Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1108/19.4BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/14/2020
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:ASILO;
REGULAMENTO DE DUBLIN III, RETOMA A CARGO;
ITÁLIA;
PEDIDO JÁ DECIDIDO;
PEDIDO SUBSEQUENTE;
PRINCÍPIO DE NON REFOULEMENT.
Sumário:Existindo já uma decisão tomada por um Estado Membro e tendo sido esta de indeferimento, a retoma a cargo pelo Estado Membro responsável – in casu, Itália – cfr. art. 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III -, é inquestionável, atendendo a que a primeira regra nele estabelecida é a de que os pedidos serão analisados por um único Estado-Membro - cfr. n.º 1 do art. 3.º do Regulamento -, não havendo aqui lugar à apreciação da cláusula de salvaguarda prevista no 2§ do mesmo art. 3.º, por inaplicável, sem prejuízo do dever de apreciar a eventualidade de se estar perante um pedido subsequente, nos termos e nas condições previstas no art. 33.º da Lei do Asilo, e tendo sempre presente o cumprimento, direta e indiretamente, do princípio de non refoulement, ao abrigo do art. 33.º da Convenção de Genebra e art. 47.º da Lei do Asilo.
Votação:MAIORIA, COM VOTO DE VENCIDO
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

D..., interpôs recurso da sentença do TAC de Lisboa, 18.09.2019, que julgou a ação administrativa em matéria de asilo por si intentada improcedente, absolvendo o Ministério da Administração Interna do pedido.

As alegações de recurso que apresentou culminam com as seguintes conclusões:

«(…)

31.º

O A. não concorda com a Douta sentença e dela recorre pois não estão assegurados os seus direitos humanos em Itália e existe défice instrutório pois não está justificada a segurança no respeito pelos direitos humanos enquanto migrante africano existe sim racismo contra os migrantes em Itália.

32.º

As ONG e seus navios que pedem auxilio e Itália nega a chegada de mais migrantes cff. noticias de telejornais diárias.

33.º

O A. pretende a anulação do despacho proferido pelo MAI e que lhe seja concedido o direito de asilo ou em alternativa a autorização de residência do A. por razões humanitárias pois quer ficar em Portugal.

34.º

Como se pode ler no Ac. Do TCAS DE 24-02-2011, Rec. 07226/11, o Princípio do "non-refoulement”, nos termos do qual é assegurada a proibição de quaisquer formas de perturbação da segurança do indivíduo, incluindo o retorno forçado ou a negação do estatuto que o possa colocar em risco e insegurança directa ou indirecta.

35.º

O Princípio de " non-refoulement" significa que ninguém será expulso ou reenviado para um País onde a sua vida ou liberdade estejam ameaçadas e aplica-se sempre que alguém se encontra no território, ou nas fronteiras de um determinado País, independentemente de ter sido, ou não, formalmente reconhecido o seu estatuto de refugiado.

36.º

Pelo que o Pedido e Asilo apresentado pelo A. deveria ter sido deferido, nos Termos do art.º 3.º da Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos Fundamentais, o Principio de " non-refoulement", previsto no art. 33.º da Convenção de Genebra, o n.º 2 art. 3.º e 19.º do regime jurídico aprovado pela Lei n- 27/2008 de 30 de junho, o art. 7.º PIDPC, o art. 3.º da CEDH, o art. 25.º da CRP, o art. 8.º da Lei 15/98 de 26 de Março.

37.º

A não ser concedido o Pedido de Asilo ou a Autorização de Residência por Razões Humanitárias ao A. estar-se-á a violar os art.s 33.º da Convenção de Genebra, o n.º 2, art. 3.º e 19.º do regime jurídico aprovado pela Lei n.º 27/2008 de 30 de junho, o art. 7.º PIDPC, o art. 3.º da CEDH, o art. 25.º da CRP, o art. 8.º da Lei 15/98 de 26 de Março.

38.º

Incumbia à entidade demandada previamente à decisão instruir o processo com Informação fidedigna actualizada sobre o procedimento de asilo na Itália e as Condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado membro o que não foi feito

39.º

Deve a decisão do Director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras ser anulada por défice instrutório, nos termos dos artigos 58.º e 163.º n.º 1 do CPA.

