Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12543/15
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:12/16/2015
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:NACIONALIDADE, FACTOS PESSOAIS DA VIDA PRIVADA, NON LIQUET, AQUISIÇÃO PROCESSUAL
Sumário:

I – Nesta ação em que se pretende obter uma declaração jurisdicional de inexistência de ligação à comunidade nacional portuguesa, a matéria de facto provada é apenas a seguinte: o réu, interessado em ser português, é cidadão natural do Brasil, onde vive e onde está casado com uma portuguesa antes brasileira.
II- A matéria de facto aqui provada permite concluir com segurança que o ora réu, aqui interessado em obter a nacionalidade portuguesa, não tem qualquer integração, nem sequer aparente, na comunidade nacional portuguesa, assim não se preenchendo a exigente previsão ou o exigente requisito que se retira da al. a) do art. 9º da Lei da Nacionalidade (uma ligação à comunidade nacional portuguesa, que seja efetiva). Não há, pois, um non liquet.
III – Tal previsão normativa contém um requisito jurídico e não um requisito fático.
IV - A ligação (efetiva, note-se bem) à comunidade nacional, exigida pela LN, há de ser aferida por factos pessoais do interessado, pelo domicílio, pela língua, por aspetos de ordem privada, familiar, cultural, social, de amizade e económico-profissional, que consubstanciem a ideia de pertença à comunidade portuguesa, o que implica uma integração (efetiva, diz a lei) na sociedade portuguesa.
V - Naquele caso concreto referido em I e II, irreleva que, porventura, se desconsidere que, em obediência ao art. 10º do CPC, a presente ação é de simples apreciação negativa; nesse caso, também irreleva afirmar-se, ou não, que o chamado “ónus” da prova cabe ao autor ou ao réu, porque não se chegam a ativar aqui as regras do “ónus” da prova.
VI – É que a questão do chamado “ónus da prova” só se coloca em situação de non liquet, aqui inexistente, dado que os factos aqui apurados não nos deixam dúvidas sobre a falta de fundamento do direito ou interesse invocado (ou “alardeado”, como diz Antunes Varela) pelo réu no procedimento administrativo e neste processo jurisdicional.
VII – No caso deste tipo de processo especial em concreto, em que a lei nem define com rigor qual o pedido a formular pelo MP, a verdade inegável é que o Direito impõe ao MP que invoque apenas, com ou sem factos concretos, que o interessado réu não preenche os requisitos jurídicos exigidos na lei substantiva, cabendo ao interessado alegar e provar os factos pessoais onde assenta o direito material que alardeia fora do processo judicial.
VIII - As intenções e as explicações dadas pelo legislador formal não relevam elas próprias do domínio do Direito instituído, carecendo por isso, em si mesmas, de eficácia prescritiva para o intérprete-aplicador do Direito.)

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou em 2012 no T.A.C. de Lisboa

ação, com processo especial, de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa contra

· ARTHUR ………………………………., de nacionalidade brasileira, melhor identificado a fls. 3 dos autos.

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Por sentença de 7-5-2014, o referido tribunal decidiu julgar a ação improcedente.

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Inconformado, o a. recorre para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

*

O recorrido réu contra-alegou, concluindo:

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O Ministério Público foi notificado para se pronunciar como previsto na lei de processo.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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Este tribunal tem presente o seguinte:

(1º) o primado do Estado democrático e social de Direito material, num contexto de uma vida socioeconómica submetida ao bem comum e à suprema dignidade de cada ser humano (conforme a nossa Lei Fundamental); (2º) os valores ético-jurídicos do ponto de vista da nossa Lei Fundamental; (3º) os princípios constitucionais estruturantes do Estado de Direito (ex.: a juridicidade, a segurança jurídica para todas as pessoas e a igualdade jurídica de todos os seres humanos); (4º) os comandos definitivos ou normas jurídicas que exijam algo de modo definitivo, dispositivo ou quase-conclusivo (i.e., as normas-regra), sob a égide dos importantíssimos artigos 9º a 11º do nosso Código Civil (cf. K. LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, trad., 3ª ed., FCG, Lisboa, 1997; M. TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 301-411); (5º) os eventuais comandos de otimização que exijam do aplicador a otimização das possibilidades de facto e de direito existentes no caso concreto, através do sopesamento/ponderação racional e justificado das normas colidentes que tenham significados não específicos ou valorativos, sopesamento pelo qual se escolhe a norma a concretizar depois no caso concreto (i.e., normas-princípio, normas não conclusivas, com textura aberta ou com significado não específico e valorativo) (cf. R. GUASTINI, Il giudice e la legge. Lezioni di diritto costituzionale, Giappichelli, Torino, 1995; Lezioni di teoria costituzionale, Giappichelli, Torino, 2001; Lezioni di teoria del diritto e dello stato, Giappichelli, Torino, 2006; “Sobre el concepto de constitución”, in Miguel Carbonell (ed.), Teoría del neoconstitucionalismo. Ensayos escogidos, Trotta-UNAM, Madrid, 2007, pp. 15-27; “A propósito del neoconstitucionalismo”, trad., in Gaceta Constitucional, Tomo 67, Julio-2013, Lima, pp. 231-240; diferentemente R. ALEXY, “Direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade”, in O Direito, Ano 146º, 2014, IV, Lisboa, pp. 817-834); e (6º) a máxima da unidade e coerência do sistema jurídico, bem como, quando estritamente necessário, as máximas metódicas da igualdade e da proporcionalidade (cf. arts. 2º, 13º e 18º da CRP).

*

Os recursos, seja para o TCA, seja para o STA, devem ser dirigidos contra a decisão do tribunal a quo e seus fundamentos. Têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido (TAC, TCA ou STA (1)), ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS

Com interesse para a decisão a proferir, está provado o seguinte quadro factual:

1. O requerido Arthur …………………………, de nacionalidade brasileira, nasceu a 05.08.1976, em Itaíba, Pernambuco, República Federativa do Brasil, e é filho de pais de nacionalidade brasileira (cfr. docº. de fls. 15 e 16 dos autos, e admissão por acordo).

2. O requerido contraiu casamento, em 15.09.2006, no Recife, Brasil, com a cidadã portuguesa, natural do Brasil, Gisela ………………………., conforme assento de casamento nº. 130/2007 (cfr. docº. de fls. 56 e 57 dos autos, e admissão por acordo).

3. Deu entrada e foi recebido em 04.02.2011, na Conservatória do Registo Civil de Celorico da Beira, requerimento no qual foi exarada declaração para aquisição da nacionalidade portuguesa, prestada pelo requerido, ao abrigo do artº. 3º/Lei 37/81, com fundamento no celebrado casamento, e alegou, ainda: que tem ligação efetiva à comunidade portuguesa; que não praticou crime punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa; e que com base em tal declaração foi instaurado na Conservatória dos Registos Centrais, o processo nº. 6693/11, onde se constatou a existência de facto impeditivo da pretendida aquisição da nacionalidade, razão pela qual o registo não chegou a ser lavrado (cfr. DOCs. de fls. 10 a 67 dos autos, e admissão por acordo).

4. O requerido é pai de Celina ……………………………………….., nascida a 18.08.2011 (cfr. docº. de fls. 141 dos autos, e admissão por acordo).

5. O requerido, com o seu agregado familiar, tem a sua residência fixada na Av. ……………………………., nº…………, Apto………., Boa Viagem, Recife, Pernambuco, Brasil (admissão por acordo).

6. O requerido vem, com frequência, a Portugal (cfr. DOCs. de fls., e prova testemunhal por depoimento prestado pelo requerido).

*

Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há melhores condições para se compreender o recurso e apreciarmos o seu mérito de modo sindicável, com base em argumentos jurídicos explícitos e racionais, que respeitem (i) a Constituição e o Direito, (ii) a complexidade do fenómeno jurídico e (iii) a verdade dos factos julgados como provados no processo (cf. M. TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, 2012, pp. 447-455, e “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia”, in Cad. De Direito Privado, nº 44, 2013, pp. 29 ss; A. VARELA et al., Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, pp. 406-410, 445-495 e 651 ss; J. LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum, 3ª ed., 2013, pp. 41 ss, 193 ss, 201 ss e 315 ss).

