Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:06105/10
Secção:CA - 2º. JUÍZO
Data do Acordão:10/23/2014
Relator:CATARINA JARMELA
Descritores:ADMISSIBILIDADE DE RECURSO – ARTIGO 142º N.º 3, AL. B), DO CPTA - PROCESSO DISCIPLINAR – PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA - DEPOIMENTO INDIRECTO - ARTIGO 129º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário:I – Face ao estatuído na al. b) do n.º 3 do art. 142º, do CPTA, é sempre admissível recurso, seja qual for o valor da causa, das decisões proferidas em matéria sancionatória, como é o caso do despacho que aplica uma pena disciplinar.
II – Do princípio da presunção de inocência decorre não só não impender sobre o arguido em processo disciplinar o ónus de reunir as provas indispensáveis para a decisão a proferir, em especial em sede da comprovação dos factos que lhe são imputados, ónus esse que recai sobre a Administração, como também que tal decisão terá de lhe ser favorável sempre que se não puder formular um juízo de certeza sobre a prática desses factos por parte do arguido, pelo que não é apenas em caso de erro manifesto na apreciação das provas que a factualidade dada como provada pode ser objecto de censura.
III – Em processo disciplinar pode ser valorado o depoimento de testemunha que relata uma conversa mantida com o arguido sobre os factos que são objecto da acusação, ainda que o arguido tenha optado por não se pronunciar sobre tais factos no exercício do seu direito ao silêncio.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I - RELATÓRIO
C…… intentou no TAF de Loulé acção administrativa especial para impugnação do despacho, de 14.11.2005, do Secretário de Estado Adjunto e da Administração Interna que concedeu provimento parcial ao recurso hierárquico, revogando o despacho de 8.6.2004, na parte respeitante ao agravamento da pena, e mantendo no demais aquele despacho, assim confirmando a pena de 10 dias de suspensão aplicada pelo despacho punitivo de 20.4.2004. Peticionou ainda a declaração de nulidade do processo disciplinar por enfermar de contradições insanáveis entre a prova produzida e a decisão (despacho punitivo), bem como a condenação da Guarda Nacional Republicana (GNR) a arquivar o presente processo disciplinar por ter sido violado o princípio in dubio pro reo e a repor todos os direitos do autor à data do despacho punitivo.

Por decisão de 14 de Maio de 2009 do referido tribunal – e para além de se considerar a acção proposta contra o Ministério da Administração Interna (art. 10º n.ºs 2 e 4, do CPTA) - foi julgada procedente a presente acção e, em consequência, anulado o despacho da entidade demanda que confirmou a pena de 10 dias de suspensão ao autor, bem como determinado que a entidade demandada reponha todos os direitos do autor à data do despacho punitivo anulado.

Inconformado, o réu interpôs recurso jurisdicional para este TCA Sul, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:

(…)

”.

O recorrido, notificado, apresentou contra-alegações, onde pugnou pela improcedência do recurso. Além disso, suscitou a questão prévia relativa à inadmissibilidade do presente recurso, já que a presente acção tem o valor de € 317,63, ou seja, inferior à alçada do tribunal ad quem (cfr. art. 142º n.º 1, do CPTA).

O Ministério Público junto deste Tribunal notificado para os efeitos do disposto no art. 146º n.º 1, do CPTA, não emitiu parecer.


II - FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença recorrida foram dados como assentes os seguintes factos:
1. O Autor C……, é o soldado da GNR n° …/…….., com domicílio profissional no Posto da GNR de V……..
2. O Autor interpôs neste tribunal a providência cautelar de suspensão da eficácia do acto, que foi julgada procedente e correu termos neste tribunal sob o nº 210/04. 1 BELLE.
3. Foi-lhe aplicada a pena disciplinar de 10 dias de suspensão pelo Senhor Comandante do Grupo da GNR de Faro, proferido em 20.04.2004, na sequência do decurso de procedimento disciplinar, despacho de que foi notificado a 22 de Abril de 2004 - motivação: doc. n° 1 a fls. 8 e 9 dos autos de providência cautelar nº 210/04. 1 BELLE.
4. O Autor interpôs recurso hierárquico da referida punição disciplinar, para o Comandante Geral, no âmbito do qual foi negado provimento ao recurso e agravou a pena disciplinar de dez para quinze dias de suspensão, por Despacho de 8/06/2004 – motivação: doc. n° 2 a fls. 24 a 43 dos autos de providência cautelar nº 210/04. 1 BELLE e processo instrutor, Parecer nº 484-LM/2005 da auditoria jurídica do MAI.
5. O Autor interpôs recurso hierárquico para a entidade demandada, no âmbito do qual foi proferido o Despacho de 14/11/2005 que concedeu provimento parcial ao recurso na parte respeitante ao agravamento da pena, mantendo-o no mais, e confirmou a pena de 10 dias de suspensão aplicada no despacho punitivo de 20/04/2004 – motivação: processo instrutor, Parecer nº 484-LM/2005 da auditoria jurídica do MAI.
6. O Despacho punitivo de 20/04/2004 sufragou as conclusões do oficial instrutor constantes do Relatório Final “por considerar suficientemente provadas, através de prova testemunhal idónea de militares da GNR que nada faz crer que não tenham declarado com verdade nos autos, as violações dos deveres referidos em 2 deste despacho, em virtude de o arguido ter exercido a actividade de segurança privada na discoteca “ B……” em V……, tendo com esta conduta praticado uma infracção grave com acentuado grau de culpa” – motivação: Despacho do Comandante do Grupo da Brigada Territorial nº 3 da GNR, C……, de 20/04/2004, fls. 195 e 196 do processo instrutor.
7. Por sua vez, o Relatório Final sufragado, na Parte III (factos provados) e parte IV (factos não provados) omite concretamente, em relação a cada facto, a motivação que orientou a convicção/motivação do oficial instrutor a considerar aqueles factos como provados ou não provados, limitando-se a uma referência genérica: “Em face da matéria averiguada, tendo em conta o valor probatório da prova testemunhal a sua apreciação segundo as regras da experiência e a livre convicção (artº 127º CPP)” – motivação: Relatório Final, fls. 192 do processo instrutor.
8. No âmbito do processo disciplinar (fase de averiguações), foram ouvidos como testemunhas:
- o militar da GNR, H… P… C… L… C.., fls. 3 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, J… M… E… R…, fls. 8 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, E… J… da S… P…, fls. 9 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, A… P… R… D…, fls. 10 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, M… V… R…, fls. 21 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, L… P… T… F…, fls. 22 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, F… M… S…, fls. 24 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, J… M… C…-, fls. 25 e 45 do Pr. Instr.
- a militar da GNR, D… T…, fls. 26 do Pr. Instr.
- a militar da GNR, L… R…, fls. 27 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, D… M…, fls. 29 do Pr. Instr.
- a militar da GNR, S… N…, fls. 30 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, F… F…, fls. 31 do Pr. Instr.
- a militar da GNR, E… P…, fls. 33 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, L… F…, fls. 34 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, H… D…, fls. 37 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, N… M…, fls. 42 do Pr. Instr.
- a militar da GNR, A… G…, fls. 43 do Pr. Instr.
9. O Autor declarou não pretender prestar declarações – motivação: “auto de interrogatório de arguido”, fls. 80 e fls. 145 do processo instrutor.
10. No âmbito do processo disciplinar (fase de inquérito), foram ouvidos como testemunhas:
- o militar da GNR, R… B…, fls. 116 e 144 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, J… M… C…, fls. 117 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, J… M…, fls. 118 do Pr. Instr.
- o militar da GNR, F… F…, fls. 119 do Pr. Instr.
- o segurança R… J…, fls. 121 do Pr. Instr.
- o gerente P… R…, fls. 122 do Pr. Instrutor.
- o relações públicas M… S…, fls. 123 do Pr. Instrutor.
- o segurança L… G…, fls. 124 do Pr. Instr.
- a militar da GNR E… P…, fls. 128 do P. Instrutor.
- o chefe de sala P… S…, fls. 132 do P. instrutor.
- o barman P… S…, fls. 133 do P. Instrutor.
- os empresários A… Q… e J… R…, fls. 134 e 135, respectivamente do P. Instrutor.
- a esposa do Autor, M…A… M…, fls. 136 do P. inquérito.
- o militar da GNR J… S… e S…, fls. 143 do P. Instrutor.

