Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11089/14
Secção:CA - 2º. JUÍZO
Data do Acordão:12/04/2014
Relator:ANTÓNIO VASCONCELOS
Descritores:ACÇÃO DE CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL;AUDIÊNCIA PÚBLICA – ARTIGO 103º DO CPTA;PRINCÍPIO DA ESTABILIDADE DAS PROPOSTAS.
DESVIO DE PODER.
Sumário:I – Na medida em que o Acórdão recorrido justificou a suficiência da prova com os documentos e o processo instrutor, não merece acolhimento o pedido de realização de audiência pública face à complexidade da questão em discussão que não se compadece com a oralidade das alegações e prolação de imediato da sentença.
II - A regra da estabilidade das propostas constitui um princípio inerente e estruturante do processo de contratação pública que visa garantir a sã concorrência, a objectividade, a imparcialidade, a transparência, a igualdade, a não descriminação, a boa-fé e a tutela da confiança e, nessa medida, as peças do procedimento concursal, em concreto o caderno de encargos, vinculam a entidade adjudicante, que as não pode alterar e apenas proceder a esclarecimentos com vista à sua boa compreensão e interpretação (artigo 50º do CCP).
III - A alteração pretendida pela Recorrente no tocante ao requisito fixado no Caderno de Encargos, parte II, al. f) – obrigatória certificação dos pisos de acordo com a norma europeia para superfícies multidesportivas sintéticas de utilização exterior (norma EN14877:2006) – afectaria necessariamente os princípios da auto-vinculação da proposta e da inderrogabilidade singular do regulamento, aplicáveis às peças procedimentais, na medida em que tal alteração conduziria à concretização de aquisição de um produto sem qualquer demonstração de conformidade do mesmo com qualquer norma ou especificação técnica que assegurasse a garantia da qualidade desse mesmo produto.
IV - O vício de desvio de poder ocorre quando a Administração, no uso de poder discricionário conferido para a satisfação de um determinado interesse público, o utiliza para a satisfação de um interesse ou fim diferente daquele que a lei queria ver prosseguido.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em Conferência , na Secção de Contencioso Administrativo, 2º Juízo , do Tribunal Central Administrativo Sul:


S…… – D……, Lda., com sinais nos autos, inconformada com o Acórdão do TAF de Almada, de 29 de Janeiro de 2014, que julgou improcedente a reclamação por si deduzida e, em consequência, confirmou a sentença reclamada, de 23 de Outubro de 2013, que havia julgado improcedente a acção de contencioso pré-contatual intentada contra o Município de Sesimbra, tendente à invalidação da deliberação do júri do procedimento de ajuste directo 06/2013, de 13 de Abril de 2013, que, em sede de relatório final, excluiu a Recorrente do referido procedimento, dele recorreu e, em sede de alegações, formulou as seguintes conclusões (sintetizadas):

“ A. A complexidade técnica da causa determinaria que o Tribunal a quo tivesse optado pela produção de prova e realização de uma audiência pública sobre a matéria de facto e de direito, a qual foi requerida pelas partes (A. E contra interessada), porquanto decerto que tal audiência permitiria um mais rápido esclarecimento da questão sub judice – artigo 103.º do CPTA.

B. Não obstante tal alegação e demonstração evidente em sede de reclamação, ceto é que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre esta matéria, devendo fazê-lo à semelhança da decisão que recaiu sobre a fase de alegações e porque constava do teor da reclamação, como tal, sujeito a apreciação jurisdicional.

C. Em sequência, o artigo 615.º, n.º 1 alínea d) e 666.º, n.º 1, do CPC, aplicáveis ex vi dos artigos 1.º e 140.º, ambos do CPTA sanciona com a nulidade a sentença [ ou acórdão], quando “O juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar e conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

D. Sobre a (im)possibilidade de alteração das cláusulas técnicas durante o procedimento, conclui-se que não obstante a decisão de revogação de contratar no âmbito do procedimento 13/2012, certo é que a entidade demandada manteve interesse na aquisição dos mesmos produtos e, iniciou novo procedimento 06/2013 – objecto dos presentes actos.