DO ERRO DE JULGAMENTO DE DIREITO QUANTO à ALINEA A) DO ART. 9º DA L.N.

1.

1.1.

Comecemos pelo princípio.

Em 1º lugar: em obediência ao art. 10º/3/a) do CPC, temos de afirmar que a presente ação é de simples apreciação (negativa), pois que o autor visa, com o seu pedido, a declaração judicial de inexistência do direito subjetivo (em sentido lato) invocado pelo réu (cidadão estrangeiro, residente no estrangeiro) junto da Administração Pública.

Cfr. assim:

-A. VARELA et al., Manual…, 2ª ed., pp. 20 ss;

-ALBERTO DOS REIS, Comentário…, 1º, p. 328;

-ANSELMO DE CASTRO, DPCD, 1981, 1º, pp. 113 ss;

-CASTRO MENDES, DPC, 1980, I, p. 278;

-Ac. do STJ de 24-10-2006, P. nº 06ª1980.

1.2.

Em 2º lugar: o ónus (verdadeiro) de alegação dos factos essenciais. Este cabe às partes conforme o previsto nas normas imperativas constantes dos arts. 5º/1, 584º/2, 552º/1/d) e 572º/b) do CPC.

Ali sublinhamos o previsto no muito esclarecedor art. 584º/2 do CPC (Nas ações de simples apreciação negativa, a réplica serve para o autor impugnar os factos constitutivos que o réu tenha alegado e para alegar os factos impeditivos ou extintivos do direito invocado pelo réu).

1.3.

Finalmente, em 3º lugar, o chamado “ónus” da prova dos factos constitutivos do direito em causa neste processo.

O “ónus” da prova não é o ónus de alegar os factos essenciais para a ação. Trata-se, em bom rigor, não de um ónus, mas sim da situação da parte contra quem o tribunal dará como não provado certo facto, sempre que, em face dos elementos carreados para os autos pelos sujeitos processuais (p. da aquisição processual), o juiz se não convença da realidade do facto. É, consabidamente, apenas uma regra legal de repartição do risco de determinado facto essencial não ficar provado. Vale, portanto, apenas para os casos de non liquet (do latim non liquere: "não está claro"; é uma expressão oriunda do Direito Romano, que se aplicava nos casos em que o juiz não encontrava nítida resposta jurídica para fazer o julgamento e, por isso, deixava de julgar), a que se refere o art. 8º/1 do CC.

Com efeito, as provas produzidas em juízo ou facultadas no processo podem não ser conclusivas, ou ser insuficientes, deixando o Tribunal numa situação de dúvida insanável. No entanto, a ordem jurídica portuguesa não permite que o Tribunal deixe de conhecer a questão de mérito com tal justificação (art. 8º/1 CC).

Daí o chamado “ónus da prova”. Regem, depois, os consabidos arts. 342º ss do CC. A regra básica é a de quem invoca um direito tem o dever de provar os factos constitutivos desse direito. E factos constitutivos de um direito são os factos que, segundo a lei substantiva, se mostram capazes de fundar o direito de que alguém se arroga.

Cfr., assim:

-A. VARELA et al., Manual…, 2ª ed., pp. 445-451;

-P. LIMA/A. VARELA, CC Anotado, I, nota 5 ao art. 342º e notas ao art. 343º;

-Consº FERNANDO P. RODRIGUES, A Prova em Direito Civil, 2011, pp. 23 ss; e ainda

-J.P. REMÉDIO MARQUES, A Ação Declarativa…, 3ª ed., 2010, pp. 590 ss.

Nas palavras de ANSELMO DE CASTRO, «Ao “non liquet” no domínio dos factos, corresponde ou deverá sempre corresponder um “liquet” jurídico». (2)

2.