Nos termos do art. 712º n.º 1, al. a), do CPC de 1961, ex vi art. 140º, do CPTA, procede-se à alteração da factualidade dada como provada nos seguintes termos:
- O facto 7. é substituído pelo seguinte facto:
7. O relatório final foi proferido em 30.3.2004, o qual consta de fls. 187 a 193, do processo instrutor, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

- Ao facto 8., é aditado o seguinte segmento:
Cujos depoimentos se dão por integralmente reproduzidos.

- Ao facto 10. são aditados os seguintes segmentos:
Cujos depoimentos se dão por integralmente reproduzidos.
Foi ouvida como testemunha S… C… V… M…, a fls. 164, do processo instrutor, cujo depoimento se dá por integralmente reproduzido.
Os depoimentos de fls. 143 – do militar da GNR J… W… S… e S… - e 144 - do militar da GNR R… A… M… B… –, do processo instrutor, foram declarados nulos, sendo substituídos pelos depoimentos de fls. 152 – do militar da GNR R… A… M… B… - e 161 – do militar da GNR J… W… S… e S… -, do processo instrutor, os quais se dão por integralmente reproduzido (cfr. fls. 147 e 148, do processo instrutor).

- É aditado o seguinte facto 11.:
11. Dá-se por integralmente reproduzido o teor dos documentos juntos a fls. 1, 6, 12, 59 a 62 e 64 a 78, do processo instrutor.
*
Presente a factualidade antecedente, cumpre entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.

As questões suscitadas - pelo recorrente e pelo recorrido - resumem-se, em suma, em determinar se a decisão recorrida:

- é irrecorrível;

- é nula, nos termos do art. 668º n.º 1, als. b) e c), do CPC de 1961;

- enferma de erro ao ter julgado procedente a presente acção (cfr. alegações de recurso e respectivas conclusões, supra transcritas, e contra-alegações).


Passando à apreciação da questão relativa à irrecorribilidade da decisão recorrida

O recorrido, nas respectivas contra-alegações, pugna pela rejeição do recurso jurisdicional interposto pelo réu, invocando, para tanto e em síntese, o seguinte:

- O valor da presente acção é de € 317,63, valor aceite pelo recorrente;

- Sendo o valor da acção inferior à alçada do tribunal ad quem, o presente recurso é inadmissível (cfr. art. 142º n.º 1, do CPTA).


Apreciando.

A presente acção foi intentada em Fevereiro de 2006 e na petição inicial foi indicado o valor de € 317,63 como valor da acção, o qual não foi impugnado pelo réu, ora recorrente, nem foi suscitado pelo juiz o incidente de verificação do valor da causa.

Assim, e face ao estatuído nos arts. 314º n.º 4 e 315º n.ºs 1 e 2, ambos do CPC de 1961, na redacção anterior ao DL 303/2007, de 24/8, o valor da causa é, por acordo tácito das partes, de € 317,63.

A presente acção tem, assim, um valor (€ 317,63) inferior à alçada do tribunal recorrido - a qual é de € 3 740,98 (cfr. arts. 6º n.ºs 3 e 6, do ETAF, e 24º n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 3/99, de 13/1, na redacção anterior ao DL 303/2007, de 24/8) -, pelo que, de acordo com o disposto no art. 142º n.º 1, do CPTA, não é admissível recurso da decisão recorrida.

Tal recurso é, no entanto, admissível face ao estatuído na al. b) do n.º 3 desse art. 142º, de acordo com o qual é sempre admissível recurso, seja qual for o valor da causa, das decisões proferidas em matéria sancionatória, como é o caso do despacho de 14.11.2005, do Secretário de Estado Adjunto e da Administração Interna, impugnado nestes autos, o qual confirmou a pena disciplinar de 10 dias de suspensão aplicada pelo despacho de 20.4.2004.

Com efeito, e como esclarecem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª Edição, 2010, pág. 930, em anotação ao n.º 3 do citado art. 142º:
Para além desses casos, é sempre admissível recurso nas situações especificadas nas diversas alíneas do n.° 3, a saber: (a) de decisões que julguem improcedente pedido de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias; (b) de decisões proferidas em matéria sancionatória; (c) de decisões proferidas contra jurisprudência uniformizada pelo STA; (d) de decisões que ponham termo ao processo sem se pronunciarem sobre o mérito da causa.
Nos dois primeiros casos, a admissibilidade do recurso, independentemente do valor da causa, é justificada pela especificidade da matéria que constitui objecto do processo e pela natureza dos direitos ou interesses que poderão estar em causa.
(…)
A alínea b) abrange decisões (de procedência ou improcedência) relativas a processos que envolvam a aplicação de penas disciplinares, de sanções estatutárias ou de sanções referentes à prática de ilícitos administrativos e pretende garantir a existência de um segundo grau de jurisdição em relação a matérias que, independentemente da utilidade económica imediata que poderá estar em causa, têm um significativo reflexo, quer na perspectiva do interesse público que à Administração cabe prosseguir, quer dos interesses dos funcionários ou agentes envolvidos (preservação da idoneidade moral e profissional, eventuais efeitos negativos no desenvolvimento da carreira).” (sublinhados e sombreado nossos).

Nestes termos, tem de improceder a presente questão prévia.

Passando à apreciação da questão respeitante à invocada nulidade da decisão recorrida

Invoca o recorrente que a decisão recorrida é nula nos termos do art. 668º n.º 1, do CPC de 1961, concretamente da sua:

- al. b) - (i) -, já que não foram suficientemente especificados os fundamentos de facto que justificaram a decisão proferida, não se tendo explicitado porque se considerou que, apesar dos depoimentos prestados no processo disciplinar, designadamente o da testemunha H… L… C…, os indícios recolhidos não eram suficientes para formar a convicção segura da materialidade dos factos que motivaram a punição;

- al. c) - (ii) -, pois, tendo sido dado como provado que a testemunha H… L… C… afirmou ter visto o autor a fazer serviço de segurança privada na data constante da nota de culpa, não tendo o seu depoimento sido considerado como carecendo de credibilidade, inexacto ou contraditório, existe oposição entre a decisão proferida e aquele fundamento.

Dispõe o art. 668º n.º 1, do CPC de 1961, que:
“É nula a sentença:
(…)
b) Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão;
(…)”.

