Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:279/09.2BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:06/25/2020
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:IRC
PERDAS EM EXISTÊNCIAS
SUPORTE DOCUMENTAL
ÓNUS PROBATÓRIO
INDISPENSABILIDADE
Sumário:I-A dedutibilidade dos custos fiscais para efeitos de IRC pressupõe, por regra, a feitura de um documento justificativo (suporte externo, com a menção das características fundamentais da operação), competindo à Administração Fiscal a prova da sua inexatidão (total ou parcial) da relação subjacente.
II-O requisito da indispensabilidade dos custos carece de um exame casuístico, em resultado de uma análise de perspetiva económica-empresarial, na perceção de uma relação de causalidade económica entre a assunção de um custo e a sua realização no interesse da empresa, atento o objeto societário do ente comercial em causa. Estão, assim, vedadas à Administração Tributária atuações que coloquem em causa o princípio da liberdade de gestão e de autonomia da vontade do sujeito passivo.
III-A existência de mercadorias deve ser entendida como um valor positivo porquanto se destinam à realização de proveitos no âmbito da atividade. Logo, a perda material de tais unidades, seja a que título for, e desde que comprovada em termos razoáveis, não pode deixar de ser havida como realidade indispensável para suportar a realização dos proveitos ou para a manutenção da fonte produtora, logo subsumível no artigo 23.º do CIRC.
IV- A natureza dos bens e a sua origem têm de ser tidas em conta no processo de verificação do abate, sob pena de ao sujeito passivo ser imposto um excessivo ónus probatório.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO

I-RELATÓRIO

O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por “L….., LDA”, contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), relativa ao exercício de 2004, no montante global de €125.273,88.

A Recorrente formula as conclusões que infra se reproduzem:

“A. Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença proferida nos autos identificados que julga procedente a impugnação deduzida pela impugnante contra a liquidação de IRC referente ao exercício de 2003 no valor de € 125.273,88, na sequência de correcções efectuadas resultantes da não aceitação como gasto do valor correspondente a €396.670,39 declarados pela Impugnante com a destruição de produtos farmacêuticos.

B. O Tribunal a quo conclui que a documentação trazida aos autos pela Impugnante não permite comprovar a efectiva verificação da perda que decorre da escrita, logo, a dedutibilidade do gasto.

C. E sabendo nós recair sobre o sujeito passivo o ónus de demonstrar a realização quantificada do gasto de forma a comprovar a bondade do lançamento contabilístico, entendeu o Tribunal a quo estar suportado tal ónus na produção de prova testemunhal das testemunhas A….. e E….., entendimento do qual a Fazenda Pública discorda por, contrariamente ao afirmado na douta sentença aqui recorrida, decorrer da prova produzida em tal sede reconduzirem-se tais testemunhos a declarações integralmente realizadas de forma geral e abstracta.

D. Pelo que, não poderão os factos constantes do probatório meramente concernentes a tal procedimento – factos das alíneas A. a G. – fundamentar conclusão acerca da prova efectiva do abate dos produtos mencionados nas listagens anexas aos autos de inutilização.

E. Efectivamente, as testemunhas apresentaram-se em tribunal dispostas a esclarecer aquele que era o procedimento interno relativamente ao abate dos produtos obsoletos ou inutilizados, mas em momento algum lograram confirmar que relativamente aos produtos constantes da lista anexa aos autos de inutilização em particular tal tenha efectivamente acontecido, facto esse do qual se deduziria conhecimento directo dos factos que nos presentes autos se procuram apurar, nem em algum momento confirmaram sequer por sua livre iniciativa terem marcado presença nos alegados abates daqueles dias em particular.

F. A testemunha A….. refere ao minuto 21 da gravação que assistia a algumas destruições, mas não diz, nem consegue assegurar que tenha assistido ao abate em questão nos presentes autos, nem sequer se recorda dos mesmos por algum motivo em particular, e só dessa forma lograria demonstrar conhecimento concreto e directo dos factos levados ao probatório; e quanto a eventuais desvios dos bens, aos 21 minutos e 54 segundos afirma que não acredita, suportado naquela que julga ser a qualidade e honestidade dos profissionais da empresa, o que nos reconduz para uma mera questão de fé, não podendo no entanto afirmar tal facto a 100% conforme afirma aos 22 minutos e 05 segundos da gravação.

G. Por outro lado, a mesma questão colocada à testemunha E….. obteve a seguinte resposta ao minuto 34: “não tinham pessoas dessa natureza”, afirmação essa que mais uma vez assenta numa mera presunção de boa fé e não em factos objectivos relacionados com a efectiva comprovação do alegado abate dos específicos produtos em causa.

H. Acresce que, em momento algum esta testemunha afirmou de forma expressa que tenha marcado presença naqueles dias e em particular que tenha assistido àqueles processos de destruição em particular [apenas afirma aos minutos 29 e 44 segundos que em geral procedia à destruição dos bens], pelo que, não podia a douta sentença assentar a sua convicção em tal facto não levado ao probatório e não provado.

I. Referindo a douta sentença que “Estes produtos, como evidenciaram as testemunhas, eram objecto de várias fases de controlo interno, por forma a garantir que eram efectivamente destruídos, tendo os responsáveis pelos departamentos financeiro, contabilístico e logístico assistido à destruição dos produtos relatados nos autos de inutilização, elaborados a 30.06.2004 e 30.12.2004, referidos nas alíneas H. e I. do probatório.” (sublinhado nosso), verificamos não constar dos factos provados qualquer alusão ao facto de terem os responsáveis assistido ao abate em questão e que dá aqui como assente a douta sentença.

J. Sublinha-se que a mera leitura dos factos das alíneas A. a E. do probatório revela precisamente todo um discurso marcadamente geral e abstracto, sem factos concretos e sem resposta às questões enunciadas supra em 35. a 44., quando o que se procura apurar nos presentes autos é: se a alegada destruição dos bens foi efectivamente levada a cabo de acordo com o procedimento instituído pela empresa e não se a empresa tinha para o efeito um procedimento instituído; se as testemunhas se recordam que os produtos em particular tenham sido devolvidos pelas farmácias ou pelos armazenistas para o centro logístico, até porque antes de lá chegar existiam mais dois pontos de recolha; se a testemunha E….. se recorda de ter conferido estes produtos em particular e da data concreta em que os mesmos foram alvo de destruição.

K. E nenhum destes factos foi concretamente afirmado pelas duas testemunhas identificadas e em posição de poder aferir da verificação de tais factos, pois nenhuma das testemunhas afirmou peremptoriamente que os bens constantes da lista anexa aos autos de inutilização foram alvo de abate.

L. Ora, não tendo a Impugnante feito a prova que lhe incumbia, ao abrigo do disposto no artigo 74.º da Lei Geral Tributária, suficiente e bastante no sentido de comprovar a efectiva verificação da perda inscrita contabilisticamente, não pode pois o custo ser fiscalmente aceite à luz do artigo 23.º do CIRC.

M. E, nos termos expostos, a douta sentença ao julgar procedente a presente impugnação fê-lo incorrendo em erro de julgamento de facto, atenta a errónea apreciação dos factos pertinentes para a decisão, uma vez que reconhecendo a douta sentença não se mostrar suficiente a prova documental, basicamente reconduzida aos autos de inutilização e a uma declaração emitida pela I….., dos factos enunciados nas alíneas A. a G. resulta uma enunciação geral e abstracta que não podia convencer o tribunal de que a Impugnante logrou produzir prova capaz de que aqueles produtos em concreto constantes da relação anexa aos autos de inutilização foram efectivamente destruídos e naquelas quantidades.

