Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:660/20.6BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:12/17/2020
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:ASILO; DECLARAÇÕES DO REQUERENTE
APRECIAÇÃO LIMINAR DO PEDIDO DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL
PRINCÍPIO DO BENEFÍCIO DA DÚVIDA
PEDIDO INFUNDADO
Sumário:I. Na fase liminar de apreciação do pedido de proteção internacional (asilo e autorização de residência por proteção subsidiária), caso o requerente apenas invoque questões não pertinentes ou de relevância mínima, todas inequivocamente assentes em razões económicas, o pedido de proteção internacional deve ser considerado infundado, ao abrigo da tramitação acelerada prevista no artigo 19.º da Lei da concessão de asilo ou proteção subsidiária.
II. A aplicação do princípio do benefício da dúvida, que enforma o n.º 4 do artigo 18.º desta Lei, pressupõe a pertinência e relevância das questões suscitadas nas declarações do requerente de proteção internacional.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul
I. RELATÓRIO
I....., nacional de Marrocos, instaurou ação administrativa, tramitada como processo urgente, contra o Ministério da Administração Interna / SEF, impugnando a decisão da Diretora Nacional do SEF de 13/02/2020, que considerou o seu pedido de proteção internacional infundado, pedindo se anule tal decisão e seja a entidade requerida condenada a conceder-lhe (i) asilo ou, caso assim não se entenda, (ii) proteção subsidiária por autorização de residência ou (iii) direito de residência por razões humanitárias.
Citado, o SEF apresentou resposta, pugnando pela improcedência da ação.
Por sentença datada de 04/06/2020, o TAC de Lisboa julgou a ação improcedente e absolveu a entidade demandada dos pedidos.
Inconformado com esta decisão, o autor interpôs recurso, terminando as respetivas alegações com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem:
“A. No dia 05 de Fevereiro de 2020, o Recorrente, ao chegar ao Aeroporto de Lisboa, vindo de Marrocos, requereu o pedido de asilo junto do Recorrido, o qual lhe foi posteriormente indeferido, pelo que, discordando com o teor da decisão proferida, intentou uma acção de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias contra o Recorrido;
B. O Recorrente, ainda que de forma muito genérica e abstracta, fundamentou o seu pedido na falta de condições mínimas de sobrevivência, que, pese embora o estado de origem tenha a obrigação de respeitar os direitos fundamentais e de tomar medidas para os concretizar, não são oferecidas pelo seu país, nomeadamente o acesso ao mercado de trabalho e aos mais elementares cuidados de saúde, pondo em risco a integridade física e a própria vida do Recorrente e dos seus familiares mais velhos;
C. O Recorrido alega que o Recorrente fundamentou o seu pedido, única e exclusivamente, em motivos económicos, o que não corresponde à verdade, na medida em que este não veio para Portugal para, simplesmente, ter acesso a boas condições de vida materiais, até do ponto de vista lucrativo, mas por uma questão de sobrevivência, que implica o acesso a bens de primeira necessidade, que não estão, nem ao seu dispôr, nem da família;
D. Ainda assim, o tribunal de primeira instância decidiu, na douta decisão objecto de recurso, julgar improcedente a acção administrativa urgente de impugnação de decisão de recusa de concessão de pedido de protecção internacional, absolvendo o Recorrido dos pedidos de anulação do acto administrativo e de concessão de protecção internacional ou de autorização de residência por razões humanitárias;
E. Salvo melhor opinião, não teve o tribunal de primeira instância a capacidade de analisar o assunto em análise tal como este assim o exigia, pois, e ao contrário do que seria expectável, não soube questionar o carácter abstracto e sintético da entrevista realizada ao Recorrente e a subsequente decisão proferida pelo Recorrido, que, na verdade, não transparece o real cenário vivido pelo Recorrente no seu país de origem, limitando-se a apresentar proferir uma Sentença também ela com contornos vagos e superficiais.
