Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:19/06.8BEBJA
Secção:CA
Data do Acordão:09/20/2018
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:ESTRADAS DE PORTUGAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
CULPA IN VIGILANDO
PRESUNÇÃO DE CULPA
ILISÃO DA PRESUNÇÃO
JAVALI
Sumário:I – A Estradas de Portugal (EP) responde pelos danos provocados por quaisquer animais que apareçam na estrada, designadamente javalis, causando acidentes, presumindo-se a sua culpa in vigilando. A EP pode, depois, ilidir esta presunção, mediante a prova de que a sua fiscalização foi efectiva e a mais adequada e eficaz;
II – Para ilidir a indicada presunção não basta uma prova genérica de que a EP detém Brigadas que fiscalizam o local e que estas não verificaram debilidades na rede que ladeia a estrada. Para o efeito, a EP tinha de provar que, em concreto, os seus serviços cumpriram com o dever de fiscalizar e vigiar de forma sistemática, adequada e eficaz, garantindo as condições de segurança para o trânsito rodoviário.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I - RELATÓRIO

Estradas de Portugal, EPE (EP) interpôs recurso da sentença do TAF de Beja, que julgou procedente a presente acção, na qual o A. peticionava uma indemnização por responsabilidade civil extracontratual da EP, decorrente de um acidente de viação, ocorrido na IP2, provocado pelo embate num javali.

Em alegações são formuladas pelo Recorrente, as seguintes conclusões: ”1ª- A sentença contém uma contradição, um erro de elevada importância, quando vem dizer que o javali surgiu na estrada porque a vedação estava em mau estado e depois afirma à saciedade que a vedação estava colocada de pé, sem qualquer defeito na mesma, e que o javali só se introduziu na via porque furou a terra;
2ª- É consabido, independentemente, dos factos, que o horário de trabalho da função pública aplicável aos trabalhadores da EP é o legalmente previsto pelo que às 22:20:00 hs os serviços estão encerrados;
3ª- - O animal dos autos, espécie desconhecida na zona, passou por um ribeiro, fora da estrada, e atravessa-o ficando todo enlameado;
4ª- O animal ao pretende passar para o outro lado da estrada, não encontrando forma (a vedação estava boa - N) e U) - esburaca o solo, investe e colide contra a parle de baixo da vedação, transpõe a vedação pelo fundo do buraco que criou e, raspando na parte de baixo da vedação, deixa inegáveis vestígios de pelo e de lama;
5ª- A vedação, porque levantada e forçada, cedeu ao impacte feroz do animal na parte de baixo, apresentando depois do embate do animal com a infraestrutura -vedação, as caraterísticas descritas em I, J) e K) dos factos assentes ou seja, ficando um pouco abaulada como é lógico;
6ª- Ao serem tiradas as fotos e averiguação da GNR resulta natural a visão dos vestígios do impacte da colisão e raspagem do javali no local;
7ª- A sentença, bem, atesta ficarem reconhecidos os factos de N).
8ª - O teor das fotos e o descritivo na Participação de Acidente são posteriores ao embate e intervenção do animal contra o fundo da vedação, fazendo também o buraco no solo;
9" - Não foi dete1111inado pelas autoridades competentes a sinalização de caça grossa, por inexistente no local;
10ª - A conduta da empresa EP, SA foi proactiva, preventiva, comprovadora da diligência que no foro administrativo se exige funcionalmente á Ré, no caso, a vedação total do IP2 e a fiscalização da rede rodoviária;
11ª - A EP, SA não teve culpa na produção do acidente, o mesmo ficou a dever-se a caso fortuito, até porque não são conhecidas populações de javalis na zona da estrada próxima da localidade de Entradas, em Castro Verde;
12ª A sentença fez errada aplicação do direito até porque não respeitou a cronologia dos factos provados no acidente, nem aproveitou as razões de ciência dos depoimentos das testemunhas da Ré, ou seja, de que a vedação estava em condições e só o comportamento do animal selvagem contra a estrutura permitiu, nas condições de furo na tenha, impacto com a rede e colisão com ela, fez com que a infra-estrutura- conjunto de vedação acabasse, depois da passagem do animal, por patentear as características dos autos;
13ª Não foi realizada prova de que outros animais tivessem passado para dentro da estrada no local, a vedação estivesse estragada, fosse há muito ou há pouco tempo, ou de que tenha havido outros acidentes pelas mesmas causas ou semelhantes na zona.”.