N. Mais incorrendo em errado julgamento de facto ao concluir em sede de motivação da decisão de facto terem as testemunhas assistido aos abates quando tal facto não consta do probatório nem resulta das declarações das testemunhas, com violação do disposto no artigo 74.º da Lei Geral Tributária.

Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., concedendo-se provimento ao recurso, deverá a douta sentença ser revogada, com o julgamento improcedente da impugnação, com as legais consequências. Sendo que V. Exas. decidindo farão a Costumada Justiça.”


***

A Recorrida apresentou as seguintes contra-alegações:

“I. Imputa a Fazenda Pública à douta Sentença recorrida um erro de julgamento por (alegada) má apreciação da prova considerando, em particular que, face à prova produzida nos autos, não podia o Tribunal a quo decidir como decidiu.

II. Considera a Fazenda Pública que o depoimento prestado pelas testemunhas teve carácter geral e abstracto não permitindo concluir que os produtos constantes dos anexos aos três autos de imobilização foram, de facto, destruídos.

III. A falência de tal argumentação é manifesta na medida em que, em violação expressa da Lei e da Constituição da República Portuguesa, pretende desconsiderar a totalidade a prova testemunhal produzida nos autos fazendo depender a respectiva relevância de exigências irrazoáveis e de preenchimento materialmente impossível.

IV. Os factos considerados (e bem) provados pelo Tribunal a quo não são mais do que a descrição do processo de controlo então implementado pela Recorrente, desde o momento em que ocorria uma devolução – o que podia suceder, quer por expiração do prazo de validade do produto, quer pela obsolescência dos mesmos, nomeadamente pela renovação das linhas dos produtos – até à respectiva destruição.

V. Tal processo foi descrito pormenorizadamente pelas testemunhas A….. e E….., responsável pelo centro logístico da Recorrida e responsável financeiro, respectivamente e passava por:

(i) Elaboração de uma nota de devolução pela farmácia ou parafarmácia onde o bem se encontrava;

 (ii) Confirmação “in loco” por um vendedor da Recorrente dos produtos devolvidos e transporte dos mesmos produtos, dentro de um saco, para um de dois lugares: (i) ou para a sede da empresa ou, (ii) directamente, para a central de expedição (hoje centro logístico) sita, à data em, S. João da Talha;

(iii) Sempre que tal sucedia, o original da nota de devolução ia para o serviço de clientes da Recorrente, e uma cópia acompanhava o saco que continha os produtos;

(iv) Com o referido original, o serviço de clientes emitia as notas de crédito em função de tais devoluções;

(v) Logo que os sacos contendo os produtos chegavam ao armazém, o responsável de armazém, Sr. E….., confirmava, uma vez mais, o teor dos sacos confrontando, por amostragem, o mesmo com as notas de devolução, sendo, depois, tais sacos, colocados numa zona específica do armazém, afastados dos restantes produtos, fechados dentro de caixas e enrolados em papel celofane;

(vi) Finalmente, os produtos eram recolhidos pelo funcionário P….. da empresa de gestão de resíduos (“I….., Lda”) que, na companhia de um funcionário da empresa, os transportava até ao interior de um veículo de compactação onde os mesmos eram comprimidos, triturados e destruídos; e

(vii) Os resíduos resultantes dessa destruição não tinham qualquer possibilidade de aproveitamento – eram, finalmente, transportados para um aterro sanitário;

(viii) Posteriormente e com frequência semestral, era elaborado um “auto de inutilização” que continha todos os abates efectuado durante esse semestre e assinado pelos funcionários responsáveis por cada um dos departamentos envolvidos no processo de abate (financeiro, contabilístico e logístico).

VI. Os “autos de inutilização” referidos nos §. H. a J. do probatório e utilizados pela Recorrida para sustentar a dedução fiscal do custo enquadravam-se, assim, dentro deste processo de controlo, eram parte dele e, por isso, com base no depoimento das testemunhas, é uma simples consequência lógica concluir que os produtos mencionados nos referidos “autos de inutilização” foram, efectivamente, destruídos.

VII. Dito de outro modo, se os autos de inutilização, descrevendo, em anexo, os produtos destruídos eram o culminar do processo de controlo implementado pela Recorrida, e não havendo qualquer indício (ou alegação pela Fazenda Pública) de que neste caso teria havido qualquer desvio desse processo, teria de concluir-se logicamente, como faz o Tribunal a quo, que esses bens foram efectivamente destruídos.

VIII. É por isso irrelevante que as testemunhas não refiram a destruição daqueles bens em particular, pois era esse o procedimento normal, não havendo nenhum indício nos autos, nem a Fazenda Publica o invoca, de que, com os autos de inutilização referidos no processo, teria sido diferente.

IX. Das Conclusões formuladas nas Alegações resulta que, para a Fazenda Pública, a prova da perda dependeria da confirmação, pelas testemunhas, da destruição de cada um dos produtos inutilizados e descriminados nos autos de inutilização.

X. O conjunto dos dois autos de inutilização engloba milhares de produtos com descrições e quantidades diversas, pelo que tal imposição significa colocar o contribuinte perante a exigência de uma prova impossível pois uma tal capacidade de memorização não é, sequer, humana.

XI. Nem a comunicação prévia à Autoridade Tributária da destruição dos bens permitiria efectuar tal prova pois, mesmo assumindo que a Autoridade Tributária se dignava enviar um técnico para presenciar essa destruição, jamais, o mesmo, poderia atestar, em consciência, a destruição individual de cada um dos referidos produtos.

XII. Tal entendimento é inconstitucional por violação do princípio da tutela jurisdicional que proíbe a exigência de prova irrazoável. Como, invariavelmente vem decidindo a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, perante a imposição, seja via legislativa, seja via interpretativa de restrições não justificadas aos meios de prova, nomeadamente à prova testemunhal, “o interessado, perante uma, então, manifesta e, quiçá, insuperável, dificuldade em alcançar o objecto probandi, ver-se-ia postado numa impossibilidade de demonstrar os factos que suportavam os seus direitos ou interesses – cfr. por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 24/2008, datado de 22 de Janeiro de 2008, e proferido no âmbito do processo n.º 813/07 (JOSÉ BORGES SOEIRO); na Doutrina, por exemplo,. J. J. GOMES CANOTILHO, «O ónus da prova na jurisdição das liberdades – Para uma teoria do direito constitucional à prova», Estudos sobre direitos fundamentais, Coimbra Editora, 2004, pág. 170.

XIII. Para além de inconstitucional nos termos referidos, o entendimento propugnado pela Fazenda Pública nos presentes autos colide frontalmente com Doutrina Administrativa emanada pela própria Autoridade Tributária a este respeito, a mais recente das quais data de 2009 (Despacho do SDG dos Impostos, substituto legal do Director-Geral, em 29/06/2009 no âmbito do processo A5092009009) e onde se escreveu que:

(i) no âmbito do IRC, as quebras de existências identificadas e não identificadas são tidas como ocorrências inerentes à própria actividade das empresas, pelo que se enquadram, em regra, no princípio da indispensabilidade, tendo em conta as circunstâncias de cada situação em concreto; e

(ii) que a existência de processos de controlo interno semelhante ao utilizado pela Recorrida deverá até, e cita-se “dispensar a elaboração de autos de destruição e de abate”.

XIV. Beneficiando da imediação da prova mediante si produzida, o Tribunal adjectivou os depoimentos das testemunhas E….. e A….. como isentos, credíveis, claros e congruentes, revelando conhecimento directo dos factos.