40.º

Nestes termos deve a Entidade demandada ser condenada a reconstituir o Procedimento instruindo-o com informação fidedigna actualizada sobre o funcionamento do procedimento de asilo na Itália e as condições de acolhimento dos requerentes de protecção internacional na Itália, de molde a aferir se no caso concreto se verificam qualquer dos motivos invocados no artigo 3.º, n.º 2, 2.º parágrafo, do Regulamento 604/2013 do Parlamento e do Conselho, de 26 de junho.

41.º

Com base no art. 3.º da CEDH e 4.º da CDFUE são violados o Princípio da não expulsão por não estarem assegurados os direitos fundamentais de dignidade humana por tratamento cruel ou degradante da responsabilidade do Estado pela análise do pedido de protecção internacional.»


O Recorrido, notificado para o efeito, não contra-alegou.

Neste tribunal, o DMMP apresentou pronúncia no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Por despacho de 09.01.2020, foram as partes notificadas para se pronunciarem, querendo, nos atendendo ao seguinte (cfr. fls. 235, ref. SITAF): «(…) A decisão impugnada nos autos considerou inadmissível o pedido de asilo formulado pelo A., ora Recorrente, por ter concluído, após pedido de retoma a cargo dirigido às autoridades italianas, que seria este o Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

Porém, em declarações prestadas pelo A., ora Recorrente, este disse que o seu pedido não se encontra em análise pois foi recusado (cfr. fls. 9 do processo administrativo junto a fls. 71 do SITAF).

Considerando que não resulta dos demais documentos juntos aos autos que este(s) facto(s) tenha(m) sido ponderado(s) ou discutido(s) no procedimento e, bem assim, na sentença recorrida, notifiquem-se as partes para se pronunciarem, querendo, sobre o(s) mesmo(s), no prazo de 5 (cinco) dias, atenta a natureza urgente dos presentes autos (cfr. art. 662.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 1.º do CPTA). »

Apenas o Recorrido, SEF, veio responder (cfr. fls. 240 e ss., ref. SITAF).

Da resposta e do despacho que antecede, foi notificado o DMMP para se pronunciar, querendo, não tendo emitido pronúncia (cfr. fls. 249-250, ref. SITAF).

Por despacho de 27.02.2020, a primeira signatária ordenou fosse notificado novamente o Recorrido, nos termos seguintes: «(…) Na sequência do meu despacho de 09.01.2020 (a fls. 235 do SITAF), atenta a resposta do Recorrido, de 17.01.2020 (a fls. 240 do SITAF), e em virtude de tal informação se revelar com interesse para a decisão do presente recurso, notifique-se o Recorrido para vir informar aos autos, juntando os documentos que a atestem, se já foi proferida decisão pelas autoridades italianas sobre o pedido de proteção internacional em apreço, e em que sentido (cfr. 652.º, n.º 1, alínea d), do CPC, aplicável ex vi art. 1.º do CPTA).»

Por requerimento de fls. 259 – ref. SITAF – veio o Recorrido apresentar a sua resposta, mas não respondendo ao requerido, razão pela qual, por despacho de 19.03.2020, foi o mesmo instado a fazê-lo, não sem o tribunal esclarecer que «(…) está ciente do que SEF veio informar aos autos, porém, em virtude de a obtenção de informação oficial sobre se o pedido de asilo formulado pelo Requerente, ora Recorrente, já foi decidido pelas autoridades italianas e em que sentido se revelar, no entender da signatária, essencial para a boa decisão do presente recurso (…)»

Na sequência do que, por requerimento de fls. 268 – ref. SITAF – veio o Recorrido informar que tinha dirigido o pedido de informação em apreço às autoridades italianas, que vieram responder a 17.04.2020 (cfr. requerimento junto aos autos a fls. 283-284) no qual se confirma a rejeição do pedido de asilo a 09.11.2016, por decisão já transitada em julgado.

Com dispensa dos vistos legais, atento o carácter urgente do processo, mas com disponibilização prévia do texto do acórdão, vem o mesmo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

I. 1. Questões a apreciar e decidir

A sentença recorrida julgou improcedente a pretensão do A., ora Recorrente, de anulação da decisão da Diretora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que considerou inadmissível o seu pedido de proteção internacional, determinando a sua transferência para Itália, assim como julgou improcedente a sua pretensão de que a decisão do SEF fosse substituída por outra que permitisse a análise do seu pedido de proteção internacional pelo Estado Português, considerando, em suma, que:

«(…)

Em concreto, em sede de entrevista (alínea E) do probatório), o Autor declarou que «Não quero voltar à Itália porque não me identifiquei com o país mas estou-lhes grato porque foram eles que me ajudaram quando estava doente. Em Portugal sinto-me bem porque consigo comunicar em português e compreender o que me dizem. Sei que aqui poderia começar a minha vida.».

