Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1272/14.9BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:06/24/2021
Relator:ANA PINHOL
Descritores:PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO;
DÉFICE INSTRUTÓRIO.
Sumário:I. Compete ao juiz examinar se é legalmente permitida a produção da prova testemunhal oferecida pelas partes em face das normas que disciplinam a admissibilidade desse meio de prova, e, no caso afirmativo, aferir da relevância da factualidade alegada perante as várias soluções plausíveis para as questões de direito colocadas, só podendo dispensar essa prova no caso de concluir que ela é manifestamente impertinente, inútil ou desnecessária.

II. Em casos como o dos autos em que a omissão da diligência de prova testemunhal requerida pela recorrente a impediu de fazer prova, precisamente daquilo que o Tribunal «a quo» julgou imprescindível para a procedência da impugnação judicial, mostra-se o julgamento da matéria de facto, vertido na sentença recorrida, inquinado por défice instrutório, existindo a séria probabilidade de a produção da prova, em falta, revelar um quadro factual mais amplo e seguro, com incontornável influência na decisão.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

I.RELATÓRIO

O B............, S.A., e a FAZENDA PÚBLICA dizendo-se inconformadas com a sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou parcialmente procedente a impugnação deduzida contra as autoliquidações de IVA relativas aos períodos 01, 02 e 03 do exercício de 2014, dela recorrem na parte que lhes foi desfavorável.

O B............, S.A., apresentou, para o efeito, alegações nas quais formulou as seguintes conclusões:

«A.O presente recurso jurisdicional vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa na parte que julgou parcialmente improcedente a impugnação judicial deduzida pela Recorrente contra as autoliquidações de IVA relativas aos períodos de 01, 02 e 03 do ano de 2014, ou seja, na parte em que foi decidido pelo Tribunal a quo que a impugnação judicial é improcedente na parte relativa à requerida inclusão no numerador e no denominador da fracção do pro rata das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira, o que representa o valor de € 148.293,01 (de entre o valor total da causa de € 205.696,75).

B.A Recorrente reitera que, na sua opinião, o disposto nos n.° 2 e 3 do artigo 23.° do Código do IVA não permitem à AT modificar o cálculo do pro rata previsto no n.° 4 do artigo 23.° do Código do IVA nos termos preconizados no Ofício-Circulado n.° 30108 (excluindo, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fracção a parte da renda correspondente à amortização), não estando tal possibilidade prevista na lei, nem qualquer leitura da lei permite tal conclusão.

C.O Tribunal a quo, não dando relevo à argumentação esgrimida pela Recorrente — e que, em rigor, seria suficiente para julgar totalmente procedente a impugnação judicial — alicerçou-se na jurisprudência do TJUE proferida no Caso Banco Mais e na jurisprudência do STA posterior àquela, para fundamentar a improcedência da impugnação judicial no sentido de que “caberia à Impugnante demonstrar que a utilização de bens e serviços de utilização mista foi determinada também pela disponibilização dos veículos, o que não foi alegado nem provado ” (cfr. p. 29 da sentença).

D. Pese embora se discorde da interpretação perfilhada na jurisprudência citada na sentença recorrida, a Recorrente, na sua p.i., havia arrolado três testemunhas, a saber, (i) P..........., Director Financeiro, (ii) C..........., Técnico Oficial de Contas, (iii) e V.........., Director Adjunto, os quais exercem todos funções junto da Recorrente e são, portanto, conhecedores da matéria sub judice (cfr. p. 70 da p.i.).

E. Não obstante, o Tribunal a quo, por despacho de 2 de Maio de 2017, considerou que face às soluções possíveis de direito, afigurar-se-ia suficiente a prova documental junta e desnecessária a produção de prova testemunhal.

F. No entanto, o juízo de improcedência da impugnação assentou na falta de prova de um facto — a. Os custos mencionados em 11. respeitam em parte à disponibilização, por parte da Impugnante, dos veículos objecto dos contratos de locação referidos entre 3. e 5 — (p. 9 e 29 da sentença) o qual, através de prova testemunhal poderia ter sido esclarecido e julgado como provado.

G. Na p.i. foram alegados factos — inclusivamente dados como provados na sentença — dos quais se extrai que os custos comuns da Recorrente são necessariamente também utilizados para efeitos da disponibilização da viatura aos seus clientes. Referimo-nos ao facto dado como provado na sentença no ponto 4 (p. 7 da sentença).

H. Sendo tal um facto imprescindível na solução de direito a adoptar, na perspectiva do Tribunal a quo, não pode a Recorrente deixar de denunciar a decisão surpresa que versou sobre a impugnação judicial e que traduz uma causa de nulidade da sentença que aqui se invoca para todos os efeitos legais.

I. Além do mais, importa realçar que a presente impugnação judicial deu entrada a 3 de Junho de 2014 (facto 16 dado como provado na sentença), sendo que o Acórdão do TJUE, proferido no Caso Banco Mais e referenciado na sentença recorrida, é de 10 de Julho de 2014, ou seja, posterior à instauração da impugnação judicial subjacente a estes autos.

J. Assim, entendendo-se, como se entendeu, que a jurisprudência sancionada naquele Acórdão seria relevante para apreciação destes autos, o Tribunal a quo sempre teria de determinar, ao decidiu como decidiu - facto a. dado como não provado na sentença - pela ampliação da matéria de facto por forma a que a Recorrente pudesse acautelar esta possível solução jurídica dada à causa.

K. Face ao exposto, a sentença recorrida ao ter julgado não provado o facto supra referido, depois de ter prescindido da realização de prova testemunhal e de não ter permitido à Recorrente pronunciar-se sobre a necessidade da produção daquela prova testemunhal à luz da configuração jurídica que veio a ser dada na sentença recorrida, É NULA POR VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO PREVISTO NO ARTIGO 3.° DO CPC, aplicável ex vi artigo 2.° do CPPT, o que se invoca para todos os efeitos legais.

L. Caso assim não se entenda, verifica-se precisamente um erro de julgamento na matéria de facto, quando foi dado como não provado o facto “a) Os custos mencionados em 11. respeitam em parte à disponibilização, por parte da Impugnante, dos veículos objecto dos contratos de locação referidos entre 3. e 5" (cfr. p. 9 da sentença) e que se impugna especificadamente (cfr. al. a) do n.° 1 do artigo 640.° do CPC ex vi artigo 2.° do CPPT).

M. Tendo sido dispensada a produção de prova testemunhal, sem mais, pelo Tribunal a quo, a não realização dessa diligência afectou irremediavelmente o julgamento da matéria de facto, pelo que se conclui pelo incorrecto julgamento da matéria de facto quando se deu como não provado o facto referido em a. dos factos não provados na sentença (p. 9 da sentença), o que se impugna para todos os efeitos legais, e pelo DÉFICE INSTRUTÓRIO DA SENTENÇA RECORRIDA causado pela não produção da prova testemunhal requerida, O QUE DETERMINA A ANULAÇÃO DA SENTENÇA e, em consequência, a baixa do processo ao Tribunal de Primeira Instância para realização da diligência de produção de prova testemunhal.

N.A Recorrente considera que a sentença recorrida fez igualmente um incorrecto julgamento da matéria de direito porquanto, como amplamente explanado nas alegações supra, o disposto no artigo 23.° do Código do IVA não corresponde à transposição da Directiva do IVA, e não legitima a AT, por Ofício, a modelar o pro rata previsto no n.° 4 do artigo 23.° do Código do IVA.

O. Não obstante até à alteração do artigo 23.° do CIVA introduzida pela Lei do Orçamento de Estado para 2008 (Lei n.° 67-A/2007, de 31 de Dezembro) a redacção do mesmo parecer sugerir uma utilização genérica do método do pro rata aos sujeitos passivos mistos, a verdade é que o artigo 173.° da Directiva do IVA, em especial o seu n.° 1, atribui indiscutivelmente um carácter residual/supletivo àquele método. Apresentando um carácter residual / supletivo, o método pro rata só deverá ser aplicado para os custos comuns (custos afectos indiscriminadamente a várias actividades, operações sujeitas e operações isentas).