E. Todavia, fê-lo mal, ao ter procedido indevidamente à alteração de requisitos da proposta e de cláusulas técnicas, concretamente, alínea c) do ponto 8.2 do convite e na alínea f) do n.º 1 da parte II “cláusulas técnicas” do caderno de encargos, isto porque,

F. Enquanto no convite do procedimento n.º 13/2012, constava que a proposta é também constituída pelos seguintes documentos: (…) c) certificados de homologação, no convite do procedimento n.º 6/2013, consta que a proposta é também constituída pelos seguintes documentos: (…) a) certificado de conformidade com a EN14877:2006 (norma europeia para superfícies multidesportivas sintéticas de utilização exterior).

G. Enquanto no caderno de encargos do procedimento n.º 13/2012, consta que é obrigatório a apresentação de certificados de aprovação emitidas pelas entidades oficiais nacionais ou internacionais que regulam as respectivas modalidades desportivas, no caderno de encargos do procedimento n.º 6/2013, consta que é obrigatória a cerificação dos pisos de acordo com a norma EN14877:2006 (norma europeia para superfícies multidesportivas sintéticas de utilização exterior).

H. E, perante os esclarecimentos técnicos prestados pela A. Em sede própria, poderia e deveria a entidade demandada ter optado por uma das duas hipóteses que a lei lhe confere: ou revogava a decisão de contratar, nos termos dos artigos 79.º, n.º 1, alínea c) e 80.º, n.º 1 do CCP, tal como o fez, preteritamente no procedimento n.º 13/2012 ou, desaplicava as normas de conteúdo ilegal ínsitas nos convite e caderno de encargos, de modo a não proferir decisão de contratar ilegal.

I.A conclusão do Tribunal de que a alteração que a A. Pretende conduziria, ao contrário, do estabelecido pela Administração, à concretização da compra de um produto, sem qualquer demonstração de conformidade do mesmo com qualquer norma ou especificação técnica que assegurasse a garantia da qualidade desse mesmo produto merece reparos.
J. Desde logo, o produto proposto fornecer pela A. Preenche as especificações técnicas exigidas pela Administração , tendo a mesma entregue a correspondente ficha técnica do produto demonstrativa disso mesmo, o que, salvo melhor opinião, garante a conformidade e a qualidade do produto.

K. A norma europeia é considerada uma referencia idónea do mercado a que se destina, mas é também um documento de aplicação voluntária, excepto se existe um diploma legal que a torne de cumprimento obrigatório – in casu, a legislação portuguesa é omissa nesta matéria -, pelo que a não apresentação da certificação de norma europeia não pode determinar de per si a ausência de qualidade e de conformidade de um produto com as especificações técnicas.

L. Sem prejuízo das considerações supra, certo é que o piso a fornecer em polipropileno copolímero não se inclui no âmbito de aplicação da norma técnica (norma europeia EN14877:2006).

M. Pese embora o título e o âmbito da norma se refiram a “superfícies sintéticas para áreas desportivas ao ar livre” e ambos os produtos (borracha, grânulos de borracha, por um lado e, polipropileno copolímero, por outro lado) serem materiais sintéticos, certo é que, ao contrário do concluído pelo Tribunal, a norma não se aplica ao produto concreto em material polipropileno copolímero.

N. Conclui o Tribunal que o anexo A referido na nota 1, sob a epígrafe “exemplos de superfícies e campos de aplicação”, é meramente exemplificativo, todavia, tal anexo não permite concluir que os materiais incluídos no âmbito da norma são exemplificativos, mas apenas e tão só são exemplificativos os itens referentes às superfícies e aos campos de aplicação (áreas típicas de aplicação).

O. A contrario, as referências à camada base referem-se sempre a grânulos/fibras de borracha e elastómero, aplicados in situ ou pré fabricados; grânulos/fibras de borracha e elastómero, aplicados in situ ou pré fabricados; grânulos de borracha e elastómero, forma; uma camada superior, isto é, este campo (item) do anexo A é concretizador o âmbito de aplicação da norma e não meramente exemplificativo.

P. Deixando claro que a norma se aplica a superfícies sintéticas para áreas desportivas ao ar livre em materiais do grupo dos elastómeros, onde se incluem precisamente a borracha e o grânulo de borracha, enquanto que, o material polipropileno copolímero, material em que é produzido o produto objecto do procedimento, inclui-se no grupo dos termoplásticos, o que é suficiente e bastante para concluir que a norma não se aplica a tal produto.