Não relatou, assim, o Autor nenhuma situação lesiva dos seus direitos que tivesse ocorrido em Itália, durante o tempo em que lá permaneceu.

Por força das declarações do Autor, não se vislumbra que a ED. tenha omitido qualquer dever instrutório, pois o Autor não concretizou nenhuma situação que clamasse a averiguação de quaisquer factos.

A saída do Autor de Itália não se ficou a dever a nenhum tratamento desumano ou degradante à sua pessoa, mas tão só porque não se identificou com o país.

Foi o Autor que decidiu sair de Itália e, agora, na presente ação, vem invocar genericamente a situação italiana sobre migrações, mas como resulta do douto acórdão do Venerando Tribunal Central Administrativo Sul «...Uma coisa são declarações políticas ou governamentais num Estado democrático de Direito como Itália, eventualmente contra a imigração, outra coisa é o cumprimento por esse país do princípio da legalidade interna e europeia relativo ao asilo. Pelo que não existem motivos sérios para Portugal excecionar o que resulta das citadas normas gerais imperativas...» (Ac. de 21/02/2019, no Processo 1740/18.3BELSB).

Conforme sumariou o mesmo arresto «I - Aceite a responsabilidade pela apreciação do pedido de proteção internacional do cidadão estrangeiro pelas autoridades de Itália, à Entidade portuguesa demandada apenas compete, proferir decisão de inadmissibilidade do pedido e, após notificação, assegurar a execução da transferência para esse país [cfr. o disposto nos artigos 37°, n° 2 e 38° da Lei do Asilo].

II Só não seria assim se, tal como resulta do §2° do n° 2 do artigo 3° do Regulamento n° 604/2013, existissem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes no Estado-Membro, inicialmente designado responsável, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

III O Tribunal de Justiça da U.E. tem reconhecido a possibilidade de análise dos pedidos por outros Estados-Membros, em conformidade com regras de solidariedade [cf. art. 80° do Tratado], mas o exercício de tal opção inscreve-se numa área de "discridonariedade" administrativa, ou mesmo de opção política, que, por natureza da separação de poderes, escapa ao controlo jurisdicional.» [vide também Acs. do TCA Sul de 08/11/2018, Processo 945/18.1BELSB; de 07/02/2019, Processo 1635/18.0BELSB].

Tomando em consideração os critérios referidos pelo TJUE [processo C-163/17], as situações descritas no parecer do CPR (alínea J) do probatório) também não impunham à ED. que instruísse o processo do Autor com elementos sobre o procedimento de asilo e das condições de acolhimento em Itália, para averiguar se a transferência do Autor para Itália o colocaria numa situação particularmente grave de privação material extrema, pois o Autor já esteve em Itália e não alegou nenhum facto nesse sentido.

As falhas sistémicas referidas no artigo 3°, n° 2, 2° parágrafo do Regulamento (UE) n° 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, devem ter um limiar de gravidade particularmente elevado, "que é alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado-Membro tiver por consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontre, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema, que não lhe permita fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentar-se, lavar-se e ter alojamento, e que atente contra a sua saúde física ou mental ou a coloque num estado de degradação incompatível com a dignidade humana"...o qual "...não pode abranger situações que se caracterizem por uma grande precariedade ou uma forte degradação das condições de vida da pessoa em causa, quando estas não impliquem uma privação material extrema que coloque a pessoa numa situação de gravidade tal que possa ser equiparada a um trato desumano ou degradante." (Processo C-163/17, TJUE) (sublinhado da signatária).

Tais critérios vão ao encontro de um dos objectivos essenciais do Regulamento (UE) n° 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que consiste em «impedir a utilização abusiva dos procedimentos de asilo, sob a forma de pedidos múltiplos apresentados pelo mesmo requerente em diversos Estados Membros, com o objetivo de neles prolongar a sua estadia, realidade comummente designada como asylum shopping.» [cfr. decidido pelo Venerando TCA Sul, em 07/02/2019, no Processo 1635/18.0BELSB].