P. Por forma a permitir a dedução (ainda que parcial) dos custos comuns incorridos pelos Sujeitos Passivos com a aquisição de bens ou serviços utilizados indiscriminadamente para ambos os tipos de actividade (i. e. custos em que não é possível determinar em que medida se destinam a uma ou a outra das actividades): (i) sujeita e (ii) não sujeita ou isenta (sem direito à dedução), o legislador previu então a dedução através do método do pro rata (também designado por método da percentagem).

Q. O n.° 1 do citado artigo 174.° da Directiva do IVA foi transposto para o nosso ordenamento jurídico pelo n.° 4 do artigo 23.° do CIVA nos seguintes termos:

«A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.° 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar à dedução nos termos do n.° 1 do artigo 20.°e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.° 1 do artigo 2.°, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento» - realce nosso.

R. Resulta deste preceito que quando a aplicação do método da afectação real não seja possível, a dedução dos custos comuns terá necessariamente de ser feita segundo o método do pro rata, sendo este calculado através da seguinte fórmula: no numerador (dividendo) deverá ser tido em consideração o montante total de volume de negócios anual/transmissões de bens e prestações de serviços relativo às operações que conferem o direito à dedução; e no denominador (divisor), deverá ser incluído o mesmo valor do numerador acrescido das operações que não conferem o direito à dedução (operações isentas ou fora do campo do imposto).

S. De acordo com a sentença recorrida, nas autoliquidações respeitantes aos períodos em apreço, não há lugar, quanto a esta matéria, a qualquer regularização de imposto a favor da aqui Recorrente por esta ter determinado correctamente a percentagem de dedução do IVA, e isto porquanto não incluiu no numerador e no denominador da fracção a componente de amortização de capital nas rendas dos contratos de locação financeira mobiliária, mas tão só a componente de juros.

T.A este respeito, é de destacar aqui os Pareceres Jurídicos da autoria conjunta do Senhor Doutor JOSÉ GUILHERME XAVIER DE BASTO e do Senhor Professor Doutor ANTÓNIO MARTINS, junto aos autos, assim como o artigo doutrinal dos mesmos autores (anexo com o presente recurso), que colocam em causa a posição defendida pela AT e, com o devido respeito, pelo Tribunal a quo e a jurisprudência do STA nele referenciada, considerando aqueles autores «(...) ser claro que é sobre a totalidade da renda, sem distinção entre juro e capital, que se deve liquidar IVA, pois o valor tributável do imposto, nas operações de locação financeira é, segundo a alínea h) do n.° 2 do artigo 16.0 do CIVA, “o valor da renda recebida ou a receber do locatário”; e de ser claro também que o numerador da fracção que exprime a percentagem a dedução é constituído pelo “montante anual”, imposto excluído, das operações que dão lugar à dedução ”, ou seja pelo valor das operações que foram tributadas, e que o respectivo denominador é o “montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo...”, o que obviamente inclui as primeiras.» (vide páginas 7 e 8 do Parecer junto com as alegações de 16 de Junho de 2017).

U. Concluindo assim que a «(...) solução proposta pela administração fiscal, de tributar toda a renda, como manda a alínea h) do n.° 2 do artigo 16.º, sobre o valor tributável, e de expurgar, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fracção a parte da renda correspondente à amortização não tem apoio directo nos textos legais.» (vide página 8 do Parecer).

V. Pelo que, não havendo forma de contestar a sujeição da operação a IVA, não haverá fundamento para que o montante das amortizações financeiras não incluam o volume de negócios para efeitos de determinação do pro rata.

W. De todo o modo, e como também perfilhado no aludido parecer (na esteira de outros autores, como veremos adiante), é por demais evidente que à luz das disposições nacionais que transpuseram a Directiva do IVA para o ordenamento jurídico nacional (maxime o Código do IVA), não é atribuída à AT quaisquer prerrogativas destinadas à alteração do modo de cálculo da percentagem de dedução do IVA autorizada para os bens de utilização mista, ou seja, relativamente «(…) aos custos comuns que não pudíeram ser atribuídos por critérios objectivos aos dois grupos de operações, tributadas e isentas, do sujeito passivo» (vide página 47 do Parecer constante do documento n.° 1).

X. De acordo com a sentença recorrida, «Com efeito, como decorre da instrução administrativa mencionada em 1. do probatório, que reflecte a posição apreciada pelo TJUE, a AT considera que o cálculo de um coeficiente de dedução de IVA para os sujeitos passivos mistos, no qual fosse desconsiderado o valor das rendas relativo à amortização de capital, era um cálculo que conferia maior conformidade com a realidade, evitando distorções, porquanto a parte da renda recebida pela impugnante correspondente à amortização de capital não se configura como proveito” (cfr. p. 28 e 29 da sentença).

Y. Em suma, com base — única e exclusivamente na doutrina vertida no aludido Ofício-Circulado n.° 30108 — entende a AT que a inclusão da componente da amortização financeira das rendas dos contratos de locação financeira na fracção do apuramento do pro rata provoca “distorções significativas da tributação”.

Z. A verdade, porém, é que a AT no aludido Ofício-Circulado alega que se verificam “distorções significativas na tributação” no contexto da aplicação do método do pro rata e não no quadro da imposição do método da afectação real, embora os n.os 2 e 3 do artigo 23.° do Código do IVA apenas habilitam a AT a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento ao sujeito passivo que efectue operações que conferem direito à dedução e operações que não conferem esse direito no âmbito da dedução segundo a afectação real (vide páginas 42 e 43 do Parecer junto com as alegações escritas de 16 de Junho de 2017).

AA. Nas actuais circunstâncias, não se nos afigura sequer legítimo que a AT presuma que a utilização do método pro rata nos termos previstos no n.° 4 do artigo 23.° do Código do IVA provoque “distorções significativas na tributação”, sem qualquer esforço de indagação adicional, sendo antes exigível que fundamente a razão pela qual a Recorrente deve observar um outro método de dedução.

BB. Termos em que, do ponto de vista de DIREITO CONSTITUÍDO (iure constituto) — ou seja, ao abrigo das disposições legais aplicáveis - importa concluir que é também manifestamente infundada a asserção de que a aplicação do método do pro rata pretendida pela Recorrente na determinação do grau de utilização de bens e serviços utilizados em operações mistas segundo os termos do n.° 4 do artigo 23.° do Código do IVA conduza a “distorções significativas na tributação'.

CC. Na sentença recorrida foi convocada e citada a jurisprudência do TJUE, mais concretamente, a decisão proferida no “Caso Banco Mais” em 10 de Julho de 2014. Compulsado o acórdão do TJUE proferido no “Caso Banco Mais” logo se verifica — com o devido respeito - que o mesmo assenta num manifesto e clamoroso equívoco, já que assume, sem efectivamente apurar, se a lei portuguesa (mais precisamente o disposto no artigo 23.° do Código do IVA) prevê ou não mecanismos que permitam à AT impor outros métodos de dedução de IVA para bens e serviços de utilização mista.

DD. Em primeiro lugar importa referir que o acórdão do TJUE não responde directamente à pergunta prejudicial formulada no “Caso Banco Mais”, que assentou na questão de saber se a renda correspondente à amortização financeira deve ser considerada no denominador do pro rata, ou, ao invés, se apenas deveriam ser considerados os juros, por apenas estes constituírem a remuneração ou o proveito de uma entidade que desenvolve actividades de locação financeira (sujeitas) e outras actividades associadas à concessão de crédito (isentas).

EE. Em segundo lugar, convém recordar que o acórdão do TJUE não deveria sequer cuidar em apurar se, efectivamente, a lei portuguesa (mais precisamente o disposto no artigo 23.° do Código do IVA) prevê mecanismos que permitam à AT impor outros métodos de dedução de IVA para bens e serviços de utilização mista, e muito menos da forma leviana como assumiu esse juízo.

FF. Em terceiro lugar, cabe notar que o acórdão do TJUE sustenta que o juízo de adequação para a aplicação de um outro método de dedução de IVA nos bens e serviços de utilização mista se encontra dependente da verificação do requisito que consiste na questão de saber se a utilização desses bens e serviços é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira.