As nulidades invocadas improcedem, já que:

(i) – e no que respeita à nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do mencionado art. 668º (falta de fundamentação), esta só ocorre quando se verifica falta absoluta de fundamentação, e não quando a fundamentação enunciada é insuficiente, medíocre, contraditória ou errada;
(i) – e no que concerne à nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do referido art. 668º, esta nulidade reconduz-se a um vício lógico no raciocínio do julgado em que as premissas de facto e de direito apontam num sentido e a decisão segue caminho oposto, ou, pelo menos, direcção diferente, o que não se verifica, pois a decisão de procedência que foi proferida está de acordo com os fundamentos invocados – existem dúvidas quanto à prática de infracção disciplinar pelo autor, ora recorrido, na precisa circunstância de tempo e lugar que consta da nota de culpa, face à prova produzida, nomeadamente os depoimentos das testemunhas arroladas pela defesa, e tendo ainda em conta que os depoimentos indirectos são irrelevantes e que o recorrido não confessou os factos.

Nestes termos, tem de improceder a arguição de nulidade da decisão recorrida.

Passando à análise da questão relativa ao erro de julgamento da decisão recorrida

O recorrente defende que a decisão ora sindicada incorreu em erro de julgamento, já que da prova produzida no processo disciplinar – designadamente depoimentos das testemunhas H… L… C…, J… E… R…, J… M… C…, J… W… S… da S… e R… A… M… B… - resulta com inteira segurança que o autor, ora recorrido, praticou os actos descritos na acusação e que motivaram a sua condenação, conforme foi devidamente analisado no relatório final de fls. 187 a 193.

Acrescenta ainda que o juízo a que a Administração chegou quanto à factualidade dada como provada se insere no âmbito da margem de livre apreciação da prova que lhe é reconhecida, só podendo ser objecto de censura judicial se tivesse havido erro sobre o valor legal da provas, erro manifesto na sua apreciação ou desvio de poder, o que considera que não ocorre no caso em apreciação.

Passemos, então, à análise do acerto (ou não) da decisão judicial recorrida, a qual anulou o despacho impugnado, de 14.11.2005, por entender que, surgindo dúvidas quanto à prática da infracção pelo recorrido, há que aplicar o princípio in dubio pro reo.

Como é jurisprudência corrente, no âmbito do processo disciplinar aplicam-se algumas das regras e princípios de defesa constitucionalmente estabelecidos para o processo penal, como é o caso do princípio da presunção de inocência do arguido, acolhido no n.° 2 do art. 32°, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

A aplicação ao caso em análise do princípio da presunção de inocência sempre decorreria do disposto no art. 7º, do Regulamento de Disciplina da GNR (RDGNR), aprovado pela Lei 145/99, de 1/9 [“Em tudo o que não estiver previsto no presente Regulamento são subsidiariamente aplicáveis, com as devidas adaptações, os princípios gerais do direito sancionatório, o Código do Procedimento Administrativo, a legislação processual penal e, na parte não incompatível, o Regulamento de Disciplina Militar.”].


O princípio da presunção de inocência tem como principais corolários nomeadamente:

- a proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido, o que acarreta, designadamente, a ilegalidade de qualquer tipo de presunção de culpa em desfavor do arguido;

- o princípio in dubio pro reo, implicando a absolvição em caso de dúvida do julgador sobre a culpabilidade do acusado – neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª Edição Revista, 2007, pág. 518.

Deste princípio da presunção de inocência decorre, portanto, não só não impender sobre o arguido em processo disciplinar o ónus de reunir as provas indispensáveis para a decisão a proferir, em especial, em sede da comprovação dos factos que lhe são imputados, ónus esse que recai sobre a Administração, como também que tal decisão terá de lhe ser favorável sempre que se não puder formular um juízo de certeza sobre a prática desses factos por parte do arguido.

Ou dito por outras palavras, não sendo os indícios recolhidos no processo disciplinar suficientes para formar uma convicção segura da materialidade dos factos, por a punição ter que assentar em factos que permitam um juízo de certeza sobre a prática da infracção pelo arguido, a este não pode ser imputada a conduta disciplinarmente reprovada, pelo que um non liquet em matéria probatória se resolve a favor do arguido por aplicação do citado princípio – neste sentido, entre outros, Acs. do STA de 18.4.2002 (Pleno), proc. n.º 33881, 28.4.2005, proc. n.º 333/05, 1.3.2007, proc. n.º 1199/06, e 28.6.2011, proc. 900/10, Acs. do TCA Sul de 9.10.2008, proc. n.º 1782/06 (“VI) - Segundo as regras gerais do ónus da prova, é o titular do poder disciplinar que tem que provar os factos constitutivos ou integrativos da infracção disciplinar, vigorando ainda no âmbito do processo disciplinar, em conformidade com a jurisprudência corrente, o princípio da presunção de inocência, acolhido para o processo penal no art. 32º, nº 2 da CRP, o qual tem, como um dos seus corolários, a proibição da inversão daquele ónus, de que decorre não só que não impende sobre o arguido o ónus de reunir as provas indispensáveis para a decisão a proferir, como tal decisão terá de lhe ser favorável sempre que não for possível formular um juízo de certeza sobre a prática dos factos integradores da infracção”), 18.3.2010, proc. n.º 5503/09, e 2.6.2010, proc. n.º 5260/01, Acs. do TCA Norte de 2.10.2008, proc. n.º 1551/05.8 BEPRT, e 20.1.2012, proc. n.º 851/07.5 BEPRT, Mário Aroso de Almeida, Sobre as regras de distribuição do ónus material da prova no recurso contencioso de anulação de actos administrativos – Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (1ª Secção) de 26.1.2000, P. 37 739, CJA n.º 20 (Março/Abril 2000), pág. 50 [“(…) no domínio da impugnação de actos de aplicação de sanções disciplinares (Domínio no qual o ponto é pacífico, por transposição do processo penal do princípio da presunção de inocência…) (…) sobre a Administração recai o risco da falta de demonstração dos factos constitutivos da posição que fez valer no plano extra-judicial, praticando o acto impugnado.”], e Paulo Veiga e Moura, Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública, Anotado, 2ª Edição, 2011, pág. 257.

Assim, e ao contrário do alegado pelo recorrente, não é apenas em caso de erro manifesto na apreciação das provas que a factualidade dada como provada pode ser objecto de censura.

Com efeito, e como se esclarece no Ac. do STA de 26.4.2006, proc. n.º 0556/04, “Efectivamente, na apreciação do que deve ou não considerar-se como provado em processo disciplinar o juiz administrativo não encontra nenhuma limitação aos seus poderes de sindicância da legalidade do acto punitivo. Nesse domínio, a Administração exerce uma actividade estritamente vinculada, não dispondo da faculdade discricionária de optar por considerar ou não provada determinada conduta ou omissão, em função do que melhor se ajuste ao interesse público. Isto é da natureza de todo o processo sancionador, mas é particularmente importante nos processos disciplinares, em que, por lei, são supletivamente aplicáveis as normas e princípios de Direito Penal e Processual Penal – arts. 9º e 35º do Estatuto Disciplinar.(1) Em causa estaria, igualmente, a presunção de inocência de que todo o arguido beneficia.

(…)

Por um lado, a sobreposição do juízo valorativo do tribunal ao da Administração num campo como este, em que não há liberdade administrativa para integrar conceitos nem existem aspectos de tecnicidade que não esteja ao alcance do tribunal avaliar, é uma natural consequência dos seus poderes para reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos entre entidades públicas e particulares no âmbito das relações jurídicas administrativas (arts. 212º, nº 3, da C.R.P. e 3º do ETAF). Doutro modo, estar-se-ia perante um chocante défice de tutela jurisdicional, garantida pela Constituição – art. 268º, nº 4.