Em suma, inexiste o invocado défice instrutório, pelo que deve o Autor ser transferido para Itália, porque o pedido de protecção internacional efetuado ao Estado Português é inadmissível, o que consubstancia uma situação em que se prescinde da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de protecção internacional, nos termos do artigo 19°-A, n° 1, alínea a), e n° 2, da Lei n° 27/2008, de 30/06, com as alterações introduzidas pela Lei n° 26/2014.»

I.2. O objeto do recurso é delimitado, em princípio, pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado – cfr. art.s 635.º, 639.º e 608.º, n.º 2, 2ª parte, todos do CPC, ex vi art. 1.º e art. 140.º, n.º 3, ambos do CPTA. E dizemos em princípio, porque o art. 636.º do CPC, permite a ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, situação que não se coloca nos autos.

A questão que cumpre conhecer será então a seguinte:

1. Do erro de julgamento que é imputado à sentença recorrida ao ter considerado que a decisão impugnada não seria anulável por deficit de instrução quanto às condições existentes em Itália no que se prende ao acolhimento dos requerentes de proteção humanitária (conclusões 31.º a 41.º do recurso).

Esta questão será apreciada tendo também em conta a circunstância de se ter revelado nos autos que o pedido de asilo formulado em Itália pelo Recorrente, que está subjacente à decisão de retoma a cargo para aquele País, foi já decido, tendo sido rejeitado (cfr. fls. 283 e 284, ref. SITAF e matéria de facto infra).

II. Fundamentação

II.1. De facto

Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto considerada provada na sentença recorrida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 663.º, n.º 6, do CPC, aditando-se apenas o seguinte facto, ao abrigo do art. 662.º, n.º 1, do CPC:

K) O pedido de asilo apresentado pelo Recorrente em Itália foi rejeitado, por decisão de 09.11.2016 (cfr. doc.s fls. 283-284, ref. SITAF).

II.2. De direito:

Do erro de julgamento que é imputado à sentença recorrida ao ter considerado que a decisão impugnada não seria anulável por deficit de instrução quanto às condições existentes em Itália no que se prende quanto ao colhimento dos requerentes de proteção humanitária (conclusões 31.º e 41.º do recurso).

Como se disse, esta questão terá de ser apreciada tendo também em conta a circunstância de se ter revelado nos autos que o pedido de asilo formulado em Itália pelo Recorrente, que está subjacente à decisão de retoma a cargo para Itália, já foi decido, tendo sido rejeitado (cfr. fls. 283 e 284, ref. SITAF e alínea K) da matéria de facto supra).

Vejamos.

Resulta da alínea K) da matéria de facto que as autoridades italianas recusaram o pedido de proteção internacional apresentado pelo Recorrente. Prevê o art. 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento (UE) n° 604/2013 (doravante Regulamento de Dublin III), sob a epígrafe “Obrigações do Estado-Membro responsável”, que o Estado-Membro responsável por força do presente regulamento é obrigado a (n.º 1) retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.°, 24.°, 25.° e 29.°, o nacional de um país terceiro ou o apátrida cujo pedido tenha sido indeferido e que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro (alínea d).

Assim como, logo no n.° 1 do art. 3.° do Regulamento de DublinIII se dispõe que «(...) O pedido de asilo é analisado por um único Estado-membro (…).»

Assim, imperioso se torna concluir que, de uma interpretação conjugada das citadas disposições do Regulamento de Dublin III, e face ao facto constante da alínea K) da matéria de facto, Itália é/foi o Estado Membro responsável pela apreciação do pedido de asilo do Requerente, ora Recorrente, desde logo, porque já o decidiu.

Perante o que, tendo o Recorrido dado início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertencia a Itália (cfr. art. 18.°, n.° 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III e art. 37.° n° 1 da Lei do Asilo), e perante a circunstância de o pedido já ter sido decidido pela autoridades italianas, poderia, numa primeira linha de análise, ser proferido um ato de inadmissibilidade de apreciação do pedido de proteção formulado e fosse determinada a transferência do Recorrente, então Requerente, para Itália, desde logo, porque com a primeira decisão do pedido de asilo se esgota a aplicação do Regulamento de DublinIII, porquanto este visa primacialmente estabelecer «os critérios e mecanismos para a determinação do Estado-Membro responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional apresentados num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida.» (art. 1.º).

De facto, uma das regras basilares do Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA), na parte que se prende com a regulamentação da determinação do Estado Responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional, é a de que seja apenas um Estado Membro a decidir – cfr. art. 3.º, n.º 1, e art. 18.º, do Regulamento de Dublin III.

