Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:132/19.1BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:04/28/2022
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:RCO
PAGAMENTO ADICIONAL POR CONTA
DERRAMA ESTADUAL
Sumário:Se, não obstante uma sociedade não tiver pago um dos pagamentos adicionais por conta previstos no art.º 104.º-A do CIRC, se vier a verificar que, no exercício a que esses pagamentos por conta respeitavam, não se apurou qualquer derrama estadual a pagar, não ocorre a lesão do interesse jurídico que o art.º 114.º, n.ºs 1 e 5, al. f), do RGIT, visa proteger.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

E...- Importação e Exportação, Unipessoal, Lda (doravante Recorrente) veio apresentar recurso do despacho decisório proferido a 04.05.2021, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria, no qual foi julgado improcedente o recurso por si apresentado, da decisão de aplicação de coima, proferida pelo Chefe do Serviço de Finanças (SF) de Leiria 2, no processo de contraordenação (PCO) a que foi atribuído, na fase administrativa, o n.º 36032018060000111750.

Apresentou alegações, nas quais, após aperfeiçoamento, concluiu nos seguintes termos:

“1ª) A aplicação da coima que foi contestada é ilegal porque, como é jurisprudência firmada, se não houver lucro tributável ou imposto a pagar no exercício seguinte àquele em que se exige Pagamento por Conta, não há infração;

2ª) Não há, também infração, se houver uma desproporção profunda entre o pagamento por conta e o efetivo imposto;

3ª) Como é também jurisprudência assente, o não Pagamento por Conta não gera prejuízo efetivo ao Estado, pelo que, nos termos da alínea a) do nº 1 do artº 32º do RGIT, deve haver dispensa de aplicações de coima – a douta sentença recorrida está, assim, a violar a alínea a) do nº 1 do artº 32º do RGIT;

4ª) Também é jurisprudência assente que o não pagamento de uma prestação do Pagamento por Conta, caso se constate no final do exercício, não haver lugar a imposto a pagar ou este for inferior a Pagamentos por Conta já efetuados, não há ilicitude.

5º) No final do exercício de 2018, constatou-se que o imposto a pagar era inferior ao valor da primeira prestação de Pagamento por Conta já efetuada;

6ª) O pagamento por conta exigido pela AT não seria, assim, “por conta”, por, repete-se, já não haver IRC a pagar;

7ª) Pelo que, como é dito no Acórdão do STA de 28/2/2007, Processo nº 0122/06, está excluída a ilicitude no comportamento da recorrente.

8ª) A norma punitiva da conduta da recorrente – conduta que, recorde-se, consistiu no não pagamento do pagamento por conta – é a constante do artº 114º, nº 5, al. f) do RGIT;

9ª) Porém, a inexistência de lucro tributável gerador de imposto a pagar, de valor igual ou superior aos pagamentos por conta, exclui a ilicitude da conduta do contribuinte (cf. artº 31º do Código Penal e artº 2º do RGIT);

10º) A norma do artº 114º, nº 5, f) do RGIT não prevê a punição da mera omissão da realização do pagamento por conta, mostrando-se absolutamente necessário a existência de imposto devido a final para que a falta de pagamento por conta constitua infração tributária;

11ª) A douta sentença recorrida violou, assim, o artº 114º, nº 5, f) do RGIT, bem como o artº 2º do mesmo RGIT e o artº 31º do Código Penal.

Nestes termos, deve a sentença recorrida ser revogada, julgando-se procedente o recurso, como é de Justiça”.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Notificados a Fazenda Pública e o Ilustre Magistrado do Ministério Público (IMMP), nos termos e para os efeitos previstos nos art.ºs 411.º, n.º 6, e 413.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal (CPP), aplicáveis ex vi art.º 41.º, n.º 1, do Regime Geral do Ilícito de mera ordenação social (RGCO), ex vi art.º 3.º, al. b), do Regime Geral das Infrações Tributária (RGIT), nenhum apresentou resposta.

O IMMP neste TCAS pronunciou-se, no sentido da improcedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP.