Por outro, não somente os erros ostensivos, mas todos os erros susceptíveis de acarretar a ilegalidade da decisão punitiva, podem levar o tribunal a decretar uma pronúncia anulatória. Pela simples razão de que será ilegal toda a punição baseada na prova de um facto cuja realidade se não demonstrou – seja essa conclusão manifestamente desacertada ou possa apenas colher-se após uma análise mais aprofundada e laboriosa das provas.” (sublinhados e sombreados nossos) – também, neste sentido, entre outros, Acs. do STA de 18.4.2002 (Pleno), proc. n.º 33881, e 28.6.2011, proc. 900/10, Acs. do TCA Sul de 2.6.2010, proc. n.º 5260/10, e 20.12.2012, proc. n.º 6944/10 (“3. O poder disciplinar é discricionário, mas com aspectos vinculados, sendo um destes o que se relaciona com a qualificação jurídica dos factos reais”), e Ac. do TCA Norte de 20.1.2012, proc. n.º 851/07.5 BEPRT.

Retomando o caso vertente, importa, assim, apreciar se, no âmbito do processo disciplinar, foram produzidos (ou não) meios de prova que permitem a formulação de um juízo de certeza sobre a realidade dos factos que integram o ilícito disciplinar imputado ao autor, ora recorrido. Esses factos são, em resumo, os seguintes: o recorrido, Soldado da GNR, nos dias 27.6.2003 - entre a 1 hora e 30 minutos e as 2 horas e 30 minutos - e 18.7.2003 - cerca das 2 horas -, encontrava-se na Discoteca “B….”, em V… - área do Posto Territorial onde se encontrava colocado e prestava serviço -, junto à respectiva porta principal, a exercer a actividade de segurança privada, utilizando para o efeito uma “raquete” detector de metais que passava nos clientes da Discoteca (cfr. fls. 192, do processo instrutor).

O recorrente argumenta que da prova produzida no processo disciplinar – designadamente depoimentos das testemunhas H… L… C…, J… E… R…, J… M… C…, J… W… S… e S… e R… A… M… B… - resulta com inteira segurança que o recorrido praticou tais factos.

O recorrido salientou ao longo do processo disciplinar e também no âmbito deste processo judicial que os depoimentos das testemunhas J… W… S… e S… e R… A… M… B… não podem ser considerados, no segmento em que se traduzem em testemunhos de “ouvir dizer”, sob pena de violação do art. 129º, do Código de Processo Penal (CPP).

Apreciando.

A testemunha J… W… S… e S… referiu que, em 20.7.2003, o autor, ora recorrido, após ter pedido para falar consigo, confirmou na sua presença, na Secção de Inquéritos do Posto da GNR de V…, que trabalhou com um detector de metais na Discoteca “B…”, por duas ou três vezes. Mais esclareceu que, após ter chamado o 2º Sargento R… A… M… B.., o recorrido confirmou também perante este a referida factualidade (cfr. fls. 161, do processo instrutor).

Por sua vez a testemunha R… A… M… B… afirmou que, no dia 20.7.2003, foi chamado pelo 1º Sargento J… W… S… e S… ao Posto da GNR em V…, onde se dirigiu, concretamente à Secção de Inquéritos, aí se encontrando presentes o referido 1º Sargento e o recorrido. Mais esclareceu que, de imediato, o 1º Sargento J… S… afirmou que o recorrido lhe tinha dito ter trabalhado na Discoteca “B…” e o recorrido confirmou tal afirmação, abanando a cabeça afirmativamente (cfr. fls. 152, do processo instrutor).

Verifica-se, assim, que estas duas testemunhas [o mesmo ocorrendo com o testemunho de F… M… L… L… da C… F… – cfr. fls. 31, do processo instrutor] relatam uma conversa mantida com o arguido/recorrido sobre factos pelos quais este foi condenado em processo disciplinar.

A propósito desta questão passa-se a transcrever o Ac. da Rel. Guimarães de 17.3.2014, proc. n.º 119/13.8, por se concordar com o foi escrito:

(…) 1ªquestão: Na tese recursiva, uma vez que a convicção do tribunal no sentido de que era a arguida que conduzia o veículo automóvel nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas nos autos, se baseou tão-só nos depoimentos das testemunhas CAMILO… S... e JOÃO… G..., sendo que estas prestaram depoimentos indirectos, as suas declarações não podem ser valoradas dado que a arguida se remeteu ao silêncio em audiência de julgamento.

Estabelece o art. 128.º n.º 1 do C.P.Penal que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto de prova.

Apesar desta regra, não está completamente arredado o testemunho de “ouvir dizer”, dispondo o art. 129.º do C.P.Penal, sob a epígrafe Depoimento indirecto:

«1. Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.

2. (…)

3. Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos».

O depoimento indirecto é, pois, uma excepção, só podendo ser valorado nos estritos termos previstos nesta norma.

Muito se tem discutido acerca da distinção entre depoimento directo e depoimento indirecto. A este propósito é elucidativo o Ac.R.Porto de 24/9/2008, proc. n.º0843468, relatado pelo Desembargador António Gama, disponível in www.dgsi.pt., «O critério operativo da distinção entre depoimento directo e indirecto é o da vivência da realidade que se relata: se o depoente viveu e assistiu a essa realidade o seu depoimento é directo, se não, é indirecto.»

Considerando que o depoimento indirecto é a comunicação de um facto de que o sujeito teve conhecimento por um terceiro, afigura-se-nos que não constitui depoimento indirecto o prestado por uma testemunha que relata o que ouviu o arguido dizer, pois versa sobre factos de que directamente teve conhecimento na conversa que estabeleceu com o arguido.

No caso presente as testemunhas relataram a conversa que tiveram com a arguida, pelo que estamos perante depoimentos directos; diferente seria se as testemunhas relatassem o que ouviram dizer a um dos interlocutores numa conversa a que não assistiram.

Por não estarmos perante depoimentos indirectos cuja validade dependa do chamamento a depor da testemunha-fonte, não tem aplicação o regime do art.129.º n.º1 do C.P.Penal.

Mas ainda que se considerasse, como defende alguma jurisprudência, que as declarações de uma testemunha relatando conversa mantida com o arguido constituem depoimento indirecto, sempre in casu os depoimentos das testemunhas podiam ser valorados, não obstante o silêncio da arguida .(2)

«É inquestionável que, nos termos do normativo do artigo 343º, do CPP, (3) o arguido é inteiramente livre de se pronunciar sobre os factos da acusação ou sobre os que resultarem da discussão da causa, assistindo-lhe inclusivamente o direito de se remeter ao silêncio, sem que daí o tribunal possa extrair ilações, em seu prejuízo ou benefício. Porém, a coberto desse silêncio não pode impedir que o tribunal aprecie livremente os depoimentos das testemunhas, ainda que a razão de ciência das mesmas radique em informações ou declarações que o arguido lhe tenha prestado. Com efeito, nesses casos, não pode afirmar-se a afectação do contraditório, que é a razão subjacente à proibição de depoimentos indirectos estabelecida no artigo 129º, do C. P. Penal.» - Ac.R.Guimarães de 17/5/2004, proc. n.º2012/03.2, relatado pelo Desembargador Heitor Gonçalves.

O direito ao silêncio não visa beneficiar o arguido, condicionando a prova testemunhal; decorre antes do princípio do acusatório, que impõe à acusação o dever de provar os factos que imputa ao arguido, facultando a este um comportamento que possa obstar à sua auto-incriminação.
Ora, estando o arguido presente em audiência, pode sempre contraditar a testemunha que relatou aquilo que lhe ouviu dizer, requerer as diligências que entenda pertinentes, de forma a demonstrar a sua falta de idoneidade.