GG. Salvo o devido respeito, não se consegue percepcionar o sentido e o alcance que o TJUE pretende atribuir a esta afirmação, atenta a circunstância de na legislação portuguesa não se encontrar prevista a possibilidade de modelar o cálculo do pro rata, uma vez que o requisito não se encontra contido em qualquer norma legal ou regulamentar, nem tão pouco, sequer, no Ofício-Circulado n.° 30108 que esteve na base dos actos tributários em crise.

HH. De uma forma desprendida mas sem preconceitos ou viciados pelas infundadas considerações que o TJUE acabou por, nesse particular, realizar, importa, pois, analisar textualmente cada uma das referidas normas (i.e., artigo 17.°, n.° 5, alínea c), da Sexta Diretiva vs. artigo 173.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva n.° 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2006 vs. 23.°, n.° 2 do CIVA).

II. Do mero (mas verdadeiro) confronto das referidas normas resulta que É ABSOLUTAMENTE FALSO que o normativo da Sexta Diretiva (bem como da correspondente regra da Diretiva do IVA), objecto de apreciação no acórdão interpretativo do TJUE (o artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), corresponda (ou transponha) ipsis verbis ao artigo 23.°, n.° 2 do CIVA.

JJ. Entende assim a Recorrente QUE O TJUE ASSENTA O SEU ACÓRDÃO NUMA PREMISSA TOTALMENTE ERRADA: a de que o artigo 23.°, n.° 2 do CIVA constitui a mera transposição para o direito interno do artigo 17.°, n.° 5, alínea c), da Sexta Diretiva!

KK. Para além da doutrina supra referenciada, a posição da Recorrente encontra respaldo na jurisprudência unânime e recente das decisões proferidas pelo CAAD, as quais, por manifestamente relevantes para uma correcta apreensão e decisão nos presentes autos a Recorrente não pode deixar de chamar aqui à colação, e que são as seguintes: 309/2017-T, 311/2017-T, 312/2017-T, 335/2018-T, 339/2018-T, 498/2018-T, 581/2018-T, 479/2019T, 505/2019-T, 765/2019-T, 769/2019-T, 853/2019-T e 854/2019-T.

LL. Pese embora o desacordo com a interpretação que é dada, na sentença recorrida e na jurisprudência do STA nela referenciada, a esta matéria, a Recorrente não pode deixar de denunciar que, ainda que se atendesse àquela jurisprudência, a impugnação judicial devia ter sido julgada totalmente procedente.

MM. No parágrafo 35 do Acórdão do TJUE no Caso Banco Mais, refere-se que «o artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva deve ser intepretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar».

NN. Com esta última expressão, então, o TJUE cometeu ao tribunal nacional avaliar a função económica dos contratos de locação, na actividade do locatário, a fim de averiguar se os clientes dos sujeitos passivos que recorrem a tais contratos o fazem sobretudo determinados pela função de financiamento e gestão dos contratos.

OO. A este propósito, doutamente, no Acórdão Arbitral proferido no processo 854/2019-T, de 9 de Junho de 2020, cujo colectivo de árbitros foi composto pelo Conselheiro José Poças Falcão (árbitro-presidente) e pelo Dr. José Coutinho Pires e pela Professora Doutora Nina Aguias (árbitros vogais), salientou-se o seguinte:

«Ora, saber qual é a função económica predominante dum contrato de locação financeira - a de emprestar dinheiro ou a de proporcionar o gozo do bem - é um problema de difícil solução. Mas o certo é que o legislador português optou, no âmbito do imposto sobre o valor acrescentado, por tratar as rendas dos contratos de locação financeira como rendas pagas por um serviço de locação (art. 16°, 2-h), no que está implícito o tratamento da locação financeira como um serviço não financeiro.

E se assim é, custa aceitar que o legislador sujeite a IVA, na sua globalidade, as operações de locação financeira e aluguer de longa duração, por não as considerar como operações financeiras, e ao mesmo autorize limitar o direito de dedução do IVA em relação às mesmas operações, por se tratar de operações financeiras.

Este tribunal considera que, tendo em vista a finalidade da tributação em IVA, se deve considerar que os clientes da Requerente que recorrem a contratos de locação financeira e aluguer de longa duração não o fazem sobretudo determinados pela função de financiamento e gestão dos contratos, mas sim pela função de poder beneficiar do gozo da coisa locada».

PP. Ora, à luz deste entendimento, totalmente transponível para os presentes autos, importa chamar novamente à colação o disposto na alínea h) do n.° 2 do artigo 16.° do Código do IVA, segundo o qual: «2 - Nos casos das transmissões de bens e das prestações de serviços a seguir enumeradas, o valor tributável é: h) Para as operações resultantes de um contrato de locação financeira, o valor da renda recebida ou a receber do locatário».

QQ. Por força deste preceito legal, a Requerente sujeita a IVA as rendas que cobra aos seus clientes, facto este, aliás, dado como provado na sentença recorrida (cfr. facto 5 dado como provado — p. 7 da sentença recorrida). Já quanto às operações financeiras (vulgo concessão de crédito e outras formas de financiamento), as mesmas são operações isentas de IVA nos termos do n.° 27 do artigo 9.° do Código do IVA.

RR. Face ao exposto, conclui-se que se o legislador quisesse ter qualificado as operações de locação financeira como correspondendo a uma actividade de financiamento/concessão de crédito, tê-las-ia isentado de IVA. MAS o que sucedeu foi precisamente o contrário: esclareceu, na alínea h) do n.° 2 do artigo 16.° do Código do IVA, que são operações sujeitas e não isentas de IVA, fixando o valor tributável o valor da renda, afastando precisamente a sua qualificação como uma operação de concessão de crédito.

SS. Por outro lado, na Directiva do IVA, não se encontra, em lado algum, uma norma similar à alínea h) do n.° 2 do artigo 16.° do Código do IVA, o que reitera de forma inequívoca a intenção de o legislador nacional ter, na óptica deste imposto, pretendido tratar esta actividade como uma actividade de disponibilização de viaturas e não de concessão de crédito.

TT. Acresce que, mais recentemente, o TJUE veio repensar expressamente a jurisprudência proferida no Caso Banco Mais, o que foi olimpicamente ignorado pelo Tribunal a quo. Referimo-nos, pois, ao Acórdão do TJUE proferido em 18-10-2018, no processo C-153/17, Volkswagen Financial Services (UK) Ltd, doravante «Caso Volkswagen».

UU. De acordo com este último acórdão do TJUE, repensando explicitamente a jurisprudência do Caso Banco Mais, foi esclarecido que «os Estados-Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é susceptível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios» (acórdão de 18-10-2018, processo C-153/17, Volkswagen Financial Services (UK) Ltd).

VV.Face ao exposto, e tendo em conta esta decisão mais recente do TJUE, que tem carácter vinculativo para os Tribunais Nacionais, permite-nos concluir que «o método preconizado pela Administração Tributária, que não tem em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, também sob esta perspectiva é incompatível com a alínea c) do n.° 2 do artigo 173.° da Directiva n.° 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006 [a que corresponde que alínea c) do n.° 5 do artigo 17.° da 6.a Diretiva]» (cfr. acórdão arbitral proferido no processo 854/2019-T), o que se invoca para todos os efeitos legais.

WW. Por último, como já se adiantou, e tal foi sublinhado em inúmeras decisões arbitrais referenciadas, por maior esforço interpretativo que se possa fazer de todos os dispositivos previstos no Código do IVA, em lado algum é possível extrair a conclusão que resulta da letra da lei a possibilidade conferida à AT de modelar o cálculo dopro rata das entidades que realização operações de locação financeira/ALD.

XX. Uma interpretação segundo a qual o n.° 2 e 3 do artigo 23.° do Código do IVA permitem à AT (à margem do processo legislativo estabelecido na CRP) através de circular interna definir e restringir o direito à dedução do IVA dos contribuintes, com carácter geral e abstracto, através de uma diferente modelação do método pro rata previsto no n.° 4 do artigo 23.° do Código do IVA (excluindo, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fracção a parte da renda correspondente à amortização) é MATERIAL e FORMALMENTE INCONSTITUCIONAL por violação dos princípios da separação dos poderes (artigos 2.° e 111.° da CRP), do artigo 112.°, n.° 5, da CRP, do princípio da legalidade tributária (103.°, n.° 2 da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República [165.°, n.° 1, alínea i) da CRP], o que expressamente se invoca para todos os efeitos legais.