XV. Estando como no caso em apreço, a decisão da matéria de facto devidamente fundamentada e personificando uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência e lógica, a mesma, por força do princípio do julgamento segundo a livre convicção do juiz que vigora no nosso ordenamento jurídico, é inatacável – cfr. neste sentido, na Jurisprudência, por exemplo, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul datado de 22/10/2015 e proferido no âmbito do processo 08238/14 (Anabela Russo) bem como os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, datados de 8/3/2007, e 12/07/2013 proferidos, respectivamente, nos processos 00110/06 (Carlos Luís Medeiros de Carvalho) e 00123/05.0BEVIS (Antero Pires Salvador).

XVII. É Doutrina e Jurisprudência pacífica que a demonstração da ocorrência de um custo não tem de ser efectuada, obrigatoriamente, através de documentos, podendo o sujeito passivo socorrer-se, nesta matéria, de qualquer um dos meios de prova admitidos em direito (cfr. artigo 115.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário – cfr. a titulo exemplificativo, na Doutrina, Saldanha Sanches, Custos mal documentados e custos não-documentados: o seu regime de dedutibilidade – Anotação ao Acórdão do STA de 16/02/00 rec. n.º 24133 e ao Acórdão do STA de 07/12/99 rec. n.º 2393”, Fiscalidade, 3 (2000), pág. 90; e António Moura Portugal, Da Dedutibilidade dos Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, págs. 202 e 203; e, na Jurisprudência, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, datado de 06/10/1999 e proferido no proferido no âmbito do processo n.º 23 817 (ALMEIDA LOPES); o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 29/05/2001, proferido no processo n.º 3093/99 (EUGÉNIO SEQUEIRA); ou o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 14/06/2006, e proferido no âmbito do processo n.º 00253/04 (FRANCISCO ROTHES).

XVIII. No caso em apreço, e da conjugação da prova documental junta aos autos com a prova testemunhal produzida resulta indubitável que os bens anexos aos “autos de inutilização” foram efectivamente destruídos – como eram todos os que entravam nesse processo – pelo que é manifesto que a Sentença recorrida não merece qualquer reparo e deve, assim, ser confirmada.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO AO CASO APLICÁVEIS QUE V.EXAS, VENERANDOS DESEMBARGADORES DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE IMPROCEDENTE POR NÃO PROVADO CONFIRMANDO-SE, EM CONSEQUÊNCIA, A SENTENÇA RECORRIDA.

Só assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!”


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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

A. A sociedade “C….., Lda.” dedicava-se à importação, comércio de produtos de higiene e tratamento da boca e dentes, medicamentos, produtos farmacêuticos e para-farmacêuticos, tendo sido incorporada por fusão na Impugnante, em 2007 (cfr. doc. 3 junto aos autos com a p.i., a fls. 43 a 49 dos autos);

B. No ano de 2004, em caso de “quebra” ou “perda”, por expiração do prazo de validade ou obsolescência do produto, nomeadamente pela renovação da respectiva linha, as farmácias ou para-farmácias elaboravam uma nota de devolução, com indicação dos produtos devolvidos e motivo da devolução (cfr. doc. 9 junto aos autos com a p.i., a fls. 84 a 103 dos autos, conjugado com o depoimento da testemunha A…..);

C. Os produtos devolvidos eram embalados em sacos, contendo uma cópia da nota de devolução, e transportados para a central de expedição da Impugnante (hoje, centro logístico), à data, sita em S. João da Talha (cfr. depoimento das testemunhas A….. e E…..);

D. Quando os produtos chegavam ao centro logístico, o respectivo responsável conferia o teor dos sacos e as respectivas notas de devolução (cfr. depoimento das testemunhas A….. e E…..);

E. Esses sacos eram colocados numa zona específica do armazém, afastados dos restantes produtos, e fechados dentro de caixas ou paletes com a indicação “já conferido” (cfr. depoimento das testemunhas A….. e E…..);

F. Esses produtos eram recolhidos pela empresa “I….., Lda.”, que, na presença do responsável pelo armazém da Impugnante, os destruía e transportava para um aterro sanitário (cfr. anexo III do RIT, a fls. 215 do PAT apenso, conjugado com o depoimento das testemunhas A….., E….. e P…..);

G. Os resíduos resultantes da compactação e trituração não tinham qualquer possibilidade de aproveitamento (cfr. depoimento das testemunhas A….., E….. e P…..);

H. Em 30.06.2004 e 30.12.2004, a Impugnante elaborou “autos de inutilização” assinados pelo seu representante e por dois funcionários, responsáveis pelo departamento contabilístico e logístico (cfr. doc. 10 junto aos autos com a p.i., a fls. 105 a 144 dos autos, que se dá por reproduzido);

I. Os “autos de inutilização” eram acompanhados de uma “lista discriminativa dos produtos inutilizados”, com a indicação das quantidades, valor unitário e valor total, (cfr. listagens, a fls. 107 a 125 e 129 a 144 dos autos);

J. Com base nas listagens referidas na alínea antecedente, a Impugnante efectuou um lançamento contabilístico, a débito, o valor total de € 363.613,92 (cfr. nota de lançamento a fls. 126 dos autos);

K. A “I….., Lda.” emitiu uma declaração na qual consta que “(…) no ano de 2004, procedeu à recolha dos resíduos sólidos equiparados a urbanos, em viatura equipada com sistema de compactação, nas instalações da C….., sita na Zona Industrial de Vale da Figueira em São João da Talha, com posterior encaminhamento para destino final licenciado.” (cfr. anexo III do RIT, a fls. 215 do PAT apenso);

L. A Impugnante não comunicou previamente a inutilização ou abate dos produtos à Administração Tributária (facto admitido por acordo, cfr. art. 48.º da p.i.);

M. Em cumprimento da ordem de serviço n.º ….., datada de 06.02.2007, a Impugnante foi objecto de uma acção de inspecção interna com o objectivo de “verificação da coerência das declarações modelo 22 e anual – anexo A – IRC, por amostragem das rubricas mais significativas do exercício de 2004.” – cfr. RIT, a fls. 66 a 76 dos autos;

N. No âmbito da acção inspectiva, a Impugnante exerceu o seu direito de audição sobre o projecto de correcções, informando que as perdas suportadas com existências estavam documentadas através de autos de inutilização e juntou documentos (cfr. doc. 5 junto aos autos com a p.i., a fls. 62 a 64 dos autos);

O. Na sequência da análise efectuada pelos serviços de inspecção, em 12.11.2008 foi elaborado relatório final de inspecção, do qual consta, na parte relevante, o seguinte:

“III - DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORRECÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA TRIBUTÁVEL (…)

2.1.1. Perdas em existências

Da análise do balancete verificou-se que a conta 6935 – Mercadorias inutilizadas apresenta um saldo de 396 760,39 €.

Solicitou-se ao sujeito passivo o envio dos documentos comprovativos que suportam tal contabilização.

Da análise dos elementos remetidos verifica-se que os referidos custos apenas se encontram documentados por dois documentos internos designados por “auto de inutilização” e relação anexa, os quais foram assinados pelo representante da empresa e por dois funcionários. Não foi efectuada qualquer comunicação prévia aos serviços da Administração Fiscal. (…)

“(…) a aceitação como custo fiscal depende da prova do abate dos produtos e da causa que conduziu a sua obsolescência ou deterioração, o que não se verifica no caso em questão.

Os documentos internos utilizados pelo sujeito passivo não provam nem documentam devidamente o abate dos produtos, dado que para além de não ter havido qualquer comunicação às autoridades fiscais, para assistirem ao acto se assim o entendessem, o designado “auto de inutilização” ter unicamente como testemunhas dois funcionários da empresa, o que atendendo ao seu vinculo laboral, não deverá ser prova suficiente para a comprovação do referido custo.

Face ao exposto, verifica-se que os referidos custos não cumprem o estabelecido no artigo 23º e 42º do CIRC pelo que deverá ser acrescido o montante de € 396 760,39 para efeitos de apuramento do lucro tributável – anexo I.

