Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:09210/15
Secção:CT
Data do Acordão:09/15/2016
Relator:JORGE CORTÊS
Descritores:DECISÃO ARBITRAL. OMISSÃO DE PRONÚNCIA. INCONSTITUCIONALIDADE.
Sumário:1. Ao suscitar a questão da violação do princípio do acesso ao direito e do princípio da igualdade, por parte da decisão vertida na sentença arbitral, da recusa de colocação ao TJUE da questão prejudicial relativa à correcta interpretação do disposto no artigo 132.º, n.º 1, alínea b), da Directiva IVA, a impugnante levantou questão de inconstitucionalidade que cabia ao tribunal sindicado dirimir.
2. O facto da questão ter sido suscitada nas alegações pré-sentenciais não obsta à pertinência e à consequente constituição do tribunal sindicado no dever de decidir a questão suscitada.
3. A omissão de pronúncia sobre a alegada ofensa aos princípios constitucionais do acesso ao direito e do princípio da igualdade por parte da decisão de recusa do reenvio da questão prejudicial relativa à interpretação do preceito do artigo 132.º, n.º 1, alínea b), da Directiva IVA, constante da decisão arbitral constitui vício que, no quadro da economia da mesma, determina a sua anulação na íntegra (artigo 28.º/1/c), do RJAT).
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I- Relatório
A Autoridade Tributária e Aduaneira deduz a presente impugnação contra a decisão arbitral proferida no processo ...-T, que correu termos no Centro de Arbitragem Administrativa e Tributária, que concedeu provimento ao pedido de anulação das liquidações de IVA, referentes aos anos de 2011, 2012 e 2013 e respectivos juros compensatórios, no montante global de €2.779.626,05, formulado por I..., S.A.
A impugnante termina as alegações de impugnação, formulando as conclusões seguintes:
1.ª Por via da presente Impugnação pretende a ora Impugnante reagir contra a decisão Arbitral proferida a 04-11-2015 pelo Tribunal Arbitral Coletivo constituído no CAAD que julgou procedente: A excepção dilatória de incompetência do tribunal para ordenar a extinção do processo executivo (que não se discute na presente impugnação); e o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IVA e juros compensatórios objecto da acção e, em consequência, anulou com fundamento na violação da alínea b) do n° 1 do artigo 12° do CIVA, as liquidações de IVA e de juros compensatórios em causa, no montante global de € 2.779.626,05.
2.ª A Impugnante deduziu Resposta ao pedido de pronúncia arbitral na qual: Deduziu defesa por excepção, pugnando pela incompetência material do Tribunal Arbitral Coletivo (cfr. artigos 5° a 22° da Resposta - Cfr. fls... da certidão do processo Arbitral); Pugnou pela legalidade da correção colocada em crise pela Impugnada (cfr. artigos 23° a 162° da Resposta - Cfr. fls... da certidão do processo arbitral); e Solicitou o reenvio prejudicial para o TJUE (cfr. artigos 118.° a 123.° e ponto (iii) do Pedido da Resposta - Cfr. fls... da certidão do processo arbitral).
3.ª Cada uma destas questões foi devidamente desenvolvida pela Impugnante ao longo do seu articulado, encontravam-se inequivocamente inseridas em capítulos autonomizados e, por conseguinte, eram perfeitamente identificáveis por parte de qualquer leitor
4.ª Acresce que, cada uma destas questões foi novamente focada em sede das alegações finais escritas apresentadas pela Impugnante, sendo que, também aqui, tais questões se encontravam devidamente inseridas em capítulos autonomizados e, por conseguinte, eram perfeitamente identificáveis por parte de qualquer leitor (cfr. Alegações da Impugnante - Cfr. fls... da certidão do processo arbitral), tendo nessa sede invocado expressamente a inconstitucionalidade de uma eventual decisão de não reenvio prejudicial para o TJUE (cfr. Ponto l) das Alegações - Cfr. fls... da certidão do processo arbitral.
5.ª O Tribunal Arbitral Coletivo entendeu que a questão a decidir se limitava a «(...) Saber se os estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares, que optaram pela tributação em IVA por se considerarem não integrados no sistema nacional de saúde, preenchendo portanto as condições previstas no artigo 12° do CIVA para a renúncia à isenção, devem ou não continuar a ser considerados para tanto elegíveis quando celebram protocolos ou acordos com entidades públicas pertencentes ao serviço nacional de saúde, a fim de prestarem aos beneficiários desses subsistemas prestações de cuidados de saúde abrangidas pela norma de isenção do nº2) do artigo 9° do aludido Código» (cfr. pág. 18 do Acórdão).
6.ª Ao longo das páginas 18 a 40 do acórdão, o Tribunal Arbitral Coletivo procedeu à resolução da questão a decidir, ora enquadrando juridicamente os factos relevantes, ora procedendo à interpretação da lei, aplicando-a ao caso concreto;
7.ª Contudo, não só na fixação da questão a decidir o Tribunal Arbitral Coletivo veio omitir a questão referente à inconstitucionalidade da interpretação feita pela Impugnada relativamente à decisão de não reenvio prejudicial (cfr. pág. 18 do acórdão), como ainda, na sintetização da posição da Impugnante, o mesmo Tribunal omitiu a suscitação da questão referente àquela inconstitucionalidade (cfr. págs. 4 a 6 do acórdão), como também a própria fundamentação do acórdão não dedicou uma palavra sequer àquela questão não despicienda;
8.ª A problemática em torno da inconstitucionalidade da decisão de não reenvio prejudicial feita pela Impugnante (i.e., saber se a mesma é conforme aos princípios do acesso ao direito e da igualdade, em face do disposto no artigo 267° do TFUE) constitui uma verdadeira questão e não um mero argumento;
9.ª O Tribunal Arbitral Coletivo não justificou a razão ou as razões que o levaram a não conhecer da questão de inconstitucionalidade em causa;
10.ª Acresce que a problemática em torno da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 267° do TFUE não é uma questão cuja resolução tivesse ficado prejudicada pela resolução das demais questões;
11.ª O acórdão arbitral não padece, nesta parte, de uma "mera" fundamentação lacónica ou deficiente, antes configura uma "decisão surpresa";
12.ª Acresce que, ao não cumprir um dos requisitos essenciais inerentes a uma decisão - i.e., a de convencer os seus destinatários - o Tribunal Arbitral Coletivo limitou incompreensivelmente um dos poucos mecanismos de controlo que assistem à Impugnante: o recurso para o Tribunal Constitucional [artigo 70°/1-b) da Lei 28/82, de 15 de novembro];
13.ª Motivos pelos quais não deve ser mantido na ordem jurídica o acórdão arbitral ora colocado em crise, devendo antes ser aquele declarado nulo.