YY. E, não tendo essa possibilidade sido legislativamente prevista, a AT não a pode aplicar, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.°, n.° 2, da CRP e 55.° da LGT) e explicitado no artigo 3.°, n. 1, do Código do Procedimento Administrativo, pelo que uma interpretação segundo a qual o n.° 2 e 3 do artigo 23.° do Código do IVA lhe confere, à AT, tal possibilidade, também é violadora do princípio da legalidade da actuação da AT (artigos 266.°, n.° 2, da CRP).

ZZ. Assim, os princípios constitucionais da legalidade tributária (103.°, n.° 2 da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República [165.°, n.° 1, alínea i) da CRP] não permitem que, por Ofício- Circulado, se venha legislar em matéria de impostos, in casu, em matéria de dedução do IVA, pelo que é material e formalmente inconstitucional qualquer interpretação segundo a qual os n.° 2 e 3 do artigo 23.° do Código do IVA permitem à AT (à margem do processo legislativo estabelecido na CRP) através de circular interna definir e restringir o direito à dedução do IVA dos contribuintes, com carácter geral e abstracto, através de uma diferente modelação do método pro rata previsto no n.° 4 do artigo 23.° do Código do IVA (excluindo, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fracção a parte da renda correspondente à amortização).

AAA. Por outro lado, o princípio ínsito no n.° 5 do artigo 112.° da CRP não permite que a lei crie uma sub-categoria de “actos legislativos” na ordem jurídica nacional e ainda que tal acto possa, em subversão da hierarquia das fontes do direito, com eficácia externa e geral, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer preceito legal, pelo que encontra-se violado aquele preceito constitucional numa interpretação dos n.° 2 e 3 do artigo 23.° do Código segundo a qual estes preceitos habilitam a AT, por Ofício-Circulado, a regular o direito à dedução, mitigando o pro rata previsto no n.° 4 do artigo 23.° do Código do IVA como supra se explicou, com carácter geral, abstracto e com eficácia externa, em especial, quando respeita a matéria do campo da legalidade da lei fiscal (artigo 103.°, n.° 2 da CRP) e da reserva legislativa da Assembleia da República (artigo 165.°, n.° 1, alínea i) da CRP).

BBB. Também os princípios da separação dos ponderes (artigos 2.° e 111.° da CRP) não permitem uma interpretação dos n.° 2 e 3 do artigo 23.° do Código do IVA segundo a qual a AT poderá legislar ou modificar, por Ofício Circulado, em matéria de dedução do IVA, mitigando opro rata previsto no n.° 4 do artigo 23.° do Código do IVA como supra se explicou, uma vez que tal poder apenas é conferido ao poder legislativo (Assembleia da República do Governo devidamente autorizado nos termos do artigo165.°, n.° 1, alínea i) da CRP).

CCC. Por último, nos termos do n.° 2 do artigo 266.° da CRP, “os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé”, preceito este igualmente violado numa interpretação segundo a qual os n.° 2 e 3 do artigo 23.° do Código do IVA conferem, à AT, a possibilidade de mitigar o pro rata previsto no n.° 4 do artigo 23.° do Código do IVA, porquanto, como se viu, nada na letra da lei permite tal interpretação nem se encontra na letra da lei tal previsão.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, DEVE POR V. EXAS. SER O PRESENTE RECURSO JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE, NOS TERMOS ACIMA EXPOSTOS, POR VERIFICAÇÃO DE NULIDADE DA SENTENÇA RECORRIDA, ERRADA APRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO E DE DIREITO, E POR APLICAÇÃO DE NORMA INCONSTITUCIONALIDADE E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA E SUBSTITUÍDA POR UMA OUTRA QUE JULGUE A IMPUGNAÇÃO JUDICIAL, PROCEDENTE, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.

SÓ ASSIM SE FARÁ INTEIRA JUSTIÇA 
PEDE E ESPERA DE V. EXA. DEFERIMENTO»

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Não há contra-alegações apresentadas.
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A Fazenda Pública formulou nas respetivas alegações, as seguintes conclusões:

«A) Com a ressalva do sempre devido respeito, considera a Recorrente, Fazenda Pública, que a sentença, no segmento decisório de que ora se recorre, padece de erro de julgamento da matéria de facto e de direito, pois não traduz uma acertada valoração e interpretação da matéria fática, nem tão pouco uma acertada interpretação e aplicação da Lei e de Direito, prejudicando a parte vencida;
B) A questão decidenda do presente recurso, consiste, precisamente, em apurar se, ponderados os métodos ou formas de cálculo da dedução de IVA, quando o sujeito passivo efetua operações que conferem direito a dedução e outras que não conferem esse direito enfermam, ou não, de ilegalidade, as autoliquidações de IVA (efetuadas em conformidade com instruções da Autoridade Tributária) em que o cálculo do pro rata excluiu do numerador e do denominador da fração os valores de alienação/abate por destruição dos bens locados.
C) Aproveitando a fundamentação de direito pela qual o Tribunal a quo se estribou, nomeadamente a jurisprudência aí amplamente citada, e sem necessidade de repetir exaustivamente a mesma, não podia o Tribunal decidir como decidiu na parte de que ora se recorre, como a seguir se demonstrará;
D) A Recorrida, Impugnante, assume a natureza de sujeito passivo misto, ou seja, que realiza operações que conferem o direito à dedução e, em simultâneo, operações que, porque não tributáveis ou isentas, não conferem esse direito;
E) Para efeitos do exercício do direito à dedução do imposto suportado relativamente a esses bens de utilização mista, estes sujeitos passivos podem recorrer ao método da afetação real ou ao método da percentagem de dedução ou pro rata;
F) O método da afetação real substitui a presunção simples subjacente ao pro rata por indicadores alheios ao volume de negócios imputando custos mistos a operações com direito a dedução e a operações sem direito a dedução de acordo com indicadores diferentes, melhor adequados à atividade do sujeito passivo;
G) Já o pro rata, visa encontrar a percentagem da dedução admissível através de uma fração em que no numerador figura o montante anual (sem imposto) das transmissões de bens e serviços que dão lugar a dedução e, no denominador, o montante anual de todas as operações efetuadas (também sem imposto), incluindo as isentas ou "fora do campo” do imposto (cfr. n.° 4 do artigo 23.° do Código do IVA), sendo a medida (percentagem) da dedução do IVA suportado a montante apurada com base na relação entre os volumes de negócios que permitem a dedução do imposto suportado e pelas atividades que não permitem essa dedução;
H) A locação financeira é definida como o "(...) contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.” (cf. artigo 1.°, do Decreto-Lei n.° 149/95 de 24/06);
I) Constando, o regime jurídico específico do contrato de locação financeira, do Decreto-Lei n.° 149/95, de 24/06, com as subsequentes alterações, o mesmo apresenta-se como uma "espécie” do contrato de locação, previsto nos artigos 1022.° e seguintes do Código Civil, consistindo este tal como sucede no regime geral da locação, na cedência do uso de uma coisa que não comporta a transferência da propriedade;
J) A prestação efetuada pelo locador ao locatário, no âmbito de tais contratos de locação financeira, concretiza-se, em substância, na concessão de financiamento, a qual pressupõe, como contrapartida, a cobrança de uma verba (renda) que agrega, para além dos juros e outros encargos correspondentes, o capital emprestado, que vai sendo amortizado, ou seja, a renda é composta por uma parte correspondente a juros e outra a amortização financeira ou do capital, já que estas operações de locação (leasing e ALD) traduzem uma modalidade de crédito;
K) A renda paga pelo locatário é composta por capital ou amortização financeira e juros e/ou outros proveitos, sendo que apenas estes constituem a efetiva remuneração do locador;
L) A locação financeira caracteriza-se como uma prestação de serviços sujeita a imposto nos termos do n.° 1 do art. 4.° do CIVA e al h) do n.° 2 do art. 16° do CIVA;
M) A Recorrida, Impugnante, como locadora, adquire os bens com IVA que entrega aos locatários para uso e fruição e deduz na totalidade o IVA que incide sobre as aquisições, nos termos do n.° 1 do art. 20° do CIVA, faturando as rendas acrescidas de IVA;
N) Assim, ao deduzir a totalidade do IVA nas aquisições dos bens que efetua e ao liquidar o IVA nas rendas, assegura o princípio da neutralidade fiscal;
O) No âmbito da atividade de locação financeira, é o valor dos juros cobrados que traduz verdadeiramente uma prestação de serviços, correspondendo a componente da amortização financeira à amortização do financiamento subjacente à aquisição do bem dado em locação;
P) Entende a Recorrente, Fazenda Pública, que as entidades como a Recorrida, Impugnante, desenvolvem também a atividade de locação financeira, a prática conjunta de tais atividades de financiamento (isentas sem direito à dedução nos termos do n.° 27, do art. 9.° do CIVA, na redação vigente à data dos factos) com aquelas atividades de locação financeira tributadas, implica que, quando hajam bens e serviços adquiridos que sejam conjuntamente utilizados em ambas as atividades, seja necessário recorrer ao disposto no artigo 23.° do CIVA para apuramento da parte do imposto suportado passível de dedução;
Q) E isto porque o apuramento do IVA dedutível através do pro rata geral de dedução previsto no n.° 4, do art. 23.° do CIVA conduz, no caso concreto, a distorções significativas na tributação, por se verificar uma falta de coerência das variáveis utilizadas, capaz de conduzir a situações de dupla dedução do mesmo imposto;
R) Razão pela qual, no cálculo da referida proporção, apenas deverá ser considerado o valor que excede o valor dos custos utilizados nas operações tributadas, uma vez que, através do método da afetação real, os custos específicos da atividade de locação financeira foram diretamente imputados e o respetivo IVA integralmente deduzido, podendo apenas ser considerado, no cálculo da percentagem de dedução a aplicar aos custos comuns gerais, o montante correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de leasing;
S) Com base no facto de o n.° 4, do art. 23.° do CIVA prever um método de dedução de caráter geral e supletivo, constituindo o n.° 2, desse mesmo preceito legal, uma disposição derrogatória da regra prevista naquele normativo legal, o TJUE no Proc.C-183/13 (caso Banco Mais vs. Fazenda Pública), em 10/07/2014, conclui, indubitavelmente, que, ao abrigo dos n.°s 2 e 3, do artigo 23.° do CIVA, é lícito às Autoridades Fiscais dos respetivos Estados-Membros impor, aos sujeitos passivos, a aplicação de uma percentagem de dedução mais conforme à realidade, capaz de obstar às distorções na tributação que o método baseado no volume de negócios pode gerar;
T) Seguindo de perto o concluído no Acórdão do TJUE, o STA, decidiu, no Acórdão proferido no Proc. N.° 01705/13, datado de 29/10/2014, o seguinte: “(...) Os Bancos, cujo tipo de negócio passe também pela celebração de contratos de Leasing e ALD, v.g. de veículos automóveis, devem incluir no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito daqueles seus contratos, que corresponde aos juros. (...) efetivamente, não desconhecendo o TJUE o disposto no artigo 23° do CIVA, porque o cita expressamente, e que foi com base na interpretação que o Tribunal Nacional fez daquele artigo 23°, n.° 4, para julgar procedente a impugnação, identificou a questão a decidir como a de saber se um Estado-Membro pode obrigar um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros. (...) Portanto, a interpretação que deve ser feita do artigo 23° do CIVA, no entender do TJUE, deve englobar necessariamente todos os seus números e não apenas os n.°s. 1 e 4 como parece fazer crer a recorrida. E portanto, o TJUE ao determinar que, o artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados- Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, pronunciou-se expressamente sobre a concreta situação dos autos. Não há qualquer dúvida que também no caso dos autos a AT impôs à recorrida um critério e método diferente de cálculo, precisamente por questionar e não concordar com os resultados produzidos pelo método de cálculo utilizado pela recorrida. (...)”
U) Pelo que se deixa dito, bem como a ratio subjacente a todo o regime de dedução do IVA suportado por sujeitos passivos mistos, constante do art. 23.° do CIVA, e o cerne da atividade de locação financeira que aqui está em causa, o entendimento da Recorrente, Fazenda Pública, observa os princípios enformadores do Sistema Comum do IVA, principalmente o princípio da neutralidade fiscal, a que se fez ampla referência no acórdão proferido pelo TJUE, no processo C-183/13;
V) O reembolso do capital, por não constituir a contrapartida de uma transmissão de bens ou de uma prestação de serviços, não constitui um proveito, não pode integrar o volume de negócios e, consequentemente, não pode influenciar a percentagem de dedução do IVA suportado nos bens de utilização mista;
W) No cálculo da percentagem de dedução, apenas poderá ser considerado o valor correspondente aos juros e outros proveitos relativos à atividade de locação financeira, não podendo nele ser incluído o valor relativo à amortização financeira, uma vez que a percentagem de dedução visa apurar a parte dos custos comuns às várias atividades exercidas pelos sujeitos passivos;
X) E, se assim é, relativamente à amortização financeira incluída nas rendas referentes aos contratos de locação financeira, também o é relativamente aos valores de alienação e abate por destruição dos bens locados;
Y) No âmbito dos contratos celebrados resolvidos por perda total do bem, os locatários pagam à Recorrida, Impugnante, o valor correspondente ao capital em dívida, sendo, por esta, emitida a correspondente fatura;
Z) Ainda nesse âmbito, resolvidos os contratos por incumprimento e nos quais não houve transmissão e propriedade, a Recorrida, Impugnante, vende os veículos a diversas entidade, emitindo, desse modo, a competente fatura;
AA) Nestes casos, ou seja, quanto aos montantes recebidos pela alienação/abate dos veículos locados, para além da componente de capital incluída nas rendas recebidas no âmbito dos contratos de locação financeira, as demais quantias recebidas pelo sujeito passivo a título de alienação ou de indemnização pelo abate por destruição dos bens locados, ainda que residuais, destinam-se, exclusivamente, a amortização, financeira total ou parcial, do capital objeto de financiamento concedido através da aquisição dos bens locados, tendo, por isso, de ser igualmente excluídas do cálculo da percentagem de dedução;
BB) No caso de perda total do veículo, o que acontece é a resolução do contrato, sendo que o locador, nessa situação, é somente ressarcido pelo montante do capital em dívida;
CC) O valor pago não se traduz mais do que o reembolso do capital inicialmente mutuado;
DD) Correspondendo a indemnização ao reembolso do capital vincendo, relativo ao financiamento subjacente à aquisição do bem, esta não constitui contrapartida de uma transmissão de bens ou prestação de serviços, e por isso, não tem a natureza de proveito não integrando assim o volume de negócios;
EE) O valor percebido pelos bens abatidos não tem, ao contrário do que entendeu o T ribunal a quo, a natureza de proveito, por não constituir mera contrapartida de uma transmissão de bens ou serviços, logo, também não pode integrar o volume de negócios;
FF) O valor relativo à alienação ou abate por destruição do veículo locado refere-se à variante do capital, a que respeita igualmente a amortização financeira, que mais não é do que o capital adiantado pela locadora ao vendedor do veículo, sendo a locadora de tal dispêndio ressarcida periodicamente pelo locatário durante o período da fruição deste até ao final de execução do contrato;
GG) Por não se tratar de um proveito, e como tal não integrar o volume de negócios da locadora, não poderão aqueles valores ou indemnizações ser consideradas para o cálculo da percentagem de dedução do pro rata, nos termos do n.° 4 do art. 23° do CIVA;
HH) Uma interpretação diversa conduziria a um “artificial” empolamento da percentagem de repartição dos custos comuns e, consequentemente, a uma dedução ilegítima de imposto, na medida em que se vai permitir à locadora recuperador o valor do IVA que já tinha deduzido aquando da aquisição dos bens, segundo as regras da afetação real, o que sempre contenderia com o princípio da neutralidade que deve obedecer o mecanismo do IVA;
II) Atendendo à jurisprudência invocada na sentença recorrida, verifica-se que o entendimento da AT, consubstanciado no Ofício Circulado supra mencionado, não só não atenta contra os princípios enformadores do IVA, como é o mais adequado à sua prossecução, considerando a própria ratio do art. 23° do CIVA, mesmo quando estejam em causa os valores referentes à alienação/ abate de veículos locados;
JJ) A posição da Recorrente, Fazenda Pública, encontra, assim, apoio legal no n.° 5 do art. 17° da sexta diretiva (art.174° da diretiva IVA), que consente aos Estados Membros opções em relação ao apuramento do IVA dos custos comuns, autorizando ou impondo a utilização de métodos específicos de dedução do IVA em determinadas circunstâncias (n.° 2 e al. b) do n.° 3 do art. 23° CIVA);
KK) Quanto aos juros indemnizatórios, cujo pagamento foi a Recorrente, Fazenda Pública, condenada, mais se entende, por tudo o que foi dito, não haver lugar ao pagamento dos mesmos, dado que nenhum erro haverá a imputar aos serviços da AT;
LL) Conclui-se, assim, que a sentença a quo estribou a sua fundamentação na errónea apreciação das razões de direito, em violação da interpretação das normas constantes do CIVA e das normas quer da Sexta Directiva quer da Directiva IVA, nos arts 16.° e 23.° do CIVA, n.° 5 do art. 17° da Sexta Directiva e art.° 174.° da Directiva IVA e dos princípios da neutralidade e da igualdade, bem como art. 43° da LGT.

Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., e em face da motivação e das conclusões atrás enunciadas, deve ser dado provimento ao presente recurso, e, em consequência revogada a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que seja totalmente improcedente, tudo com as devidas e legais consequências.

PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA.»

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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal Central, pugnou no seu douto parecer pela procedência do recurso interposto pela Fazenda e nada tendo dito quanto ao recurso apresentado pela Impugnante.
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Colhidos os «Vistos» dos Ex.mos Juízes Desembargadores adjuntos, cumpre, agora, decidir, submetendo-se para o efeito os autos à Conferência.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:
- Do recurso do Impugnante

- Saber se a sentença deverá ser considerada nula por violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3.° do CPC, aplicável ex vi artigo 2.° do CPPT e défice instrutório causado pela não produção da prova testemunhal requerida;

- Saber se a sentença padece de erro de julgamento quanto à matéria de direito, em violação da lei ordinária, da jurisprudência do TJUE e ainda da Constituição da República Portuguesa (CRP).

-Do recurso da Fazenda Pública

- Saber se a sentença fez errada interpretação e aplicação das normas constantes do CIVA e das normas quer da Sexta Directiva quer da Directiva IVA, nos artigos 16.° e 23.° do CIVA, n.° 5 do artigo 17° da Sexta Directiva e artigo 174.° da Directiva IVA e dos princípios da neutralidade e da igualdade, bem como artigo 43.° da LGT.


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III. FUNDAMENTAÇÃO
A.DOS FACTOS
Na sentença recorrida fixou-se a matéria de facto e indicou-se a respectiva fundamentação nos seguintes termos:
«1. Foi emitida, pela área de gestão tributária do IVA - gabinete do subdiretor-geral dos impostos, instrução administrativa, correspondente ao ofício n.° 30.108, de 30/01/2009, da qual consta designadamente o seguinte: “1. O ofício circulado n° 30103, de 2008.04.23, do Gabinete do Subdirector-Geral da área de Gestão do IVA, procedeu à divulgação de instruções genéricas no sentido de uniformizar a interpretação a dar às alterações introduzidas ao artigo 23o do Código do IVA (CIVA), de assegurar o correcto enquadramento das várias actividades face aos novos preceitos, de estabelecer os procedimentos a serem seguidos na determinação da dedução do imposto e, ainda, de clarificar os critérios a utilizar, quando haja recurso à afectação real na determinação do quantum do imposto a deduzir e sempre que esteja em causa bens e serviços de utilização mista. 2. De acordo com as referidas instruções e seguindo as regras do artigo 23o do CIVA, para apurar o imposto dedutível contido em bens e/ou serviços de utilização mista, aplica-se supletivamente o método da percentagem ou pro rata, excepto quando estejam em causa operações não decorrentes de uma actividade económica, caso em que é obrigatória a afectação real. Nos demais casos, a afectação real é facultativa podendo, no entanto, a Administração Tributária impor esse método de imputação quando a aplicação do pro rata conduza a distorções significativas na tributação (n° 3 art.° 23°). 3. No caso de utilização da afectação real, obrigatória ou facultativa, e segundo o n.° 2 do artigo 23.°, o sujeito passivo para determinar o grau de afectação ou utilização dos bens e serviços à realização de operações que conferem direito a dedução ou de operações que não conferem esse direito, deve recorrer a critérios objectivos devendo, em qualquer dos casos, a determinação desses critérios objectivos ser adaptada à situação e organização concretas do sujeito passivo, à natureza das suas operações no contexto da actividade global exercida e aos bens ou serviços adquiridos para as necessidades de todas as operações, integradas ou não no conceito de actividade económica relevante. 4. Os critérios adoptados podem ser corrigidos ou alterados pela DGCI, com os devidos fundamentos de facto e de direito, ou, se for caso disso, fazer cessar a utilização do método, se se verificar a ocorrência de distorções significativas na tributação. 5. No caso específico das entidades financeiras que desenvolvem igualmente actividades de Leasing ou de ALD, a prática conjunta de operações de concessão de crédito e de locação tributada, incluindo a locação financeira, implica, quando houver bens e serviços adquiridos que sejam conjuntamente utilizados em ambas, a necessidade de recorrer às disposições do artigo 23.0 do CIVA para apuramento da parcela do imposto suportado, que é passível de direito a dedução. 6. Face à anterior redacção do artigo 23o do CIVA, no âmbito da aplicação do método da afectação real, sempre que não fosse viável a aplicação da afectação no cálculo do IVA dedutível relativamente a bens de utilização mista, a solução encontrada e seguida pelos Serviços como sendo a que mais se aproximava da neutralidade desejada, foi no sentido de ser aplicada uma proporção entre os dois tipos de operações, de forma a determinar, 0 mais aproximadamente possível, a afectação dos inputs a cada uma delas. 7. Face à actual redacção do artigo 23.°, a afectação real é o método que, tendo por base critérios objectivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista. 8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.° 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a "distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de actividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n°.2 do artigo 23º do CIVA, a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar 0 montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades. 9. Na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do n°. 4 do artigo 23o do CIVA” - cfr. doc. 6 junto com a petição inicial junto a fls. 233 a 235 dos presentes autos.
2. A Impugnante foi constituída por escritura pública outorgada em Dezembro de 1996, então com a designação I.........., SA, tendo sido indicado como objecto social a realização de operações bancárias e financeiras e prestação de serviços conexos, designadamente a concessão de crédito ao consumo e a locação financeira - cfr. doc. 8 junto com a petição inicial a fls. 274 a 301dos presentes autos.
3. A Impugnante, no exercício da sua actividade, no ano de 2014, estava enquadrada no regime normal mensal de IVA e realizou operações financeiras isentas de IVA, a par de operações sujeitas a IVA, designadamente operações de locação mobiliária, consubstanciadas em celebração de contratos de locação financeira (leasing) e contratos de aluguer de veículo automóvel sem condutor (ALD financeiro), onde se prevê a possibilidade de compra do veículo pelo locatário - cfr. docs. a 4 juntos com a petição inicial a fls. 158 a 231 e docs. 9 e 10 juntos com a petição inicial a fls. 302 a 319 dos presentes autos.
4. No âmbito das operações de locação mencionadas em 3., a Impugnante adquiriu determinados veículos, pagando integralmente o respectivo preço e entregando-os ao locatário para seu uso e fruição - cfr. docs. 9 e 10 juntos com a petição inicial a fls. 302 a 319 dos presentes autos.
5. Na sequência do mencionado em 3. e 4., eram pagas à Impugnante, pelos locatários, rendas, as quais englobam uma parte relativa a amortização financeira e outra parte relativa a juros e outros encargos, renda essa sujeita a IVA - cfr. docs. 9 e 10 juntos com a petição inicial a fls. 302 a 319 dos presentes autos.
6. No âmbito dos contratos de locação mencionados em 3., resolvidos por motivo de perda total do bem, os locatários pagam à Impugnante o valor correspondente ao capital em dívida, sendo emitida a correspondente factura pela Impugnante, com IVA - cfr. docs. 9, 10 e 12 juntos com a petição inicial a fls. 302 a 319 e 321 dos presentes autos.
7. Na sequência da celebração dos contratos de locação mencionados em 3., resolvidos por incumprimento ou nos quais não houve transmissão da propriedade, a Impugnante vendeu os veículos a diversas entidades, sendo emitida a correspondente factura pela impugnante, com IVA - cfr. doc. 11 junto com a petição inicial a fls. 320 dos presentes autos.
8. Na concessão de crédito para estudo, viagens ou mobiliário e outras não sujeitas a IVA a impugnante não liquidou IVA, liquidando o Imposto do Selo na parte relativa aos juros - cfr. docs. 15 e 16 juntos com a petição inicial a fls. 324 e 325 dos presentes autos.
9. Durante o ano de 2013 a Impugnante apurou um volume de facturação, relativo a leasing e ALD financeiro no valor de 131.056.323,71€ - cfr. doc. 4 junto com a petição inicial a fls. 231 dos presentes autos.
10. Durante o ano de 2013 a Impugnante apurou um volume de facturação, relativo a concessão de crédito no valor de 75.362.113,27€ - cfr. doc. 4 junto com a petição inicial a fls. 231 dos presentes autos.
11. Durante o ano de 2010, a Impugnante suportou custos, em relação aos quais não conseguiu determinar especificamente a que operações, das mencionadas em 3., respeitavam.
12. Durante o ano de 2013, a Impugnante utilizou dois métodos para cálculo do IVA dedutível: o de afectação real, relativo à actividade de locação financeira e à actividade isenta de IVA, quanto aos custos nos quais foi possível estabelecer um nexo directo e imediato; e “pro rata” específico, relativo aos custos comuns à actividade tributada e à actividade isenta, mencionados em 10.
13. A impugnante calculou e declarou um “pro rata” definitivo para 2013 e provisório para 2014 de 18%, com base em entendimento da AT mencionado na instrução administrativa referida em 1., calculado considerando no numerador o valor de 15.481.765,58€ e no denominador o valor de 90.843.878,85€ - cfr. doc. 4 junto com a petição inicia a fls. 231 dos presentes autos.
14. No que toca a alienação/indemnização de bens abatidos por destruição, a Impugnante facturou os montantes em causa acrescidos do respectivo IVA - cfr. doc. 12 junto com a petição inicial a fls. 321 dos presentes autos.
15. Nas declarações periódicas de IVA que apresentou relativamente aos períodos de Janeiro, Fevereiro e Março de 2014, a Impugnante aplicou os métodos referidos em 12. e o valor do “pro rata” referido em 13. - cfr. docs. 1 a 5 juntos com a petição inicial a fls. 158 a 232 dos presentes autos.
16. A presente acção foi apresentada em 03/06/2014.



