Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:368/17.0BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:04/19/2018
Relator:HELENA CANELAS
Descritores:COIMAS
URBANISMO
EXECUÇÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
Sumário:Na esteira do entendimento vertido pelo Tribunal de Conflitos, pertencendo aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal o conhecimento das impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, também a competência para a execução da mesma coima, mesmo que aplicada sem impugnação, pertence aos mesmos tribunais.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO


O MINISTÉRIO PÚBLICO inconformado com a decisão de 28/03/2017 da Mmª Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que, no âmbito do Processo de Execução que ali por si instaurado em 15/03/2017 contra P… (devidamente identificado nos autos) visando a execução para pagamento de coima e custas decorrentes da decisão proferida no processo de contra-ordenação nº 1-402-2016 da Câmara Municipal de Cascais, indeferiu liminarmente o requerimento executivo com fundamento na verificação da exceção de incompetência absoluta dos tribunais administrativos e fiscais, dela interpõe o presente recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por decisão que considerando o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra material e territorialmente competente para a decidir, determine o prosseguimento da ação executiva.
Nas suas alegações formula o recorrente as seguintes conclusões nos seguintes termos:
I. O Ministério Público vem interpor recurso da decisão proferida nos presentes autos de ação executiva para cobrança de coima e custas, por o tribunal a quo ter julgado verificada a excepção de incompetência absoluta do tribunal e, em consequência, ter indeferido liminarmente o requerimento executivo apresentado pelo Ministério Público ao abrigo do artigo 89°, n.º 2 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

II. A nossa discordância centra-se no erro de direito que originou tal decisão, com consequente violação do disposto nos artigos 61º e 89º do Regime Geral das Contra- Ordenações e Coimas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433 / 82, de 27 de Outubro, sendo que, porque os tribunais administrativos e fiscais são materialmente competentes para a presente execução por coima e custas, deveria ter sido ordenada a penhora e posterior citação do executado, conforme requerido pelo exequente.

III. A questão a decidir no presente recurso é a de aferir qual o tribunal materialmente competente para as acções de execução para pagamento de coima e custas relativas a decisões da Administração Pública que tenham aplicado coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, face à competência atribuída aos tribunais da jurisdição administrativa, através do art.º 4º, n.º 1, al. l) do ETAF, para apreciação das impugnações judiciais de tais decisões administrativas.

IV. Sem qualquer dogma, e partilhando igualmente das dúvidas que possam existir acerca da melhor solução, vislumbramos, de forma puramente pragmática, três possibilidades para a tramitação dos processos de execução para pagamento de coima e custas relativas a tais decisões:

a. Atribuição de competência aos tribunais administrativos , como entendeu o Ministério Público no âmbito da presente acção, por força do disposto no artigo 89° do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo Decreto- lei n.º 433 / 82, de 27 de Outubro (com referência, quanto ao tribunal competente, ao artigo 4º, n.º 1, ai. 1) do ETAF), no artigo 491º, n.º 2 do Código Processo Penal e no artigo 35°, n.0 5 do Regulamento das Custas Processuais (que, por sua vez, remete para a tramitação do processo comum sumário para pagamento de quantia certa, a que aludem os artigos 550º, n.º 2 e 855 º a 858º do Código de Processo Civil);

b. Atribuição de competência à Autoridade Tributária, nos termos dos artigos 10º, n.º 1, al. g), 148º e 1 51º do CPPT, estendendo -se analogicamente a estes processos o entendimento de que o meio processual adequado para a cobrança coerciva das custas e multas relativos a processos judiciais da área administrativa ser o processo de execução fiscal, na linha e com os argumentos do defendido pelo douto aresto do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 27.06.2007, Processo n.º 01172/06 (disponível em www.dgsi.pt);

c. Atribuição de competência à jurisdição comum, por os tribunais judiciais terem competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, nos termos do art.º 40º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62 / 201 3, de 26 de Agosto.