Porém, esta conclusão não significa que fora do âmbito de aplicação do Regulamento de Dublin III, o Estado Português possa eximir-se a uma apreciação das situações que se lhe apresentam, do que é exemplo o caso em apreço, também à luz do disposto no art. 33.º da Lei do Asilo, que admite a apresentação de pedidos de proteção internacional subsequentes.

Vejamos em que termos.

O art. 33.º da Lei do Asilo, sob a epígrafe “Apresentação de um pedido subsequente”, no seu n.º 1, dispõe que «[i] O requerente ao qual tenha sido negado o direito de proteção internacional [ii] pode, sem prejuízo do decurso dos prazos previstos para a respetiva impugnação jurisdicional, apresentar um pedido subsequente, [iii] sempre que disponha de novos elementos de prova que lhe permitam beneficiar daquele direito ou [iv] quando entenda que cessaram os motivos que fundamentaram a decisão de inadmissibilidade ou de recusa do pedido de proteção internacional

Porém, não só o Requerente, ora Recorrente, não formula nenhum pedido de proteção internacional subsequente, nos termos e para os efeitos do citado art. 33.º, pois não invocou novos elementos de prova que lhe permitam beneficiar daquele direito [de asilo ou de proteção subsidiária] – mantendo, aparentemente, a mesma argumentação – de que fugiu da Guiné por ter medo de ser morto por familiares por motivos de bens deixados por morte do pai - dirigindo a sua argumentação para a enunciação de deveres e direitos genéricos sobre o direito de asilo e da sua não transferência para Itália, chamando a atenção para as condições que alegou verificarem-se naquele País no que se prende com o acolhimento dos requerentes de proteção humanitária. Nem alegou que tenham cessado os motivos que fundamentaram a decisão de inadmissibilidade - tendo-se resultado provado, aliás, o contrário, pois o seu pedido já foi decidido pelas autoridades italianas - ou de recusa do pedido de proteção internacional – cfr. se enunciou supra -, pelo que não resulta nada dos autos que permita dar por verificados os seus pressupostos.

Não obstante, importa não perder de vista também a pertinência do princípio do non refoulement em matéria de asilo, que, aliás, o Recorrente invoca, dada a inquestionável relevância do mesmo para o Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA), conforme resulta da jurisprudência do TEDH, mais especificamente, nos acórdãos de 21.01.2011, M.S.S. vs Bélgica e Grécia, Queixa n.º 30696/09, e de 04.11.2014, Tarakhel vs Suíça, Queixa n.º 29217/12.

Este princípio, na medida em que visa impedir que alguém possa ser deportado para seu país de origem, a menos que constitua um perigo à segurança do país ou uma séria ameaça à comunidade nacional - cfr. art.s 33.º, n.º 1 e 2 da Convenção de Genebra -, não nos pode deixar tranquilos com o resultado direto e consequente da decisão de retoma a cargo do Recorrente para Itália, com a consequente transferência para o seu País de origem, pois não sabemos, mas podemos imaginar, que tal não ocorra em breve, dada a situação de Pandemia global, e que, portanto, o mesmo se veja obrigado a permanecer em campos para refugiados, em Itália, por tempo indeterminado, até ser possível executar a decisão de transferência.

PATRÍCIA CABRAL, referindo-se aos citados arestos do TEDH, é particularmente clara na asserção de que «(…) No primeiro, o TEDH construiu o princípio segundo o qual perante a existência de falhas sistémicas que apresentem um risco de violação do artigo 3.º no Estado que seria responsável pela análise de um pedido de asilo, o Estado-Membro onde o requerente se encontra fica impedido de o transferir para esse país. (…) Por fim, no julgamento Tarakhel o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem veio reforçar que esta proteção não se limita a situações de falhas sistémicas, sendo refutada a presunção de cumprimento do artigo 3.º da CEDH sempre que existam razões sérias para crer que a pessoa enfrentaria um risco de tratamento contrário a esta mesma norma.

Os Estados-Membros encontram-se efetivamente adstritos ao nível de proteção mais elevado concedido por decisões como Tarakhel e M.S.S., incorrendo em responsabilidade internacional sempre que tomarem uma posição restritiva que reduza os direitos fundamentais do requerente.