Colhidos os vistos legais vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) Verifica-se erro de julgamento, em virtude de a Recorrente não ter incorrido na prática de ilícito contraordenacional e estar excluída a ilicitude do seu comportamento, dado inexistir imposto a pagar?

b) Verifica-se erro de julgamento, dado que se reúnem os pressupostos para dispensa de aplicação de coima?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

1. Em 15.10.2018 a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu contra a Recorrente o auto de notícia n.º C0002824478/2018 pela falta de pagamento adicional por conta em sede de IRC, referente a setembro de 2018, no valor de €9.201,07 (cf. auto de fls. 4 do processo físico);

2. Em 16.10.2018 o SF de Leiria 2 instaurou contra a Recorrente o processo de contraordenação n.º 36032018060000111750, com base no auto de notícia referido em 1. (cf. auto de fls. 3 do processo físico);

3. Em 22.11.2018 o Chefe do SF de Leiria 2 emitiu decisão de fixação de coima no âmbito do processo de contraordenação n.º 36032018060000111750, pela qual condenou a Recorrente no pagamento de uma coima no valor de €2.787,92, acrescida de custas no montante de €76,50 (cf. decisão de fls. 8 e 9 do processo físico);

4. Em 28.06.2019 a Recorrente apresentou a sua declaração modelo 22 de IRC referente ao exercício de 2018, na qual apurou um lucro tributável no valor de €277.013,07 (cf. declaração de fls. 33 e seguintes do processo físico);

5. Em data concretamente não determinada a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu em nome da Recorrente a liquidação de IRC n.º 2019 23103836813, referente ao exercício de 2018, da qual resultou um valor a pagar de €97.959,03 (cf. demonstração de fls. 44 do processo físico)”.

II.B. Refere-se ainda no despacho decisório recorrido:

“Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“De acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil (CPC), que aqui tem aplicação por força da al. b) do artigo 3.º do RGIT, do n.º 1 do artigo 41.º do RGC, e do artigo 4.º do Código de Processo Penal (CPP), na fundamentação da sentença “o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.

Para a prova dos factos acima elencados sob os números 1. a 5., foi determinante a análise dos elementos juntos aos autos pela entidade administrativa, bem como pela Recorrente com o recurso apresentado, todos constantes do processo físico, sem que qualquer dos intervenientes processuais tivesse impugnado os documentos apresentados ou apresentado oposição à sua junção, conforme supra se encontra devidamente identificado em frente a cada um dos pontos do probatório – cf. artigos 374.º e 376.º do Código Civil”.

II.D. Atento o disposto no art.º 431.º, al. a), do CPP, ex vi art.º 41.º, n.º 1, do RGCO, ex vi art.º 3.º, al. b), do RGIT, é alterada a redação dos pontos 4. e 5. do probatório, que passará a ser a seguinte:

4. Em 28.06.2019, a Recorrente apresentou a sua declaração modelo 22 de IRC referente ao exercício de 2018, na qual apurou um lucro tributável no valor de 277.013,07 Eur. e derrama estadual no valor de 0,00 Eur. e na qual declarou o valor de 0,00 Eur., a título de pagamento adicional por conta (cf. declaração de fls. 33 e seguintes do processo físico);

5. Em data concretamente não determinada a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu em nome da Recorrente a liquidação de IRC n.º 2019 2310383813, referente ao exercício de 2018, da qual resultou um valor a pagar de 97.959,03 Eur., sendo que o valor relativo a derrama estadual era de 0,00 Eur. (cf. demonstração de fls. 44 do processo físico).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera, desde logo, a Recorrente que o Tribunal a quo errou no seu julgamento, por entender, em síntese, que não incorreu na prática de ilícito contraordenacional e por estar excluída a ilicitude do seu comportamento, dado inexistir imposto a pagar.

Vejamos então.

In casu, a Recorrente não efetuou o pagamento adicional por conta, por referência ao exercício de 2018.

Ficou ainda provado que, no referido exercício, apurou lucro tributável, mas que, a título de derrama estadual, o valor apurado foi de zero.

Face a este contexto, foi instaurado PCO contra a Recorrente, por falta de entrega de pagamento adicional por conta relativo ao período 2018/09, por infração do disposto no art.º 104.º, n.º 1, e 104.º-A, n.º 1, ambos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), punível nos termos dos art.ºs 114.º, n.º 2 e 5, alínea f) e 26.º, n.º 4, todos do RGIT, tendo vindo a ser aplicada uma coima, nesse seguimento, de 2.787,92 Eur.