V. Esta última possibilidade, embora não dita de forma expressa (mas a cuja conclusão se pode chegar, desde logo por não ter sido indicada outra solução), foi a adaptada pelo tribunal a quo, ao negar a competência material dos tribunais administrativos, sendo que é a que, no nosso entendimento, seguramente não deve ser adaptada como solução para a questão em causa, desde logo por tal interpretação não ter na letra da lei o mínimo de correspondência, padecendo, assim, salvo o devido respeito, de erro de direito.

VI. De acordo com a interpretação que nos parece ser a mais adequada, a concretização do tribunal materialmente competente terá que ser feita através do critério previsto no referido art.º 89º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/ 82, de 27 de Outubro, e, in casu, com referência ao artigo 4º, n.º 1, al. l) do ETAF, por o Tribunal material e territorialmente competente para executar uma decisão proferida por uma autoridade administrativa que aplicou uma coima (título executivo) em processo contra-ordenacional ser aquele que seria competente para a impugnação dessa mesma decisão, nos termos do artigo 89.' do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro ( vide, neste sentido, entre outros, Ac. da Relação de Lisboa de 09.10.2012, Processo n.º 1040/12.2YRLSB-5, disponível em www.dgsi.pt).

VII. Aliás, no que respeita à jurisdição comum, na sequência da criação pela Lei da Organização do Sistema Judiciário de inúmeras instâncias centrais de execução, esta questão vem sendo recorrentemente suscitada por via de recurso e, tanto quanto sabemos, decidida pelos tribunais superiores sempre em sentido concordante com a posição do ora recorrente, ou seja, de que o tribunal competente para a execução é aquele que seria competente para a impugnação dessa mesma decisão.

VIII. Tal raciocínio deve igualmente ser aplicado às decisões da Administração Pública que tenham aplicado coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, para concluir pela atribuição de competência aos tribunais administrativos para a execução de tais decisões, desde logo porque a regra de competência territorial prevista no art.º 61º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas pressupõe, logicamente, a definição de tribunal materialmente competente com jurisdição nessa área ( vide, neste sentido, Ac. da Relação de Lisboa de 24.09.201 5, Processo n.º 133 / 15.9T9LNH.L 1-2, disponível em www.dgsi.pt).

IX. Acresce, ainda, que em situação similar à dos presentes autos, em contra-ordenação nos domínios laboral e da segurança social, já decidiu igualmente o Supremo Tribunal de Justiça que, nesses casos, o tribunal competente para a execução com vista à cobrança do pagamento de uma coima imposta em processo de contra-ordenação nesses domínios é o tribunal de trabalho e não o tribunal judicial (vide, neste sentido, Ac. do STJ de 23.01 .1997, Processo n.º 96P745, disponível em www.dgsi.pt).

X. Em conclusão, a competência material para as acções de execução para pagamento de coima e custas relativas a decisões da Administração Pública que tenham aplicado coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo deve ser atribuída aos tribunais administrativos, por força do disposto no art.º 61 º e 89º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, face à competência atribuída aos tribunais da jurisdição administrativa, através do art.º 4º, n.º 1, ai. 1) do ETAF, para apreciação das impugnações judiciais de tais decisões administrativas.

XI. Não ignoramos os argumentos invocados no referido Ac. do Pleno do STA de 27.06.2007, Processo n.º 01172/06, nomeadamente:

a. O facto dos tribunais administrativos e fiscais não terem unidades de serviço externo para as diligências inerentes à cobrança coerciva das quantias em dívida, e do Decreto-Lei n.º 325 / 2003, de 29 de Dezembro, que definiu a sede, organização e a área de jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais, concretizando o respectivo estatuto, nos artigos 5.º e 6.0 ter excluído essa possibilidade;
b. O facto de no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 324/ 2003, de 27 de Dezembro - que, na ocasião, procedeu à reforma do então vigente Código das Custas Judiciais, introduzindo um regime especial para as custas devidas nos processos tramitados nos Tribunais Administrativos e Fiscais - o legislador ter destacado, além do mais, como razão de ser da reforma o alcance do objectivo de libertar os oficiais de justiça e os Tribunais para outras tarefas.