Q. Em idêntico sentido, mal andou o Tribunal ao concluir que ao contrário do que vem afirmado, o que decorre do “âmbito” da norma é a sua grande abrangência quando especifica “os requisitos para superfícies sintéticas” e esclarece o que entende por sintéticas, lendo-se, entre parêntesis, serem as “colocadas in situ e pré fabricadas”, sem referência a qualquer material em concreto, como a borracha, o polipropileno ou copolímero, porquanto, com supra referido, quer a nota 1, quer o anexo A, apenas são exemplificativos dos tipos de superfície e as suas aplicações, concretizando, que os materiais incluídos no âmbito de aplicação da norma são sempre do grupo dos elastómeros.

R. Além do mais, da leitura da norma, no que respeita aos testes para requisitos de segurança em utilização (ponto 4) e as características do material (ponto 5), resulta que todos os testes são realizados considerando como material a borracha.

S. Com o devido respeito, a circunstância de a empresa à qual foi adjudicado o procedimento de fornecimento do produto [ter apresentado] uma declaração de conformidade do fabricante do produto dos EUA com base em ensaios efectuados por laboratório alemão e por referência às normas técnicas que constam na norma EN14877:2006 não faz com que o âmbito de aplicação da norma se altere no sentido de passar a incluir o material copolímero, como acima bastamente se demonstrou com factos e não afirmações conclusivas.

T. no que as esclarecimento do IPQ concerne – alínea S dos factos assentes – resulta que aquela entidade não tem certeza sobre a aplicação da norma e que não dispõe de peritos na matéria que possam confirmar ou discordar da posição sobejamente manifestada pela A.

U. Todavia, o esclarecimento prestado pelo IPDJ – alínea T dos factos assentes -, entidade responsável por todos os espaços desportivos em Portugal, é inequívoco quando afirma a norma europeia EN14877 – Synthetic surfaces for outdoor sports áreas, na versão inglesa, não prevê disposições que permitam acolher sistemas de construção de pavimentos desportivos com revestimentos em polipropileno, como se pode verificar nos exemplos de constituição indicados no seu Anexo “A” e, em completa consonância com o defendido pela A.

V. Neste sentido, atenta a prova produzida entendemos que o Tribunal a quo omitiu a necessária análise crítica daquela e nem sequer justificou porque motivo atendeu ao esclarecimento do IPQ, em detrimento do esclarecimento do IPDJ – entidade responsável por todos os espaços desportivos em Portugal -, assim violando o artigo 640.º, n.º 1, alínea b) do CPC ex vi artigo 1.º do CPTA.

W. Não se subsumindo o material polipropileno copolímero ao âmbito da norma europeia, competia à entidade demandada a desaplicação das normas de conteúdo ilegal constantes alínea c) do ponto 8.2 do convite e na alínea f9 do n.º 1 da parte II “cláusulas técnicas” do caderno de encargos, sob pena de vício de violação de lei e, em sequência, admitir a proposta da A. No procedimento e, ordená-la em primeiro lugar, por ser a que apresenta o preço mais baixo.

X. Os factos dados como assentes em U a Y são insuficientes para a matéria alegada e demonstrada pela A. Nos artigos 20.º a 40.º, os quias ficaram demonstrados pela junção dos documentos emanados pela entidade demandada e, como tal, deveriam os mesmos constar da matéria assente.

Y. E, caso o Tribunal tivesse considerado assentes os factos ali descritos, por relevantes para a descoberta da verdade material, decerto a decisão teria sido em sentido oposto e, culminaria com a decisão sobre o vício de desvio de poder.

Z. Em qualquer circunstância (âmbito de aplicação da norma europeia e desvio de poder), a decisão de adjudicação da entidade demandada é ilegal por violadora de lei, respectivamente, vício de violação de lei e desvio de poder, pelo que, ao não ter decidido desta forma, mal andou o Tribunal que fez errada interpretação e aplicação da lei ao caso concreto.”