F. Sublinhe-se que, não obstante as declarações proferidas pelo Recorrente terem sido sempre proferidas com verdade, a forma de expressar do requerente de asilo nem sempre consegue corresponder à exacta realidade do problema e da situação que, in casu, deu origem à deslocação do país de origem para Portugal, em virtude dos condicionalismos da língua, da fragilidade da pessoa e da situação em que esta se encontra, bem como do carácter automático e mecânico que caracteriza a entrevista realizada do âmbito do procedimento administrativo;
G. Ao invés da Sentença objecto de recurso, na verdade, é notório, que se encontram preenchidos os requisitos que permitem concluir que a fundamentação do pedido de asilo do Recorrente, se baseia, em resumo, no fundado receio de não conseguir ultrapassar as sérias dificuldades que se fazem sentir no país de origem, que coloca em risco de vida o Recorrente e a sua família;
H. Pelo que, feita uma avaliação do processo de protecção internacional, resulta claro que, o pedido de asilo deveria ter sido concedido, ou, ainda que assim não se entendesse, o pedido de protecção subsidiária, ou, em última análise, a autorização de residência por razões humanitárias, decisão administrativa esta que o tribunal de primeira instância, erradamente e sem fundamento legal, se limitou a ratificar;
I. Perante a deficiência analítica do processo administrativo, não poderia o tribunal de primeira instância deixar de decidir pela anulação do acto administrativo, até em linha com o teor do ponto 204 do Manual de Procedimentos do ACNUR, que refere que “o benefício da dúvida deverá ser concedido quando todos os elementos de prova disponíveis tenham sido obtidos e confirmados e quando o examinador esteja satisfeito no respeitante à credibilidade geral do requerente. As declarações do requerente deverão ser coerentes e plausíveis e não deverão ser contraditórias face à generalidade dos factos conhecidos”, o que é o caso.
J. Como se pode ler no Ac. deste TCAS de 24/02 /2011 , Rec. 07226/11, proferido em caso semelhante ao dos presentes autos. «(…) o princípio do "non - refoulement", nos termos do qual é assegurada a proibição de quaisquer formas de perturbação da segurança do indivíduo, incluindo o retomo forçado ou a negação do estatuto que o possa colocar em risco e insegurança directa ou indirecta. O princípio de ”non-refoulement" significa que ninguém será expulso ou reenviado para um país onde a sua vida ou liberdade estejam ameaçadas e aplica-se sempre que alguém se encontra no território, ou nas fronteiras de um determinado país, independentemente de ter sido, ou não, formalmente reconhecido o seu estatuto de refugiado.”
K. Pelo que se vislumbra a razão humanitária fundada para o não regresso, razão porque se afigura ter sido demonstrada a necessidade de protecção internacional ou a concessão de autorização de residência por razões humanitárias ao cidadão Recorrente no presente processo.
L. O Recorrente, a par da sua família, é vítima de um tratamento desumano e degradante no seu país de origem, na medida em que não lhe é garantido qualquer acesso aos mais elementares cuidados de saúde e ao mercado de trabalho, constituindo uma nítida ofensa grave aos direitos humanos, facto que muito dificilmente consegue ser objecto de prova, pelas condições em que os requerentes de asilo se apresentam aquando do pedido de protecção internacional, não constituindo o Recorrente uma excepção, e que não foi sequer considerado pelo Tribunal de primeira instância.
M. Como refere Andreia Sofia de Oliveira, “para se aferir do preenchimento do conceito de perseguição para efeitos de atribuição do direito de asilo, haverá que fazer-se uma abordagem “holística”, ou seja, há que olhar a situação como um todo, admitindo-se que as motivações económicas, relacionadas com a pobreza ou a falta de oportunidades, também concorram para a motivação do requerente, o que não afastará a existência de actos de perseguição se existirem motivações fortes do ponto de vista da ofensa grave, intencional e discriminatória aos direitos fundamentais do requerente que justificam a necessidade de protecção internacional” (cf. da Autora, “Introdução ao Direito de Asilo”, in CEJ - O contencioso do direito de asilo e proteção subsidiária [Em linha]. 2.º ed. Obra colectiva. Coleção Formação Inicial. Lisboa: CEJ, Setembro de 2016 Disponível em URL: http://bit.ly/2fZ7eCU, pp. 51-53);
N. A transferência do Recorrente de Portugal para o seu país de origem resultará, inevitavelmente, num sério e grave risco para a integridade física e própria vida do Recorrente, daí que se afigure a necessidade de protecção internacional ou de autorização de residência por razões humanitárias;
O. Não sendo concedido o pedido de asilo, sublinhe-se que, no que concerne à protecção subsidiária, o acolhimento do pedido de protecção internacional do requerente exige a demonstração de uma impossibilidade objectiva de regresso ao seu pais de origem, em consequência de ameaça grave contra a sua vida ou integridade física, resultante da violação generalizada e indiscriminada dos direitos humanos no seu país de origem, conforme resulta da transposição, para a ordem jurídica nacional, operada pelo artigo 7º da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho, do regime contido na directiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de Abril de 2004, pelo que a sua interpretação deverá, em consequência, atender ao espírito das normas comunitárias que lhe subjazem, concretamente aos artigos 2·alínea e) e 15.º·alínea c) daquele diploma;
P. No caso sub iudice, a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento na apreciação das condições do Recorrente para beneficiar de protecção internacional para concessão de asilo, nos termos do artigo 3º, ou de protecção subsidiária, nos termos do artigo 7º, ambos da da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho, alterada pela Lei nº 26/2014, de 05 de Maio;
Q. Em suma, a não ser concedida ao Recorrente a protecção internacional ou a autorização de residência por razões humanitárias estar-se-á a violar o art. 33.º da Convenção de Genebra, o art. 3.º, 7.º e 19.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho, o n.º 8 do art.33.º da Constituição da República Portuguesa e o art. 8.º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março.