XII. Daí que, com base nessa argumentação de índole prática, admitamos a possibilidade de ser entendido dever ser competente para tais processos de execução a Autoridade Tributária, tal como, na senda de tal aresto do STA, tem sido prática na cobrança coerciva das custas e multas relativos a processos judiciais da área administrativa.

XIII. A solução preconizada pelo tribunal a quo é que - sendo uma das possibilidades que inicialmente se poderiam considerar - não é, salvo o devido respeito, admissível, sendo o despacho recorrido ilegal, por incorrer em erro de direito por violação do disposto nos artigos 61° e 89º do Decreto-Lei n.º 433 / 82, de 27 de Outubro, atentando contra as elencadas regras de competência material.


Não foram apresentadas contra-alegações.

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Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos à Conferência para julgamento.

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II. DA DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO/ das questões a decidir
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 144º nº 2 e 146º nº 4 do CPTA e dos artigos 5º, 608º nº 2, 635º nºs 4 e 5 e 639º do CPC novo, ex vi dos artigos 1º e 140º do CPTA.
No caso em face dos termos em que foram enunciadas pelo recorrente Ministério Público as conclusões de recurso, é trazida em recurso a questão essencial de saber se o Tribunal a quo ao considerar verificada a exceção de incompetência absoluta dos tribunais administrativos e fiscais para conhecerem do presente processo executivo incorreu em erro de julgamento, de direito.

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III. FUNDAMENTAÇÃO

A decisão recorrida assentou na seguinte fundamentação, que se passa a transcrever:
«Em causa nos presentes autos está a execução da decisão administrativa que, no âmbito de um processo de contra-ordenação, procedeu à aplicação de uma coima ao Executado.
Vejamos.
Nos termos do disposto no art. 212º/3 da CRP «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.».
O art. 1º/1 do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) estabelece que os tribunais da jurisdição administrativa são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos no art. 4º.
O artigo 4º do ETAF enumera algumas questões ou litígios sujeitos ou excluídos do âmbito da jurisdição administrativa.
Pese embora tenha sido eliminada, com a revisão de 2015, da redacção do art. 1º, a cláusula geral respeitante à natureza dos litígios incluídos no âmbito da jurisdição – os emergentes de relações jurídicas administrativas – passou a estabelecer-se uma cláusula residual, no art. 4º/1/o), que assegura que os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais que não se encontrem previstos nas alíneas do art. 4º/1 sejam, como eram, da competência destes tribunais.
Na verdade, o art. 4º/1 do ETAF contém uma enumeração de litígios cujo conhecimento está submetido à jurisdição, pese embora os litígios aí enumerados nem sempre correspondam à concretização do comando constitucional do art. 212º/31.