Vejamos.

A derrama estadual foi introduzida no nosso ordenamento pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho.

Este diploma legal aprovou um conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental, que visaram reforçar e acelerar a redução de défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC).

Assim, procedeu à alteração, entre outros, dos Códigos do IRS (CIRS) e IRC.

Quanto ao CIRC, a Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, aditou-lhe os art.º 87.º-A, 104.º-A e 105.º-A.

Assim, nos termos do art.º 87.º-A, aditado, na redação vigente em 2018:

“1— Sobre a parte do lucro tributável superior a (euro) 1 500 000 sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas apurado por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e por não residentes com estabelecimento estável em território português, incidem as taxas adicionais constantes da tabela seguinte:

Rendimento tributável (euros)
Taxa
(em percentagem)
De mais de 1500 000 até 7 500 000
3
De mais de 7 500 000 até 35 000 000
5
Superior a 35 000 000
9
2— O quantitativo da parte do lucro tributável que exceda (euro) 1 500 000:

a) Quando superior a (euro) 7 500 000 e até (euro) 35 000 000, é dividido em duas partes: uma, igual a (euro) 6 000 000, à qual se aplica a taxa de 3 %; outra, igual ao lucro tributável que exceda (euro) 7 500 000, à qual se aplica a taxa de 5%;

b) Quando superior a € 35 000 000, é dividido em três partes: uma, igual a € 6 000 000, à qual se aplica a taxa de 3 %; outra, igual a € 27 500 000, à qual se aplica a taxa de 5 %, e outra igual ao lucro tributável que exceda € 35 000 000, à qual se aplica a taxa de 9 %.

3 — Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, as taxas a que se refere o n.º 1 incidem sobre o lucro tributável apurado na declaração periódica individual de cada uma das sociedades do grupo, incluindo a da sociedade dominante.

4 — Os sujeitos passivos referidos nos números anteriores devem proceder à liquidação da derrama adicional na declaração periódica de rendimentos a que se refere o artigo 120.º”.

Por seu turno, nos termos do art.º 104.º-A do CIRC, atinente ao pagamento da derrama estadual:

“1 — As entidades que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e os não residentes com estabelecimento estável devem proceder ao pagamento da derrama estadual nos termos seguintes:

a) Em três pagamentos adicionais por conta, de acordo com as regras estabelecidas na alínea a) do n.º 1 do artigo 104.º;

b) Até ao último dia do prazo fixado para o envio da declaração periódica de rendimentos a que se refere o artigo 120.º, pela diferença que existir entre o valor total da derrama estadual aí calculado e as importâncias entregues por conta nos termos do artigo 105.º-A;

c) Até ao dia do envio da declaração de substituição a que se refere o artigo 122.º, pela diferença que existir entre o valor total da derrama estadual aí calculado e as importâncias já pagas.

2 - Há lugar a reembolso ao sujeito passivo, pela respetiva diferença, quando o valor da derrama estadual apurado na declaração for inferior ao valor dos pagamentos adicionais por conta.

3 - São aplicáveis às regras de pagamento da derrama estadual não referidas no presente artigo as regras de pagamento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, com as necessárias adaptações”.

Finalmente, atento o disposto no art.º 105.º-A do CIRC, sob a epígrafe Cálculo do pagamento adicional por conta:

“1 — As entidades obrigadas a efetuar pagamentos por conta e pagamentos especiais por conta devem efetuar o pagamento adicional por conta nos casos em que no período de tributação anterior fosse devida derrama estadual nos termos referidos no artigo 87.º-A.