14.ª Acresce ainda que, no que diz respeito ao pedido de reenvio prejudicial para o TJUE, o Acórdão Arbitral limitou-se a referir que:
"No tocante ao pedido de reenvio prejudicial, não se revela imprescindível para o julgamento da causa, existindo jurisprudência suficiente que nos elucida sobre o sentido e alcance das normas em apreço"
15.ª Ora, neste particular, padece ainda o Douto Acórdão Arbitral salvo melhor entendimento, dos vícios de não especificação dos fundamentos de direito que justificam a decisão e de oposição dos fundamentos com a decisão, nos termos previstos nas alíneas a) e b) do n°1 do artigo 28° do RJAT, que constitui causa de nulidade da decisão impugnada, de acordo com o disposto no artigo 125° do CPPT e nos artigos 195°, n°1 e 615° do CPC logo, contrário à lei, não podendo, por conseguinte, manter-se na ordem jurídica.
16.ª O Tribunal Arbitral considerou que o reenvio prejudicial não se revelava imprescindível para o julgamento da causa, porém, não logrou o Tribunal Arbitral fundamentar mínima e adequadamente tal conclusão.
17.ª No que se refere ao reenvio prejudicial, o TJUE tem entendido que a dispensa de reenvio apenas se justifica em caso de falta de pertinência da questão suscitada no processo, existência de interpretação já anteriormente fornecida pelo Tribunal de Justiça e total clareza da norma comunitária em causa (teoria do acto claro) - Acórdão de 06/10/92, "CILFIT", proc. 283/81,Colect.,947
18.ª A decisão proferida pelo Tribunal Arbitral padece de manifesta falta de fundamentação, porquanto se limita a assumir - sem o justificar, como sempre se exigiria - que o reenvio prejudicial "não se revela imprescindível para o julgamento da causa, existindo jurisprudência suficiente que nos elucida sobre o sentido e alcance das normas em apreço".
19.ª Ademais, a decisão impugnada não apresenta fundamentação plausível que justifique a desnecessidade de reenvio nos termos já definidos pelo TJUE;
20.ª O vício de não especificação dos fundamentos de direito constitui, nos termos da alínea a) do n°1 do artigo 28° do RJAT, bem como do n°1 do artigo 125° do CPPT, e da alínea b) do n°1 do artigo 615° do CPC, aplicáveis ex vi alíneas c) e e) do n°1 do artigo 29° do RJAT, causa de nulidade da decisão impugnada.
21.ª Mas a decisão proferida pelo Tribunal Arbitral padece, igualmente, do vício de oposição dos fundamentos com a decisão.
22.ª Efectivamente, apesar de invocar na sua fundamentação a jurisprudência do TJUE, o próprio decisor arbitral admitiu não existirem decisões jurisprudenciais do TJUE que tratem especificamente sobre a questão de saber quando é que um estabelecimento hospitalar privado efectua prestações em condições sociais análogas às que vigoram para os "organismos de direito público" (cfr. página 34 da decisão arbitral).
23.ª Os fundamentos apresentados na sentença não suportam uma decisão de não reenvio prejudicial, sendo incompreensível que o Tribunal Arbitral comece por entender que não há ainda decisões jurisprudenciais do TJUE sobre a questão em apreço nos autos, para depois, contraditória e incongruentemente, se socorrer de jurisprudência não específica para sustentar a sua decisão.
24.ª Se o Tribunal Arbitral tivesse seguido a jurisprudência do TJUE a respeito do reenvio prejudicial supra citada, teria forçosamente ordenado a suspensão do processo e determinado o reenvio prejudicial para o TJUE.
25.ª Com efeito, nunca o Tribunal poderia decidir - contrariando o referido quanto á inexistência de decisões do TJUE que tratem especificamente da questão em apreço - não proceder ao reenvio prejudicial.
26.ª A contradição dos fundamentos com a decisão importa a nulidade da decisão ora impugnada, por força da alínea c) do n°1 do artigo 615° do CPC, nulidade que é arguível nas presentes alegações de Impugnação.
X
A fls. 22/81 o impugnado apresentou pronúncia, na qual pugna pela manutenção da decisão impugnada, apresentando o seguinte quadro conclusivo que se reproduz:
(A) O objeto do processo arbitral, no âmbito do qual foi proferida a decisão impugnada, foi a legalidade das liquidações adicionais do IVA e de juros compensatórios;
(B) A apreciação dessa legalidade teve por base a interpretação do disposto no art°12°, n°l, alínea b), do Código do IVA que consagra a possibilidade de renúncia à isenção do IVA dos "estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares que optaram pela tribulação em IVA não integrados no sistema nacional de saúde".
(C) Mais concretamente, a questão controvertida no referido processo arbitral consistia fundamentalmente em saber se a Impugnada, aí Requerente, estando enquadrada no regime de isenção de IVA devia manter o direito de renúncia a tal isenção em momento subsequente à celebração de convenções com um qualquer subsistema de saúde (no caso da Requerente, com a ARS e com a ADSE).