Nesses casos, em que a norma atributiva de competência não respeita a litígio que se enquadre no art. 212º da CRP ou na cláusula residual (ou geral) da alínea o) do nº 1 do art. 4º, deve entender-se que a mesma norma contém também uma cláusula de exclusão em relação a litígios que nela não estejam contemplados, ainda que respeitantes a matérias idênticas.
É o caso da matéria prevista na alínea l) do nº 1 do art. 4º, que atribui competência aos tribunais administrativos para a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a Impugnações Judiciais de decisões da administração pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.
Como as decisões proferidas em matéria contra-ordenacional não respeitam a relações jurídicas administrativas, pois que, embora possa estar em causa a violação de normas de direito administrativo, o quadro legal ao abrigo do qual a decisão vem a ser praticada não é de direito administrativo mas de direito contra-ordenacional, cuja natureza se encontra próxima do direito penal e processual penal, cuja aplicação subsidiária é determinada pelos arts. 32º e 41º/1 do DL nº 433/82, apenas a impugnação das decisões previstas no art. 4º/1/l) do ETAF e no art. 75ºA da Lei nº 50/2016 de 29.08, na redacção da Lei nº 114/2015 de 28.08, quando estejam em causa factos que dêem origem a contra-ordenações do ordenamento do território e por violação das disposições do DL nº 555/99 de 16.12, são da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, com exclusão das demais matérias respeitantes a contra-ordenações, designadamente no que respeita à execução das decisões administrativas tomadas no âmbito dos processos respectivos.
No caso dos autos, a execução vem requerida sob a invocação da alínea l) do nº 1 do art. 4º do ETAF. Não obstante e remetendo para o que se referiu acima, a referida alínea apenas contempla a competência para o julgamento das impugnações das decisões administrativas proferidas no âmbito dos processos de contra-ordenação aí identificados, com exclusão das demais matérias respeitantes a contra-ordenações, designadamente execução das decisões proferidas pelas autoridades administrativas no âmbito desses processos.
A execução das decisões administrativas proferidas no âmbito dos processos de contra-ordenação não se enquadra em nenhuma das alíneas do art. 4º/1 do ETAF, designadamente nas alíneas l) e n), nem na cláusula geral do art. 212º da CRP e art. 4º/1/o) do ETAF, para a qual também se remete, em matéria de execuções, no art. 157º/5 do CPTA, a respeito das execuções contra particulares fundadas em título que não seja uma sentença proferida pelos tribunais administrativos, exigindo-se, nesse caso, que o título executivo tenha sido produzido no âmbito de uma relação jurídico-administrativa, que vimos já não ser o caso.
Acresce referir que a competência dos tribunais administrativos também não pode extrair-se das normas dos arts. 61º e 89º do DL nº 433/82 de 27.10, pois que o art. 61º (para o qual se remete no art. 89º) contém uma norma de competência territorial e não material.
Em síntese, o litígio objecto dos autos está excluído do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal e, em consequência, este tribunal é incompetente em razão da matéria para dele conhecer.»