(…)

VIII - DIREITO DE AUDIÇÃO – Fundamentação

Após análise dos elementos enviados pelo sujeito passivo, refere-se o seguinte:

(…)

Como documento comprovativo da destruição efectuada o contribuinte apresenta uma declaração emitida pela I….., Lda, com o NIPC ….., entidade encarregue da recolha e destruição física das existências que originaram o apuramento da perda que está na origem da correcção em análise.

“Sendo a I….. uma mera prestadora de serviços de gestão de resíduos, entende a Exponente que não haverá agora qualquer razão para considerar que esta declaração não constitui “prova suficiente para a comprovação do referido custo.” Ora acontece que a declaração apresentada pelo contribuinte é datada de 29-10-2008, não fazendo referência aos produtos que foram destruídos, limitando-se a declarar que “...procedeu à recolha dos resíduos sólidos equiparados a urbanos, em viatura com sistema de compactação, nas instalações da C…..”, levantando-se a questão de por um lado, como é que a I….. pode saber quais os produtos que destruiu em 2004 e por outro, como é que a Administração Fiscal pode confirmar o suporte do referido custo se esta entidade não evidência os produtos que destruiu – anexo III.

De referir que nos designados “autos de inutilização” se menciona que “...procedeu-se ao seu carregamento e trituração em viatura fretada para o efeito,...” enquanto que na declaração efectuada pela I….. consta”...recolha de resíduos...com veículo de compactação...”.

Assim, são de manter as correcções descritas no ponto III do presente, dado que os referidos custos não cumprem o disposto nos artigos 23º e 42º do CIRC. (…)”.– cfr. RIT;

P. Em 24.11.2008, foi emitida em nome da Impugnante a liquidação adicional de IRC e juros compensatórios n.º ….., relativa ao exercício de 2004, no valor total de 125.273,88 – cfr. nota de liquidação, a fls. 40 dos autos;

Q. Em 17.04.2009, a Impugnante prestou garantia bancária n.º ….., no valor de € 161.574, 65, emitida sobre o Banco Santander Totta, destinada a suspender o processo de execução fiscal n.º ….., instaurado para cobrança coerciva da dívida referida na alínea antecedente (cfr. fls. 304 e 305 dos autos).


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A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte: “Não há factos que importe registar como não provados.”

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Consta na sentença recorrida como motivação da matéria de facto o seguinte:

“A decisão da matéria de facto foi realizada com base na posição assumida pelas Partes e pela análise dos documentos, constantes dos autos e PAT apenso, não impugnados, conjugados com o depoimento das testemunhas inquiridas, conforme referido em cada uma das alíneas do probatório.

Relativamente à prova testemunhal produzida, o Tribunal valorou o depoimento da testemunha A….., à data, director financeiro e de operações da sociedade inspeccionada, que explicou, de forma coerente e credível, os procedimentos internos de controlo dos produtos que foram objecto de destruição, descrevendo as diversas fases, desde a devolução à destruição dos mesmos.

Foi igualmente valorado, pelo conhecimento directo que tinha dos factos, o depoimento da testemunha E….., fiel de armazém, que afirmou, sem hesitação, ter presenciado os procedimentos de abate dos produtos em causa nos presentes autos e fazer a conferência dos produtos destinados a abate, que eram entregues no armazém.

O depoimento da testemunha P….., trabalhador da empresa “I…., Lda.”, foi valorado na parte relativa ao processo de destruição, por trituração e compactação, dos produtos comercializados pela Impugnante, por ter conhecimento directo dos factos.”


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III) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por “L…., LDA”, contra a liquidação adicional de IRC respeitante ao exercício de 2004, no montante de €125.273,88.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir:
- Se a Recorrente procedeu à impugnação da matéria de facto respeitando os requisitos contemplados no artigo 640.º do CPC;
- Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de facto e de direito, em face de, por um lado, ter valorado erradamente a prova produzida nos autos, e se, por outro lado, face ao recorte probatório dos autos, e à insuficiência probatória da Recorrida o Tribunal a quo errou ao considerar as verbas sindicadas como custos subsumíveis no artigo 23.º do CIRC.

Vejamos, então.

Para o efeito, importa começar por aferir se a Recorrente cumpriu os requisitos consignados no artigo 640.º do CPC.

Preceitua o aludido normativo que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Com efeito, no que diz respeito à disciplina da impugnação da decisão de 1ª. Instância relativa à matéria de facto, a lei processual civil impõe ao Recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, quanto ao fundamento em causa. Ele tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizadas, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adotada pela decisão recorrida[1].

No concernente à observância dos requisitos constantes do citado normativo relativamente à prova testemunhal , após posições divergentes na Jurisprudência, mormente, na Jurisdição Comum o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que “[e]nquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.” [2]

Note-se que, a indicação exata das passagens de gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo, naturalmente, do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, conforme decorre do artigo 662.º do CPC[3], aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT.

Dir-se-á, portanto, que o que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do artigo 640º do CPC[4].

Mais importa ter presente que quando é colocada em causa a credibilidade do depoimento das testemunhas, não basta a mera alegação que o depoimento não é crível. E isto porque se a convicção formada pelo impugnante da matéria de facto sobre a credibilidade do depoimento da testemunha, não coincide com a convicção do julgador, tem de objectivar-se a ausência de credibilidade ponto da discordância, impondo-se ao Recorrente que indique, quer as razões de ciência em que se firma, quer as passagens da gravação demonstrativas da desconformidade.

Feitos estes considerandos iniciais, verifica-se que, in casu, a Recorrente não impugna a matéria de facto decorrente da prova documental, sendo que quanto à produção de prova testemunhal apenas coloca em causa a sua credibilidade, porquanto as testemunhas não demonstraram conhecimento direto dos factos levados ao probatório, visto que nenhuma das testemunhas ouvidas afirmou de forma expressa que marcou presença nos dias específicos dos abates, e que tenha assistido ao processo de destruição em contenda.

Mais aduz, convocando os excertos dos depoimentos que reputa aplicáveis para o caso vertente, que não ficou afastado que pudessem existir desvios, fugas e bem assim que pudesse existir uma percentagem de cerca de 10% de bens destruídos que não era feita nos autos de abates semestrais.

Apreciando.

Importa, desde já, relevar que o Tribunal ad quem procedeu à audição integral do depoimento das testemunhas e não se afigura, de todo, que, por um lado, os depoimentos sejam genéricos e sem relevo para a descoberta da verdade material e por outro lado, que demonstrem um conhecimento indireto dos factos, conforme propugna a Recorrente.

Senão vejamos.

Atentando nos excertos aduzidos pela Recorrente no corpo das suas alegações e, tomando, necessária e naturalmente, por base todo o seu depoimento, resulta inequívoco que as testemunhas lograram demonstrar um conhecimento direto e efetivo sobre os meandros organizacionais e as diretrizes levadas a cabo pela Recorrida quanto às destruições dos bens, concretizando, com pormenor, os procedimentos a elas inerentes.

Com efeito, a testemunha A….. patenteou razões de ciência fortes visto que trabalhou na Recorrida durante cerca de vinte e seis anos, desempenhando diversas funções, sendo que no período compreendido entre 1992 a 2006, desempenhou funções de Diretor de Operações, explicando, com objetividade, todo o procedimento inerente à destruição de bens, desde o momento de emissão da nota de devolução, com a devida materialização das especificidades dos produtos de dermocosmética, até ao envio do material destruído pela empresa I….. para a empresa V…... Explicando, outrossim e com detalhe, os inerentes controlos efetuados, em primeira linha pelo vendedor na farmácia e depois no Centro de Logística.

