença recorrida importa agora considerar as razões invocadas pelo Recorrente no presente recurso. No presente recurso está em causa apreciar do invocado erro de julgamento em relação aos pressupostos da responsabilidade civil da ilicitude e da culpa, julgados não verificados pela sentença recorrida.
1. Importa antes de mais atender à factualidade relevante, dada por assente na sentença recorrida, para com base nela proceder à aplicação do Direito. Em 17/08/2010, pelas 05H50, na Auto-estrada A22, Via do Infante Sagres, no sentido Albufeira/Faro, o Autor conduzia o veículo automóvel de que é proprietário, tendo embatido frontalmente com um animal de raça canina. O acidente deu-se a seguir ao túnel do Areeiro, no sentido Albufeira/Faro, em relação ao qual o nó de Loulé se encontra a 2,5 km, é um nó aberto e a via tem uma rede lateral de proteção. Mais se apurou que do nó de Loulé até ao local do acidente distam 2 km e esse troço tem uma camara de videovigilância ao km 69 e ao km 73. No relatório elaborado pela GNR pode ler-se que no dia 17/08/2010, pelas 06H00 foi informado pela central do DT Faro que na A22, ao Km 71,7, no sentido da marcha Albufeira/Faro, um veículo teria atropelado um animal de raça canina e que chegado ao local se deparou com um animal de raça canina morto na berma e que a vinte metros à frente estava um veículo parado na berma. Chamada ao local, a Ré deparou-se com uma viatura danificada, o cão morto e foi elaborado um relatório e tiradas fotografias, sendo verificado que o local tinha vedação dos dois lados da via, a qual que tem 1,5 m de altura, sem ser constatado qualquer dano. Não tendo sido possível ao condutor evitar o embate com o animal, o mesmo causou danos no veículo automóvel, no valor de € 5.603,35. Ficou demonstrado que durante a noite, a Ré passou de 2 em 2 horas pelo local onde ocorreu o acidente e que existindo camaras de videovigilância, não foi detetada a entrada do animal, nem se apurou por onde entrou. Mais ficou provado que a Ré tem uma brigada de manutenção que verifica diariamente as vedações entre as 08H00 e as 17H00 e que tem 12 veículos que constituem a brigada de manutenção e de vigilância a circular durante 24 horas. Por outro lado, não se provou por onde o cão entrou na autoestrada, assim como a velocidade em que circulava o veículo ou sequer que fosse impossível ao Autor desviar-se para a faixa contígua àquela em que circulava para evitar a colisão. 2. Nos termos gerais, a responsabilidade civil ocorre quando uma pessoa deve reparar um dano sofrido por outra. A lei faz surgir uma obrigação em que o responsável é devedor e o lesado credor, vide Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 9ª ed. Almedina, 2001, pp. 473 e segs.. A lei constitucional, no que respeita à responsabilidade das entidades públicas, consagra no artigo 22.º da Constituição o princípio geral da responsabilidade do Estado e das demais entidades públicas e a regra da solidariedade entre a Administração e os seus funcionários ou agentes, por danos causados no exercício das suas funções, no sentido de o Estado servir como garante da reparação dos danos – a este respeito veja-se Jorge Miranda, in Manual de Direito Constitucional, Parte IV, Direitos Fundamentais, pp. 286 e segs.. No presente caso, trata-se de aferir a responsabilidade da concessionária de serviço público da SCUT do Algarve, recaindo sobre ela a vigilância, conservação e exploração da via abrangida pelo contrato de concessão, a autoestrada A22, Via do Infante Sagres. No que respeita à delimitação do Direito aplicável, considerando a data dos factos, ocorridos em 17/08/2010, tem aplicação o Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas (RRCEE), aprovado em anexo pela Lei n.º 67/2007, de 31/12, por ser o regime vigente. Prevê-se no artigo 1.º, n.ºs 1 e 2 do RRCEE que “1. A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial. 2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.”. Acresce, com relevo, para o presente litígio, o disposto no artigo 1.º, n.º 5 do RRCEE: “5 - As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.”. No presente caso, releva ainda o disposto na Lei n.º 24/2007, de 18/07, que define direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares e estabelece, nomeadamente, as condições de segurança, informação e comodidade exigíveis, sem prejuízo de regimes mais favoráveis aos utentes estabelecidos ou a estabelecer. Em particular, referente à “Responsabilidade”, estabelece o disposto no artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18/07, o seguinte: “1 - Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a: a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem; b) Atravessamento de animais; c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais. 2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança. 3 - São excluídos do número anterior os casos de força maior, que directamente afectem as actividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de: a) Condições climatéricas manifestamente excepcionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos; b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio; c) Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra.”. 3. Efetuando o enquadramento de facto e de direito, importa analisar os requisitos ou pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, que a sentença recorrida julgou não se verificarem. No domínio dos atos da função administrativa, os requisitos da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas, não diferem substancialmente dos previstos na lei civil, decalcados no artigo 483.º, n.º 1 do CC, de verificação cumulativa, distintos e autónomos, a saber: o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr. Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 9ª ed. Almedina, 2001, pp. 510). Cada um dos citados pressupostos desempenha uma função essencial e distinta no regime das situações geradoras do dever de reparação do dano.