Ora, ante a concreta e parca factualidade provada no presente processo, é claro que não se pode concluir, em termos do chamado silogismo judiciário, pelo preenchimento do requisito legal (jurídico e não fáctico) de que o estrangeiro interessado (cidadão estrangeiro, residente no estrangeiro) tem uma ligação (efetiva!) a Portugal e à sua cultura, requisito esse exigido aos cidadãos estrangeiros pelo art. 9º/a) da LN (Lei nº 37/81, cuja última alteração é a da Lei Org. nº 2/2006) e pelos arts. 32º, 35º, 56º/2 e 57º/1/7 do Regulamento da Nacionalidade (DL nº 237-A/2006, alt. pelo DL 43/2013).

Por isso é irrelevante a questão de saber a quem cabia o “ónus” da prova dos factos constitutivos do direito/interesse aqui invocado pelo réu no procedimento administrativo subjudice.

- Cfr., assim, A. VARELA et al., op. et loc. cits. e pp. 460-461.

Quer dizer: neste processo, mesmo que fosse juridicamente correto afirmar (i) que a presente ação não é de simples apreciação negativa (apesar do art. 10º CPC) e ou (ii) que o chamado “ónus da prova” cabe ao autor (apesar dos arts. 343º e 9º do CC(3)), sempre seria de concluir (juridicamente) que a factualidade aqui apurada não preenche o cit. requisito (jurídico) essencial deduzido a partir do art. 9º/a) da LN.

Note‐se que “ter ou não ter a referida ligação efetiva” não é matéria de facto, é uma conclusão jurídica a retirar de factos concretos.

Enfim, sob a égide dos cits. arts. 9º do CC e 9º/a) da LN («inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional»), tal requisito não fáctico, a deduzir de factos concretos provados, é essencial para se conseguir concretizar o interesse pessoal em obter a nacionalidade portuguesa por via de um casamento com um cidadão português (por nascimento ou naturalização) e por mera vontade individual.

A ligação (efetiva, diz a lei) à comunidade nacional há de, logicamente, ser aferida por factos pessoais do interessado, pelo domicílio, pela língua, por aspetos de ordem privada, familiar, cultural, social, de amizade e económico-profissional, que consubstanciem a ideia de pertença à comunidade portuguesa, o que inclui uma integração (efetiva, diz a lei) na sociedade portuguesa.

Com efeito, se a LN expressamente nos diz que a inexistência de ligação (efetiva!) à comunidade nacional é fundamento jurídico (não fáctico) da oposição do MP à aquisição, por mero efeito da vontade, da nacionalidade portuguesa, isso significa necessariamente que o processo jurisdicional perscrutará factos concretos a integrar em tal previsão jurídico-normativa. Esta é, pois, um requisito da satisfação administrativa e jurisdicional do direito «alardeado»(4) pelo cidadão estrangeiro.(5)

3.

No caso presente, em que, repetimos, não ocorre qualquer non liquet, i.e., em que não ocorre nenhuma questão relacionada com o chamado ónus da prova, o réu (cidadão estrangeiro, aqui residente no estrangeiro) não viu, a final, ser apurada factualidade concreta que, traduzida para o Direito segundo o art. 9º do CC e as cits. normas da LN, sustente, com o mínimo de credibilidade ou probabilidade, o direito subjetivo que ele alardeia fora do processo e no processo.

Em síntese, a factualidade concreta apurada e já transcrita supra não satisfaz minimamente o requisito jurídico para o ora réu poder adquirir a nacionalidade portuguesa por simples efeito da sua vontade: “ter uma ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa”. Por outras palavras mais rigorosas: os atrás transcritos e parcos factos aqui apurados não nos deixam dúvidas e não permitem tirar a conclusão jurídica exigida pelo art. 9º/a) da LN de que o interessado ora réu (cidadão estrangeiro, residente no estrangeiro, casado com uma brasileira entretanto tornada cidadã portuguesa, e que vem a Portugal várias vezes) tem uma ligação (efetiva!) à comunidade nacional portuguesa; sem o preenchimento deste requisito jurídico, o estrangeiro não pode adquirir a nacionalidade portuguesa.

4.