O Recorrido nas contra-alegações formulou as seguintes conclusões: “1– O valor da sucumbência não é critério que possa ser considerado para a aferição da recorribilidade da douta sentença proferida nos presentes autos, devendo atender-se apenas ao valor da causa.
2- No presente recurso, as questões colocadas relativamente à matéria de facto são genéricas e não têm sustentabilidade probatória, tratando-se, na maior parte dos casos, de meras conjecturas da recorrente, as quais não podem ser levadas em consideração.
3– Por outro lado, encontrando-se a prova gravada, a recorrente não deu cumprimentos ao disposto no art.º 690.º-A do Código de Processo Civil na versão aplicável aos presentes autos (redacção do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto), ou ao actual art.º 685.º-B do mesmo diploma legal, aplicáveis por força do disposto no art.º 140.º do CPTA.
4– Subsidiariamente, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 684.º-A do Código de Processo Civil, o recorrido vem arguir a nulidade da sentença, impugnado a decisão de facto que considerou provados os factos alegados pela recorrente nos art.ºs 15.º a 16.º da contestação, o que deu lugar ao ponto N da matéria provada, os quais são manifestamente contraditórios com os factos dados como provados sob as alíneas I) a M).
5– Sendo declarada nula a sentença nos termos expostos na conclusão anterior, este Alto Tribunal deverá decidir o objecto da causa, conhecendo de facto e de direito, nos termos do disposto no art.º 149.º, n.º 1 do CPTA.
6 - Encontrando-se a prova gravada, não se vê necessidade de produção deprova.
7– Da prova gravada, nomeadamente do depoimento das testemunhas arroladas pela ré e também das que foram apresentadas pelo autor, não resulta que possam ser considerados provados o factos constantes dos art.ºs 15.º e 16.º da contestação da ré, que deram lugar ao ponto N dos factos considerados provados na douta sentença recorrida.
8– Pelo contrário, face ao depoimento da testemunha J…….. e às fotografias juntas aos autos com a petição inicial, deverão ser dados como provados os factos identificados com as letras I) a M) na decisão de facto.
9– Confirmando toda a matéria provada, com excepção da alínea N) já referida, encontram-se verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil.
10– Com efeito, a ré, apesar de proceder à fiscalização das estradas e respectivas zonas latentes, não detectou defeitos na vedação no IP 2 na zona do acidente, apesar de os mesmos serem evidentes, omitindo, assim, culposamente os seus deveres legais e funcionais.
13– Essa omissão permitiu que um javali de cerca de 55 quilos penetrasse na via, causando prejuízos ao recorrido.
14- Assim, o presente recurso deverá ser julgado improcedente, confirmando-se, a douta decisão recorrida, ou, caso assim não se entenda, deverá ser declarada nula a douta sentença recorrida e, expurgada a mesma do ponto N) dos factos provados, deverá ser proferida nova decisão de conteúdo idêntico àquela.”

O DMMP não apresentou a pronúncia.

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – OS FACTOS

Na 1.ª instância foram fixados os seguintes factos, factualidade que não é impugnada neste recurso:

A) Em 2005-04-22, pelas 22 horas e 20 minutos, no Itinerário Principal n.º 2, IP2, ao quilómetro 376,5, perto da localidade de Entradas, concelho de Castro Verde, distrito de Beja, ocorreu um acidente de viação em que foi intervenientes o veículo automóvel de matrícula 81-…., propriedade da A. que também o conduzia: cfr. Doc. 1 junto com a Petição Inicial – PI;
B) Ao atingir o quilómetro 376,5, à saída de uma curva para a esquerda, considerando o seu sentido de marcha, foi embater num javali que, se encontrava no centro da meia faixa direita da via;
C) O embate ocorreu a 7 (sete) metros e noventa de uma “antepara de protecção” que existe para além da berma esquerda da via e que se inicia logo após a curva referida no artigo anterior, tendo o animal sido arrastado por cerca de 40 (quarenta) metros até ao local onde ficou, morto;
D) No local, a via tem a largura de 7,20, tendo bermas pavimentadas de 2 metros cada uma;
E) Após o embate, o veículo do A., apesar de danificado, conseguia circular;
F) Facto que levou o A. a procurar auxílio, tendo conseguido localizar a patrulha da GNR na bomba da REPSOL mais próxima do local do acidente a qual o acompanhou ao local do acidente e elaborou a competente participação de acidente;
G) O local não se encontrava sinalizado com qualquer sinal indicativo da presença de “caça grossa” ou de “animais selvagens”;
H) No local, o IP2 encontra-se vedado de ambos os lados com rede de malha quadriculada;
I) No entanto, do lado contrário à “antepara de protecção” que existia junto ao local do embate e do lado esquerdo da via considerando o sentido de marcha do A., essa rede apresentava buracos e espaços entre a malha e o solo;
J) Encontrando-se abaulada pelo facto de os postes que a suportam se encontrarem tortos permitindo a passagem de animais de grande porte, como javalis: cfr. fotografias 1 e 6 juntas com a PI;
K)Aliás, nas malhas da rede era possível ver o local por onde o javali tinha atravessado a vedação pois eram bem visíveis nela os sinais de lama e de pêlo nos arames através dos quais o javali havia passado, sendo certo que esses vestígios se encontravam na projecção do local onde ocorreu o embate: cfr. fotografias 1 e 6 juntas com a PI;
L) Com efeito, o animal encontrava-se completamente enlameado, aparentemente fruto de ter atravessado um ribeiro que passa por baixo da estrada junto ao local do acidente;
M) O javali penetrou na via atravessando a vedação que, face às deficiências apresentadas, não estava em condições de evitar a sua entrada, como, no caso concreto, não impediu;
N) O javali abriu um buraco por debaixo da rede e por ele passou, não passando por entre a vedação que está colocada de pé no local nem aproveitou qualquer defeito da mesma, antes furou a terra;
O) O IP 2 faz parte da rede rodoviária nacional;
P) Em consequência do acidente, o veículo do A. sofreu graves danos na parte da frente e na sua mecânica, tendo a sua reparação importado em € 3.106,61 importância que o A. pagou à oficina J……, LD.ª, com sede em Évora: cfr. Doc. 2 e fotografias 7 e 8 juntos com a PI;
Q) O automóvel do A. estava em perfeitas condições, nomeadamente quanto à sua capacidade de travagem, já que possuía um jogo de pneus acabado de instalar: cfr. Doc. 3 junto com a PI;
R) A reparação da viatura demorou oito dias: cfr. Doc. 2 junto com a PI;
S) O A. esteve privado do seu carro pelo período de 8 (oito) dias;
T) A, então, Direcção de Estradas do Distrito de Beja, serviço da EP, possuía Brigadas que fiscalizavam o estado das estradas do distrito e respectivas zonas ladeantes;
U) Tais Brigadas de Fiscalização não haviam denotado qualquer defeito na vedação do IP2 no local ou zona dos autos;
V) As Brigadas de Fiscalização da R. recolhem ás 18horas;
W) A R. auscultou entidades oficiais quanto à necessidade, ou não, de colocação de sinais de animais selvagens, também relativamente ao local ou zona dos autos.

II.2 - O DIREITO

As questões a decidir neste processo, tal como vêm delimitadas pelas alegações e contra-alegações de recurso e respectivas conclusões, são:
- como questão prévia, suscitada pelo Recorrido, aferir da recorribilidade da decisão;
- aferir do erro no julgamento, porque face aos factos provados em H), I), J) e K), N), T), U) e W), verifica-se que o javali passou para a via, não porque a vedação padecesse de algum defeito ou de alguma debilidade, ou que não tivesse sido fiscalizada com a regularidade devida – pois ficou provado que estava em bom estado - mas porque aquele javali embateu ferozmente contra a mesma e escavou por baixo, por onde passou. Considera também o R. e ora Recorrente, que o javali é uma espécie desconhecida na zona do acidente, que inexiste caça grossa no local e por essa mesma razão não havia de estar sinalizada a presença da mesma;
- procedendo o recurso, há que aferir das alegações do Recorrido, que a título subsidiário vem arguir a nulidade decisória por contradição evidente na fixação da matéria de facto em N), I) e M) e o erro decisório na fixação do facto N), que diz não dever ser dado provado, sendo contraditório com os factos I) e M).