Factos não provados.
Com relevância para a pronúncia a emitir nos presentes autos, dá-se como não provado o seguinte facto:
a. Os custos mencionados em 11. respeitam em parte à disponibilização, por parte da Impugnante, dos veículos objecto dos contratos de locação referidos entre 3. e 5..

Motivação da decisão sobre a matéria de facto.
A decisão da matéria de facto, consonante ao que acima ficou exposto, efectuou-se com base nos documentos e informações constantes dos autos e no PA apenso, referidos em cada uma das alíneas do elenco dos factos provados, os quais não foram impugnados, merecendo a credibilidade do tribunal, em conjugação com o princípio da livre apreciação da prova.
Quanto ao facto não provado, nenhuma prova foi feita a esse respeito, sendo que se considera que o ónus da prova caberia à impugnante nesta circunstância. Com efeito, a AT emitiu uma instrução administrativa, na sequência da qual definiu um cálculo do coeficiente de dedução de IVA para as situações específicas de locação como as dos autos e com base na forma típica de funcionamento dos contratos em causa, tendo a Impugnante, nessa sequência, calculado o pro rata de 18% e procedendo à autoliquidação do imposto. A existir alguma circunstância fática que afastasse o cálculo definido pela AT, designadamente, como referido no douto Acórdão do STA, de 03/06/2015, processo n.° 970/13-30, a existência de custos comuns relacionados com a disponibilização dos veículos, competiria à Impugnante alegar e demonstrar tal circunstância, sendo que tal alegação e prova não ocorreu.»
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B. DO DIREITO

B............, S.A., intentou no Tribunal Tributário de Lisboa impugnação judicial, com vista a obter a declaração de anulabilidade parcial das autoliquidações de IVA relativas aos períodos 01, 02 e 03 do exercício de 2014

Por sentença datada de 19 de Abril de 2020, o Tribunal «a quo» julgou parcialmente improcedente a impugnação judicial, cujo segmento decisório tem o seguinte teor:

(i) julgou improcedente a impugnação judicial na parte relativa à requerida inclusão no numerador e no denominador da fracção do pro rata das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira, o que representa o valor de € 148.293,01 (de entre o valor total da causa de € 205.696,75);

(ii) julgou procedente a impugnação judicial na parte relativa à requerida inclusão no numerador e no denominador da fracção do pro rata dos valores de alienação/abate por destruição de bens locados, o que representa o valor de € 57.403,74 (de entre o valor total da causa de € 205.696,75).

Do recurso da Impugnante

O presente recurso jurisdicional vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa na parte que julgou parcialmente improcedente a impugnação judicial deduzida pela Recorrente contra as autoliquidações de IVA relativas aos períodos de 01, 02 e 03 do ano de 2014.

Como resulta das conclusões acima transcritas, entende a recorrente que a sentença é nula por violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3.° do CPC, aplicável ex vi artigo 2.° do CPPT.

Sustenta tal posição, no facto do Tribunal «a quo» ter julgado não provado o facto indicado em a. na matéria não provada - Os custos mencionados em 11. respeitam em parte à disponibilização, por parte da Impugnante, dos veículos objecto dos contratos de locação referidos entre 3. e 5. depois de ter prescindido da realização de prova testemunhal e de não ter permitido à Recorrente pronunciar-se sobre a necessidade da produção daquela prova testemunhal.

É, inquestionável que o processo judicial tributário enquanto processo de partes é pautado pelo princípio da legalidade, do contraditório e da igualdade de partes, devendo o tribunal decidir conforme os factos e as provas que lhe são apresentados dentro das regras processuais. E, por isso, de harmonia com o disposto no artigo 113.º do CPPT, o juiz só pode dispensar a fase de instrução dos autos «se a questão for apenas de direito ou, sendo também de facto, o processo fornecer os elementos necessários», devendo, caso contrário, ordenar as diligências de prova necessárias, nomeadamente a testemunhal, em conformidade com o disposto nos artigos 114.º, 115, n.º 1 e 119.º do CPPT. (Neste sentido, entre outros, vide: Acórdão do STA de 14.09.2011, proferido no processo n.º 0215/11, disponível no endereço http://www.dgsi.pt/).

Competindo ao juiz examinar se é legalmente permitida a produção da prova testemunhal oferecida pelas partes e, no caso afirmativo, aferir da relevância da factualidade alegada perante as várias soluções plausíveis para as questões de direito colocadas, só podendo dispensar essa prova no caso de concluir que ela é manifestamente impertinente, inútil ou desnecessária.

Porém, como tem vindo a decidir uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo, «(…) a falta de inquirição de testemunhas não constitui nulidade porque não surge como diligência cuja realização se imponha inelutavelmente ao juiz, antes cabendo a este avaliar se a questão a dirimir no processo é meramente de direito ou, sendo também de facto, constam do processo todos os elementos pertinentes para a decisão e, nesse caso, decidir-se pelo imediato conhecimento do pedido.

Compete ao juiz aferir da necessidade ou não de produzir prova, decidindo «se deve ou não realizar diligências que forem requeridas, podendo oficiosamente realizar as diligências que entender úteis para a descoberta da verdade, em relação aos factos alegados ou de que oficiosamente possa conhecer (art. 99.º, n.º 1, da LGT)» (JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, IV volume, anotação 8 g) ao art. 278.º, págs. 312/313.).