Por parte dos tribunais nacionais, estes deverão sempre optar pela mais ampla proteção conferida pelos instrumentos supranacionais, como principais responsáveis pela aplicação do direito da União e sob pena de violar as suas obrigações internacionais, sujeitando-se aos mecanismos de responsabilidade implementados.» (sublinhados nossos).

Face a todo o exposto, no caso em apreço, consideramos, pois, que existindo já uma decisão tomada por um Estado Membro e tendo sido esta de indeferimento, a retoma a cargo pelo Estado Membro responsável – in casu, Itália – cfr. art. 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III -, não deixa de poder ser evitada, não por via da cláusula de salvaguarda prevista no 2§ do mesmo art. 3.º, que é aqui inaplicável, dado já existir uma decisão tomada por um Estado Membro, mas por via da aplicação direta do art. 33.º, nº 1 e 2, da Convenção de Genebra e do princípio de non refoulement, também plasmado no art. 47.º da Lei do Asilo, com o seu âmbito assinalado no art. 2.º, n.º 1, alínea aa) (1), não só face ao consequente retorno e antecipável permanência do Recorrente em Itália – País que, considerando, apenas o critério transfronteiriço, de forte pressão migratória e alguma conjuntura política menos favorável, não garante as condições mínimas em sede de acolhimento dos requerentes de proteção internacional – cfr. relatório do Conselho Português para os Refugiados (doravante CPR), junto aos autos e referido na alínea J) da matéria de facto, que expressamente alerta para a circunstância de vários órgãos jurisdicionais, de alguns Estados Membros, entre os quais, Alemanha, França(2), Luxemburgo, Holanda e Reino Unido, terem recentemente anulado decisões de transferência ao abrigo do Regulamento Dublin para Itália à luz do referido contexto – cfr. fls. 4 do citado relatório.

Mas também, e mais recentemente, o recentíssimo relatório do Conselho Suíço para os Refugiados (Swiss Refugee Council - OSAR), “Italy: Updated Report on the Reception System with a Focus on the Situation for Dublin Returnees”, de janeiro de 2020 (3), no qual esta entidade, analisou a situação dos requerentes de asilo e beneficiários de proteção internacional na Itália. O relatório faz parte de um projeto mais amplo de monitorização do sistema italiano de asilo, com um foco particular nas dificuldades enfrentadas pelas pessoas transferidas sob o Regulamento Dublin III. Assinalando-se que, dada a sua posição geográfica, a Itália é o principal destino das transferências da Suíça nos termos do regulamento de Dublin, recebendo 35% de todas as transferências. O citado relatório alerta para a situação precária dos retornados de Dublin, incluindo pessoas vulneráveis, nos centros de acolhimento de primeira linha, dizendo que a maioria desses centros foi originalmente estabelecida como centros de emergência (CAS) e a qualidade dos seus serviços se deteriorou significativamente. Mais alerta para o facto de não existir um procedimento padronizado a nível nacional os retornados de Dublin, por forma a que estes possam voltar a entrar no sistema “normal” de acolhimento.

É dito que estas pessoas enfrentam, frequentemente, muitas dificuldades burocráticas para ter acesso aos procedimentos legais e que, muitas vezes, ficam numa situação de sem abrigo.

O Conselho Suíço para os Refugiados recomenda, pois, aos Estados Membros, que não transfiram pessoas vulneráveis para a Itália, sinalizado que, em qualquer outro caso, as autoridades responsáveis devem realizar uma avaliação individual detalhada, inclusive solicitando às autoridades italianas informações precisas sobre a instalação de receção alocada à pessoa.

E este aspeto assume, na verdade, particular importância porque, também a AIDA - Asylum Information Database (4)- num relatório de abril de 2019 (5), alerta para a situação degradante de vários centros de acolhimento em Itália, como Enea, Casotto e Roggiano Gravina, Friuli-Venezia Giulia, entre outros.

Pelo que, de uma leitura conjugada da legislação aplicável ao caso em apreço, outra interpretação não pode resultar que não seja a de que a decisão de devolução de uma pessoa a um País terceiro, não pode ser tomada sem que o Estado Membro decisor tenha conhecimento – conhecimento este que tem de se revelar no procedimento - das condições atuais existentes no procedimento de asilo e no acolhimento no Estado-Membro considerado responsável, in casu, Itália, para que se possa verificar se, no caso concreto, existem motivos que determinem a impossibilidade de tal transferência, e isto porque:

Não só a presunção de que os Estados Membros respeitam os direitos fundamentais, baseada no princípio da confiança mútua, pode e deve ser ilidida com base em prova do domínio público (6), aplicando este princípio em concordância prática com o princípio da eficiência. Desde logo porque, atendendo à realidade de alguns países – muito em particular Grécia e Itália, considerando, apenas o critério transfronteiriço e de forte pressão migratória – imperioso se torna admitir exceções ao princípio da confiança mútua, por forma a aliviar estes países em relação a uma resposta que lhes é exigida, mas que se revela, na prática, inexigível, possibilitando que a resposta comum europeia seja mais eficiente, se distribuída de outra forma.