Na PI o A. peticionou o pagamento de uma indemnização no valor de €3.906,91, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da citação.
Na decisão recorrida foi julgada totalmente procedente a presente acção. Porém, não se indicou no dispositivo final dessa decisão, de forma explícita, o que decidia.
Logo, para se interpretar a sentença recorrida, no seu dispositivo, teremos de atender ao que foi peticionado na acção, isto é, teremos de atentar no petitório formulado na PI, para onde aquela remete.
Assim, conjugado o petitório com o dispositivo da sentença, há que entender que foi julgado procedente o pedido para pagamento de uma indemnização no valor de €3.906,91, acrescido de juros de mora à taxa legal desde a data da citação.
A presente PI foi apresentada em 16-01-2006.
Por conseguinte, o presente recurso é admissível, porque de valor superior ao da alçada da 1.ª instância (de €3740,98, à data).

A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, no domínio dos actos de gestão pública, à data do acidente, regia-se pelo disposto no Decreto-Lei n.º 48.051, de 21-11-1967.
Dispõe o art.º 2.º, nº 1, deste diploma que “O Estado e demais pessoas colectivas públicas, respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas aos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.
A responsabilidade civil por actos de gestão pública corresponde, no essencial, ao conceito civilístico de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos e que tem consagração legal no art.º 483.º, n.º 1, do Código Civil (CC).
São, deste modo, seus pressupostos: a) o facto, comportamento activo ou omissivo de natureza voluntária; b) a ilicitude, traduzida na ofensa de direitos ou interesses de terceiros ou de disposições legais destinadas a protegê-los; c) a culpa, nexo de imputação ético – jurídica do facto ao agente ou juízo de censura pela falta de diligência exigida de um homem médio ou de um funcionário ou agente típico; d) a existência de um dano, ou seja, uma lesão de ordem patrimonial ou moral; e) o nexo de causalidade entre a conduta e o dano, apurado segundo a teoria da causalidade adequada.
Contudo, a ilicitude juridicamente relevante é, por força do disposto no art.º 6.º, a que resulta da violação de normas legais e ou regulamentares ou princípios gerais aplicáveis, bem como a que decorre da ofensa a regras de ordem técnica e de prudência comum. Trata-se, pois, de um conceito de ilicitude mais amplo que o consagrado na lei civil.
Nos termos do art.º 4.º, n.º 1, do referido diploma, a culpa dos titulares do órgão ou dos agentes é apreciada conforme o artigo 487.º do CC.
Deste modo, quer os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana do Estado e demais pessoas colectivas públicas, fonte da obrigação de indemnização, quer o conteúdo dessa obrigação, têm por referência o regime geral da responsabilidade civil, contida nos artigos 483.º a 510.º e 562.º a 572.º, do CC.
A jurisprudência do STA inclina-se no sentido de que a responsabilização da Administração por danos materiais e morais resultantes de actos culposos dos seus agentes impõe que haja negligência destes, traduzida em acção ou omissão imputável ao exercício da função pública.
Compete às EP conservar a rede rodoviária nacional e “zelar pela manutenção permanente de condições de infra-estruturação e conservação e de salvaguarda do estatuto da estrada que permitam a livre e segura circulação” – cf. art.ºs. 8.º. n.º 2, do Decreto-Lei nº 239/2004, de 21-12 e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº do 374/2007, de 07-11; cf. também art.ºs 4.º, n.º 1, quer do Decreto-Lei nº 239/2004, de 21-12, quer do Decreto-Lei nº do 374/2007, de 07-11.
O Recorrente vem invocar um erro decisório por entender que da factualidade provada – que diz ser contraditória – não se poder retirar que não tenha cumprido os seus deveres de fiscalização. Diz o Recorrente que ficou provado nos autos que a vedação não padecia de qualquer defeito, que o javali embateu ferozmente contra a mesma e que esta manteve-se em pé e que o javali só passou para a estrada porque escavou por baixo da vedação.
Note-se, que não obstante estas alegações, o Recorrente não impugna o julgamento de facto. Este recurso vem somente dirigido ao julgamento de Direito e às conclusões que se tiram a partir daquele julgamento da matéria de facto.