Por seu turno, a testemunha E….., demonstrou, igualmente, conhecer todo o procedimento inerente à destruição de bens, o qual descreveu com detalhe, visto que afirmou ter trabalhado na Recorrida durante cerca de 27 anos, enquanto fiel de armazém, tendo a seu cargo, designadamente, o setor da destruição. Neste particular, descreveu, com precisão e de forma imparcial, como se processava a destruição dos materiais salientando que era o próprio que conferia todos os materiais devolvidos no Centro de Logística.

Pelo que, contrariamente ao relevado pela Recorrente os aludidos depoimentos não só não se mostram genéricos e conclusivos, como são devidamente substanciados em termos temporais e espaciais, demonstrando, como visto, conhecimento direto dos factos.

Mais importa sublinhar que não é, de todo, possível inferir, como pretende a Recorrente, que as aludidas testemunhas não tiveram presente no momento da destruição, e isto porque a testemunha A esclareceu, desde logo e sem hesitação, quanto às perdas em existências em contenda que as mesmas “ocorreram mesmo”.

O mesmo sucedendo com a testemunha E….. a qual afirmou, sem qualquer reserva e hesitação, que era o próprio que atestava e conferia os materiais objeto de devolução, estando a seu cargo toda a destruição das perdas em existências, mediante recurso à empresa I…... Afirmou, de forma segura e inequívoca, que “presenciava tudo, porque a maior parte dos produtos era eu que destruía”.

Sem embargo do exposto, importa relevar que não seria, de todo, exigível que a destruição de um conjunto bastante extenso de materiais, fosse atestada de forma singular e perfeitamente individualizada pelas testemunhas. Até porque, como sustenta a Recorrida o conjunto dos dois autos de inutilização, ora objeto de análise, engloba milhares de produtos com descrições e quantidades diversas, pelo que tal imposição não se afigura possível, exigível e plausível.

Carecendo, por isso, de relevância que as testemunhas não atestem, individual e unitariamente, a destruição daqueles bens em particular. De resto, sendo esse o procedimento normal e não havendo nenhum indício nos autos, nem a Recorrente tão-pouco o invoca, de que, com os autos de inutilização referidos no processo, teria sido diferente, não pode revestir acuidade para a presente lide a alegação realizada pela Recorrente e nos moldes em que o faz.

Ademais, conforme veremos em sede própria, não era, tão-pouco, exigível a elaboração de autos de destruição e menos, ainda, a inerente comunicação prévia à Administração Tributária.

De relevar, outrossim, que não assiste razão à Recorrente quanto às extrapolações que aduz quanto aos inerentes desvios dos bens, por um lado, porque são meras conjeturas sem qualquer suporte fático e, por outro lado, porque nunca convocadas pela entidade fiscalizadora no Relatório de Inspeção Tributária.

De todo o modo, se é certo que a testemunha A….., alude no excerto que a Recorrente convoca, que não pode afirmar a 100% que inexistam desvios. É, igualmente, certo que, ato contínuo, esclarece no seu depoimento “mas posso dizer com grande convicção de que de facto estavam criadas condições e atendendo às pessoas que trabalhavam na Recorrida e atendendo às caraterísticas do responsável do Centro Logístico, não acredito que existissem fugas”.

Sendo ainda mais perentória a outra testemunha afirmando, de forma expressa, que inexistiam desvios, sublinhando, nesse e para este efeito, que “não tinham lá pessoas dessa natureza”, ademais, sublinha, que “os materiais eram armazenados com uma película, donde, se alguém mexesse notar-se-ia”.

Ainda neste âmbito, importa ter presente que a terceira testemunha P….., funcionário da I….., esclareceu, de forma isenta e segura, que era impossível aproveitar-se qualquer bem, visto que os mesmos eram prensados por um macaco hidráulico com uma pressão equivalente a cerca de 5/10 toneladas.

In fine, sempre importa relevar que não se vislumbra de que forma e com que extensão, poderia relevar a eventualidade de destruição de cerca de 10% do material em nicho temporal não coincidente com os abates semestrais. Até porque, a testemunha não negou a realização de quaisquer abates, apenas alvitrou que poderia, eventualmente e sem quaisquer certezas e no plano meramente conjetural, existir uma destruição de cerca de 10% no intervalo desse tempo.

Pelo que, face ao supra expendido e contrariamente ao alegado pela Recorrente a produção de prova testemunhal mostrou-se credível, isenta, devidamente circunstanciada espácio-temporalmente, revelando conhecimento direto dos factos, e asseverando, efetivamente, os factos elencados nas alíneas B) a G).

É certo que o Tribunal ad quem não descura que a Recorrente sindica, outrossim, que dos factos enunciados nas alíneas A) a G) resulta uma enunciação geral e abstrata “não se deduzindo dos mesmos a conclusão defendida na douta sentença de que logrou a Impugnante provar o efectivo abate da mercadoria”, porém aferir se a matéria de facto constante do probatório é suficiente, per se, para legitimar a procedência da ação, contende já com o erro de julgamento, e por conseguinte, será apreciada em sede própria.

Aqui chegados, estabilizada a matéria de facto, importa, assim, aferir se assiste razão à Recorrente quando defende que o Tribunal a quo incorreu em errada interpretação do artigo 23.º do CIRC, não tendo cumprido o ónus probatório que sobre si impendia, e como regulamentado no artigo 74.º da LGT.

Alega, desde logo, que a Recorrida não realizou a prova que lhe incumbia, ao abrigo do disposto no artigo 74.º da LGT, suficiente e bastante no sentido de comprovar a efetiva verificação da perda inscrita contabilisticamente, não podendo, nessa medida, o custo ser fiscalmente aceite à luz do artigo 23.º do CIRC.

Mais sustenta que a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento de facto, atenta a errónea apreciação dos factos pertinentes para a decisão, uma vez que reconhecendo a douta sentença não se mostrar suficiente a prova documental, basicamente reconduzida aos autos de inutilização e a uma declaração emitida pela I….., dos factos enunciados nas alíneas A) a G) resulta uma enunciação geral e abstrata que não podia convencer o tribunal de que a Recorrida logrou produzir prova capaz de que aqueles produtos em concreto constantes da relação anexa aos autos de inutilização foram efetivamente destruídos e naquelas quantidades.

Dissente a Recorrida alegando, para o efeito, que os factos considerados  provados pelo Tribunal a quo não são mais do que a descrição do processo de controlo, à data, implementado pela empresa, desde o momento em que ocorria uma devolução – o que podia suceder, quer por expiração do prazo de validade do produto, quer pela obsolescência dos mesmos, nomeadamente pela renovação das linhas dos produtos – até à respetiva destruição.

Pelo que, os “autos de inutilização” referidos nas alíneas H) a J) do probatório e utilizados pela Recorrida para sustentar a dedução fiscal do custo enquadravam-se, assim, dentro deste processo de controlo, eram parte dele e, por isso, com base no depoimento das testemunhas, é uma simples consequência lógica concluir que os produtos mencionados nos referidos “autos de inutilização” foram, efetivamente, destruídos.

Mais defende que o entendimento propugnado pela Fazenda Pública nos presentes autos colide frontalmente com Doutrina Administrativa emanada pela própria Autoridade Tributária a este respeito.

Termina, propugnando, que no caso em apreço, e da conjugação da prova documental junta aos autos com a prova testemunhal produzida resulta indubitável que os bens anexos aos “autos de inutilização” foram efetivamente destruídos – como eram todos os que entravam nesse processo – pelo que é manifesto que a decisão recorrida não merece qualquer reparo e deve, assim, ser confirmada.