(D) A Impugnante emitiu as Liquidações Contestadas por entender que a celebração de uma qualquer convenção com um dos subsistemas de saúde acarreta inelutavelmente a integração no "sistema nacional de saúde" e o consequente enquadramento do sujeito passivo como isento de IVA sem possibilidade de renúncia à isenção do IVA, por não reunir (ou deixar de reunir a partir desse momento) as condições de exercício do direito à renúncia à isenção do IVA.
(E) A Impugnada reputa a posição da Impugnante totalmente ilegal, por violar de forma flagrante o ordenamento jurídico-tributário em vigor e, designadamente, o disposto no artigo 12°, n° l, alínea b), do Código do IVA, tendo apresentado pedido de pronúncia arbitral junto de um tribunal Arbitral com competência para apreciar a questão, nos termos do art°2°, n° l, al. a) do RJAT.
(F) O Tribunal Arbitral decidiu a favor da Impugnada, tendo julgado totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral apresentado c ordenado a anulação das Liquidações Contestadas.
(G) No presente processo, a Impugnante pretende que seja declarada nula a decisão arbitral com fundamento em vícios que imputa a um segmento de tal decisão (que não integra sequer o dispositivo da mesma decisão), em que se decide a questão prévia e incidental sobre o reenvio prejudicial, assacando, de forma infundada e artificiosa, a esse segmento, os vícios de omissão de pronúncia, não especificação dos fundamentos de direito que justificam a decisão arbitral ("falta de fundamentação") e oposição dos fundamentos com a decisão arbitral
(H) A Impugnada não ignora que o conhecimento de uma questão prévia ou incidental possa ser essencial e afetar de forma muito relevante a decisão, de tal modo que a falta de apreciação ou de fundamentação de tal questão prévia possa inquinar a própria decisão. No presente caso, contudo, tal não vem invocado nem formulado pela Impugnante.
(I) E se a Impugnante não o faz, tal traduz-se, na prática, na não invocação de qualquer vício atendível da decisão e na consequente ineptidão da impugnação apresentada, que deverá conduzir ao seu indeferimento liminar, que aqui se requer
(J) Mas ainda que a decisão arbitral versasse a título principal sobre o reenvio prejudicial (que não versa), não teria, mesmo nesse caso, qualquer razão a Impugnante, e a presente impugnação sempre estaria votada à total improcedência
(K) Com efeito, de uma análise atenta da Impugnação, pode concluir-se que não existem:
i) quaisquer questões que não tenham sido objeto de pronúncia por parte do Tribunal a quo, ou; ii) quaisquer fundamentos de direito que não tenham sido devidamente especificados no contexto da fundamentação da decisão arbitral impugnada, ou; iii) qualquer oposição, alegada mas não devidamente demonstrada, dos fundamentos com a decisão de não reenvio prejudicial, que possam justificar a anulação da decisão arbitral.
(L) No entendimento da Impugnada, a presente ação de impugnação e os vícios formais da decisão arbitral artificiosamente invocados pela Impugnante representam um conjunto de subterfúgios utilizados pela mesma com vista a protelar o trânsito em julgado e a execução da decisão arbitral o que, infelizmente, tem vindo a ser a prática corrente nos casos em que as decisões arbitrais são insuscetíveis de recurso, retirando qualquer efeito útil à regra da irrecorribilidade das decisões arbitrais.
(M) Relativamente ao primeiro vício invocado pela Impugnante, cumpre notar que o Tribunal Arbitral decidiu sobre todas as questões que lhe foram, válida e atempadamente submetidas, maxime, sobre a questão de saber se, em face do circunstancialismo específico e da jurisprudência disponível sobre o tema objeto do processo arbitral, devia ou não ser formulada questão prejudicial junto do TJUE.
(N) A Impugnante não submeteu de forma processualmente adequada, válida, clara e atempada qualquer questão de inconstitucionalidade de normas que coubesse ao Tribunal apreciar.
(O) A Impugnante teve várias oportunidades de se pronunciar no decurso do processo Arbitral sobre o tema do reenvio prejudicial e, designadamente, sobre a posição adotada pela Impugnada quer no pedido de pronúncia arbitral apresentado quer no requerimento ad hoc apresentado em 10 de setembro de 2015.
(P) Não existe, pois, qualquer justificação válida para que a Impugnante tenha suscitado, pela primeira vez, a questão de inconstitucionalidade de factos, situações ou decisões (e a formulação alternativa decorre das palavras da própria AT, que não conseguiu decidir a que imputa afinal a alegada inconstitucionalidade) em sede de alegações finais. Mais ainda tratando-se de alegações finais sucessivas, que conforme é do conhecimento geral destinam-se, única e exclusivamente, a discutir todas a matéria de facto e as questões jurídicas que são objeto do processo.
(Q) Sem conceder no acima exposto, cumpre salientar que não existe qualquer vício de inconstitucionalidade decorrente da desconformidade de um facto, de uma situação ou de uma decisão com a CRP como parece pretender a Impugnante.
(R) Sendo que, se a Impugnante tivesse efetivamente suscitado uma qualquer questão de inconstitucionalidade de normas (o que não fez) e se tais normas viessem a ser aplicadas pelo Tribunal Arbitral, ser-lhe-ia possível recorrer para o TC nos termos do art°25° do RJAT o que, conforme reconheceu a própria Impugnante, não sucede no caso em apreço.
(S) Por todo o exposto se conclui sem margem para dúvidas que não vem formulado qualquer juízo de inconstitucionalidade sobre normas legais, motivo pelo qual o Tribunal Arbitral não tinha qualquer obrigação de se pronunciar sobre este tema c não omitiu o que quer que fosse (que devesse ter apreciado), inexistindo o vício de omissão de pronúncia invocado pela Impugnante.
(T) E ainda que se entenda que a decisão arbitral de não reenvio prejudicial foi mal fundamentada, pouco rigorosa (ou mesmo medíocre) - o que por mero dever de patrocínio se admite sem, contudo, conceder -, tal poderia eventualmente configurar um erro de julgamento mas nunca, como defendeu a Impugnante, vício de omissão de pronúncia.