Ad latere:

O art. 343.º, n.º 1, do CC estabelece que, nas ações de apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga. Supõe-se que se pode dizer que, na jurisprudência, é maioritária a orientação segundo a qual este preceito implica uma inversão do ónus da prova: nas ações de simples apreciação negativa, não cabe ao autor alegar e provar, pela negativa, que o direito ou facto não existe, mas compete ao réu, que vinha arrogando extrajudicialmente a existência desse direito ou facto, alegar e provar pela positiva tal existência. Por isso também o STJ considera que a atribuição ao réu, nos temos do art. 343.º, n.º 1, do CC, do ónus da prova dos factos constitutivos torna inútil a dedução de um pedido reconvencional por esse demandado, dado que o que essa parte vai obter através da prova daqueles factos é o mesmo que poderia conseguir através da procedência desse pedido reconvencional.

Neste tipo de ações a causa de pedir é constituída pela alegação da inexistência do direito ou do facto concreto e ainda pelos factos indiciadores do estado de incerteza ou de insegurança que justificam a demanda judicial (cfr. A. ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2ª edição, pág. 204). A alegação dos factos constitutivos da situação negada pelo autor incumbe ao réu (343º, n.º 1, do CC), que fica onerado com a demonstração desses factos. Este critério especial do onus probandi assenta na ideia de que é mais fácil ao réu provar a existência de um direito ou de um facto contestado pelo autor, visto que impor a este a prova da inexistência do direito ou do facto em questão seria forçá-lo a uma prova impossível ou muito difícil (VAZ SERRA, “Provas”, BMJ, n.º 110, pág. 164).

Por vezes não será situação simples, mas a prática jurisdicional mostra que aquele entendimento é o mais abrangente. Isto sem prejuízo dos cuidados (que não discordância, obviamente) de CHIOVENDA no longínquo ano de 1937 (N. Digesto It., II, 1937, pp. 131 ss): «Também no que respeita ao ónus da prova, a ação de simples apreciação não difere [...] de qualquer outra ação; o autor é aquele que pede a atuação da lei; e o ónus da prova pertence-lhe, de acordo com as regras gerais. Isto é mais claro na ação de apreciação positiva. Mas é igualmente verdade na negativa: nesta última, ele deverá provar a inexistência de uma vontade da lei, sem que se possa distinguir, como alguém faz, entre o caso em que se negue que um direito jamais tenha nascido, no qual a prova dos factos constitutivos incumbirá ao réu, e o caso no qual se negue que exista atualmente, no qual o autor da declaração deverá provar os factos extintivos. Neste ponto deve acentuar-se a diferença fundamental entre a ação de apreciação e os juízos de jactância. E reincide-se em todos os inconvenientes da coação a agir (nemo invitus agere cogatur), quando se dá ao autor da ação de apreciação negativa o tratamento de que gozaria se fosse réu. É suficiente benefício, para o autor, poder obter do processo, por sua própria iniciativa, a certeza jurídica, sem que seja preciso agravar a posição do réu, constrangendo-o a uma prova para a qual forçosamente não está preparado».

É precisamente esta parte final da douta preocupação cit. (“…sem que seja preciso agravar a posição do réu, constrangendo-o a uma prova para a qual forçosamente não está preparado”) que não se aplica aos demandados em casos normais como o presente; antes o contrário. O ora réu está, como é evidente, muito melhor preparado para a prova do seu alegado direito do que o oponente MP.

Por outro lado, há quem se impressione com o preâmbulo da atual LN. Ora, quanto aos preâmbulos das leis ou decretos-lei, a verdade do Direito é que as intenções e as explicações dadas pelo legislador formal auxiliarão seguramente o intérprete na melhor compreensão do regime legal (i.e., no apuramento do pensamento legislativo, coisa diferente do pensamento do legislador: art. 9º do CC); mas, não fazendo parte integrante dele, as intenções e as explicações dadas pelo legislador formal não relevam elas próprias do domínio do Direito instituído, carecendo por isso, em si mesmas, de eficácia prescritiva (assim, cf. o Ac. nº 377/2015 do T. Const., no ponto nº 12), ao contrário do que ocorre, por exemplo, com a máxima interpretativa da “unidade do sistema jurídico” imposta no nº 1 do art. 9º do CC, aqui tendo em conta os arts. 342º e 343º do CC, que não foram ainda revogados.