Esta interpretação não viola o art. 32.º n.º e 5 da C.R.P, pois, conforme decidiu o Ac.T.C de 8/7/99, publicado no DR, II Série, de 9/11/99, o art.129.º n.º1 do C.P.Penal, «interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatam conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido». Esta posição foi reafirmada no Ac.T.C n.º440/99, disponível in www.tribunalconstitucional.pt.

Assim, a valoração dos depoimentos das testemunhas CAMILO… S... e JOÃO… G... não constitui prova proibida.

(…)” (sombreados nossos).

Do exposto decorre que os depoimentos de J… W… S… e S… e R… A… M… B… são depoimentos directos, já que os mesmos relatam factos que tiveram conhecimento pelo arguido/recorrido [através dos seus próprios sentidos, concretamente através de uma percepção visual e/ou auditiva] e não por um terceiro, e, portanto, realidade não enquadrável no art. 129º, do CPP – também neste sentido, entre outros, Acs. da Rel. do Porto de 9.2.2011, proc. n.º 195/07.2, e 23.10.2013, proc. n.º 200/08.5 (“Está sujeito a livre valoração, sem necessidade de observância do regime do artigo 129º, nº 1, do CPP, o depoimento de uma testemunha quanto ao que ouviu dizer ao arguido fora do âmbito de processo”), Acs. da Rel. de Coimbra de 13.12.2011, proc. n.º 473/08.3, 20.12.2011, proc. n.º 160/10.2, 15.2.2012, proc. n.º 41/07.7, e 26.6.2013, proc. n.º 220/11.2, Acs. da Rel. de Guimarães de 25.2.2009, proc. n.º 736/08.8, 25.5.2009, proc. n.º 359/06 (“I – Se uma testemunha conta que o arguido lhe disse que foi participante num furto e até lhe indica, com pormenores significativos (posteriormente confirmados) onde se encontram os objectos furtados, não está a depor indirectamente, mas a relatar factos concretos por si directamente ouvidos e vistos II – O conhecimento que a testemunha transmite nesse depoimento é aquele que ela própria adquiriu através dos seus próprios sentidos;”), e 31.3.2013, proc. n.º 8/10 (“I – Não profere um depoimento indireto o polícia que no julgamento relata as diligências efetuadas, ainda na fase de recolha de indícios, para a recuperação de bens furtados, incluindo no relato as indicações que o arguido deu sobre o local onde estavam os objectos.”), e Ac. da Rel. de Évora de 4.6.2013, proc. n.º 40/11 (“1. Se os agentes policiais percepcionaram directamente os factos – mesmo que os “factos” sejam o declarado pelo ainda não arguido – não há depoimento indirecto”).

Mesmo que se entenda que tais depoimentos são depoimentos indirectos e enquadráveis no art. 129º, do CPP. (4) [realidade distinta é o depoimento que se limita a reproduzir vozes ou rumores públicos, o qual é absolutamente proibido – cfr. art. 130º n.º 1, do CPP], sempre se teria que concluir no sentido da sua admissibilidade, pois foi assegurado o exercício do contraditório, já que foi dada a oportunidade ao autor, ora recorrido, de se pronunciar sobre os factos que lhe eram imputados, tendo o recorrido optado por se remeter ao silêncio, não exercendo a faculdade concedida pelo art. 93º n.º 2, do RDGNR, de ser ouvido sempre que o solicitasse (estratégia que o arguido/recorrido e a respectiva defensora entenderam servir melhor a defesa – cfr. n.º 9), dos factos provados). Acresce que a defensora do recorrido esteve presente na inquirição das referidas duas testemunhas, inclusive colocando questões às mesmas.

Dito por outras palavras, na disciplina legal do art. 129º, do CPP, é suficiente a tentativa de realização do contraditório e não é de exigir a efectiva consumação de tal princípio para que o depoimento indirecto tenha potencialidade para ser valorado – neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 27.6.2012, proc. n.º 127/10.0 (“XVI - O n.º 1 do art. 129.º do CPP (conjugado com o n.º 1 do art. 128.º) deve ser interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio. XVII - O direito ao silêncio do arguido circunscreve-se a uma dimensão positiva que lhe confere a faculdade de se manter em silêncio ao longo de todo o processo e, em especial, na audiência de julgamento (arts. 61.º, n.º 1, al. d) e 343.º, n.º 1, in fine), sem que tal comportamento possa ser interpretado em seu desfavor. Colide com o princípio da legalidade da prova (art. 125.º do CPP) a atribuição ao direito ao silêncio do efeito negativo de obstaculizar qualquer depoimento sobre o que o mesmo referiu anteriormente.”), Ac. da Rel. de Coimbra de 18.4.2012, proc. n.º 431/09.0, Acs. da Rel. de Guimarães de 18.3.2013, proc. n.º 753/09.0 (“I – O direito do arguido ao silêncio não assenta no intuito de o beneficiar, condicionando a prova testemunhal, mas decorre do princípio do acusatório, que impõe à acusação o dever de provar os factos imputados. II – Tendo o arguido optado por não prestar declarações no exercício do seu direito ao silêncio, o tribunal pode valorar livremente o depoimento de testemunha que relate conversas tidas com ele, mesmo na parte em que se trata de testemunho de ouvir dizer”), 22.4.2013, proc. n.º 533/12.6, e 3.2.2004, proc. n.º 693/12.6.

No âmbito do processo disciplinar o recorrido, através da sua defensora, também invocou a nulidade dos depoimentos de J… W… S… e S… e R… A… M… B… por violação dos arts. 356º n.ºs 7 e 8 e 357º, ambos do CPP, mas sem razão.

Com efeito, esses normativos legais não são, desde logo, aplicáveis no caso em apreciação, pois, quando o recorrido, no dia 20.7.2003, reconheceu perante as testemunhas J… W… S… e S… – cumprindo salientar que o referido reconhecimento surgiu na sequência de o recorrido ter pedido para falar com esta testemunha, ou seja, de relato espontâneo do recorrido - e R… A… M… B… que tinha trabalhado na Discoteca “B…, ainda não tinha sido instaurado o processo de averiguações (e sendo certo que as referidas testemunhas não tinham competência para o efeito – cfr. arts. 60º n.º 3 e 107º, ambos do RDGNR, e respectivo anexo B -, mas apenas para participar os factos – cfr. art. 66º, do RDGNR -, o que foi feito), o que só ocorreu em 31.7.2003, conforme decorre do despacho exarado na participação de fls. 1, do processo instrutor – neste sentido, entre outros, Acs. do STJ de 15.2.2007, proc. n.º 06P4593, 27.6.2012, proc. n.º 127/10.0 (“IV - De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º do CPP). V - Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo.”), e 12.12.2013, proc. n.º 292/11.0 JAFAR, Ac. da Rel do Porto de 17.4.2013, proc. n.º 59/11.5, Acs. da Rel. de Coimbra de 18.6.2014, proc. n.º 356/12.2, 11.9.2013, proc. n.º 71/11.4, e 26.6.2013, proc. n.º 220/11.2, Acs. da Rel. de Guimarães de 25.2.2009, proc. n.º 736/08.8, 25.5.2009, proc. n.º 359/06, 31.3.2013, proc. n.º 8/10 (“II – O relato no julgamento das denominadas “conversas informais” com o arguido apenas é proibido quando com ele se frustra o seu direito ao silêncio. Pressuposto desse direito é a existência de um inquérito e a condição de arguido: a partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei”), e 22.4.2013, proc. n.º 533/12.6, e Ac. da Rel. de Évora de 4.6.2013, proc. n .º 40/11.