(U) A decisão arbitral impugnada não padece, pois, de qualquer omissão de pronúncia do Tribunal a quo que fundamente a sua anulação, razão pela qual deverá a impugnação ser julgada improcedente e, em consequência, mantida a decisão impugnada.
(V) Relativamente ao segundo vício invocado pela Impugnante no processo de impugnação, é evidente que o mesmo não se verifica porquanto a decisão arbitral especificou (em capítulo autónomo, aliás) os fundamentos de direito que justificaram a decisão de não reenvio prejudicial, a saber:
i) a formulação de questão prejudicial não se revela - pelo menos na perspetiva do Tribunal Arbitral a que a Impugnada adere sem reservas -, indispensável para o julgamento da causa, e;
ii) existe jurisprudência do TJUE suficiente para elucidar o Tribunal Arbitral sobre o sentido e alcance das normas internas em apreço (in concreto, o art°12°, n°l, alínea b), do Código do IVA) - cfr. pág. 40/42 da decisão arbitral.
A decisão arbitral impugnada não padece, pois, de vício de não especificação dos fundamentos de direito da decisão que fundamente a sua anulação, razão pela qual deverá a impugnação ser julgada improcedente e, em consequência, mantida a decisão impugnada.
(W) De qualquer forma, aquilatar da bondade de tal decisão de não reenvio prejudicial não consubstancia qualquer vício da decisão arbitral invocável em sede de impugnação da decisão arbitral, sendo certo que ainda que se pudesse concluir pelo incumprimento, por parte do Tribunal Arbitral, da obrigação de reenvio que o onerava nos termos do art°267° do Tratado - algo que por mera cautela de patrocínio se admite, sem contudo, conceder -, a dita violação poderia apenas ser objeto de uma ação por incumprimento, nos termos do art° 258° do Tratado, e gerar responsabilidade do Estado-Juiz aferida à luz do princípio da responsabilidade dos Estados membros por incumprimento do Direito da União Europeia mas, nunca, como parece pretender a Impugnante, legitimar a impugnação da decisão arbitral.
(X) Por fim, relativamente ao vício de oposição dos fundamentos com a decisão, cumpre salientar que, apesar de o Tribunal Arbitral adotar posição diversa da posição adotada pela Impugnante quanto à questão do reenvio prejudicial, os fundamentos invocados pelo mesmo para justificar a decisão de não reenvio prejudicial conduzem, num silogismo lógico, à solução adotada pelo Tribunal, pelo que não se verifica qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão proferida.
(Y) Assim, não só existe uma correspondência útil e lógica entre os fundamentos e a decisão como decisão diversa daquela que foi adotada pelo Tribunal Arbitral estaria inquinada de vício de oposição dos fundamentos com a decisão.
(Z) A decisão arbitral impugnada não padece, pois, de vício de oposição dos fundamentos com a decisão que justifique a sua anulação, razão pela qual deverá a impugnação ser julgada improcedente e, em consequência, mantida a decisão impugnada.

X
O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal foi notificado para os efeitos do disposto no artigo 146º, nº1 do CPTA.
X
Colhidos os vistos legais, vem o processo à conferência para decisão.
X
II- Fundamentação
2.1. De facto.
A decisão recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:
a) A Requerente é uma sociedade anónima de capitais privados e com fins lucrativos, lendo por objecto a prestação de serviços médico-cirúrgicos - cf. Certidão permanente junta com a petição como Documento n°129, cujo teor se dá por reproduzido;
b) Tal actividade inclui a prestação de cuidados de saúde e de serviços médicos em regime de ambulatório e/ou internamento, designadamente consultas e cirurgias em várias áreas clínicas;
c) A Requerente presta ainda serviços de alimentação e bebidas (através da exploração de um bar/restaurante nas instalações onde desenvolve a sua actividade), prestando ainda serviços aos acompanhantes dos utentes internados (nomeadamente serviços de alojamento):
d) Tais actividades desenvolvem-se no C... ("..."), instalado em dois prédios urbanos contíguos e com funcionamento complementar de que a Requerente é proprietária e que assim identifica: fracções A. B e C do prédio urbano sito na Rua …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo matricial 6186 da freguesia da União das Freguesias de …; e prédio urbano descrito na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o n°3707:
e) Ambos os prédios foram construídos de raiz, sendo que o prédio que integra as fracções A. B e C foi edificado em duas fases distintas, uma em 1999 e outra em 2007 (correspondendo a fracção A ao edifício inicialmente construído e concluído em 1999; ao passo que as fracções B e C integram a segunda fase de construção, concluída em 2007) - cf. Cadernetas prediais das fracções B e C, juntas com a petição como Documentos n.°s 130 e 131, cujos teores se dão por reproduzidos;
f) A Requerente é uma sociedade comercial que exerce, a título principal, uma actividade de natureza comercial, estando enquadrada no regime geral para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC);
g) Em 6 de Dezembro de 1995, aquando do registo do início de actividade para efeitos fiscais, a Requerente foi enquadrada no regime de isenção de IVA, tendo como objecto principal a prestação de "Actividades dos estabelecimentos de saúde com internamento", a que corresponde o CAE 86100 - cf. Relatório de Inspecção Tributária (RIT), junto com a petição como Documento nº 132, cujo teor se dá por reproduzido;
h) Em 29 de Junho de 1999, aquando do início da actividade do ..., a ora Requerente passou a estar enquadrada para efeitos de IVA no regime misto com afectação real (em face da sua actividade de prestação de serviços médicos -actividade isenta - e das suas actividades de prestação de serviços de -alimentação e bebidas e alojamento a acompanhantes de utentes internados -actividades sujeitas) - cf. cit. RIT;