2 — O valor dos pagamentos adicionais por conta devidos nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 104.º-A é igual ao montante resultante da aplicação das taxas previstas na tabela seguinte sobre a parte do lucro tributável superior a (euro) 1 500 000 relativo ao período de tributação anterior:

Lucro tributável (euros)
Taxa
(em percentagem)
De mais de 1500 000 até 7 500 000
2,5
De mais de 7 500 000 até 35 000 000
4,5
Superior a 35 000 000
8,5
3— O quantitativo da parte do lucro tributável que exceda (euro) 1 500 000:

a) Quando superior a (euro) 7 500 000 e até (euro) 35 000 000, é dividido em duas partes: uma, igual a (euro) 6 000 000, à qual se aplica a taxa de 2,5 %; outra, igual ao lucro tributável que exceda (euro) 7 500 000, à qual se aplica a taxa de 4,5 %;

b) Quando superior a € 35 000 000, é dividido em três partes: uma, igual a € 6 000 000, à qual se aplica a taxa de 2,5 %; outra, igual a € 27 500 000, à qual se aplica a taxa de 4,5, e outra igual ao lucro tributável que exceda € 35 000 000, à qual se aplica a taxa de 8,5 %.

4 —Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, é devido pagamento adicional por conta por cada uma das sociedades do grupo, incluindo a sociedade dominante”.

Aqui se consagra, pois, a obrigação de se efetuarem três pagamentos adicionais por conta da derrama estadual que venha a ser considerada devida, por referência ao exercício relativo ao momento em que são feitos.

Por seu turno, nos termos do art.º 114.º, n.ºs 2 e 5, do RGIT:

“1 - A não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstratamente estabelecido.

(…) 5 - Para efeitos contraordenacionais são puníveis como falta de entrega da prestação tributária:

(…) f) A falta de pagamento, total ou parcial, da prestação tributária devida a título de pagamento por conta do imposto devido a final, incluindo as situações de pagamento especial por conta”.

O Tribunal a quo, a este respeito, considerou que se preenchem todos os elementos do tipo contraordenacional.

Vejamos se assim é.

Como já deixamos explanado, estamos perante falta de pagamento adicional por conta, pagamento esse que respeita a derrama estadual.

O regime da derrama estadual, como ficou evidenciado anteriormente, tem particularidades, não só porque nem todos os sujeitos passivos de IRC estão à mesma sujeitos, dependendo, pois, do valor do lucro tributável apurado, mas também porque os cálculos são efetuados de forma autónoma.

Tal como sucede com os pagamentos por conta de IRC, os pagamentos adicionais por conta funcionam como um adiantamento do valor que venha a ser devido, no exercício, pelo sujeito passivo, a título de derrama estadual.

Como decorre do regime em causa, se os pagamentos adicionais por conta forem de valor superior ao da derrama estadual calculada, há reembolso ao sujeito passivo da respetiva diferença.

Ora, no caso dos autos, como resulta provado, no exercício de 2018, a Recorrente apurou um lucro tributável de 277.013,07 Eur., valor muito inferior ao previsto no art.º 87.º-A, n.º 1, do CIRC (relembramos, 1.500.000,oo Eur.).

Daí que a derrama estadual apurada na declaração modelo 22 tenho sido de zero.

Considerando este contexto, decorre assistir razão à Recorrente.

Apelamos, a este propósito, à jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, quer relativa ao pagamento por conta, quer relativa ao pagamento especial por conta, cuja doutrina, com as devidas adaptações, é aqui transponível [cfr., v.g., os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 07.03.2007 (Processo: 0877/06), 09.10.2019 (Processo: 0329/18.1BELLE), de 16.01.2020 (Processo: 0461/18.1BELLE), de 14.10.2020 (Processo: 0269/19.7BELLE), de 02.12.2020 (Processo: 02482/17.2BEBRG), de 08.09.2021 (Processo: 01244/18.4BELRA), de 27.10.2021 (Processo: 0336/18.4BELLE) e de 09.12.2021 (Processo: 011/20.0BELLE), e os deste TCAS de 19.11.2015 (Processo: 08920/15), de 29.04.2021 (Processo: 3337/15.0BESNT) e de 13.01.2022 (Processo: 3336/15.2BESNT)].