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O Município de Sesimbra contra alegou pugnando pela manutenção do decidido.

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Sem vistos foi o processo submetido à conferência para julgamento.

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A matéria de facto pertinente é a constante do Acórdão recorrido, a qual se dá aqui por reproduzida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 663º nº 6 do Código de Processo Civil.

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Tudo visto cumpre decidir.

Veio o presente recurso jurisdicional interposto do Acórdão do TAF de Almada, que julgou improcedente a reclamação deduzida pela ora Recorrente e, em consequência, confirmou a sentença reclamada que havia julgado improcedente a acção de contencioso pré-contatual intentada contra o Município de Sesimbra, tendente à invalidação da deliberação do júri do procedimento de ajuste directo 06/2013, de 13 de Abril de 2013, que, em sede de relatório final, excluiu a Recorrente do referido procedimento.

A – DA NULIDADE DO ACÓRDÃO A QUO

Nas conclusões A. a C. da sua alegação (sintetizada) a Recorrente veio suscitar a nulidade por omissão de pronúncia do Acórdão recorrido porquanto o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a questão da realização de uma audiência pública sobre a matéria de facto e de direito, requerida pelas partes, audiência essa que, em seu entender, permitiria com toda a certeza um mais rápido esclarecimento da questão técnica sub judice.

Vejamos a questão.
Os artigos 615º nº 1 al. d) e 666º nº 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi dos artigos 1º e 140º do CPTA, sancionam com a nulidade a sentença (ou Acórdão) quando “ o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
No caso sub judice, o Acórdão em crise justificou a dispensa da produção de prova e da fase de alegações com fundamento em que a prova era suficiente e adequada para a prolação da decisão e que com a junção do processo administrativo não se justificava a fase de alegações, porquanto “(…) a junção do processo instrutor, em si mesma, não pode ser qualificada para produção de prova, para este efeito”.
Pese isso, não se pronunciou efectivamente sobre os fundamentos invocados pelas partes para a requerida audiência pública prevista no artigo 103º do CPTA, o que configura necessariamente nulidade por omissão de pronúncia.
Em conformidade com o exposto, procede a arguida nulidade por omissão de pronúncia quanto à requerida realização de audiência pública ao abrigo do artigo 103º do CPTA.

Independentemente da procedência da invocada nulidade da sentença (por omissão de pronúncia), em obediência ao disposto no artigo 149º nº 1 do CPTA cabe a esta instância de recurso, em substituição, dilucidar da pertinência ao caso da diligência requerida, consistente na realização da audiência pública, nos termos do artigo 103º do CPTA.
Dispõe a propósito o artigo 103º do CPTA, sobre a epígrafe “Audiência pública” que “quando o considere aconselhável ao mais rápido esclarecimento da questão, o Tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes, optar pela realização de uma audiência pública sobre a matéria de facto e de direito, em que as alegações finais serão proferidas por forma oral e no termo da qual é imediatamente ditada a sentença.”
Em anotação à citada disposição legal referem MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO CADILHA in COMENTÁRIO AO CPTA, 3ª edição revista, 2010, pág. 688, que “ (…) a possibilidade da realização de uma audiência pública corresponde a uma das medidas de simplificação e celeridade processual justificadas pelo carácter urgente do processo. Tendo em vista um mais rápido esclarecimento da questão, a audiência pode ter lugar, não apenas quando tenha sido requerida a produção de prova, mas também quando, pela natureza das questões a analisar, se considere vantajosa uma discussão oral. Por outro lado, versando a audiência sobre a matéria de facto e de direito, as alegações orais – que constituem um elemento integrante da audiência – serão apresentadas mesmo que se não tenha verificado a produção de prova, não subsistindo, por conseguinte, a limitação que se encontra estabelecida no nº 2 do artigo 102º quanto à admissibilidade das alegações escritas.
Concentrando a discussão e julgamento numa única fase, e sujeitando-as ao princípio da oralidade, a audiência pública obvia à demora que resultaria da necessidade de cumprimento dos prazos processuais quando, em alternativa, se optasse pela discussão escrita da causa.”
Criticando esta solução legislativa ANA CELESTE CARVALHO in “A ACÇÂO DE CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL - PERSPECTIVAS DE REFORMA” , CJA nº 76, págs. 58-59, adianta que a mesma é desadequada com a generalidade dos litígios emergentes de relações jurídicas pré-contratuais, dada a circunstância de a maioria dos casos serem decididos com base na prova documental constante do processo administrativo e, nos casos em que é necessária a produção de prova, a audiência probatória ou de julgamento consumir a audiência pública aqui prevista. Por outro lado, raramente é possível ditar a sentença.
Definidos os contornos doutrinais sobre a aplicabilidade da audiência pública prevista no artigo 103º do CPTA, importa ajuizar, em concreto, da sua aplicação, tendo em consideração que o Tribunal a quo adiantou a justificação de dispensa de produção de prova e de alegações escritas “face à junção do processo instrutor que, em si mesma, não pode ser qualificada para a produção da prova, para tal efeito”.
Ora, o fundamento invocado pela Recorrente para a realização da audiência pública é que a causa é complexa e decerto tal audiência permitira um mais rápido esclarecimento da questão.
Duvidamos da bondade do juízo feito pela Recorrente para justificar a realização de tal diligência porquanto se a questão se apresenta complexa, como afirma, não pode a mesma, sob pena de contradição, permitir um mais rápido esclarecimento dessa questão. Desde logo, porque a decisão deve assentar sobretudo em base documental constante do processo instrutor e a complexidade das questões invocadas não se compadece com a oralidade das alegações finais e prolação de imediato da sentença – cfr. artigo 103º nº 1 in fine..
E na medida em que o Acórdão justificou a suficiência da prova com os documentos e o processo instrutor, não merece acolhimento o pedido de realização de audiência pública face à complexidade da questão em discussão que não se compadece com a oralidade das alegações e prolação de imediato da sentença.
Termos em que, de acordo com os fundamentos expostos, improcedem as conclusões A. a C. da alegação do Recorrente.