Para concluir pela procedência a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo alinhou o seguinte discurso fundamentador:

Sustenta, desde logo, que “[a] noção de «documento justificativo» é, por isso, mais ampla do que a noção de factura, pelo que se pode concluir que, para efeitos de IRC, os lançamentos contabilísticos devem estar suportados em documentos escritos, em regra, externos, contendo as características fundamentais da operação (cfr., neste sentido, também Rui Duarte Morais, “Apontamentos ao IRC”, Coimbra, 2009, p. 7080; Freitas Pereira, “Relevância, em termos de apuramento do lucro tributável, de documentos internos justificativos de compras de existências”, CTF, n.º 365, 1992, pp. 346 e seguintes; e acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27.04.2016, proferido no processo n.º 01541/14).

Depois, transpondo a factualidade assente ao regime normativo vigente, sustenta que: “No caso dos autos, como resulta da factualidade assente, a Impugnante para comprovar o abate de produtos, em fim de vida ou comercialização, elaborava, semestralmente, um “auto de inutilização”, contendo a relação dos produtos de cosmética ou farmacêuticos objecto de destruição. Estes autos encontram-se assinados pelo representante da Impugnante e por dois funcionários responsáveis pela área contabilística e logística, que assistiam à operação, tendo, com base nesses autos, lançado contabilisticamente, como custo ou perda de exercício, o valor de € 363.613,92 (cfr. alíneas H. a J. supra). Os documentos apresentados são, por isso, meros documentos internos.

Adensando, neste âmbito, que “No caso em análise, considerando a prova testemunhal produzida, podemos concluir que a Impugnante logrou fazer prova do efectivo abate dos produtos mencionados nas listagens anexas aos autos de inutilização.

Como foi claramente explicado pelas testemunhas inquiridas, os produtos comercializados pela Impugnante, que eram devolvidos pelas farmácias ou para-farmácias, eram transportados para o seu centro logístico, para serem objecto de abate. No referido centro logístico, tais produtos eram objecto de conferência e armazenados separadamente até ao momento em que se procedia ao processo de destruição, por trituração e compactação dos produtos devolvidos (cfr. alíneas B. a F. da matéria de facto assente). Estes produtos, como evidenciaram as testemunhas, eram objecto de várias fases de controlo interno, por forma a garantir que eram efectivamente destruídos, tendo os responsáveis pelos departamentos financeiro, contabilístico e logístico assistido à destruição dos produtos relatados nos autos de inutilização, elaborados a 30.06.2004 e 30.12.2004, referidos nas alíneas H. e I. do probatório.

Pode, assim, concluir-se que os autos de inutilização, corroborados pela prova testemunhal produzida, permitem certificar o abate dos produtos, bem como a natureza e respectivo valor, comprovando o acerto do lançamento contabilístico efectuado pela Impugnante.”

Mais refuta, neste particular, que “[a]o contrário do que apontou o relatório de inspecção, para este efeito, não era exigível a comunicação prévia do abate aos serviços competentes, uma vez que a lei não impõe essa condição para a dedutibilidade do correspondente custo, podendo essa comunicação ser feita, conforme recomendação da AT, para facilitar a prova pelo sujeito passivo.”

Enfatizando, in fine, que “[é] também inusitada a referência feita pela Fazenda Pública, na sua contestação, à necessidade de comprovação dos referidos custos através das guias de transporte de resíduos. Com efeito, estando comprovado que a recolha e tratamento de resíduos era feita pela sociedade “I…..”, ao contrário do que defendeu em juízo a Fazenda Pública, a Impugnante não tinha que ter quaisquer guias de transporte dessas mercadorias, uma vez que tais guias devem acompanhar o transporte e eram emitidas pela referida sociedade. De resto, ainda que tivesse tais guias de transporte de resíduos, possivelmente as mesmas não teriam qualquer utilidade para efeitos de prova do abate dos produtos referidos nas listagens anexas aos autos de inutilização, porquanto apenas mencionariam o resultado do processo de destruição, uma amálgama de líquidos, sem qualquer utilidade prática (cfr. alínea G. dos factos provados).”

E, de facto, nenhuma censura pode ser atribuída ao juízo efetuado pelo Tribunal a quo, tendo interpretado adequada e acertadamente o regime jurídico aplicável com a devida transposição à realidade fática dos autos.

Senão vejamos.

In casu, atentando na fundamentação do Relatório de Inspeção Tributária resulta claro que o justificativo das correções assenta no artigo 23.º do CIRC, e bem assim no artigo 42.º, nº1, alínea h), do CIRC, razão pela qual importa, desde já, analisar o seu teor.

Dispunha o artigo 23.º do CIRC, com a redação à data aplicável, sob a epígrafe de “custos ou perdas” que: “Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora”.

Do seu teor literal, retira-se, desde logo, que a lei não recorta o conceito objetivo de custo ou perda apenas desenha o conceito numa vertente finalística, traduzida tão-somente numa certa relação de causalidade com as componentes positivas do resultado.

De todo o modo, o citado artigo 23.º do CIRC permite aferir da existência de diversos requisitos. Como predicado essencial, tem que existir um gasto económico como contraprestação da aquisição de um fator de produção, em segundo lugar, mostra-se necessário que a componente negativa da base contabilística no âmbito da atividade da empresa não esteja precludida por uma qualquer previsão legal expressa, numa terceira esteira, surgem as exigências formais que determinam a imprescindibilidade de uma idónea comprovação das componentes negativas do rendimento e por último, tem de existir um nexo de indispensabilidade entre os encargos e os proveitos ou em face da manutenção da fonte produtora.

De sublinhar que, a dedutibilidade dos custos fiscais para efeitos de IRC pressupõe, por regra, a feitura de um documento justificativo (suporte externo, com a menção das características fundamentais da operação), competindo à Administração Fiscal a prova da sua inexatidão (total ou parcial) da relação subjacente.

No concernente à indispensabilidade importa sublinhar que o aludido conceito não é sinónimo de razoabilidade.

Com efeito, “A noção legal de indispensabilidade recorta-se, portanto, sobre uma perspectiva económico-empresarial, por preenchimento, directo ou indirecto, da motivação última de contribuição para a obtenção do lucro (...) o Fisco filtra as decisões da empresa em face do escopo da organização, quer sobre o crivo imediatístico (subsunção dos actos ao ramo ou ramos de actividade estatutariamente definida) quer, sobretudo, em função do fim mediato (obtenção de lucros através dessa actividade, com vista à sua posterior repartição entre os sócios). (...) «Reprime os actos desconformes com o escopo da sociedade, não inseríveis no interesse social, sobretudo porque não visam o lucro, mediante a preclusão da dedutibilidade fiscal dos inerentes custos”.[5]

O requisito da indispensabilidade tem sido jurisprudencialmente entendido como um conceito indeterminado de necessário preenchimento casuístico, em resultado de uma análise de perspetiva económica-empresarial, na perceção de uma relação de causalidade económica entre a assunção de um custo e a sua realização no interesse da empresa, atento o objeto societário do ente comercial em causa.

E nessa medida, tem sido entendido pela Jurisprudência que estão vedadas à Administração Tributária atuações que coloquem em causa o princípio da liberdade de gestão e de autonomia da vontade do sujeito passivo. [6]

Dir-se-á, portanto, que o controlo a efetuar pela Administração Tributária sobre a verificação do aludido requisito da indispensabilidade tem de ser materializado pela negativa, logo só deve desconsiderar-se como custos fiscais os que claramente não tenham potencialidade para gerar incremento dos ganhos, não podendo “o agente administrativo competente para determinar a matéria colectável arvorar-se a gestor e qualificar a indispensabilidade ao nível da boa e da má gestão, segundo o seu sentimento ou sentido pessoal; basta que se trate de operação realizada como acto de gestão, sem se entrar na apreciação dos seus efeitos, positivos ou negativos, do gasto ou encargo assumido para os resultados da realização de proveitos ou para a manutenção da fonte produtora”[7].