Refere-se no já citado Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 02.12.2020 (Processo: 02482/17.2BEBRG):

A questão que se coloca nos autos, saber se a inexistência de lucro tributável no período fiscal a que se reporta o pagamento por conta omitido, afasta a ilicitude da conduta do sujeito passivo, foi apreciada no acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 09/10/2019, proferido no processo 0329/18.1BELLE (…), nele se podendo ler: “A norma punitiva (que identifica os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito contra-ordenacional) da conduta em causa nos presentes autos é a constante do art.º 114.º, nºs. 1, 2 e 5, al. f), do R.G.I.T. (…)

Por prestação tributária entende-se qualquer tributo que caiba cobrar à Administração Fiscal ou à Administração da S. Social (cfr. art.º 11.º, al. a), do R.G.I.T.).

No caso de não existir dolo, a falta de entrega da prestação deduzida nos termos da lei é susceptível de constituir a infracção por negligência, prevista no nº.2 deste artigo, sendo esta a espécie (ao nível do nexo de culpa - cfr. art.º 24.º, nº. 1, do R.G.I.T. (No R.G.I.T., ao contrário do que sucede no R.G.C.O. – art.º 8.º, nº. 1 - consagra-se, genericamente, a punibilidade a título de negligência, afastando-se a punição a este título apenas quando existir disposição expressa em sentido contrário - cfr. citado art.º 24.º, n.º 1, do R.G.I.T.).) de contra-ordenação imputada à sociedade arguida neste processo (cfr. n.º 2 do probatório).

No n.º 5 do preceito sob exegese, prevêem-se várias situações em que não há falta de entrega de prestação tributária recebida e que deva ser entregue à A. Fiscal, mas sim omissões que têm como consequência a falta de cobrança de imposto devido (cuja punibilidade o legislador equipara à citada falta de entrega da prestação tributária), nomeadamente, nos casos de falta de pagamentos por conta que o sujeito passivo deva efectuar, por conta do imposto devido a final, assim se remetendo para a violação das regras do pagamento por conta previstas, no ano de 2015, nos art.º 104.º, 105.º e 107.º, do C.I.R.C. (cfr. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 4.ª edição, 2010, Áreas Editora, pág. 812).

No âmbito do Código do I.R.C., enquanto regime de pagamento antecipado do imposto (…), o pagamento por conta é devido pelos sujeitos passivos que exerçam a título principal atividades de natureza comercial, industrial ou agrícola, bem como pelas entidades não residentes com estabelecimento estável em território nacional (cfr. art.º 104.º, n.º 1, do C.I.R.C.; art.º 33.º, da L.G.T.).

Os pagamentos por conta (com vencimento nos meses de Julho, Setembro e 15 de Dezembro do próprio ano a que respeita o lucro tributável) devem ser calculados com base no imposto liquidado relativamente ao período de tributação imediatamente anterior àquele em que se devam efectuar esses pagamentos, líquido das retenções na fonte. Por outro lado, a lei prevê que o contribuinte fique dispensado de tal obrigação quando tenha tido, no exercício anterior, um lucro inferior a determinado montante (€ 200,00). Por último, se o valor do lucro tributável do exercício em curso for inferior ao do anterior, os pagamentos por conta a que o sujeito passivo está obrigado resultam excessivos, assim correspondendo ao adiantamento de um imposto não devido. Para obviar a essas situações a lei permite que o sujeito passivo suspenda os pagamentos por conta, mais concretamente, o terceiro pagamento a realizar em 15 de Dezembro do próprio ano (cfr. art.ºs 104.º, n.ºs 1 e 4, e 107.º, n.º 1, do C.I.R.C.; Rui Duarte Morais, Apontamentos ao IRC, Almedina, 2009, pág. 218 e seg.; Rui Marques, Código do IRC anotado e comentado, Almedina, 2019, pág. 878 e seg.).

Os pagamentos por conta revestem natureza provisória, apenas se podendo tornar definitivos quando o montante de imposto a pagar estiver efectivamente determinado, pelo que se verifica apenas um adiantamento do pagamento do imposto devido a final. Deste modo, o pagamento antecipado produzirá os seus efeitos se couber dentro da dívida de imposto, a qual apenas ficará determinada no momento da liquidação, sendo que a estruturação desta, em regra, implica a existência de uma obrigação acessória declarativa do sujeito passivo (cfr. v.g. art.ºs 89.º, al. a), e 90.º, n.º 1, al. a), do C.I.R.C.; José Maria Fernandes Pires e Outros, Lei Geral Tributária comentada e anotada, Almedina, 2015, pág.291).