B – QUANTO AO MÉRITO DO DECIDIDO NO TRIBUNAL A QUO

Com pertinência para o presente recurso jurisdicional entendeu o Tribunal a quo que eram duas as questões a dilucidar, a saber:

1 – Ao júri do procedimento cabia ter procedido à desaplicação das normas constantes na al. c) do Ponto 8.2 do convite e na al. f) do nº 1 da parte II “ Cláusulas técnicas” do Caderno de Encargos, por serem ilegais, dado que o certificado de conformidade com a norma europeia EN14877:2006 para o piso a fornecer em polipropileno copolímero não se inclui no âmbito da aplicação da norma e, em consequência, a proposta da Autora que era de mais baixo preço deve ser admitida e ordenada em primeiro lugar ?
2 – Do desvio de poder.

Analisemos as duas questões em separado.

1 – No tocante aos contratos administrativos MARCELO REBELO DE SOUSA in “CONCURSO PÚBLICO NA FORMAÇÃO DO CONTRATO ADMINISTRATIVO” , Lex 1994, enuncia um numeroso conjunto de princípios que os devem reger, salientando-se entre eles: o princípio dos direitos liberdades e garantias, o princípio da boa-fé e outros ligados com este, como o são o princípio da igualdade, o princípio da justiça e o princípio da tutela da confiança. Mais concretamente, reportando-se à formação dos contratos, para além daqueles, refere ainda o princípio da legalidade, o princípio da autonomia pública, o princípio da prossecução do interesse público e da boa administração, o princípio da imparcialidade, o princípio da transparência, o princípio da tutela dos direitos e interesses legítimos, o princípio da objectividade, o princípio da publicidade, o princípio da concorrência e o princípio da estabilidade.
Alguns dos referidos princípios ou são mesmo a decorrência ou desdobramento de outros. Por isso mesmo, bem se pode dizer que mesmo os que não estejam expressamente enunciados não deixarão de se impor.
É certo que alguns dos referidos princípios têm aplicação particularmente pertinente no âmbito da formação dos contratos, mas a verdade é que regem toda a actividade da Administração Pública, incluindo a desenvolvida no âmbito da execução dos contratos (artigo 286º do CCP) - cfr. a propósito JORGE ANDRADE DA SILVA in “CÓDIGO DOS CONTRATOS PÚBLICOS COMENTADO” Almedina, 2008, pág. 623.
Em matéria de contratação pública importa destacar os princípios da igualdade , da não descriminação e da transparência, dos quais decorre necessariamente o principio da estabilidade, pressuposto de todos os processos de adjudicação, tal como decorre das Directivas Comunitárias 2004/17/CE e 2004/18/CE, de 31 de Março de 2004, e dos princípios gerais de Direito Administrativo, aplicáveis de acordo com o nº 3 do artigo 280º do CCP.
A regra da estabilidade das propostas constitui um princípio inerente e estruturante do processo de contratação pública que visa garantir a sã concorrência, a objectividade, a imparcialidade, a transparência, a igualdade, a não descriminação, a boa-fé e a tutela da confiança e, nessa medida, as peças do procedimento concursal, em concreto o caderno de encargos, vinculam a entidade adjudicante, que as não pode alterar e apenas proceder a esclarecimentos com vista à sua boa compreensão e interpretação (artigo 50º do CCP) - cfr. a propósito JORGE ANDRADE DA SILVA in “DICIONÁRIO DOS CONTRATOS PÚBLICOS ” Almedina, 2010, pág. 347.
No mesmo sentido pode ver-se o Acórdão do STA de 16 de Fevereiro de 2006 in Proc. nº 168/04, in www.dgsi.pt, destacando-se o seguinte trecho que passamos a citar : “ Os esclarecimentos dos documentos do concurso devem restringir-se a uma tarefa hermenêutica ou de aclaração, de fixação do sentido de algo que já se encontrava estabelecido, e nunca alteração, por adição ou suprimento, dos elementos que tenham sido patenteados”.
Vejamos então se o pedido enunciado na questão supra pela ora Recorrente poderia ser objecto de rectificação por parte da entidade adjudicante.