Nestes termos e nos demais de Direito que Vossa Excelência doutamente suprirá, requer que:
a) Seja revogada a Sentença proferida, para que seja declarada nula a decisão por ela ratificada, por inexistência de fundamentação em razão de obscuridade, contradição ou insuficiência, como se verifica, in casu, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 152.º, do nº 2 do artigo 153.º e da alínea g) do nº 2 do artigo 161.º, todos do Código do Procedimento Administrativo;
b) Seja revogada a Sentença para que seja declarada nula a decisão por ela ratificada, por erro no procedimento, considerando que o Recorrido, nos autos do processo de proteção internacional atribuiu a este trâmite acelerado nos termos da alínea e), do nº 1, do artigo 19.º, em desrespeito ao artigo 7.º e artigo 18.º, todos da Lei do Asilo;
c) Seja revogada a Sentença para que seja declarada nula a decisão por ela ratificada, por erro na decisão, por constarem nos autos do Processo de Proteção Internacional todos os elementos necessários à concessão da proteção de protecção internacional, nos termos do artigo 3.º ou, subsidiariamente, do artigo 7.º da Lei de Asilo ou, num nível duplo de subsidiaridade, à concessão de direito de residência por razões humanitárias, nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 123.º da Lei n.º 27/2003, de 04 de Julho;
d) Seja, por fim, condenado o Recorrido a admitir e deferir o pedido de proteção internacional apresentado pelo Recorrente.”
A entidade requerida não apresentou contra-alegações.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, por entender, em síntese, que as razões invocadas pelo recorrente são unicamente económicas, o que é expressamente reconhecido pelo próprio, não merecendo a decisão recorrida qualquer censura, por não ter violado nenhuma das disposições legais aplicáveis, as quais não se mostram igualmente violadas pelo ato impugnado.
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Perante as conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre aferir do erro de julgamento da sentença quanto a considerar inverificado o vício de violação da lei, por erro nos pressupostos, que aquele imputa à decisão impugnada.

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 6, do CPC, ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3, do CPTA, por não ter sido impugnada, remete-se a matéria de facto para os termos em que foi decidida pela 1.ª instância.
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II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, a questão a decidir neste processo cinge-se a saber se ocorre erro de julgamento da sentença quanto a considerar inverificado o vício de violação da lei, por erro nos pressupostos, que aquele imputa à decisão impugnada.
Como é bom de ver, a invocação no âmbito do recurso de questão nova, como a inexistência de fundamentação em razão de obscuridade, contradição ou insuficiência da decisão impugnada (e desprovida de contexto, aliás), não se pode considerar abrangida pelo respetivo objeto. Isto porque a instância recursiva se destina à apreciação do decidido em primeira instância e das questões aí objeto de conhecimento.
Já a sujeição do procedimento à tramitação acelerada prevista no artigo 19.º da Lei do Asilo e a existência de elementos necessários à concessão de asilo, proteção subsidiária ou concessão de direito de residência por razões humanitárias, configuram temáticas suscitadas na ação e sobre as quais se pronunciou a decisão recorrida. Pelo que serão objeto de análise na questão do invocado erro de julgamento.

Vejamos o direito aplicável e relevante para a solução do caso em apreciação.