Por seu turno, estabelecia, à data, o artigo 42.º, nº1, alínea g), que não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável “Os encargos não devidamente documentados”.

Sendo que, a densidade de suporte documental em termos de IRC é distinta da exigível em sede de IVA, porquanto o facto de uma dada transação não se encontrar suportada num documento externo ou o facto de o mesmo ser incompleto, não preclude liminarmente a dedutibilidade do custo, pois que se admite a prova das características da transação através de qualquer meio. Note-se que “[n]o respectivo código não está concretizada a noção de «documento justificativo», expressamente adoptada no art. 98.°, n.° 3, alínea a), disposição que estipula regras a observar na execução da contabilidade, bastando «uma qualquer forma externa de representação da operação (que não uma factura, por não incluir as imperativas e específicas solenidades documentais, como a numeração ou o timbre da empresa) [...] desde que explicite, de forma clara, as principais características da operação (os sujeitos, o preço, a data e o objecto da transacção)»TOMÁS DE CASTRO TAVARES, ob. e loc. cit., pág. 123.)[8].”

Ora, aqui chegados atentando na fundamentação jurídica da decisão recorrida não se afigura que a mesma tenha incorrido em erro de julgamento de direito quanto à subsunção normativa no normativo 23.º do CIRC, uma vez que os custos, ora, sindicados se encontram suportados, revestindo, outrossim, caráter indispensável para a obtenção dos proveitos e/ou manutenção da fonte produtora.

Vejamos, então, porque o assim entendemos.

Comecemos por convocar a fundamentação do Relatório de Inspeção Tributária, por forma a aferirmos quais as razões que motivaram as correções, visto que só a fundamentação nele constante poderá relevar neste e para este efeito.

A Administração Tributária relativamente às correções, ora, sindicadas aduz de forma expressa que da análise dos elementos remetidos pela Recorrida, tendentes a comprovar o saldo da conta 6935-Mercadorias inutilizadas, constata-se que “os referidos custos apenas se encontram documentados por dois documentos internos designados por “auto de inutilização” e relação anexa, os quais foram assinados pelo representante da empresa e por dois funcionários. Não foi efectuada qualquer comunicação prévia aos serviços da Administração Fiscal. (…) (destaque e sublinhado nosso).

Concretiza, para o efeito que “os documentos internos utilizados pelo sujeito passivo não provam nem documentam devidamente o abate dos produtos, dado que para além de não ter havido qualquer comunicação às autoridades fiscais, para assistirem ao acto se assim o entendessem, o designado “auto de inutilização” ter unicamente como testemunhas dois funcionários da empresa, o que atendendo ao seu vínculo laboral, não deverá ser prova suficiente para a comprovação do referido custo.” (destaque e sublinhado nosso).

Mais refuta o documento emitido pela empresa I….., porquanto “a declaração apresentada pelo contribuinte é datada de 29-10-2008, não fazendo referência aos produtos que foram destruídos, limitando-se a declarar que “...procedeu à recolha dos resíduos sólidos equiparados a urbanos, em viatura com sistema de compactação, nas instalações da C…..”, levantando-se a questão de por um lado, como é que a I….. pode saber quais os produtos que destruiu em 2004 e por outro, como é que a Administração Fiscal pode confirmar o suporte do referido custo se esta entidade não evidência os produtos que destruiu – anexo III.”

Concluindo, “Face ao exposto, verifica-se que os referidos custos não cumprem o estabelecido no artigo 23º e 42.º do CIRC.”

Porém, conforme decidido pelo Tribunal a quo os aludidos argumentos não permitem, per se, e face ao acervo fático dos autos desconsiderar as perdas em existências que se encontram alicerçadas em autos de inutilização-dos quais fazem parte integrante uma relação anexa com identificação específica e perfeitamente individualizada dos bens- corroborada pela prova testemunhal.

Com efeito, resulta do acervo fático dos autos:

A Recorrida dedicava-se à importação, comércio de produtos de higiene e tratamento da boca e dentes, medicamentos, produtos farmacêuticos e para-farmacêuticos, e que no âmbito dessa atividade, e, concretamente, no ano de 2004, procedeu à inutilização de bens, com um controlo efetivo dos mesmos.

Consta, assim, do probatório que, no ano de 2004, em caso de quebra ou perda, por expiração do prazo de validade ou obsolescência do produto, nomeadamente pela renovação da respetiva linha, as farmácias ou para-farmácias elaboravam uma nota de devolução, com indicação dos produtos devolvidos e motivo da devolução.

Dimanando provado que os produtos devolvidos eram embalados em sacos, contendo uma cópia da nota de devolução, e transportados para a central de expedição da Recorrida (à data, centro logístico) e sita em S. João da Talha.

Sendo que, quando os produtos chegavam ao centro logístico, o respetivo responsável conferia o teor dos sacos e as respetivas notas de devolução, os quais eram colocados numa zona específica do armazém, afastados dos restantes produtos, e fechados dentro de caixas ou paletes com a indicação “já conferido”.

Ulteriormente, esses produtos eram recolhidos pela empresa “I….., Lda.”, que, na presença do responsável pelo armazém da Impugnante, os destruía e transportava para um aterro sanitário, os quais não tinham qualquer possibilidade de aproveitamento.

E nessa conformidade, e em resultado dessas inutilizações, a Recorrida em 30 de junho de 2004 e 30 de dezembro de 2004, elaborou “autos de inutilização” assinados pelo seu representante e por dois funcionários, responsáveis pelo departamento contabilístico e logístico, contemplando/integrando como anexo uma “lista discriminativa dos produtos inutilizados”, com a indicação das quantidades, valor unitário e valor total.

Resultando, in fine, do probatório que a sociedade “I….., Lda.” emitiu uma declaração na qual consta que no ano de 2004, procedeu à recolha dos resíduos sólidos equiparados a urbanos, em viatura equipada com sistema de compactação, nas instalações da Recorrida, com posterior encaminhamento para destino final licenciado.

Ora, face à realidade fática supra expendida, ajuíza-se, no sentido decidido pelo Tribunal a quo, que tais elementos são suficientes para assumir a dedutibilidade fiscal dos custos e inerente subsunção normativa no artigo 23.º do CIRC.

Note-se que, se a existência de mercadorias é indubitavelmente um valor positivo, a sua perda, atenta a ultrapassagem do prazo de validade e mesmo obsolescência dos produtos, não pode deixar de ser considerado como custo ou perda. Até porque, no ramo da dermocosmética, é facto notório que os produtos se encontram sujeitos a prazos de validade, dizendo-nos as regras da experiência que a ultrapassagem dos mesmos determina a sua insusceptibilidade de venda, donde a sua destruição, com a inerente assunção como custo fiscal.

Com efeito, a natureza dos bens e a sua origem têm de ser tidas em conta no processo de verificação do abate, sob pena de ao sujeito passivo ser imposto um excessivo ónus probatório.

Ademais, não só a lei, à data, nada obrigava no sentido da implementação e elaboração de autos de destruição, como é a própria Administração Tributária que assume que existindo um sistema organizativo de quebras de existências que englobe não só as quebras identificadas bem como as quebras não identificadas, com a inerente elaboração de documento interno com os elementos identificativos do produto, concretamente “(descrição, código, quantidade, motivo da quebra e destino do produto), assinado pelo responsável da secção e pelo gerente da loja. Este documento interno deve servir de suporte à regularização do sistema de gestão de stocks, devendo ser emitida por este sistema uma listagem de regularização de stocks que suportará os lançamentos contabilísticos de quebras de existências.[9]”, há lugar à assunção e dedutibilidade fiscal do custo suportado.