i) Em Janeiro de 2008, a Requerente renunciou à isenção de IVA (apresentando para o efeito uma declaração de alterações de atividade com efeitos a l de Janeiro de 2008), ficando em consequência sujeita ao regime normal de tributação em IVA com periodicidade mensal (apurando por isso IVA nas operações activas praticadas, imposto que é mencionado nas facturas por si emitidas, e deduzindo, por conseguinte, o IVA suportado na totalidade das operações passivas) - cf. cit. RIT (Doc. n°132) e Declaração de Alterações de Actividade junta com a petição como Documento n°133, cujo teor se dá por reproduzido;
j) Em nenhum momento entre 2008 e 2014 (aquando do procedimento de inspecção aqui em causa), a Administração Tributária pôs em causa tal renúncia ou o cumprimento dos requisitos legais para o efeito;
k) Actuando, na sequência de tal renúncia, como um sujeito passivo "normal" (não isento de IVA), a Requerente desde Janeiro de 2008 e até à presente data, nos termos da lei, liquidava IVA nas operações ativas deduzindo o IVA suportado nas operações passivas:
1) Em relação à segunda fase de construção do ..., concluída em 2007, a Requerente suportou IVA no montante de €1.534.906.72 - cf. Documento n°134, última página, cujo teor se dá por reproduzido;
m) A Requerente apresentou a declaração periódica de IVA relativa ao período de Fevereiro de 2008, em que incluiu aquele valor de imposto suportado e solicitou o reembolso do crédito de imposto a recuperar apurado nesse período: €1.695.465,30 - cf. Documento n°135 junto com a petição, cujo teor se dá por reproduzido;
n) A AT promoveu o correspondente procedimento de inspecção, através do qual analisou e verificou a validade e conformidade legal do imposto deduzido, deferindo parcialmente o pedido de reembolso em causa, no valor de € 1.610.943.47-cf. Documento nº136 junto com a petição, cujo teor se dá por reproduzido;
o) Por referência ao exercício de 2011, a Requerente liquidou IVA nas operações activas no montante de € 490.676,11. tendo deduzido IVA suportado nas operações passivas no montante de € 489.023.71 - cf. cit. RIT (Doc. n°132) e Documento nº137, cujo teor se dá por reproduzido;
p) Por referência ao exercício de 2012, a Requerente liquidou IVA nas operações activas no montante de €527.304.69 tendo deduzido IVA suportado nas operações passivas no montante de €528.287.89 - cf. cits. RIT (Doc. n°132) e Documento n°137:
q) No exercício de 2013, a Requerente liquidou IVA nas operações ativas no montante de € 418.874,91 tendo deduzido IVA suportado nas operações passivas no montante de €367.551,27 - cf. cit. R1T (Doc. nº132) e Documento n°137:
r) Em 14 de Julho de 2006. a ora Requerente celebrou uma convenção com a Administração Regional de Saúde do Centro ("ARS") - cf. Documento n°138 junto com a petição, cujo teor se dá por reproduzido;
s) Em 18 de Março de 2013. a Requerente celebrou uma convenção com a Direcção Geral de Protecção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública ("ADSE") - cf. Documento n°139 junto com a petição, cujo teor se dá por reproduzido;
t) As convenções celebradas com a ARS ou a ADSE são contratos de adesão em que o preço dos serviços objecto de convenção é idêntico para todos os estabelecimentos aderentes às convenções;
u) Assim, e necessariamente, o IVA liquidado em relação aos serviços prestados no âmbito de tais convenções é incluído pela Requerente no preço final (por dentro do preço), não representando acréscimo no preço (pelo que independentemente de se aplicar ou não o regime de isenção de IVA o preço praticado é o mesmo);
v) Nos termos da Cláusula 2ª da Convenção celebrada entre a ora Requerente e a ARS para efeitos de execução do SIGIC: "Os serviços a contratar e correspondentes valores globais são os constantes do Despacho n°24036/2004, de 29/10.";
w) Mais se prevê no mesmo documento, e quanto ao preço a pagar pelo utente pelos serviços de saúde que utilize no âmbito da referida convenção, que "O acesso aos cuidados de saúde previstos nesta Convenção está sujeito ao pagamento das taxas moderadoras, nos termos da lei" (cf. cit. Documento n°138, Cláusula 9ª), ou seja, o utente paga pelo serviço (independentemente de o preço incluir ou não IVA) o valor da taxa moderadora legalmente estabelecida;
x) Os valores a faturar pelo ... à ARS pelos serviços prestados pelo primeiro aos utentes convencionados "são os constantes da tabela de preços aprovada pelo Despacho n°24036/2004" (cf. cit. Documento nº138. Cláusula 10ª);
y) Na cláusula 5ª, n° l da Convenção celebrada com a ADSE, constante do Doc. N.º139, estabelece-se que: '"Os encargos decorrentes da prestação de serviços de saúde aos beneficiários são pagos de harmonia com as tabelas e regras em vigor";
z) O preço de cada tratamento ou exame é facturado pela Requerente à ARS ou à ADSE individualmente por cada acto ou operação realizada, de acordo com a sua natureza (hotelaria, consumíveis. medicamentos, meios complementares de diagnóstico e terapêutica) e de acordo com os preços previamente estabelecidos, independentemente de a operação em causa ser ou não sujeita a IVA;
aa) O peso relativo da faturação emitida com respeito aos serviços prestados pela Requerente ao abrigo das convenções com a ADSE e com a ARS, no cômputo global da sua faturação por referência aos exercícios de 2011, 2012 e 2013, é o que constada tabela seguinte:
20112012
    2013
Entidade
Percentagem de faturação
ADSE 0% 0% 11.41%
ARS 18,16% 23.43% 15,84%
Total ADSE + ARS 18.16% 23.43% 27.25%
- cf. Documento n°141 junto com a petição, cujo teor se dá por reproduzido, e como resulta do RIT (cit. doc. n°132):