Nos termos do disposto no artigo 33.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa (CRP), “[é] garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência da sua atividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.”
Concretizando o direito de asilo aí consagrado, a Lei n.º 27/2008, de 30 de junho (Lei de concessão de asilo ou proteção subsidiária, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 26/2014, de 5 de maio), veio estabelecer as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária, transpondo as Diretivas n.º 2011/95/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro, n.º 2013/32/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, e n.º 2013/33/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, e implementar a nível nacional o Regulamento (UE) n.º 603/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, para efeitos de aplicação efetiva do Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho.
Consta do respetivo artigo 3.º o seguinte:
“1 - É garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência de atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.
2 - Têm ainda direito à concessão de asilo os estrangeiros e os apátridas que, receando com fundamento ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possam ou, por esse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual.
3 - O asilo só pode ser concedido ao estrangeiro que tiver mais de uma nacionalidade quando os motivos de perseguição referidos nos números anteriores se verifiquem relativamente a todos os Estados de que seja nacional.
4 - Para efeitos do n.º 2, é irrelevante que o requerente possua efetivamente a característica associada à raça, religião, nacionalidade, grupo social ou político que induz a perseguição, desde que tal característica lhe seja atribuída pelo agente da perseguição.”
O artigo 5.º densifica o que se deve entender por ‘atos de perseguição’:
“1 - Para efeitos do artigo 3.º, os atos de perseguição suscetíveis de fundamentar o direito de asilo devem constituir, pela sua natureza ou reiteração, grave violação de direitos fundamentais, ou traduzir-se num conjunto de medidas que, pelo seu cúmulo, natureza ou repetição, afetem o estrangeiro ou apátrida de forma semelhante à que resulta de uma grave violação de direitos fundamentais.
2 - Os atos de perseguição referidos no número anterior podem, nomeadamente, assumir as seguintes formas:
a) Atos de violência física ou mental, inclusive de natureza sexual;
b) Medidas legais, administrativas, policiais ou judiciais, quando forem discriminatórias ou aplicadas de forma discriminatória;
c) Ações judiciais ou sanções desproporcionadas ou discriminatórias;
d) Recusa de acesso a recurso judicial que se traduza em sanção desproporcionada ou discriminatória;
e) Ações judiciais ou sanções por recusa de cumprir o serviço militar numa situação de conflito na qual o cumprimento do serviço militar implicasse a prática de crime ou ato suscetível de provocar a exclusão do estatuto de refugiado, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º;
f) Atos cometidos especificamente em razão do género ou contra menores.
3 - As informações necessárias para a tomada de decisões sobre o estatuto de proteção internacional não podem ser obtidas de tal forma que os agentes de perseguição fiquem informados sobre o facto de o estatuto estar a ser considerado ou que coloque em perigo a integridade física do requerente ou da sua família em Portugal ou no Estado de origem.
4 - Para efeitos do reconhecimento do direito de asilo tem de existir um nexo entre os motivos da perseguição e os atos de perseguição referidos no n.º 1 ou a falta de proteção em relação a tais atos.”
De acordo com o artigo 6.º, n.º 1, podem ser considerados como agentes de perseguição o Estado, os partidos ou organizações que controlem o Estado ou uma parcela significativa do respetivo território, e agentes não estatais, se ficar provado que o Estado e os partidos ou organizações que controlem o Estado ou uma parcela significativa do respetivo território são incapazes ou não querem proporcionar proteção contra a perseguição.
O artigo 7.º prevê as situações de ‘proteção subsidiária’ como segue:
“1 - É concedida autorização de residência por proteção subsidiária aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 3.º e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave.
2 - Para efeitos do número anterior, considera-se ofensa grave, nomeadamente:
a) A pena de morte ou execução;
b) A tortura ou pena ou tratamento desumano ou degradante do requerente no seu País de origem; ou
c) A ameaça grave contra a vida ou a integridade física do requerente, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno ou de violação generalizada e indiscriminada de direitos humanos.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto no artigo anterior.”
Na apreciação dos pedidos de proteção internacional deve ser determinado, em primeiro lugar, se o requerente preenche as condições para beneficiar do estatuto de refugiado e, caso não preencha, se é elegível para proteção subsidiária - artigo 10.º, n.º 2.
Os pedidos de proteção internacional apresentados às autoridades de outros Estados membros que procedam a controlos fronteiriços ou de imigração em território nacional são apreciados pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) - artigo 10.º, n.º 3.