Como resulta da alegação da Recorrente, no entender desta, as normas constantes na al. c) do Ponto 8.2 do convite e na al. f) do nº 1 na parte II “Cláusulas técnicas” do Caderno de Encargos são ilegais porquanto o certificado de conformidade com a norma europeia EN14877:2006 para o piso a fornecer em polipropileno copolímero não se inclui no âmbito de aplicação da norma técnica. Tal resulta, aliás, do pedido de esclarecimento por si formulado em 8 de Março de 2013 – cfr. item D. da factualidade dada como assente.
Na mesma data, a entidade adjudicante forneceu a seguinte resposta : “ Após análise ao pedido de esclarecimento da firma S….. no dia 8/3/2013, pelas 10 horas e 47 minutos, esclarecemos que é nosso entendimento, e após contacto com o IPQ, que a norma se aplica a “ todas as superfícies sintéticas para a prática de desporto ( sendo que mencionam os vários tipos de desporto abrangidos pela norma)” pelo que todos os concorrentes terão de fazer prova que os pisos submetidos a concurso cumprem a norma EN14877:2006 ” – cfr. fls. 44 do PA e item E. da factualidade dada como assente.
Ora, a alteração pretendida pela Recorrente no tocante ao requisito fixado no Caderno de Encargos, parte II, al. f) – obrigatória certificação dos pisos de acordo com a norma europeia para superfícies multidesportivas sintéticas de utilização exterior (norma EN14877:2006) – afectaria necessariamente os princípios da auto-vinculação da proposta e da inderrogabilidade singular do regulamento, aplicáveis às peças procedimentais, na medida em que tal alteração conduziria à concretização de aquisição de um produto sem qualquer demonstração de conformidade do mesmo com qualquer norma ou especificação técnica que assegurasse a garantia da qualidade desse mesmo produto.
E tendo em consideração o disposto no artigo 80º do CCP, a alteração proposta pela aqui Recorrente de supressão de uma cláusula técnica do Caderno de Encargos relativa à exigência de conformidade do produto com determinada norma, conduziria sempre à revogação de contratar.
Importa no entanto avaliar se houve erro sobre os pressupostos de facto na decisão da Administração no tocante à aplicabilidade da norma EN14877:2006 ao produto posto a concurso pela aqui Recorrente.
A este propósito, no relatório elaborado pelo Júri pode ler-se: “(…) Ora, no caso em apreço, após esclarecimentos do IPQ, o Júri em nada alterou as peças, mantendo intocável o termo ou condição que era imposto no Caderno de Encargos. (…) Por outro lado, o Júri entendeu que o próprio esclarecimento prestado pelo IPQ ia de encontro do estabelecido no Caderno de Encargos, sendo exigida a certificação de conformidade com a EN14877:2006 para o piso que se pretende adquirir.
Nesta conformidade, constata-se que a concorrente S…… – D……, Lda., não apresentou o documento exigido no convite (.8.2-al. a) ), nem cumpriu o determinado no Caderno de Encargos no respeitante à certificação dos pisos de acordo com a norma EN14877:2006 (cláusulas técnicas al.f) do nº 1)” – cfr. al. O) da factualidade dada como assente.
Ou seja, o que foi entendido quer pelo júri do concurso quer pela entidade adjudicante é que o material sintético de utilização em instalações desportivas exteriores deve estar integrado no âmbito de aplicação da EN14877:2006.
Assim, ao estabelecer essa especificação técnica, por referência aquela norma comunitária, a entidade adjudicante pretendeu garantir que o piso apresentado por todos os concorrentes estivesse em conformidade com as normas europeias em vigor, mormente no que diz respeito às condições de segurança para os seus utilizadores.
E na medida em que a aqui Recorrente não apresentou a respectiva certificação, conforme solicitado pelas peças do procedimento concursal, já que a sua proposta não continha o documento exigido, nem cumpria os termos e condições fixados no Caderno de Encargos, relativo a um aspecto da execução do contrato não submetido à concorrência, ao qual a entidade adjudicante pretendia que a concorrente se vinculasse, somos obrigados a concluir que a deliberação do Júri não padece do invocado vício de erro sobre os pressupostos de facto susceptível de conduzir à ocorrência do vício de violação de lei.
Termos em que, de acordo com os fundamentos expostos, improcedem as conclusões D. a V. da alegação da Recorrente.