É verdade que a factualidade que foi fixada na decisão recorrida é muito pouco precisa quanto aos momentos temporais em que ocorrem os factos que se dão por provados. É também verdade, que essa factualidade se apresenta um tanto contraditória.
Igualmente, verifica-se, que no julgamento de Direito se invocam circunstâncias que não foram vertidas na factualidade dada por provada, mormente as relativas “à exiguidade das Brigadas de Fiscalização existentes à data do factos (3 para 700kms de estradas do Distrito de Beja), dos seus meios humanos e técnicos e do seu horário de trabalho, recordando: tais brigadas tem por missão fiscalizar o estado dos 700 kms de estradas do distrito”.
O Recorrente, porém, não imputa quaisquer erros decisórios com relação aos factos fixados.
Haveremos, portanto, de apreciar o presente recurso atendendo apenas à factualidade que foi assente na decisão recorrida e que ora não vem impugnada.
Através da factualidade fixada em H), I), J) e M), é possível compreender que o local do acidente se encontrava vedado de ambos os lados com uma rede de malha quadriculada e que, pelo menos após o acidente, se verificou que essa rede apresentava “buracos e espaços entre a malha e o solo”, assim como, que se encontrava abaulada pelo facto de os postos que a suportavam se encontrarem tortos.
Igualmente, daquela factualidade e designadamente dos factos K) e N), é possível compreender que o indicado javali terá escavado um buraco por baixo da rede e por aí passou.
É do conhecimento geral que os javalis são uma espécie comum por todo o território português, que prefere zonas com vegetação, que pode apresentar um porte considerável, tendo bastante força, que se torna mais activo à noite e que tem capacidade de escavar no solo, fazendo buracos (cf. art.º 514.º, n.º 1, do CPC na anterior versão, aqui aplicável; cf. ainda nesse sentido, entre muitos, os seguintes sites: http://naturlink.pt/article.aspx?menuid=55&cid=4059&bl=1&viewall=true; https://pt.wikipedia.org/wiki/Javali; http://www.terrasdesico.pt/turismo-fauna/javali).
No sitenaturlink (inhttp://naturlink.pt/article.aspx?menuid=55&cid=4059&bl=1&viewall=true) indica-se entre as melhores zonas para visualizar javalis a do rio Guadiana, que é um rio que percorre o Parque Natural do Guadiana, que fica a cerca de 30 km da zona onde terá ocorrido o acidente (cf. art.º 514.º, n.º 1, do CPC).
Os factos relativos às características dos javalis e aos seus comportamentos devem-se presumir pelas regras da experiência comum, constituindo presunção judicial – cf. art.ºs 349.º e 351.º do CC. E mais se diga, que mesmo que não se entendam tais factos como presunções judiciais, sempre deveriam ser considerados factos notórios, que não carecem de prova, nos termos dos art.º 514.º, n.º 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA.
Portanto, atendendo ao tipo de animal que embateu no veículo, um javali, às suas características e ao seu “normal” comportamento, é possível enquadrar a supra indicada factualidade, que ficou assente na decisão recorrida, e compreender que o referido javali transpôs a rede e passou para a IP2 depois de fazer um buraco junto à mesma e de a forçar.
Um javali faz buracos, mas não é propriamente uma espécie escavadora, de pequeno porte, que tenha aptidão para passar por baixo de uma rede que esteja firme e em bom estado, como, por exemplo, uma toupeira. Trata-se, antes, de um animal de médio ou grande porte, que aproveitando-se de uma pequena debilidade da rede, poderá escavar por baixo da mesma e depois poderá forçá-la, passando pela mesma, para assim aceder à estrada.
Quanto ao facto invocado pelo Recorrido, de que o javali em questão tinha 55 quilos, é matéria que não foi dada por provada na decisão recorrida.
Dos factos fixados em T) a V), é ainda alcançável que a EP possuía Brigadas que fiscalizavam o local e que estas Brigadas não denotaram defeitos na vedação.
Quanto à periodicidade desta fiscalização da EP, à data da última fiscalização efectiva, à existência de relatórios que tenham sido elaborados e relativos às fiscalizações, ou a registos que comprovem a inexistência de acidentes naquele local com animais, nada se sabe.