Conclui-se, assim, que não configura qualquer ilegalidade a consideração dos depoimentos de J… W… S… e S… e R… A…. M… B… (e de F… M… L… L… da C… F…), enquanto prova testemunhal (e não como confissão do arguido/recorrido – razão pela qual se encontra prejudicado o conhecimento da questão relativa à alegada nulidade dessa confissão -, conforme é reconhecido no acto impugnado), no segmento em que relatam conversa mantida com o recorrido, pelo que enferma de erro a decisão recorrida no segmento em que considerou que tais depoimentos são indirectos e, em consequência, inadmissíveis.


*
O recorrido alegou na petição inicial que a testemunha H… P… C… L… C… só o pretende prejudicar, não só no âmbito deste processo, mas também através das suspeitas que levantou contra a sua pessoa relativamente a um livro de autos que o referido H… C… perdeu. Mais referiu que em sede de recursos hierárquicos peticionou a junção de certidão das declarações prestadas pelo mencionado H… C…, no processo de averiguações relativo ao desaparecimento do livro de autos que lhe estava distribuído (onde o mesmo afirma que desconfia do recorrido), a fim de provar a inimizade desta testemunha para com a sua pessoa, o que foi recusado e na sua perspectiva viola o princípio da descoberta da verdade e os seus direitos de defesa consagrados na CRP.

O recorrido também invocou nesse articulado que esta testemunha (H… C…) conduziu durante vários meses um motociclo sem que para tal estivesse habilitado, na área do Posto onde prestava serviço (V…), tendo sido várias vezes questionado pelo Comandante de Posto (Sargento Ajudante S…) sobre se tinha ou não licença de motociclo, sempre tendo respondido que estava habilitado para tal. Esclareceu que, mais tarde, o Comandante do Posto de Vilamoura descobriu que tal testemunha não tinha licença para conduzir motociclos, razão pela qual a mesma foi alvo de processo disciplinar e punida por tal facto. Salienta que estas mentiras ditas ao Comandante de Posto retractam a credibilidade e a idoneidade da testemunha H… C…. Para prova destes factos peticionou a junção aos autos desse processo disciplinar.

O recorrido alegou ainda que a testemunha H… C… gastava mais do que as suas possibilidades, contraindo dívidas, o que foi confirmado pelo testemunho do Sargento B….

Apreciando.

O recorrido explica que, a junção ao presente processo disciplinar de certidão das declarações prestadas por H… C… - no processo de averiguações relativo ao desaparecimento do livro de autos que lhe estava distribuído, onde o mesmo afirma que desconfia do recorrido –, destina-se a provar a inimizade do mesmo para com o recorrido.

Ora, esta certidão não é idónea a provar essa alegada inimizade, já que tal inimizade não se pode deduzir de forma segura dessas declarações de H… C… (em que o mesmo referirá que desconfia do recorrido). Assim, improcede a alegação do recorrido de que (ao ter sido recusada a junção da referida certidão ao presente processo disciplinar) foi violado o princípio da descoberta da verdade e os seus direitos de defesa consagrados na CRP.

Quanto ao demais, cumpre apenas salientar que não é possível inferir que H… C… faltou à verdade, no âmbito do presente processo disciplinar, pelo facto de ter faltado à verdade quanto às suas habilitações (concretamente quanto à titularidade de habilitação legal para conduzir motociclos) e de ter algumas dívidas, razão pela qual não tem interesse a junção aos autos do processo disciplinar em que H… C… foi arguido.

Dito por outras palavras, o que interessa apurar é se o depoimento que H… C… prestou no presente processo disciplinar é, face à restante prova produzida, credível.


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Passemos, então, a apreciar o acerto (ou não) da decisão recorrida ao considerar que inexiste prova suficiente da prática pelo recorrido dos factos que lhe foram imputados no relatório final, ou seja, ao considerar que existe uma dúvida razoável, fundada e irredutível quanto à prática desses factos.

Como acima referido, o despacho impugnado aplicou ao recorrido a pena de 10 dias de suspensão por considerar provado que este, nos dias 27.6.2003 - entre a 1 hora e 30 minutos e as 2 horas e 30 minutos - e 18.7.2003 - cerca das 2 horas -, encontrava-se na Discoteca “B…”, em V… - área do Posto Territorial onde se encontrava colocado e prestava serviço -, junto à respectiva porta principal, a exercer a actividade de segurança privada, utilizando para o efeito uma “raquete” detector de metais que passava nos clientes da Discoteca.

Ora, verifica-se que a testemunha H… P… C… L… C…, Soldado da GNR, a exercer funções no mesmo Posto (de V…) que o recorrido, afirmou, de forma peremptória, que viu o recorrido, nesses dias e horas, a praticar tal actividade de segurança privada, utilizando para o efeito um detector de metais (cfr. fls. 3 do processo instrutor).

Este testemunho, no que respeita ao exercício de tal actividade de segurança privada pelo recorrido, foi corroborada pelos depoimentos das seguintes testemunhas, os quais se mostram credíveis, já que convergentes e isentos:

- F… M… L… L… da C… F…, Soldado da GNR, do Posto de V…, o qual referiu ter sido abordado pelo recorrido e que este lhe perguntou sobre as consequências do conhecimento pela cadeia de comando da actividade de segurança privada por ele exercida, tendo-lhe respondido que essa acção era passível de procedimento disciplinar (cfr. fls. 31, do processo instrutor);

- R… A… M… B…, 2º Sargento da GNR, do Posto de V…, o qual esclareceu que, no dia 20.7.2003, foi chamado pelo 1º Sargento S… ao referido Posto, onde se dirigiu, aí se encontrando presentes o referido 1º Sargento e o recorrido; de imediato, o 1º Sargento J… S… afirmou que o recorrido lhe tinha dito ter trabalhado na Discoteca “B…” e o recorrido confirmou tal afirmação, abanando a cabeça afirmativamente (cfr. fls. 152, do processo instrutor);

- J… W… S… e S…, 1º Sargento da GNR, do Posto de V…, o qual esclareceu que, no dia 20.7.2003, o recorrido, após ter pedido para falar consigo, confirmou na sua presença, na Secção de Inquéritos do Posto da GNR de V…, ter trabalhado com um detector de metais na Discoteca “B…”, por duas ou três vezes. Mais esclareceu que, após ter chamado o 2º Sargento R… A… M… B…, o recorrido confirmou também perante este a referida factualidade (cfr. fls. 161, do processo instrutor).

Além disso, o testemunho de H… C… é também corroborado pelos documentos de fls. 68 a 73, do processo instrutor (quantos aos dias 27.6.2003 e 18.7.2003), e pelos depoimentos (quanto ao dia 18.7.2003) de J… M… M… C…, Soldado da GNR, do Posto de V… (cfr. fls. 117, do processo instrutor, sendo de salientar que, ao contrário, do alegado pelo recorrido, o que esta testemunha declarou foi que, no dia 18.7.20103, saíram da Concentração de Faro cerca das 00.45 e, após, seguiram directamente para Vilamoura), D… A… R… M…, Soldado da GNR, do Posto de V… (cfr. fls. 118, do processo instrutor), e R… A… M… B… (cfr. fls. 116, do processo instrutor), dos quais resulta que, nos dias e horas em que a testemunha H… C… referiu ter visto o recorrido a exercer a actividade de segurança privada, este não se encontrava de serviço.