Mas também, e face a todo o exposto, por se concordar inteiramente com Evelien Brouwer (7), que refere existir uma inversão do ónus da prova para as autoridades dos Estados Membros, na medida em que o Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA) visa ainda a concretização plena da Convenção de Genebra (8), da qual o Estado Português é signatário, e a garantia de que ninguém será “devolvido” para um lugar onde possa vir a estar em risco de vida, de saúde (9) ou de perseguição.

Ora, não obstante do procedimento em apreço não constar que tenha sido feita qualquer diligência nesse sentido pelo Recorrido, tal deficit poderia ter sido colmatado em sede de sentença (10), partindo, mas não devendo bastar-se, das informações que constavam já do citado relatório do CPR junto aos autos e referido em sede de matéria de facto, na alínea J).

Por fim, importa acrescentar que a situação dos autos, face a todo o exposto, embora possa colocar questões idênticas sobre as quais o Supremo Tribunal Administrativo teve, muito recentemente, oportunidade de se pronunciar (11), são delas inteiramente distintas, desde logo porque, no caso em apreço, havendo já uma decisão proferida quanto ao pedido de asilo formulado pelo Requerente, ora Recorrente, o vício da sentença que entendemos verificar-se, repercute-se numa aplicação que consideramos indevida do art. 3.º deste Regulamente, mas por motivos que não foram conhecidos no citado aresto do Supremo Tribunal Administrativo, assim como da doutrina que do mesmo dimana, como procurámos demonstrar.

Nestes termos, procedendo o invocado erro de julgamento imputado à sentença recorrida imperioso se torna anular o ato impugnado, por vício de violação de lei, concretamente, por errada interpretação e aplicação do art. 3.º do Regulamento de Dublin III e, julgando em substituição, determinar que o Estado Português assuma a responsabilidade da transferência do Recorrente para o País de origem – Guiné – logo que as condições nacionais o permitam, por aplicação do princípio de non refulement, ao abrigo do citado art. 33.º da Convenção de Genebra e art. 47.º da Lei do Asilo, nos termos e com os fundamentos supra expostos.

III. Decisão

Nestes termos e face a todo o exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e, conhecendo em substituição, determinar que o Estado Português assuma a responsabilidade pela transferência do Recorrente para o seu País de origem – Guiné – em execução da decisão das autoridades italianas e logo que as condições nacionais o permitam, ao abrigo do art. 33.º da Convenção de Genebra e art. 47.º da Lei do Asilo.

Sem Custas por isenção objetiva (cfr. art. 84.º da Lei nº 27/2008, de 30.06.).

Notifique nos termos habituais, considerando-se que no presente processo, porque urgente, os respetivos prazos não estão suspensos para a prática de atos processuais que possam realizar-se via SITAF (cfr. art. 7.º, n.º 7, alínea a), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 06.04.).

Lisboa, 14.05.2020.



Dora Lucas Neto

Pedro Nuno Figueiredo (com voto de vencido)

Ana Cristina Lameira


Voto de vencido

Como se reconhece no presente acórdão, no caso dos autos já foi proferida a primeira decisão do pedido de asilo, pelo que, à luz do Regulamento (UE) N.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho de 2013, já não está em causa a determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

Assim, entendo que se impunha retomar a cargo do Estado-Membro onde foi proferida tal decisão, para ser executado o regresso do requerente ao país de origem, conforme impõe o artigo 18.º, n.º 1, al. d), daquele Regulamento.

Ademais, o requerente não invoca qualquer situação pessoal de especial vulnerabilidade, que o possa colocar em risco naquele Estado-Membro, antes refere na entrevista do SEF que apenas não quer voltar porque não se identificou com o país, expressando a sua gratidão “porque foram eles que me ajudaram quando estava doente”.

Pelas razões sumariamente explanadas, seria de negar provimento ao recurso.