Se assim é em geral, por maioria de razão o seria e será quando a matéria em causa (aqui, ónus da alegação dos factos constitutivos e “ónus” da prova em ações de simples apreciação negativa) se traduzisse eventualmente na previsão de novas regras, opostas às regras gerais e comuns, como é o caso das regras jurídicas existentes no CC e no CPC, há várias décadas, nos domínios da alegação e da prova dos factos e nos domínios dos respetivos ónus.

No caso deste tipo de processo especial em concreto, em que a lei nem define com rigor qual o pedido a formular pelo MP, a verdade inegável é que a lei impõe ao MP que invoque apenas, com ou sem factos concretos, que o interessado réu não preenche os requisitos exigidos na lei substantiva.

5.

No mais, cfr. por todos:

-Ac. do TCA-Sul de 22-3-2012, P. nº 08174/11 (rel. TERESA DE SOUSA):

I - A ação de oposição à aquisição da nacionalidade como ação de simples apreciação negativa, destina-se à demonstração da inexistência de ligação à comunidade nacional, com as consequências que daí resultam, face ao disposto no art. 343º, nº 1 do CC, segundo o qual compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga. II - Por se estar perante uma ação que é consequência de uma pretensão, junto dos Registos Centrais, por parte do interessado, que aí manifesta a sua intenção de adquirir a nacionalidade portuguesa, também lhe cabe, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, demonstrar os factos constitutivos da sua pretensão; III - Nada se provando que revele uma ligação especial ou um sentimento de pertença à comunidade portuguesa em especial, sendo certo que a Recorrente não vive, e nunca viveu em Portugal, tal como o seu cônjuge e os seus filhos, o facto de ser casada com um cidadão português não pode, só por si, ser considerado como elemento constitutivo e determinante da sua ligação à comunidade portuguesa, devendo, tal como resulta dos arts. 22º e 56º, nº 2 do Regulamento da Nacionalidade ser comprovada a ligação efetiva à comunidade nacional.

-Ac. do TCA-Sul de 3-5-2012, P. nº 06222/10 (rel. TERESA DE SOUSA):

I – Apenas se provando que o Recorrente é casado com uma cidadã portuguesa desde 1993, sendo pai de dois filhos também portugueses, nada se provou que revele uma ligação especial ou um sentimento de pertença à comunidade portuguesa em especial, sendo certo que o Recorrido não vive, e nunca viveu em Portugal, tal como o seu cônjuge e os seus filhos: II - O facto de ser casado com uma cidadã portuguesa não pode, só por si, ser considerado como elemento constitutivo e determinante da sua ligação à comunidade portuguesa, devendo, tal como resulta dos arts. 22º e 56º, nº 2 do Regulamento da Nacionalidade ser comprovada a ligação efetiva à comunidade nacional; III – A ligação efetiva à comunidade nacional há de ser aferida pelo domicílio, pela língua, por aspetos de ordem familiar, cultural, social, de amizade e económico-profissional, que consubstanciem a ideia de pertença à comunidade portuguesa, o que inclui uma integração na sociedade portuguesa.

-Ac. do TCA-Sul de 20-11-2014, P. nº 10824/14 (rel. P. P. GOUVEIA):