Os mencionados depoimentos de H… C…, F… F…, R… B… e J… S… são contrariados pelos testemunhos de R… A… B… J…, segurança na Discoteca “B…”, P… M… de O… R…, gerente da Discoteca “B…”, M… D… A… P… S…, relações públicas na Discoteca “B…”, L… J… G… G…, segurança na Discoteca “B…”, P… F… G… S…, chefe de sala na Discoteca “B…”, e P… R… N… S…, barman na Discoteca “B…”, os quais afirmaram, em síntese, que o autor nunca trabalhou na referida discoteca como segurança privada, tendo alguns deles ainda referido que nenhum outro elemento da GNR aí trabalhou e que tinham conhecimento que o Comandante de Destacamento não tinha autorizado tal actividade (cfr. fls. 121 a 124, 132 e 133, do processo instrutor). O gerente P… R… esclareceu ainda que o recorrido (ou qualquer outro homem da GNR) nunca falou consigo no Posto de V…, nem em qualquer outro local, sobre possíveis vagas para segurança privada.

De todo o modo, estes testemunhos (de R… J…, P… R…, M… S…, L… G…, P… S… e P… S…) não têm a virtualidade de abalar os depoimentos de H…. C…, F… F…, R… B… e J… S… – ou seja, nos referidos testemunhos faltou-se à verdade -, já que tais testemunhos:

- foram prestados pelo gerente e por trabalhadores da Discoteca “B…”, isto é, por quem beneficiava, estava envolvido e colaborava na actividade de segurança privada que o recorrido desenvolvia, ou seja, estes testemunhos não podem ser considerados isentos, cumprindo realçar que algumas dessas testemunhas eram amigos do recorrido;

- foram também contrariados pelos depoimentos isentos de:

- J… M… E… R…, Soldado da GNR, do Posto de V…, o qual declarou que, no dia 3.6.2003 – data em que se encontrava de serviço de gratificado ao Casino de V… (sendo nesse edifício que funciona a Discoteca “B…”) -, viu o autor a exercer a actividade de segurança privada à porta da Discoteca “B…” (cfr. fls. 8, do processo instrutor), depoimento que está de acordo com o teor dos documentos de fls. 66 e 67, do processo instrutor;

- E… J… da S… P…, Soldado da GNR, do Posto de V…, o qual referiu que viu o Soldado M… (do Posto de V…) a exercer a actividade de segurança privada na Discoteca “B…” (cfr. fls. 9, do processo instrutor);

- A… P… R… D…, Soldado da GNR, do Posto de V…, o qual referiu que viu o Soldado M… (do Posto de V…) a exercer a actividade de segurança privada na Discoteca “B…” (cfr. fls. 10, do processo instrutor);

- F… M… C… C… S…, Soldado da GNR, do Posto de V…, o qual referiu que viu o Soldado M… (do Posto de V…) a exercer a actividade de segurança privada na Discoteca “B…” (cfr. fls. 24, do processo instrutor);

- J… M… M… C…, Soldado da GNR, do Posto de V…, o qual referiu que, em 27.5.2003, nesse Posto da GNR, viu o recorrido falar com o responsável da Discoteca “B…”, P… R…, tendo aquele manifestado perante este interesse em trabalhar, fora de horas, nessa discoteca (cfr. fls. 45 e 117, do processo instrutor).

Cumpre igualmente referir que os testemunhos de A… M… S… Q… e J… M… M… R… (prestadas a fls. 134 e 135, respectivamente, do processo instrutor), empresários, não põem em causa o depoimento de H… C… [corroborado pelos documentos de fls. 70 a 73, do processo instrutor, e pelos depoimentos de J… M… M… C…, D… A… R… M… e R… A… M… B…, conforme supra explicitado] no sentido de que o recorrido, no dia 18.7.2003, cerca das 2 horas, encontrava-se a exercer a actividade de segurança privada na Discoteca “B…”, pois, desde logo, a primeira testemunha (A… Q…) não sabe precisar o dia exacto e as horas em que viu o recorrido no C… e a segunda (J… R…) não sabe precisar as horas em que o viu nesse local.

Finalmente, e quanto ao depoimento de M… A… F… V… B… M…, esposa do recorrido, a qual declarou que este, no dia 27.6.2003, foi dormir a casa (sita em V…), tendo chegado por volta da 1.30/2 horas e saído por volta das 6 horas (cfr. fls. 136, do processo instrutor), verifica-se que este testemunho não tem a virtualidade de abalar – por falta de credibilidade - a prova produzido no sentido de que, nesse dia 27.6.2003, o recorrido - entre a 1 hora e 30 minutos e as 2 horas e 30 minutos - encontrava-se na Discoteca “B…”, em V…, junto à respectiva porta principal, a exercer a actividade de segurança privada, pelas razões que se passam a indicar.

Como acima referido, o depoimento de H… C…, no segmento em que afirmou que viu o recorrido (por duas vezes) a exercer a actividade de segurança privada, na Discoteca “B…”, é completamente credível, atentos os testemunhos convergentes e isentos que corroboram tal depoimento, conforme supra explicitado.

Assim sendo, não é plausível, atentas as regras da experiência, que a testemunha H… C… tenha, conscientemente, faltado à verdade quanto às concretas datas em que ocorreram tais factos (27.6.2003 e 18.7.2003). Poder-se-ia colocar a hipótese de o mesmo ter-se enganado, confundido as datas, mas tal hipótese não é verosímil, atendendo, por um lado, ao carácter peremptório das declarações prestadas por esta testemunha quanto a esta questão e, por outro lado, ao facto de tais declarações serem sustentadas pelos documentos de fls. 68 a 73, do processo instrutor (dos quais resulta que, nos dias e horas em que a referida testemunha referiu ter visto o recorrido a exercer a actividade de segurança privada, este não se encontrava de serviço).

Além disso, a testemunha M… A… F… V… B… M… é esposa do recorrido, ou seja, alguém que, por fazer parte do agregado familiar do recorrido, beneficiava – economicamente – da actividade de segurança privada que o mesmo desenvolvia e que, portanto, também seria afectada pela pena disciplinar que lhe viesse a ser aplicada.


Ou dito por outras palavras, o depoimento de M… A… F… V… B… M… não pode ser considerado isento, pelo que não é motivo de espanto que a mesma tenha faltado à verdade.

Conclui-se, assim, que existe prova suficiente, segura e convincente de que o recorrido praticou os factos que lhe foram imputados no acto impugnado, ou seja, e ao contrário do que aquele invoca, inexiste qualquer contradição entre a prova produzida e o despacho punitivo (o qual, face à existência de indícios suficientes da prática pelo recorrido dos factos imputados, considerou que o mesmo violou o dever de isenção, previsto no art. 13º n.ºs 1 e 2, al. e), do RDGNR, aplicando-lhe a pena de 10 dias de suspensão), bem como não foi violado o princípio in dubio pro reo, ou seja, o acto punitivo não radicou numa qualquer presunção de culpa do recorrido, antes se alicerçando na prova coligida no processo disciplinar, a qual permite a formulação de um juízo de certeza quanto à prática pelo recorrido dos factos que lhe são imputados, isto é, da materialidade e autoria da infracção disciplinar.

Dito por outras palavras, a decisão recorrida enferma de erro de julgamento ao ter considerado que inexiste prova suficiente da prática pelo recorrido dos factos que lhe foram imputados no acto impugnado.


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Na petição inicial é invocado que a interpretação constante do acto impugnado, de que cabe ao recorrido abalar a prova da acusação, viola o princípio de que cabe à acusação fazer prova dos factos imputados ao arguido e não o arguido provar que não praticou os factos que constam da acusação, sendo tal interpretação contrária ao disposto no n.º 5 do art. 32º, da CRP, por remissão do seu n.º 10.