Lisboa, 14 de maio de 2020.

(Pedro Nuno Figueiredo)

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(1) Art. 2.º, n.º 1, alínea aa) da Lei do Asilo: «Proibição de repelir ('princípio de não repulsão ou non-refoulement')», o princípio de direito de asilo internacional, consagrado no artigo 33.º da Convenção de Genebra, nos termos do qual os requerentes de asilo devem ser protegidos contra a expulsão ou repulsão, direta ou indireta, para um local onde a sua vida ou liberdade estejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas, não se aplicando esta proteção a quem constitua uma ameaça para a segurança nacional ou tenha sido objeto de uma condenação definitiva por um crime ou delito particularmente grave.
(2) Designadamente, France – Rennes Administrative Tribunal, 5 January 2018, Application no. 1705747, disponível aqui: https://www.asylumlawdatabase.eu/en/case-law/france-%E2%80%93-rennes-administrative-tribunal-5-january-2018-application-no-1705747; e France - Administrative tribunal of Toulouse, 9 November 2018, N° 1805185, disponível aqui: https://www.asylumlawdatabase.eu/en/case-law/france-administrative-tribunal-toulouse-9-november-2018-n%C2%B0-1805185
(3) Disponível, aqui: https://www.fluechtlingshilfe.ch/assets/herkunftslaender/dublin/italien/200121-italy-reception-conditions-en.pdf; para mais informação, consultar também: AIDA - Asylum Information Database, Country Report 2018 Update: Italy, April 2019; AArgauer Zeitung, Dublin-Fälle: Strengere Kriterien für Überstellungen nach Italien, January 2020; ECRE, Italy: Report on Effects of the “Security Decrees” on Migrants and Refugees in Sicily, January 2020; ECRE, Italy: Rescued Asylum Seekers Left in “Extremely Critical” Conditions in Messina Hotspot, October 2019.
(4) O Asylum Information Database (AIDA) é um banco de dados gerido pelo Conselho Europeu de Refugiados e Exilados (ECRE), contendo informações sobre procedimentos de asilo, condições de acolhimento, detenção e conteúdo da proteção internacional em 23 países, incluindo 19 Estados Membros da União Europeia (UE) (Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Alemanha, Espanha, França, Grécia, Croácia, Hungria, Irlanda, Itália, Malta, Holanda, Polônia, Portugal, Romênia, Suécia, Eslovênia) e 4 países não pertencentes à UE (Suíça, Sérvia, Turquia, Reino Unido). Tem como objetivo contribuir para a melhoria das políticas e práticas de asilo na Europa e a situação dos requerentes de asilo, fornecendo a todos os atores relevantes as ferramentas e informações adequadas para apoiar seus esforços de advocacia e litígios, tanto em nível nacional quanto europeu, cfr. informação disponível na sua página de internet, aqui: https://www.asylumineurope.org/about-aida
(5) in Country Report Italy, 2018 Update, April 2019, pgs. 99-101.
(6) Neste sentido CATHRY COSTELLO, “Dublin Case NS/ME: finally, an end to blind trust across the E.U.?”, 2012, pg. 88, disponível aqui: http://www.ejtn.eu/Documents/About%20EJTN/Independent%20Seminars/Asylum%20Law%20Seminar%2012-13%20December%202013/CostelloNSMENote2012.pdf
(7) in Mutual Trust and the Dublin Regulation: Protection of Fundamental Rights in the EU and the Burden of Proof, 2013, pg.143, disponível aqui:
https://www.researchgate.net/publication/256046172_Mutual_Trust_and_the_Dublin_Regulation_Protection_of_Fundamental_Rights_in_the_EU_and_the_Burden_of_Proof
(8) Data de assinatura por Portugal: 11.02.1950; data de depósito de instrumento de ratificação: 14.03.1961; início de vigência relativamente a Portugal: 14.09.1961; diplomas de aprovação: aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei n.º 42 991, de 26.05.1960; publicação: Diário da República I, n.º 123, de 26.05.1960 (Decreto-Lei n.º 42 991).
(9) Seguindo o conceito adotado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1947, como sendo esta "um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”.
(10) Neste sentido v. jurisprudência do TEDH supra citada e doutrina que da mesma dimana, em parte, supra transcrita também.
(11) Cfr. Ac. 16.01.2020, P. 02240/18.7BELSB, disponível aqui: www.dgsi.pt