Este Tribunal Central Administrativo Sul entendeu, em diversos acórdãos, ser a jurisdição administrativa materialmente incompetente para conhecer das ações de execução para pagamento de coima e custas relativas a decisões da Administração Pública que tenham aplicado coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo. Entendimento que também sufragámos, designadamente nos Acórdãos de 01/06/2017, Proc. n.º 413/17.9BESNT; de 22/06/2017, Proc. nº 484/17.8BESNT; de 06/12/2017, Proc. nº 483/17.10BELSB, fosse na qualidade de adjunta, fosse na qualidade de relatora.
Mas o Tribunal de Conflitos, chamado a resolver o conflito negativo de jurisdições, veio, todavia, a considerar que pertence aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal o conhecimento das impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, também a competência para a execução da mesma coima, mesmo que aplicada sem impugnação, tem de pertencer aos mesmos tribunais.
Assim sucedeu nos acórdãos do Tribunal de Conflitos de 11/01/2018, Proc. nº 060/17 e de 08/02/2018, Proc. nº 066/17, disponíveis, in, www.dgsi.pt/jcon, ambos votado por unanimidade.
A tal respeito o acórdão do Tribunal de Conflitos de 11/01/2018, Proc. nº 060/17, verteu o seguinte, que se passa a transcrever:
«(…)importa resolver o conflito negativo de jurisdição, para conhecer da execução por coima e custas, resultantes de contraordenação relativa a matéria de urbanismo, sendo certo que, por decisão transitada em julgado, tanto a jurisdição comum como a jurisdição administrativa e fiscal a negaram e a atribuíram reciprocamente.
O Juízo Local de Pequena Criminalidade de Sintra baseou, essencialmente, a sua decisão no art. 4.º, n.º 1, alínea l), do ETAF, na redação dada pelo DL n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, que atribui a competência material aos Tribunais Administrativos e Fiscais para julgar as impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.
Por sua vez, o Tribunal Administrativo e FiscaI de Sintra motivou a sua decisão na circunstância da execução das decisões administrativas proferidas no âmbito dos processos de contraordenação não se enquadrar no art. 4.º, n.º 1, do ETAF.
Identificadas as posições de cada uma das entidades conflituantes, vejamos como resolver o conflito negativo de jurisdição suscitado entre a jurisdição comum e a jurisdição administrativa e fiscal.
A competência do tribunal, que constitui um pressuposto processual, corresponde à medida de jurisdição dos diversos tribunais, nomeadamente ao modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional (MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 88, e ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, pág. 196).
Internamente, o fracionamento ou repartição do poder de julgar deriva de vários fatores, designadamente em razão da matéria. A competência em razão da matéria para as diversas espécies de tribunais, situados entre si no mesmo plano horizontal, sem qualquer relação de hierarquia, resulta da natureza da matéria alegada na ação, tendo por justificação o princípio da especialização, com as vantagens inerentes, e cada vez mais reconhecidas.
A natureza da matéria alegada na ação afere-se pela pretensão jurisdicional deduzida e pelo fundamento invocado ou pelo pedido e causa de pedir (MANUEL DE ANDRADE, Ibidem, pág. 91), como, aliás, é entendido, pacificamente, pela jurisprudência.
De acordo com o disposto no art. 4.º, n.º 1, alínea I), do ETAF, na redação dada pelo DL n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, que começou a vigorar em 1 de setembro de 2016, "compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo".
Perante este dispositivo legal, é indubitável que compete à jurisdição administrativa e fiscal conhecer da impugnação judicial em matéria de contraordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, a qual se fica a dever à intenção legislativa expressa de "fazer corresponder o âmbito da jurisdição administrativa aos litígios de natureza administrativa".
No caso, porém, não está em causa a impugnação judicial de tal matéria, mas a execução de coima e custas processuais resultantes da prática de contraordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo. No entanto, nem por isso esta problemática específica deixa de relevar, no âmbito da regra de que o tribunal competente para a ação também o será para a execução.
Movendo-nos, deste modo, no âmbito do direito de mera ordenação social, importa averiguar se da aplicação do seu regime específico emerge uma solução para o problema em análise.
Nos termos do art. 89.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27 de outubro, o não pagamento da coima dará lugar à execução, que será promovida, perante o tribunal competente, segundo o art. 61.º.
Nos termos do disposto no art. 61.º, n.º 1, "é competente para conhecer do recurso o tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infração".
Sendo o Tribunal Administrativo e Fiscal o competente, em razão da matéria, para conhecer da impugnação judicial da decisão que aplica a coima no âmbito do ilícito de mera ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, também o Tribunal Administrativo e Fiscal será o competente para a execução da coima, por aplicação da regra do art. 89.°, n.º 1, do DL n.º 433/82.