Esta alegação carece de razão de ser.

Como supra se concluiu, no processo disciplinar foi produzida prova suficiente da prática pelo recorrido dos factos que lhe foram imputados no acto impugnado, não obstante o recorrido ter arrolado testemunhas no sentido de fazer a contraprova desses factos (embora a tal não estivesse obrigado – sendo, no entanto, uma faculdade que lhe assistia -, já que sobre o recorrente recaía o ónus de reunir as provas indispensáveis para a decisão, como foi supra referido), ou seja, o recorrido não logrou tornar duvidosos os factos que lhe foram imputados no acto impugnado (embora, sublinha-se, a tal não estivesse obrigado), já que a prova que produziu foi posta em causa pela restante prova recolhida, da qual resulta um juízo de certeza quanto à prática desses factos pelo recorrido.

Ora, a afirmação contante do acto impugnado, no sentido de que o recorrido não abalou a prova contra si produzida, não parte do pressuposto de que sobre o recorrido recai o ónus de provar que não praticou os factos constantes da acusação.

Com efeito, tal afirmação traduz-se, simplesmente, na constatação de que a Administração cumpriu o ónus de reunir as provas indispensáveis para a decisão, apesar do recorrido se ter esforçado para o impedir, isto é, apesar deste se ter esforçado por tornar duvidosos os factos que lhe eram imputados.

Nestes termos, e sem necessidade de mais análise, conclui-se pela improcedência desta alegação.


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O recorrido invocou na petição inicial que o despacho impugnado carece de falta de fundamentação, por se limitar a apresentar uma conclusão no que respeita à questão de saber se os factos que lhe foram imputados estão cabalmente provados, não fazendo uma apreciação da prova produzida no processo disciplinar.

A decisão recorrida entendeu que a matéria de facto não foi escrutinada em si, mas apenas genericamente, limitando-se o acto impugnado à aplicação do direito.

O recorrente defende que o acto impugnado se encontra devidamente fundamentado.

Apreciando.

Cumpre, desde logo, salientar que, mesmo que se verificasse este vício – falta de fundamentação -, o mesmo não implicaria a anulação do acto impugnado, atento o princípio do aproveitamento do acto administrativo.

Efectivamente, um aspecto peculiar dos vícios de forma, concretamente quando se trata da preterição de formalidades, consiste na possibilidade de os mesmos poderem, hipoteticamente, não ter efeitos invalidantes naqueles casos em que se tenha por verificada a “degradação” da formalidade essencial em não essencial.

A questão dos efeitos não invalidantes da preterição da falta de fundamentação, designadamente por apelo ao princípio do aproveitamento dos actos administrativos, só é invocável nomeadamente nos casos em que, conforme se sumariou no Ac. do STA de 26/06/1997, proc. n.º 41.627, “IV-(...) estando em causa actividade vinculada da Administração, depois de o tribunal apurar que o acto não padece de qualquer outro vício, designadamente o de violação de lei, conclui-se que a decisão administrativa não poderá ser outra que não a decisão efectivamente tomada”, ou dito de outro modo, e como se refere no Ac. do STA de 17/12/1997, proc. n.º 36.001, “(...) sempre que através de um juízo de prognose póstuma o tribunal conclua que a decisão tomada era a única concretamente possível, não se deve anular o acto por ser irrelevante o vício procedimental” - também neste sentido, entre outros, Acs. do STA de 28/05/1997, 02/02/2000, 02/03/2000, 18/05/2000, 19/12/2000, 01/02/2001, 28/11/2001, 12/12/2001, 17/01/2002, 16/10/2002, 28/01/2003 e 19/02/2003, procs. n.ºs 37.051, 45.623, 43.390, 45.965, 44.127, 046.825, 46.586, 34.981, 46.482, 048.334, 0838/02 e 0123/03, respectivamente, e Acs. do TCA Sul de 04/05/2000 e 20/03/2003, procs. n.ºs 00506/97 e 10.864/01, respectivamente.

Conforme supra explicitado, o juízo sobre a existência de indícios suficientes da prática pelo arguido/recorrido dos factos que lhe são imputados respeita ao exercício de poderes vinculados, inexistindo qualquer “espaço de conformação administrativa” entre alternativas, isto é, nesta matéria não existe margem de livre apreciação.

A recusa de efeito invalidante à preterição da fundamentação não se basta, como acima se explicou, com a existência de uma actividade vinculada, como é o caso dos autos, pois torna-se ainda necessário que se possa concluir que a decisão tomada - quanto à existência de indícios suficientes - só podia ter o conteúdo que teve em concreto, o que implica que se apure se o acto, nesse segmento, não padece de qualquer outro vício.

Os restantes vícios alegados pelo recorrido (na petição inicial) – e como acima se concluiu - improcedem, sendo certo que a decisão recorrida enferma de erro ao considerar que não existem indícios suficientes de que o recorrido praticou os factos que lhe foram imputados na decisão disciplinar.

Do exposto decorre que a decisão impugnada (de 14.11.2005), no segmento em que considerou que existiam indícios suficientes da prática pelo recorrido dos factos que lhe foram imputados, era a única concretamente possível, pelo que, atento o princípio do aproveitamento do acto administrativo, nunca poderia ser decretada a respectiva anulação, por alegada falta de fundamentação desse segmento.


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Conclui-se, assim, que improcedem todos os vícios alegados na petição inicial, ou seja, tem razão o recorrente quando afirma que a decisão recorrida enferma de erro de julgamento ao ter anulado o acto impugnado, pelo que cumpre conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, revogando a decisão recorrida, e, em consequência, julgar totalmente improcedente a presente acção.

Uma vez que o recorrido ficou vencido, deverá suportar as custas, em ambas as instâncias (art. 527º n.ºs 1 e 2, do CPC de 2013, ex vi art. 1º, do CPTA).

III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em:

I – Conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, revogando a decisão recorrida, e, em consequência, julgar totalmente improcedente a presente acção.

II – Condenar o recorrido nas custas, em ambas as instâncias.

III – Registe e notifique.

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Lisboa, 23 de Outubro de 2014

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(Catarina Jarmela)

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(António Vasconcelos)

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(Carlos Araújo)



(1) In casu art. 7º, do RDGNR
(2) No caso em análise o autor, ora recorrido, remeteu-se ao silêncio – cfr. n.º 9), dos factos provados.
(3) In casu nos termos do art. 93º n.ºs 2 e 3, do RDGNR [“2 - O instrutor deverá ouvir o arguido, a requerimento deste ou sempre que o entender conveniente, até se ultimar a instrução, podendo acareá-lo com testemunhas. 3 - O arguido não é obrigado a responder sobre os factos que lhe são imputados.”].
(4)Pois, de acordo com Carlos Adérito Teixeira, Depoimento Indirecto e Arguido: Admissibilidade e Livre Valoração versus Proibição de Prova, Revista do CEJ, N.º 2 (1º Semestre 2005), págs. 127 a 191 – em especial págs. 158 e ss. -, é admissível a valoração desses depoimentos indirectos, os quais, no entanto, não se regem pelo estatuído no art. 129º, do CPP, mas antes pelo disposto nos arts. 125º (“São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”) e 127º (“Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”), ambos do CPP. Também neste sentido se pronunciou Paulo Dá Mesquita, A prova do crime e o que se disse antes do julgamento: Estudo sobre a prova no processo penal português, à luz do sistema norte-americano, 2011, pág. 586.