Tendo presente o quadro normativo de referência acabado de transcrever e a factualidade considerada assente nos presentes autos, julgamos, com o Tribunal "a quo", que a conduta da sociedade recorrida não preenche os pressupostos do ilícito contra-ordenacional tipificado no citado art.º 114.º, n.ºs 1, 2 e 5, al. f), do R.G.I.T. (existência de lucro tributável/imposto que seja devido no final do período fiscal em causa).

É que o "pagamento por conta" é, nos próprios termos da lei, uma entrega pecuniária antecipada, realizada por conta do imposto devido a final, no período de formação do facto tributário (cfr. art.º 33.º, da L.G.T.). O que significa, ainda, que o "pagamento por conta" tem de ser aferido face à situação contabilística da empresa no fim do período fiscal a que se refere o mesmo. Ora, se nenhuma quantia pecuniária houver de ser (antecipadamente) entregue por conta do imposto devido a final, no concernente ao período de formação do facto tributário (a que se refere o "pagamento por conta") - mormente por inexistência de lucro tributável revelado pela contabilidade, a esse tempo - aquele "pagamento por conta" não tem fundamento substantivo (nenhum relevo tendo o exame do citado art.º 107.º, n.º 1, do C.I.R.C., na sua redacção actual, a resultante da Lei 66-B/2012, de 31/12, contrariamente ao que defende a entidade apelante).

E, assim, se não houver lucro tributável, não há imposto devido. E, não havendo imposto devido, não se verifica o evento jurídico-material de que a lei faz depender a punição - porquanto não se verifica a lesão do interesse protegido pela norma. A falta de entrega da prestação por conta pode existir, mas, se não ocorrer a efectiva lesão do interesse protegido pela norma incriminadora, a infracção não se verifica, mais não podendo haver punição. Se não houver imposto devido (por não haver lucro tributável), a punição, para além de não respeitar a norma tipificadora da infracção, desrespeitaria também a valoração jurídica decorrente da harmonia do sistema fiscal, onde se contêm normas a requerer a tributação de acordo com o lucro tributável do período e segundo a capacidade contributiva do devedor - conforme, aliás, a uma visão do Direito como ordem jurídica sistémica e unitária, onde, a propósito, ganham proeminência os princípios constitucionais da tributação do lucro real, da justiça, da legalidade e da proporcionalidade. Em conclusão, nestas condições, a inexistência de lucro tributável no período fiscal a que se reporta o pagamento por conta em falta, encontra-se excluída a ilicitude da sua conduta no tocante à omissão do contribuinte (cfr. art.º 31.º, do C.Penal; art.º 2.º, n.º 1, do R.G.I.T.; ac. S.T.A.-2.ª Secção, 28/2/2007, rec.1221/06; ac. S.T.A.-2.ª Secção, 7/3/2007, rec.877/06; ac.T.C.A.Sul-2.ª Secção, 19/11/2015, proc.8920/15).

(…) Assim, a inexistência de lucro tributável no período fiscal a que se reporta o pagamento por conta em falta, excluí a ilicitude da sua conduta no tocante à omissão da arguida, pelo que deve ser manter a decisão recorrida”.

Ora, este entendimento é transponível, com as necessárias adaptações, para as situações em que não tenha sido feito o pagamento adicional por conta, mas em que se venha a apurar que a derrama estadual é de valor nulo.

Não havendo derrama estadual devida, resulta que não se verifica o evento jurídico-material de que a lei faz depender a punição, por não se verificar a lesão do interesse protegido pela norma. Tal circunstância exclui a ilicitude da conduta no tocante à omissão da arguida.

Como tal, assiste razão à Recorrente, resultando prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Conceder provimento ao recurso, revogar o despacho decisório recorrido, julgar procedente o recurso de contraordenação, revogando-se a decisão de aplicação de coima e absolvendo-se a Recorrente da contraordenação de falta de entrega de pagamento adicional por conta, p. e p. pelo art.º 114.º, n.ºs 2 e 5, alínea f), do RGIT;

b) Sem custas;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 28 de abril de 2022

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)