2 – Nas conclusões X. a Z. da sua alegação a Recorrente veio invocar o vício de desvio de poder porquanto, em seu entender, os factos dados como assentes em U) a Y) da sentença são insuficientes para a matéria por si alegada e demonstrada nos artigos 20º a 40º da petição. Mais refere que se o Tribunal a quo tivesse considerado assentes os factos ali descritos, a decisão teria sido em sentido oposto, culminando com a evidência do vício de desvio de poder.
Sem razão no entanto.
O vício de desvio de poder ocorre quando a Administração, no uso de poder discricionário conferido para a satisfação de um determinado interesse público, o utiliza para a satisfação de um interesse ou fim diferente daquele que a lei queria ver prosseguido.
Acompanhando a argumentação expendida na sentença proferida pelo juiz singular, confirmada pelo acórdão em crise, “ (…) verifica-se que a proposta da Autora, nesse ajuste directo, foi excluída por ter apresentado processo de fixação entre módulos, composto por 7 pontos de encaixe, quando era solicitado que o processo de fixação fosse efectuado entre módulos, composto por 6 pontos de encaixe. Além de que tal procedimento terminou por decisão da revogação da decisão de contratar para salvaguarda do princípio da concorrência. Cfr. U a Y.
Deste modo, e atento o que se vem de analisar na questão precedente, não se descortina qualquer factualidade susceptível de integrar vício de desvio de poder em relação ao acto de adjudicação ora impugnado.”
Em conformidade, e na medida em que não se vislumbra que a Administração no uso de poderes discricionários, para a satisfação de um interesse público, tenha visado um fim diferente daquele que a lei queria ver prosseguido, improcede o invocado vício de desvio de poder e as conclusões a ele atinentes.

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Em face do que ficou exposto, improcedem todas as conclusões da alegação da Recorrente, sendo de negar provimento ao presente recurso jurisdicional e confirmar na integra o Acórdão recorrido.

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Acordam, pois, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo, 2º Juízo, deste TCAS, em negar provimento ao recurso jurisdicional e confirmar o Acórdão recorrido.

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Custas pela Recorrente.


Lisboa, 4 de Dezembro de 2014


António Vasconcelos

Catarina Jarmela

Conceição Silvestre