bb) A Requerente foi alvo de um procedimento externo de inspeção tributária iniciado com base na Ordem de Serviço n°…, de 27 de Maio de 2014, emitida pela Direcção de Finanças de …, tendo por objecto os exercícios de 2011, 2012 e 2013, com a finalidade de verificação do enquadramento da Requerente pára efeitos de IVA, em particular quanto à opção pela renúncia à isenção prevista na alínea b) do n°l do artº12° do CIVA - cf. Documento n°142, junto com a petição, cujo teor se dá por reproduzido:
cc) No culminar do procedimento inspectivo, determinaram os SIT que "...considerando a existência de 2 convenções/acordos supra referidas, com os subsistemas de saúde do sistema nacional de saúde (ARS Centro e ADSE), que representam respectivamente 18, 23 e 27% do total de serviços prestados nos anos de 2011, 2012 e 2013, é entendimento da Administração Tributária, que nos termos da línea b) do nº l do artigo 12° do Código do IVA, conjugada com a Base XII da Lei n°48/90 (Lei de Bases da Saúde), a I... não poderia beneficiar do directo de opção, uma vez que, com a celebração dos protocolos com as instituições públicas (ARS e ADSE) passou a estar integrado no sistema nacional de saúde.»;
dd) Consta ainda do RIT: «Propondo-se assim e como consequência deste entendimento a alteração do enquadramento em IVA, passando a "sujeito passivo misto", pois além das prestações de serviços médicos e operações com elas estreitamente conexas - sujeitas a imposto mas isentas, a I... também exerce, conforme atrás referimos, operações sujeitas a imposto e dele não isentas, como sejam entre outras, as relacionadas com a exploração do Bar/Restaurante e as despesas debitadas aos acompanhantes dos utentes internados. Propondo-se também e no seguimento do mesmo entendimento as necessárias correcções ao imposto apurado, especialmente o IVA deduzido relacionado com as prestações de serviços médicos nos períodos em análise (anos 2011, 2012 e 2013).»:
ee) Mais propondo o mesmo Relatório que fosse regularizado o IVA relativo a imóveis, nos termos do n°6 do artigo 24° do CIVA, nos seguintes termos: «- Valor total do IVA deduzido ao imóvel com o artigo matricial 6186, fracções B e C: €1.534.906,72
- IVA dedutível decorrente do pró rata de 3% acima calculado (ano de 2011): €46.047,20(=0,03 x 1.534.906.72)
- Ano da conclusão e início da utilização do imóvel: 2007
- Período ainda não decorrido até perfazer 20 anos, tendo como referência/início de contagem o ano de 2007 e 2011 como ano da regularização para efeitos de IVA: 16
- IVA a regularizar a favor do Estado nos termos da al. h) do n°6 do art°24 do CIVA, último período de 2011: €1.191.087.61 [= 16/20 x (1.534.906,72 -46.047,20)].» Cf PA fls. 35:
ff) Em 20 de Outubro de 2014, a ora Requerente foi notificada do RIT, no qual a AT promove dois tipos de correções decorrentes da alteração do enquadramento em IVA da Requerente, por si operada oficiosamente: 1. Reposição do IVA deduzido nos exercícios de 2011 a 2013 relativo às operações passivas, por passar, "a 'sujeito passivo misto" (cf, RIT - cit. Doc. nº132, pg. 10); 2. Regularização do IVA deduzido relativo a imóveis;
gg) As correções operadas, que se referem a "imposto a considerar indevidamente deduzido nos termos dos artigos 20° e 23° do CIVA, ascendem a € 474.353.00 em 2011, € 512.439,20 em 2012 e € 356.524,73 em 2013" (cf. RIT - cit. Doc. n°132, p. 14).
X
Em sede de fundamentação da decisão da matéria de facto, consignou-se:
«Não há factos com relevo para a apreciação do mérito da causa que não se tenham provado
A decisão proferida quanto à matéria de facto tem por base as posições assumidas pelas partes e não contestadas, a análise crítica dos documentos juntos aos autos pelas partes (entre os quais o Relatório da Inspecção Tributária) e por estas não impugnados, não havendo controvérsia sobre eles». ……..
X
2.2. De Direito.
2.2.1. Nos presentes autos, está em causa decisão arbitral proferida no processo ...-T, que correu termos no Centro de Arbitragem Administrativa e Tributária, que concedeu provimento ao pedido de anulação das liquidações de IVA, referentes aos anos de 2011, 2012 e 2013 e respectivos juros compensatórios, no montante global de €2.779.626,05, formulado por I..., S.A.
2.2.2. A presente intenção impugnatória centra-se sobre
(i) alegada omissão de pronúncia quanto à questão da inconstitucionalidade da decisão de não reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia/TJUE.
(ii) alegada não especificação dos fundamentos de direito que justificam a decisão, porquanto «a decisão de não reenvio limita-se a assumir, sem o justificar, que o reenvio prejudicial “não se revela imprescindível para o julgamento da causa, existindo jurisprudência suficiente que nos elucida sobre o sentido e alcance das normas em apreço”».
(iii) alegado vício de oposição com os fundamentos da decisão, porquanto «se o tribunal arbitral começa por entender que não há ainda decisões jurisprudenciais do TJUE sobre a questão em apreço, não pode depois recorrer a jurisprudência não específica para sustentar a sua decisão».
2.2.3. Para decidir no sentido da anulação das liquidações em apreço, a decisão arbitral estruturou, em síntese, a argumentação seguinte:
«(…) na situação controvertida está em causa saber se os estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares, que optaram pela tributação em IVA por se considerarem não integrados no sistema nacional de saúde, preenchendo portanto as condições previstas no artigo 12.º do CIVA para a renúncia à isenção, devem ou não continuar a ser considerados para tanto elegíveis quando celebram protocolos ou acordos com entidades públicas pertencentes ao serviço nacional de saúde, a fim de prestarem aos beneficiários desses subsistemas prestações de cuidados de saúde abrangidas pela norma de isenção do nº 2) do artigo 9º do aludido Código.