I - As declarações para fins de atribuição, aquisição e perda da nacionalidade portuguesa, prestadas nos termos previstos no n.º 2 do artigo 32.º do Regulamento da Nacionalidade devem conter obrigatoriamente a declaração sobre os factos suscetíveis de fundamentarem a oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa (artigo 35º/1/b) do R.N.) II - Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adoção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efetiva à comunidade nacional (artigo 57º/1 do R.N.) III - O ónus da prova em sede do previsto no artigo 9º/a) da atual Lei da Nacionalidade e no Regulamento da Nacionalidade rege-se pelo disposto na lei geral, designadamente nos artigos 342º e 343º do C.C IV - Nas ações de simples apreciação ou declaração negativa compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga. V - Neste tipo de ações, o autor, M.P., não está a invocar nenhum direito (seu, substantivo), na terminologia do artigo 342º/1 do C.C. VI - A aplicação do artigo 343º/1 do C.C. ao caso presente é confirmada pelo facto óbvio de que a tese contrária exigiria normalmente do M.P. uma prova verdadeiramente impossível, sobretudo por causa da impossibilidade jurídica e constitucional de o MP invadir a vida privada e social do interessado(6). VII - A prova da ligação efetiva à comunidade nacional é necessariamente feita com base em factos pessoais, pelo que a prova tem de ser feita através de factos próprios do interessado no pedido de aquisição de nacionalidade, que foi quem invocou o direito à nacionalidade portuguesa. Exigir neste contexto a aplicação do artigo 342º/1 do C.C., além de ilegal, seria irracional ou ilógico.

-Ac. do TCA-Sul de 29-1-2015, P. nº 10708/13 (rel. P. M. MARQUES):

i) quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adoção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efetiva à comunidade nacional. ii) O ónus da prova para efeitos do disposto no artigo 9.º, al. a), da Lei da Nacionalidade e no Regulamento da Nacionalidade rege-se pelo disposto na lei geral, designadamente nos artigos 342.º e 343.º do C. Civil. iii) A prova da ligação efetiva à comunidade nacional é necessariamente feita com base em factos pessoais, intimamente conexionada com a vida privada do interessado, pelo que a prova tem de ser feita através de factos próprios do requerente do pedido de aquisição de nacionalidade, que foi quem invocou o direito à nacionalidade portuguesa. O que é consentâneo com as exigências de instrução do procedimento administrativo que recaem sobre o requerente do pedido de aquisição da nacionalidade. iv) Não demonstra a existência de uma ligação efetiva à comunidade portuguesa a interessada que assenta o pedido de aquisição da nacionalidade na circunstância de ser filha de pai que, no ano de 2006, adquiriu a nacionalidade portuguesa.

-Ac. do TCA-Sul de 11-6-2015, P. nº 12086/15 (rel. P. P. GOUVEIA):

I – A ação de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa é uma ação de simples apreciação negativa conforme descrita no CPC, natureza essa imposta pela disciplina conjunta contida na Lei da Nacionalidade e no Regulamento da Nacionalidade. II – Como tal, está sujeita ao imposto no artigo 343º, nº 1, do C. Civil, sob pena de se ter de concluir que o legislador ordinário foi irracional ao impor ao MP uma prova impossível ou manifestamente irrazoável. III – O nosso regime jurídico de aquisição da nacionalidade portuguesa por estrangeiros não contém qualquer presunção legal de existência da ligação efetiva à comunidade nacional; a existir, seria um paradoxo no contexto das regras previstas na Lei da Nacionalidade e no Regulamento da Nacionalidade.

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(Sumário do acórdão:

I – Nesta ação em que se pretende obter uma declaração jurisdicional de inexistência de ligação à comunidade nacional portuguesa, a matéria de facto provada é apenas a seguinte: o réu, interessado em ser português, é cidadão natural do Brasil, onde vive e onde está casado com uma portuguesa antes brasileira.

II- A matéria de facto aqui provada permite concluir com segurança que o ora réu, aqui interessado em obter a nacionalidade portuguesa, não tem qualquer integração, nem sequer aparente, na comunidade nacional portuguesa, assim não se preenchendo a exigente previsão ou o exigente requisito que se retira da al. a) do art. 9º da Lei da Nacionalidade (uma ligação à comunidade nacional portuguesa, que seja efetiva). Não há, pois, um non liquet.

III – Tal previsão normativa contém um requisito jurídico e não um requisito fático.

IV - A ligação (efetiva, note-se bem) à comunidade nacional, exigida pela LN, há de ser aferida por factos pessoais do interessado, pelo domicílio, pela língua, por aspetos de ordem privada, familiar, cultural, social, de amizade e económico-profissional, que consubstanciem a ideia de pertença à comunidade portuguesa, o que implica uma integração (efetiva, diz a lei) na sociedade portuguesa.