Por efeito deste regime específico define-se a competência material para a execução de coima no âmbito do ilícito de mera ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.
No caso vertente, não podendo interpretar-se o art. 61.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, sem a norma legal definidora da competência material para o recurso da decisão que aplica a coima no âmbito do ilícito de mera ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, é inadequado limitar o seu âmbito a uma mera regra de competência territorial, sob pena de se perder o sentido útil da remissão consignada no art. 89.º, n.º 1, do DL n.º 433/82.
A lei, com efeito, quis afirmar que o tribunal competente para a execução de coima era o tribunal competente para conhecer do recurso da impugnação da decisão que aplica a coima no âmbito do ilícito de mera ordenação social, nomeadamente por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.
No âmbito especificado, sendo o Tribunal Administrativo e Fiscal o competente para conhecer o recurso da impugnação judicial da decisão de aplicação da coima, é igualmente competente para a execução de coima, sendo certo que a lei não distingue entre ter havido, ou não, impugnação.
Com a competência material atribuída à jurisdição administrativa e fiscal, está excluída a dos tribunais judiciais (art, 40.º, n.º 1, da LOSJ).

No contexto descrito, compete ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra conhecer da execução por coima e custas processuais, resultante de ilícito de mera ordenação social, por violação de norma de direito administrativo em matéria de urbanismo, instaurada contra A…………, assim se resolvendo o conflito negativo de jurisdição suscitado nos autos.».
Tendo, a final, concluído o seguinte, nos seguintes termos:
«I. A competência do tribunal, que constitui pressuposto processual, corresponde à medida de jurisdição dos diversos tribunais, nomeadamente ao modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional.
II. Compete à jurisdição administrativa e fiscal conhecer da impugnação judicial em matéria de contraordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, nos termos da alteração introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 2 de outubro.
III. Sendo a jurisdição administrativa e fiscal a competente para conhecer do recurso da impugnação judicial da decisão de aplicação de coima, é igualmente competente para a execução da coima (arts. 89.º, n.º 1, e 61.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27 de outubro).»
E o acórdão do Tribunal de Conflitos de 08/02/2018, Proc. nº 066/17, tomando igual posição, verteu o seguinte, que com utilidade para a questão, se passa a transcrever:
«(…) aqui não está em causa a competência para conhecer do recurso de impugnação da decisão administrativa que aplicou a coima por infração às regras do urbanismo.
O que está aqui em causa é a competência para conhecer da execução da coima aplicada por violação de regras de urbanismo.
Tal como defende o Digno Magistrado do Ministério Público, a competência para conhecer do hipotético recurso de impugnação da decisão administrativa em causa - atenta a data da notificação da decisão a impugnar e a da eventual entrada em juízo da hipotética impugnação - pertenceria aos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Por isso, a competência para a execução da coima resultante do hipotético indeferimento da referida impugnação pertenceria aos mesmos Tribunais Administrativos, ao abrigo do disposto no art. 157º, nº 5 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos.
Daqui resulta que a competência para a execução da mesma coima aplicada sem impugnação, naturalmente tem de pertencer aos mesmos tribunais administrativos.
Este entendimento resulta também da aplicação do referido nº 5 do art. 157º, por estar aqui em causa um título executivo que foi produzido no âmbito de uma relação jurídico-administrativa, por decorrer de uma violação de normas administrativas no âmbito do urbanismo - violação esta cuja coima-sanção seria impugnável nos Tribunais Administrativos e Fiscais, como já vimos.

Deste modo, no caso em apreço, a competência em razão da matéria para conhecer da presente execução pertence ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal de Conflitos em resolver o presente conflito negativo de jurisdição, atribuindo a competência ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.
».
Considerando que estes arestos do Tribunal de Conflitos foram votados por unanimidade e que a composição dos respetivos coletivos não foi coincidente, espelhando assim, também, uma posição uniforme do universo dos juízes conselheiros que os formaram, somos naturalmente compelidos a rever o entendimento que inicial e primeiramente havíamos assumido, em sentido divergente.
Não se impondo simultaneamente, neste conspecto, mesmo numa postura mais cautelosa, mantermos o nosso entendimento inicial, antes se aconselhando a sua revisão já para este processo, de modo a precaver um eventual novo e inútil conflito negativo de jurisdições.
Pelo que acatamos agora a conclusão a que o Tribunal de Conflitos chegou nos seus supra citados acórdãos, de que a jurisdição administrativa e fiscal, competente para conhecer do recurso da impugnação judicial da decisão de aplicação de coima, é também a competente para a execução da mesma coima, bem como a respetiva fundamentação, a que aderimos.
Razão pela qual, sem necessidade de mais considerações, concedemos provimento a recurso, e julgando-se o Tribunal a quo o competente em razão da matéria para decidir o processo executivo, revoga-se a decisão recorrida, determinando a baixa dos autos à 1ª instância, para que aí, nada mais obstando, prossiga os seus termos.
O que se decide.
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IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal em conceder provimento ao recurso jurisdicional, e julgando-se o Tribunal a quo o competente em razão da matéria para decidir o processo executivo, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se a baixa dos autos à 1ª instância, para que aí, nada mais obstando, prossigam os seus termos.

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Sem custas por dele estar isento o recorrente Ministério Público - artigo 527º nºs 1 e 2 do CPC novo (aprovado pela Lei nº 41/2013) e artigo 4º nº 1 alínea a) do RCP.
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Notifique.
D.N.
Lisboa, 19 de abril de 2018



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Maria Helena Barbosa Ferreira Canelas (relatora)




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Maria Cristina Gallego dos Santos




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Ana Celeste Catarrilhas da Silva Evans de Carvalho