(…)
Assim o artigo 132.º, n.º 1 da Directiva IVA determina o seguinte:
“1. Os Estados-Membros isentam as seguintes operações:
a) (…)
b) A hospitalização e a assistência médica, e bem assim as operações com elas estreitamente relacionadas, asseguradas por organismos de direito público ou, em condições sociais análogas às que vigoram para estes últimos, por estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos;
(…)”
Qual o alcance desta isenção? Para a respectiva aplicação importa verificar do preenchimento simultâneo de requisitos objectivos relativos à natureza das operações e de requisitos subjectivos relativos à qualidade da entidade que as pratica. Quanto aos primeiros, as prestações fornecidas são: (i) a hospitalização ou a assistência médica, ou (ii) operações estreitamente conexas com a hospitalização ou com a assistência médica. Relativamente aos segundos: (iii) o prestador de serviços deve ser um organismo de direito público, ou (iv) deve fornecer as prestações em condições sociais análogas às que vigoram para os organismos de direito público e, (v) deve tratar-se de um estabelecimento hospitalar ou um centro de assistência médica e de diagnóstico ou outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos. // (…) //
Não existindo um reconhecimento expresso e casuístico dos estabelecimentos que praticam as tais "condições sociais análogas" de que fala a directiva, a correcta delimitação deve atender ao escopo das pessoas jurídicas implicadas, e à forma como os serviços são prestados. O legislador nacional, tomando como paradigma a norma relevante da 6ª directiva, só excluiu da renúncia à isenção os hospitais, clínicas, dispensários e similares pertencentes a pessoas colectivas públicas e a instituições privadas que se integrem na chamada "economia social". Nestes termos, as normas do CIVA (n.º 1do artigo 12.º e verba 2.7 da Lista 1) não excluem do direito à renúncia sociedades comerciais que tenham celebrado com o Serviço Nacional de Saúde acordos de prestação de serviços médicos. Não é a existência desses acordos que integra, sem mais, essas entidades no sistema nacional de saúde, para efeitos do CIVA, transformando-as em operadores do sector social da economia. // Acresce que tal entendimento, ao contrário do invocado pela AT, não é posto em causa pela jurisprudência do TJUE sobre a matéria, antes pelo contrário. // Não obstante não existirem decisões jurisprudenciais do TJUE que tratem especificamente sobre a questão de saber quando é que um estabelecimento hospitalar privado efectua prestações em condições sociais análogas às que vigoram para os “organismos de direito público” o Tribunal tem-se pronunciado em diversas ocasiões sobre os requisitos que se devem verificar para que uma entidade privada possa ser considerada como “outro estabelecimento da mesma natureza [a estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico] devidamente reconhecido” praticando condições análogas às impostas às pessoas colectivas de direito público, para efeitos do artigo 132.º, n.º 1, alínea b) da Directiva IVA e consequente aplicação do regime de isenção. // (…) // No tocante aos actos de liquidação em apreço são as seguintes as nossas principais conclusões: (…) // A noção de sistema nacional de saúde para os efeitos constantes do artigo 12.º do CIVA é uma noção de direito fiscal e deve interpretada de acordo com a Directiva IVA, abrangendo os hospitais, clínicas, dispensários e similares pertencentes a pessoas colectivas públicas e a instituições privadas que se integrem na chamada "economia social", como sejam as Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS), as Misericórdias e outras entidades de escopo não lucrativo; // Esta noção não abrange sociedades comerciais, mesmo que estas tenham celebrado acordos com o Estado para a prestação de alguns cuidados de saúde; // (…) // No tocante ao pedido de reenvio prejudicial, não se revela imprescindível para o julgamento da causa, existindo jurisprudência suficiente que nos elucida sobre o sentido e alcance das normas em apreço, pelo que se conclui que não deve ser formulado».
2.2.4. A impugnante coloca sob censura o veredicto em apreço, por entender que o mesmo incorre no vício de omissão de pronúncia quanto à questão da ofensa ao princípio constitucional do acesso ao direito por parte da decisão no mesmo inserta que decide não suscitar o mecanismo do reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça a União Europeia/TJUE, previsto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (1) .
Vejamos.
A omissão de pronúncia sobre questões de que devesse tomar conhecimento é fundamento da nulidade da sentença (artigo 615.º/1/d), CPC). «O conceito de questões abrange tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem» (2).
«O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras» - artigo 608.º, n.º 2, do CPC.
Cumpre, pois, aferir se o argumento em causa configura questão que devia ter sido dirimida por parte da decisão impugnada, de forma que a sua desconsideração configura omissão de pronúncia.
A este propósito, a impugnada defende a improcedência do vício. No seu entender, não foi suscitada pela impugnante qualquer questão de inconstitucionalidade de normas relevantes que coubesse ao tribunal apreciar. Ou, ainda, sustenta, que não foi suscitada tal questão de forma oportuna, através de articulado próprio.
A impugnante defende que ocorreu omissão de pronúncia, na medida em que, confrontada com a possibilidade de uma decisão de recusa de convocação do mecanismo do reenvio prejudicial para o TJUE, a impugnante sustentou, em sede de alegações pré-sentenciais, que a omissão do reenvio prejudicial, num caso como o dos autos, em que está em causa a interpretação da norma do artigo 132.º/1/b), da Directiva IVA, realizada pelo tribunal impugnado, em relação ao qual inexiste segundo grau de jurisdição, com vista à reapreciação da decisão de mérito, configura preterição da obrigação de reenvio prejudicial, consignada no artigo 267.º do TFUE e, nessa medida, constitui ofensa do direito constitucional de acesso ao direito, consagrado no artigo 20.º da CRP.
Vejamos.
O Artigo 267.º do TFUE tem a redacção seguinte:
«O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:
a) Sobre a interpretação dos Tratados;
b) Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
(…)
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal. (…)».