Sancionando, expressamente, no âmbito do enquadramento tributário das quebras que a existência de “um sistema organizativo com os elementos indicados deverá dispensar a elaboração de autos de destruição e de abate[10]”.

Pelo que, se inexiste fundamento legal para a elaboração de autos de destruição e abate, menos ainda existe para a exigência apontada pela Entidade Fiscalizadora de comunicação prévia à Administração Tributária.

Não logrando, de todo, provimento a alegação concatenada com a falta de credibilidade das testemunhas que atestaram e certificaram a destruição, em virtude de terem vínculo laboral com a Recorrida. De resto, a exigência de comprovação, por exemplo, por uma entidade externa da destruição dos bens e verificação das respetivas quantidades, representaria um ónus probatório especialmente excessivo, principalmente quando a lei não o impõe.

Neste particular, vide outrossim, o doutrinado no parecer nº 63/92 do Centro de Estudos Fiscais, elaborado no âmbito do IRC e citado na Ficha Doutrinária da Direção Geral dos Impostos reportada a quebras anormais de existências, com especial enfoque nos pequenos furtos de existências, mas transponível para o caso vertente, o processo A509209009, de 29.06.2009, no qual, expressamente, se doutrina que:

“1.24 - Relativamente aos pequenos furtos de existências verificados em superfícies de venda a retalho, considera o mesmo parecer poder aceitar-se a correspondente perda para efeitos fiscais, devendo o sujeito passivo demonstrar que as perdas se situam dentro dos limites razoáveis para o sector de actividade e em condições de exercício do mesmo e indicar quais os sistemas de controlo e contabilístico, designadamente de natureza informática, instituídos em conexão com a verificação desses eventos;

1.25 - Assim, a indispensabilidade de tais custos não resulta da sua ligação a um proveito, mas sim da sua ocorrência em consequência directa do exercício de uma actividade.

A indispensabilidade, numa interpretação ampla, que é a correcta, do artigo 23° do CIRC, resulta da sua inevitabilidade económica, pois que para obter os proveitos sujeitos a imposto as empresas da grande distribuição têm de suportar perdas, que só em inventário se revelam, em virtude de as causas que as determinam não serem comprováveis aquando da sua ocorrência”. (destaques e sublinhados nossos).

Destarte, não tendo, in casu, sido colocada em causa a falta de razoabilidade das perdas, ou seja, que as mesmas extravasam os limites razoáveis para o sector de atividade e em condições de exercício do mesmo, -não resultando, tão-pouco, dos elementos dos autos qualquer elemento que permita inferir nesse sentido- e tendo sido indicados os respetivos sistemas de controlo e contabilístico, instituídos em conexão e total conformidade com a verificação desses eventos, o juízo perfilhado pelo Tribunal a quo não merece qualquer censura.

Ademais, é preciso ter presente que a possibilidade de rejeição liminar do custo por parte da Administração Tributária é naturalmente maior quando o documento, de todo, não existe. Noutra formulação, dir-se-á, que se a documentação existe, mas é formalmente insuficiente, não se põe de parte a dedutibilidade fiscal do custo respetivo se os documentos existentes permitem ainda assim o controle ou verificação, ademais quando são complementados com prova testemunhal.

Mais importa relevar, in fine, que a Administração Tributária nunca colocou em causa que a devolução de produtos pelas farmácias seja uma situação recorrente adveniente da natureza da própria atividade da Recorrida, nunca tendo colocado em causa a emissão das notas de devolução e as notas de crédito, nem, tão-pouco, realizou qualquer extrapolação das mesmas por confronto com os autos de destruição, por forma a sindicar a falta de materialidade das perdas.

Note-se que, o ónus probatório dos factos índice reside, em primeira linha, na esfera jurídica da Administração Tributária. Porquanto, não existindo obrigação legal de proceder a qualquer prévia diligência ou participação nos moldes enunciados pela Administração Tributária impunha-se, por força do princípio do inquisitório consagrado no artigo 58.º da LGT, que promovesse qualquer diligência necessária à descoberta verdade, o que, como visto, não logrou fazê-lo.

Pelo que, sendo as quebras de mercadorias inerentes à atividade desenvolvida por empresas do setor e estando as mesmas, in casu, suportadas pelos documentos identificados no probatório, e devidamente corroborada pela prova testemunhal, está, comprovadamente, demonstrada a efetividade do custo e a sua indispensabilidade para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, subsumindo-se, assim, no nº 1 do artigo 23º do CIRC[11].

In fine, importa sublinhar que esta é a interpretação que entendemos que melhor se harmoniza com o princípio da tributação pelo lucro real plasmado no artigo 104, nº2, da CRP. Até porque, segundo jurisprudência firmada no Acórdão do Pleno do STA[12]:“Deve evitar-se a existência de imposto sem rendimento efectivo”.

Conclui-se, assim, que “destinando-se os bens que integram o activo imobilizado à realização de operações de afluxo de valores positivos ao rédito da empresa, a perda material desses bens, seja a que título for, designadamente por furto ou roubo, não pode deixar de relevar, pelo seu valor líquido (art.º23.º, alínea g), do CIRC), como realidade «indispensável para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora[13]”.

E por assim ser, tal é quanto baste para se assumir o custo em questão como dedutível para efeitos fiscais nos termos do artigo 23.º do CIRC, estando o mesmo devidamente suportado e mostrando-se indispensável para a manutenção da fonte produtora, devendo, nessa medida, a correção ser anulada por padecer de erro sobre os pressupostos de direito, conforme decidido pelo Tribunal a quo.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO e manter a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe. Notifique.


Lisboa, 25 de junho de 2020

 (Patrícia Manuel Pires)

(Cristina Flora)

(Tânia Meireles da cunha)


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[1] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, pp 165 e 166; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, C.P.Civil anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.61 e 62; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.181; Vide, designadamente, Acórdão do TCA Sul, proferido no processo nº 6505/13, de 2 de julho de 2013.
[2] Ac. STJ de 01.10.2015, P. 824/11.3TTLRS.L1.S1; Ac. STJ de 14.01.2016, P. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1; Ac. STJ de 11.02.2016, P. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, P. nº 299/05; Ac. STJ de 22.09.2015, P. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção; Ac. STJ, datado de 29/09/2015, P. nº 233/09; Acórdão de 31.5.2016, 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, 449/410; Acórdão do STJ de 27.1.2015,  1060/07.
[3] Vide, designadamente, Acórdão do STJ datado de 19/02/2015, proferido no processo nº 299/05.06TBMGD.P2.S1.
[4] Conforme doutrina o Ac. STJ. de 03/03/2016, no processo nº 861/13.3TTVIS.C1.S.
[5] TOMÁS TAVARES, Da Relação de Dependência Parcial entre a Contabilidade e o Direito Fiscal na Determinação do Rendimento Tributável das Pessoas Colectivas: Algumas Reflexões ao Nível dos Custos, C.T.F. n.º 396, página 135.
[6] Neste sentido, por todos o Acórdão do STA de 29 de março de 2006, recurso n.º 1236/05.
[7] Vítor Faveiro, Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, volume II, página 601.
[8] In Acórdão do TCA Norte, proferido no processo nº 00253/04, de 14.06.2006.
[9] Cfr. Ofício 12937, de 23.06.2009, da Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, elaborado na sequência de requerimento da APED-Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição.
[10] Vide citado Ofício 12937, de 23.06.2009, Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas.
[11] Neste sentido, vide Acórdãos deste Tribunal, proferidos nos processos nº 09659/16, de 11.04.2019 e 101/06, de 07.05.2020.
[12] De 22 de julho de 1981, RLJ nº115, pág.77
[13] Vide Acórdão do TCA Norte, proferido no processo nº 00005/04, de 12.03.2015.