3.1. Desde logo, em relação ao facto, há muito que a doutrina e a jurisprudência admitem a responsabilidade dos entes públicos decorrentes não só da prática de atos jurídicos, como da realização de operações materiais, pelo que o facto ilícito tanto pode consistir num ato jurídico, como num ato material. Do mesmo modo, tanto pode estar em causa, a responsabilidade civil decorrente de atos, como de omissões, pois a conduta do agente geradora do dano tanto pode consistir num comportamento comissivo, como numa omissão, segundo o artigo 486.º do CC. O citado regime abrange não só os atos materiais e omissões que ofendam direitos de terceiros ou disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, como ainda os atos ou omissões que ofendam as “regras técnicas e de prudência comum” ou o dever geral de cuidado que devam ser tidos em consideração. No caso dos autos, efetuando o enquadramento normativo da factualidade dada por assente e segundo, está em causa a omissão de vigilância em face do perigo que constitui a presença de animais na via pública, em particular, numa via destinada à circulação automóvel, como é a autoestrada, podendo provocar acidentes de viação. Cabe à Ré, na qualidade de concessionária da conservação e exploração da autoestrada em questão, a obrigação de zelar pela segurança da circulação, devendo tomar todas as medidas necessárias para cumprir esse objetivo. Por isso, tem deveres de agir para evitar danos a terceiros, como são os utentes da autoestrada, cuja violação constitui o cometimento de um facto ilícito. Recai sobre a Ré o dever de vigilância em relação aos animais ou um dever como o que exerce uma atividade perigosa. Segundo o Autor, a Ré ao não diligenciar no sentido de impedir a entrada de animais na faixa de rodagem na A22, através da vedação segura e eficaz, incumpriu a obrigação de zelar pela segurança da circulação rodoviária na referida autoestrada A22, sendo, consequentemente, responsável pelos danos daí decorrentes. Sobre a responsabilidade das entidades públicas ou entidades privadas dotadas de poderes públicos, as mesmas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de atos ilícitos culposamente praticados pelos respetivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício. Não se afigura controvertido que recaem sobre a Ré diversas obrigações de vigilância em relação a animais e de segurança rodoviária. Nos termos do artigo 12.º, n.º 1, b) da Lei n.º 24/2007, de 18/07, em caso de acidente rodoviário nas autoestradas, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que, entre outras, a respetiva causa diga respeito a atravessamento de animais, como no presente caso. Pelo que, no respeitante ao facto, não existem as menores dúvidas de estarmos perante uma atuação de vigilância e de criação das condições de segurança rodoviária que é exigida e reclamada da Ré.
3.2. Concernente à ilicitude, segundo o artigo 9.º, n.º 1 do RRCEE, consideram-se ilícitas as ações ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos. Para o caso em apreço, existem normas legais, mais concretamente, as normas gerais previstas nos artigos 493.º e 502.º do CC, em relação aos danos causados por coisas, animais ou atividades e aos danos causados por animais, respetivamente, fazendo recair sobre a Ré, concessionária da autoestrada em que ocorreu o acidente de viação, o dever de vigilância de quaisquer animais, fazendo-a responder pelos danos que o animal causar. A que acresce o aludido artigo 12.º, n.º 1, b) da Lei n.º 24/2007, de 18/07, enquanto regime particular aplicável. * Nestes termos, estão demonstrados todos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual da Ré, que determinam a sua condenação na obrigação de indemnizar, nos exatos termos peticionados pelo Autor, na quantia de € 5.603,35, a título de danos patrimoniais decorrentes do embate do animal com a viatura, acrescida de juros legais, a contar da citação, ocorrida em 25/06/2012 (fls. 34 do processo físico), até efetivo pagamento, nos termos do n.º 3 do 805.º do Código Civil.* Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma: I. A responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos emana da prática de atos jurídicos e da realização de operações materiais, e pode decorrer quer de atos comissivos (por ação), quer omissivos (por omissão), segundo o artigo 486.º do CC. III. Cabe à Ré, na qualidade de concessionária da conservação e exploração da autoestrada A22, a obrigação de zelar pela segurança da circulação, devendo tomar todas as medidas necessárias para cumprir esse objetivo, onde se inclui o dever de vigilância em relação aos animais. IV. A Ré ao não diligenciar no sentido de impedir a entrada de animais na faixa de rodagem na A22, através da vedação segura e eficaz, incumpriu a obrigação de zelar pela segurança da circulação rodoviária, sendo, consequentemente, responsável pelos danos daí decorrentes. V. Nos termos do artigo 12.º, n.º 1, b) da Lei n.º 24/2007, de 18/07, em caso de acidente rodoviário nas autoestradas, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que, entre outras, a respetiva causa diga respeito a atravessamento de animais, como no presente caso. * Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, em revogar a sentença recorrida e em julgar a ação procedente, condenando a Ré, E............. –………, SA, no pedido de pagamento de indemnização, em consequência dos danos patrimoniais sofridos, no valor de € 5.603,35, acrescida de juros legais, a contar da citação, ocorrida em 25/06/2012, até efetivo pagamento. Custas pela Ré, em ambas as instâncias. Registe e Notifique. A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 01/05, tem voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Juízes integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores, Alda Nunes e Pedro Marchão Marques.
(Ana Celeste Carvalho - Relatora) |