Ou seja, a lei não prescreve que deve haver sempre lugar a produção de prova, antes conferindo ao juiz o poder de ajuizar da necessidade da sua produção; pelo que não havendo essa imposição legal, se o juiz dispensa a produção de prova não se pode dizer que foi preterida uma formalidade legal geradora de nulidade processual. O que não obsta a que a omissão de diligências de prova, quando existam factos controvertidos que possam relevar para a decisão da causa, possa afectar o julgamento da matéria de facto, acarretando a anulação da sentença por défice instrutório com vista a obter o devido apuramento dos factos.» ( Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 09.04.2014, proferido no processo n.º 01869/13, por mais recente, disponível no endereço http://www.dgsi.pt/ ).

Não vê razão para divergir da jurisprudência transcrita.

Assim sendo, não ocorre a arguida nulidade processual, pois que a falta de produção de prova não consubstancia a preterição de uma formalidade legal, geradora de nulidade processual. Questão diferente é, porém, a de saber se a omissão da realização de diligências de prova, nomeadamente aquela que foi requerida afecta, no caso, o julgamento da matéria de facto e acarretar, nessa medida, a anulação da sentença por défice instrutório (neste sentido vide, entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27.11.2013, proferido no processo n.º 01159/09, disponível em texto integral em www.dgsi.pt).

Analisada a sentença sob recurso verifica-se que o Tribunal «a quo» levou à matéria dada como não provada o seguinte facto: «a. Os custos mencionados em 11. respeitam em parte à disponibilização, por parte da Impugnante, dos veículos objecto dos contratos de locação referidos entre 3. e 5.».

E para dar como não provado o mencionado facto, mostra-se consignado na sentença a seguinte fundamentação: «Quanto ao facto não provado, nenhuma prova foi feita a esse respeito, sendo que se considera que o ónus da prova caberia à impugnante nesta circunstância. Com efeito, a AT emitiu uma instrução administrativa, na sequência da qual definiu um cálculo do coeficiente de dedução de TVA para as situações específicas de locação como as dos autos e com base na forma típica de funcionamento dos contratos em causa, tendo a Impugnante, nessa sequência, calculado o pro rata de 18% e procedendo à autoliquidação do imposto. A existir alguma circunstância fática que afastasse o cálculo definido pela AT, designadamente, como referido no douto Acórdão do STA, de 03/06/2015, processo n.° 970/13-30, a existência de custos comuns relacionados com a disponibilização dos veículos, competiria à Impugnante alegar e demonstrar tal circunstância, sendo que tal alegação e prova não ocorreu.».

E, posteriormente conclui que « [s]endo admissível a AT determinar um critério como sucede in casu, visto que a Impugnante nas autoliquidações em causa no presente processo seguiu a orientação da AT referida em 1. dos factos provados, caberia à Impugnante demonstrar que a utilização de bens e serviços de utilização mista foi determinada também pela disponibilização dos veículos, o que não foi alegado nem provado.».

Alega a recorrente que a omissão da diligência de prova testemunhal requerida (na sua p.i., havia arrolado três testemunhas, a saber, (i) P..........., Director Financeiro, (ii) C..........., Técnico Oficial de Contas, (iii) e V.........., Director Adjunto) a impediu de fazer prova precisamente daquilo que o Tribunal «a quo» julgou imprescindível para a procedência da impugnação judicial, i.e. de que os custos gerais/comuns também são consumidos, pelo menos em parte significativa, na disponibilização dos veículos, dai repute de essencial a realização da diligência de prova testemunhal oferecida.

Como já dissemos no acórdão de 16.09.2019, proferido no processo n.º 375/17.2BELRA de que fomos relatora: «Quanto ao processo judicial tributário se pronunciou (entre outros) o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14 de Setembro de 2011, em que foi Relatora a Exma. Conselheira Dulce Neto, afirmando que «O processo judicial tributário é, pelo menos desde a Lei Geral Tributária, um processo de partes, pautado pelo princípio da legalidade, do contraditório e da igualdade de partes, devendo o tribunal decidir conforme os factos e as provas que lhe são apresentados dentro das regras processuais. E, por isso, o juiz só pode dispensar a fase de instrução dos autos «se a questão for apenas de direito ou, sendo também de facto, o processo fornecer os elementos necessários» (artigo 113.º do CPPT), devendo, caso contrário, ordenar as diligências de prova necessárias, nomeadamente a testemunhal, em conformidade com o disposto nos artigos 114.º, 115, n.º 1 e 119.º do CPPT.».

Ou seja, excepto nas situações de restrição ou proibição legal ou manifesta inutilidade, o Tribunal não pode dispensar a produção de prova que as partes do processo lhe apresentam.
Concretizando esta ideia de forma claríssima, escreveu-se ainda naquele Acórdão que: «(
…) embora o tribunal tenha, em princípio, de admitir todos os meios de prova que as partes ofereçam – posto que em processo tributário de impugnação são, em regra, admitidos todos os meios gerais de prova (artigo 115.º do CPPT) – pode recusar a sua produção caso exista norma legal que limite ou proíba determinado meio de prova ou julgue que as provas oferecidas são manifestamente impertinentes, inúteis ou desnecessárias.

O direito à prova no procedimento e no processo tributário existe e é objecto de uma tutela muito forte, mas não constitui um direito absoluto, pois que o legislador ordinário estabeleceu limites e indicou critérios precisos de restrição do uso de meios de prova em relação a factos determinados, como acontece com o artigo 392.º do Código Civil, onde se estabelece que “A prova por testemunhas é admitida em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada”, e com o disposto nos artigos 393.º, 394.º e 395.º desse Código, que prevêem as situações em que é inadmissível a prova testemunhal.

Em suma, compete ao juiz examinar, em cada processo judicial, se é legalmente permitida a produção dos meios de prova oferecidos pelas partes, e, no caso afirmativo, aferir da necessidade da sua produção em face das questões colocadas, sabido que instrução tem por objecto os factos controvertidos e relevantes para o exame e decisão da causa tendo em conta as várias soluções plausíveis da questão de direito.» (disponível em texto integral em www.dgsi.pt).

Assim, mal andou o Tribunal «à quo» ao proferir decisão, sem que tivesse facultado a produção de prova testemunhal oferecida na petição inicial cuja audição não se configura como desnecessária e/ou inútil, desde logo, porque face à fundamentação da sentença, esta diligência probatória afigura-se inequivocamente necessária e útil.

Por conseguinte, é de conceder provimento ao recurso por verificada insuficiência de instrução determinante de anulação da sentença, nos termos previstos na alínea c) do nº 2 do artigo 662.º do CPC.

Consequentemente não se toma conhecimento do recurso interposto pela Fazenda Pública.

Nesta conformidade, não se pode manter a sentença recorrida, devendo os autos baixar à 1ª instância para a realização das apontadas diligências e para, após, aí ser proferida decisão em face dos elementos de prova recolhidos.

IV.CONCLUSÕES

I. Compete ao juiz examinar se é legalmente permitida a produção da prova testemunhal oferecida pelas partes em face das normas que disciplinam a admissibilidade desse meio de prova, e, no caso afirmativo, aferir da relevância da factualidade alegada perante as várias soluções plausíveis para as questões de direito colocadas, só podendo dispensar essa prova no caso de concluir que ela é manifestamente impertinente, inútil ou desnecessária.

II. Em casos como o dos autos em que a omissão da diligência de prova testemunhal requerida pela recorrente a impediu de fazer prova precisamente daquilo que o Tribunal «a quo» julgou imprescindível para a procedência da impugnação judicial, mostra-se o julgamento da matéria de facto, vertido na sentença recorrida, inquinado por défice instrutório, existindo a séria probabilidade de a produção da prova em falta revelar um quadro factual mais amplo e seguro, com incontornável influência na decisão.

V.DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes da 1ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, apresentado pelo B............, S.A., anular a sentença recorrida por défice instrutório e ordenar a baixa dos autos para a produção da prova testemunhal oferecida seguida da legal tramitação processual e oportuna prolação de sentença, e consequentemente não tomar conhecimento do recurso apresentado pela Fazenda Pública.

Sem custas.


Lisboa, 24 de Junho de 2021

[A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Isabel Fernandes e Jorge Cortês]

(Ana Pinhol)