Nestes termos, não obstante estar provada a existência de Brigadas de fiscalização, que actuavam na zona e que estas Brigadas não denotaram problemas ou debilidades na rede, esta factualidade, por si mesma, não é segura para que se possa considerar que aquela rede, no momento do acidente, não pudesse apresentar debilidades, que possam ser imputáveis a uma falta de fiscalização da EP.
Ademais, a existência dessas debilidades estará provada através dos factos L), J) e M).
Quanto à indicação que foi dada por provada em N), relativa à inexistência de defeitos na rede e à passagem do javali totalmente por baixo da mesma, furando a terra, terá de ser lida à luz dos restantes factos e como se referindo à circunstância de o javali ter também escavado para conseguir passar para a estrada – cf. facto K). No restante, como acima se indicou, não será possível que um javali tenha transposto a rede apenas escavando um buraco por baixo da mesma, do tamanho do seu próprio corpo.
É também indiscutível nos autos que o javali apareceu na estrada e que foi o motivo do acidente.
Incumbia à EP “zelar pela manutenção permanente de condições de infra-estruturação e conservação e de salvaguarda do estatuto da estrada que permitam a livre e segura circulação” – cf. art.ºs. 8.º. n.º 2, do Decreto-Lei nº 239/2004, de 21-12 e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº do 374/2007, de 07-11.
Nos termos dos citados artigos, conjugados com os art.ºs. 350.º, n.º 2 e 493.º, n.º 1, do CC, a EP responde pelos danos provocados por quaisquer animais que apareçam na estrada, causando acidentes, presumindo-se a sua culpa (isto é, presumindo-se a culpa in vigilando). A EP pode, depois, ilidir esta presunção, mediante a prova de que a sua fiscalização foi efectiva, a mais adequada e eficaz.
Ora, como se indicou, no que se refere à factualidade provada e relativa à fiscalização feita pela EP, não é a mesma suficientemente forte para se considerar ilidida a presunção de incumprimento dos seus deveres de fiscalização.
O que a EP provou nos autos foi apenas uma prova genérica, de que detém Brigadas que fiscalizam o local e que estas não verificaram debilidades da rede. Mas, em concreto, a EP não provou que tivesse efectuado determinadas fiscalizações, com uma dada periodicidade, que fosse a mais aconselhável e que tivesse efectivamente adoptado medidas e procedimentos que garantissem a segurança na via, obstando a que mesma fosse acedida por animais, como um javali.
Ou seja, a EP não demonstrou que os seus serviços cumpriram com o dever de fiscalizar e vigiar de forma sistemática, adequada e eficaz as condições de segurança para o trânsito rodoviário, na estrada em causa, que estava à sua guarda (cf. neste sentido, o Ac. do TCAS n.º 13283/16, de 16-06-2016).
Em suma, malgrado a imprecisão com que a matéria factual ficou provada nestes autos e alguma contradição nos seus próprios termos, atendendo à situação concreta que vem relatada, será possível compreender que terá havido uma falha na fiscalização, por existir alguma debilidade na rede que permitiu que o javali em questão, escavando no local, forçasse a passagem para a estrada.
Como se referiu, sendo o javali uma espécie comum em Portugal e estando o local do acidente a cerca de 30 km do Parque Natural do Guadiana, não se pode considerar que o aparecimento de tal animal naquela estrada fosse algo totalmente inusitado. Antes, a fiscalização da EP haveria de atender a essa possibilidade, pois era um facto possível.
O aparecimento de um javali na zona do acidente não é, pois, um caso totalmente fortuito, inusitado, não previsível, como alega o Recorrente, por forma a justificar-se o afastamento da sua responsabilidade.
Em suma, há que manter a decisão recorrida quando determinou a procedência da acção e a condenação da EP ao pagamento de uma indemnização no valor de €3.906,91, acrescido de juros de mora à taxa legal desde a data da citação.
Improcedendo o recurso fica prejudicado o conhecimento da matéria relativa à sua ampliação, requerida a título subsidiário pelo Recorrido.

III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam:
- em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a decisão recorrida, com a fundamentação ora adoptada.
- custas pelo Recorrente (cf. art.ºs. 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2 do RCP e 189.º, n.º 2 do CPTA).

Lisboa, 20 de Setembro de 2018.
(Sofia David)

(Nuno Coutinho)

(José Correia)