Os requerentes de proteção internacional são autorizados a permanecer em território nacional até à decisão sobre a admissibilidade do pedido – artigo 11.º, n.º 1.
Este direito de permanência não habilita o requerente à emissão de uma autorização de residência - artigo 11.º, n.º 2.
Segundo o artigo 15.º, constituem ‘deveres dos requerentes de proteção internacional’:
- apresentar todos os elementos necessários para justificar o pedido de proteção internacional, nomeadamente:
a) Identificação do requerente e dos membros da sua família;
b) Indicação da sua nacionalidade, país ou países e local ou locais de residência anteriores;
c) Indicação de pedidos de proteção internacional anteriores;
d) Relato das circunstâncias ou factos que fundamentam a necessidade de proteção internacional;
e) Permitir a recolha das impressões digitais de todos os dedos, desde que tenha, pelo menos, 14 anos de idade, nos termos previstos no Regulamento (UE) n.º 603/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, relativo à criação do sistema 'Eurodac' de comparação de impressões digitais;
f) Manter o SEF informado sobre a sua residência, devendo imediatamente comunicar a este serviço qualquer alteração de morada;
g) Comparecer perante o SEF quando para esse efeito for solicitado, relativamente a qualquer circunstância do seu pedido.
- deve ainda o requerente, juntamente com o pedido de proteção internacional, apresentar os documentos de identificação e de viagem de que disponha, bem como elementos de prova, podendo apresentar testemunhas em número não superior a 10.
Nos termos do artigo 16.º, n.º 1, “[a]ntes de proferida qualquer decisão sobre o pedido de proteção internacional, é assegurado ao requerente o direito de prestar declarações na língua da sua preferência ou noutro idioma que possa compreender e através do qual comunique claramente, em condições que garantam a devida confidencialidade e que lhe permitam expor as circunstâncias que fundamentam a respetiva pretensão.”
O artigo 18.º, com a epígrafe ‘apreciação do pedido’, prevê o seguinte:
“1 - Na apreciação de cada pedido de proteção internacional, compete ao SEF analisar todos os elementos pertinentes, designadamente as declarações do requerente, proferidas nos termos dos artigos anteriores, e toda a informação disponível.
2 - Na apreciação do pedido, o SEF tem em conta especialmente:
a) Os factos pertinentes respeitantes ao país de origem, obtidos junto de fontes como o Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo, o ACNUR e organizações de direitos humanos relevantes, à data da decisão sobre o pedido, incluindo a respetiva legislação e regulamentação e as garantias da sua aplicação;
b) A situação e circunstâncias pessoais do requerente, por forma a apreciar, com base nessa situação pessoal, se este sofreu ou pode sofrer perseguição ou ofensa grave;
c) Se as atividades do requerente, desde que deixou o seu país de origem, tinham por fim único ou principal criar as condições necessárias para requerer proteção internacional, por forma a apreciar se essas atividades o podem expor a perseguição ou ofensa grave, em caso de regresso àquele país;
d) Se é razoável prever que o requerente se pode valer da proteção de outro país do qual possa reivindicar a cidadania;
e) A possibilidade de proteção interna se, numa parte do país de origem, o requerente:
i) Não tiver receio fundado de ser perseguido ou não se encontrar perante um risco real de ofensa grave; ou
ii) Tiver acesso a proteção contra a perseguição ou ofensa grave, tal como definida no artigo 5.º e no n.º 2 do artigo 7.º, puder viajar e ser admitido de forma regular e com segurança nessa parte do país e tiver expectativas razoáveis de nela poder instalar-se.
3 - Constitui um indício sério do receio fundado de ser perseguido ou do risco de sofrer ofensa grave, o facto de o requerente já ter sido perseguido ou diretamente ameaçado de perseguição ou ter sofrido ou sido diretamente ameaçado de ofensa grave, exceto se existirem motivos fundados para considerar que os fundamentos dessa perseguição ou ofensa grave cessaram e não se repetirão.