A questão da inconstitucionalidade da decisão de não accionar o mecanismo de reenvio prejudicial, por preterição da obrigação de reenvio e ofensa do direito constitucional de acesso ao direito, foi suscitada pela impugnante em sede de alegações pré-sentenciais. Aí se afirma, designadamente, que «o não reenvio prejudicial, no caso em concreto, implica que seja proferida uma decisão arbitral num litígio onde está em causa a interpretação de normas comunitárias relativas ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, em contraponto com as normas nacionais constantes do CIVA, sem que haja um controlo, em segundo grau de jurisdição, de tal decisão (do não reenvio prejudicial). // A nosso ver, tal facto acarreta uma violação do princípio constitucional do acesso ao direito previsto no artigo 20.º da CRP (…)»; mais refere a impugnante que ocorre preterição do princípio da igualdade, por diferença de tratamento entre as partes que submetem um litígio a um tribunal arbitral e as partes que submetem um litígio a um tribunal comum.
A propósito da interpretação do artigo 267.º do TFUE, cabe referir que «[u]m tribunal cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial, previsto no Direito interno, é obrigado a suscitar a questão prejudicial, se tiver dúvidas sobre a interpretação ou sobre a validade de uma norma comunitária» (3) A noção de “tribunal cuja decisão não é suscetível de recurso judicial de Direito interno” é uma noção de direito europeu, «que deve ser entendida como todo o recurso ordinário, ou seja aberto a cada uma das partes no litígio, e só a elas, sem necessidade de justificação particular e em que é permitido o reexame da aplicação do Direito» (4)
Sobre a obrigação do reenvio prejudicial, o TJUE, no Acórdão de 09.09.2015, proferido no Processo n.º C-160/14, teve ocasião de sublinhar o seguinte: «a verdade é que, quando não exista recurso judicial de direito interno da decisão de um órgão jurisdicional nacional, este é, em princípio, obrigado a submeter uma questão ao Tribunal de Justiça, em conformidade com o artigo 267.°, terceiro parágrafo, TFUE, quando uma questão relativa à interpretação do direito da União seja suscitada perante esse órgão jurisdicional. // Quanto ao alcance da referida obrigação, decorre de jurisprudência consolidada desde a prolação do acórdão Cilfit e o. (283/81, EU:C:1982:335) que um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial de direito interno é obrigado, sempre que uma questão de direito da União seja suscitada perante si, a cumprir a sua obrigação de reenvio, a menos que conclua que a questão suscitada não é pertinente ou que a disposição do direito da União em causa foi já objeto de interpretação por parte do Tribunal de Justiça ou que a correta aplicação do direito da União se impõe com tal evidência que não dê lugar a qualquer dúvida razoável. // O Tribunal de Justiça precisou ainda que a existência de tal eventualidade deve ser avaliada em função das características próprias do direito da União, das dificuldades particulares de que a sua interpretação se reveste e do risco de surgirem divergências jurisprudenciais no interior da União (acórdão Intermodal Transports, C-495/03, EU:C:2005:552, n.° 33)» (5) .
No caso em exame, salvo nos casos do recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento em inconstitucionalidade ou do recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, com fundamento em oposição de julgados, as decisões exaradas pelo tribunal arbitral são proferidas em último grau de jurisdição (artigo 27.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária/RJAT, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20/211, de 20 de Janeiro). Recorde-se que o cerne do litígio subjacente aos presentes autos consiste em saber se a sociedade ora impugnada, pelo facto de ter celebrado protolocos com entidades do sistema nacional de saúde está sujeita ao regime de isenção de IVA, sem possibilidade de opção, na medida em que constitui uma entidade prestadora de cuidados de saúde em condições análogas às dos organismos de direito público, para efeitos do disposto no artigo 132.º/1/b), da Directiva IVA.
Donde resulta que, ao suscitar a questão da violação do princípio do acesso ao direito e do princípio da igualdade, por parte da decisão vertida na sentença arbitral, da recusa de colocação ao TJUE da questão prejudicial relativa à correcta interpretação do disposto no artigo 132.º, n.º 1, alínea b), da Directiva IVA, a impugnante levantou questão de inconstitucionalidade que cabia ao tribunal sindicado dirimir.
O facto da questão ter sido suscitada nas alegações pré-sentenciais não obsta à pertinência e à consequente constituição do tribunal sindicado no dever de decidir a questão suscitada. É que a questão da inconstitucionalidade foi suscitada «durante o processo», tal como decorre do disposto nos artigos 280.º/1/b), da CRP e 70.º/1/b), da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com alterações posteriores.
A omissão de pronúncia sobre a alegada ofensa aos princípios constitucionais do acesso ao direito e do princípio da igualdade por parte da decisão de recusa do reenvio da questão prejudicial relativa à interpretação do preceito do artigo 132.º, n.º 1, alínea b), da Directiva IVA, constante da decisão arbitral constitui vício que, no quadro da economia da mesma, determina a sua anulação na íntegra (artigo 28.º/1/c), do RJAT).
Termos em que se impõe julgar procedente a presente impugnação e, em consequência, determinar a anulação a decisão arbitral questionada.
Fica prejudicado o conhecimento dos demais fundamentos da impugnação.
DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em julgar procedente a impugnação e determinar a anulação da decisão arbitral.
Custas pela impugnada.
Registe.
Notifique.

(Jorge Cortês - Relator)

(Cristina Flora- 1º. Adjunto)

(Ana Pinhol- 2º. Adjunto)

(1)Publicado no JOUE, n.º C – 115, de 09.05.2008.

(2) Jorge Lopes Sousa, CPPT Anotado, 6.º Ed., vol. II, p. 363.

(3) Fausto Quadros e Ana Maria Guerra Martins, Contencioso da União Europeia, Almedina, 2007, p. 88.

(4) Fausto Quadros e Ana Maria Guerra Martins, Contencioso da União Europeia, Almedina, 2007, p. 91.

(5) Acórdão do TJUE, de 09.12.2015, P. C-160/14, §§37 a 39.