V - Naquele caso concreto referido em I e II, irreleva que, porventura, se desconsidere que, em obediência ao art. 10º do CPC, a presente ação é de simples apreciação negativa; nesse caso, também irreleva afirmar-se, ou não, que o chamado “ónus” da prova cabe ao autor ou ao réu, porque não se chegam a ativar aqui as regras do “ónus” da prova.

VI – É que a questão do chamado “ónus da prova” só se coloca em situação de non liquet, aqui inexistente, dado que os factos aqui apurados não nos deixam dúvidas sobre a falta de fundamento do direito ou interesse invocado (ou “alardeado”, como diz Antunes Varela) pelo réu no procedimento administrativo e neste processo jurisdicional.

VII – No caso deste tipo de processo especial em concreto, em que a lei nem define com rigor qual o pedido a formular pelo MP, a verdade inegável é que o Direito impõe ao MP que invoque apenas, com ou sem factos concretos, que o interessado réu não preenche os requisitos jurídicos exigidos na lei substantiva, cabendo ao interessado alegar e provar os factos pessoais onde assenta o direito material que alardeia fora do processo judicial.

VIII - As intenções e as explicações dadas pelo legislador formal não relevam elas próprias do domínio do Direito instituído, carecendo por isso, em si mesmas, de eficácia prescritiva para o intérprete-aplicador do Direito.)

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os Juizes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, julgando-o procedente, revogar a sentença recorrida e, em substituição, julgar a ação procedente e declarar que o réu não tem o direito que pretendeu exercer no procedimento administrativo subjudice, assim se determinando o indeferimento do requerimento administrativo e o arquivamento do procedimento administrativo.

Custas a cargo do réu em ambos os tribunais.

Lisboa, 16-12-2015

(Paulo H. Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)

(1) Quanto aos recursos para o nosso Tribunal Constitucional: no caso do recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, ele tem por objeto apenas uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria do caso concreto, não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo para defesa de direitos fundamentais. Daí que não podem as particularidades do caso concreto ou as circunstâncias que rodearam a sua aplicação ao caso, se não integrarem o conteúdo normativo sindicado, delimitando-o, serem fatores determinantes de um juízo de inconstitucionalidade que vai afetar uma norma que, apesar de fundamentar a decisão tomada no processo, tem uma eficácia que extravasa o caso, por força das suas características de generalidade e abstração.

(2) Lições de Processo Civil, vol. IV, coligidas e publicadas por J. Simões Patrício, J. Formosinho Sanches, Jorge Ponce de Leão, Coimbra, Atlântida, 1969, p. 114.

(3) Mais importante e relevante do que alguma opinião doutrinal (ou do que a intenção de um legislador concreto) é o pensamento legislativo apurado juscientificamente na unidade do nosso sistema jurídico, onde pontificam os preceitos contidos nos ainda vigentes arts. 10º do CPC e 343º do CC, normas legais de natureza imperativa clara, que não devem ser pretorianamente alteradas.

(4) Expressão esclarecedora de ANTUNES VARELA, in op. et loc. cits.

(5) Enfim, a lei e o sistema jurídico pretendem aqui a intervenção do MP, e depois do Tribunal, para que este tipo de problema nunca seja resolvido apenas por via do procedimento administrativo, do ato administrativo. O Direito nacional quer uma intervenção jurisdicional. Mas isso não muda a natureza das coisas, i.e., o que está imposto e o que está implícito nos vigentes arts. 5º/1, 10º, 571º/1‐2ª parte e 584º/2 e 588º/1 do CPC e no vigente art. 343º do CC; quer dizer, aquilo que o interessado estrangeiro “alardeia” fora do processo judicial (cfr. assim A. VARELA et al., Manual…, p. 461) terá de ser alegado e provado por ele na ação judicial, sob pena de não demonstrar o fundamento do direito ou interesse material que invocou.

(6) Muitas vezes residente no estrangeiro, aliás.