4 - As declarações do requerente devem ser confirmadas mediante prova documental ou outros meios de prova admitidos em direito, a não ser que estejam reunidas cumulativamente as seguintes condições:
a) O requerente tenha feito um esforço autêntico para fundamentar o seu pedido;
b) O requerente apresente todos os elementos ao seu dispor e explicação satisfatória para a eventual falta de outros considerados pertinentes;
c) As declarações prestadas pelo requerente forem consideradas coerentes, plausíveis, e não contraditórias face às informações disponíveis;
d) O pedido tiver sido apresentado com a maior brevidade possível, a menos que o requerente apresente justificação suficiente para que tal não tenha acontecido;
e) Tenha sido apurada a credibilidade geral do requerente.”
Já o artigo 19.º da Lei do Asilo prevê as situações em que a apreciação do pedido de proteção internacional não é submetida a instrução nem à apreciação do pedido de acordo com os critérios do artigo 18.º, devendo ser sujeito a tramitação acelerada por o pedido ser considerado infundado:
“1 - A análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional é sujeita a tramitação acelerada e o pedido considerado infundado quando se verifique que:
a) O requerente induziu em erro as autoridades, apresentando informações ou documentos falsos ou ocultando informações ou documentos importantes a respeito da sua identidade ou nacionalidade suscetíveis de terem um impacto negativo na decisão;
b) É provável que, de má-fé, o requerente tenha destruído ou extraviado documentos de identidade ou de viagem suscetíveis de contribuírem para a determinação da sua identidade ou nacionalidade;
c) O requerente fez declarações claramente incoerentes e contraditórias, manifestamente falsas ou obviamente inverosímeis que contradigam informações suficientemente verificadas sobre o país de origem, retirando credibilidade à alegação quanto aos motivos para preencher os requisitos para beneficiar de proteção;
d) O requerente entrou ou permaneceu ilegalmente em território nacional e não tenha apresentado o pedido de proteção internacional logo que possível, sem motivos válidos;
e) Ao apresentar o pedido e ao expor os factos, o requerente invoca apenas questões não pertinentes ou de relevância mínima para analisar o cumprimento das condições para ser considerado refugiado ou pessoa elegível para proteção subsidiária;
f) O requerente provém de um país de origem seguro;
g) O requerente apresentou um pedido subsequente que não foi considerado inadmissível nos termos do artigo 19.º-A;
h) O requerente apresentou o pedido apenas com o intuito de atrasar ou impedir a aplicação de uma decisão anterior ou iminente que se traduza no seu afastamento;
i) O requerente representa um perigo para a segurança interna ou para a ordem pública;
j) O requerente recusa sujeitar-se ao registo obrigatório das suas impressões digitais de acordo com o Regulamento (UE) n.º 603/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, relativo à criação do sistema «Eurodac» de comparação de impressões digitais.”
Vem ainda convocado pelo recorrente o artigo 123.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que aprovou o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, segundo o qual, “[q]uando se verificarem situações extraordinárias a que não sejam aplicáveis as disposições previstas no artigo 122.º, bem como nos casos de autorização de residência por razões humanitárias ao abrigo da lei que regula o direito de asilo, mediante proposta do diretor nacional do SEF ou por iniciativa do membro do Governo responsável pela área da administração interna pode, a título excecional, ser concedida autorização de residência temporária a cidadãos estrangeiros que não preencham os requisitos exigidos na presente lei (…) [p]or razões humanitárias.”
Conclui-se na decisão recorrida como segue:
O A. arrima o pedido de protecção internacional apresentado na circunstância essencial de os seus pais se encontrarem doentes, o que motivou que fosse para o Brasil para os ajudar, mas sem sucesso, na medida em que não tem trabalho em Marrocos, não tem dinheiro e se necessitar de “remédio não há, tem que discutir com meio mundo para arranjar remédios” (…) tal circunstancialismo não se mostra bastante para justificar a concessão da protecção internacional requerida (…) no que tange ao princípio do benefício da dúvida, dir-se-á que, estando em causa, como se viu, uma decisão liminar do procedimento de protecção internacional, em que a decisão administrativa se arrima única e exclusivamente na pertinência dos factos alegados pelo respectivo requerente, o princípio do benefício da dúvida, enquanto instrumento tendente à repartição do ónus da prova, não releva para o caso (mas tão-somente para a sua fase instrutória, se a isso se chegar), não se alvitrando, assim, se e em que medida é que o mesmo poderia ter sido ilicitamente preterido pelo R. (…) [N]ão tendo resultado provado um qualquer receio fundado de perseguição, nos termos e com os fundamentos que acima se expenderam, o princípio da não-repulsão não é passível de ser aplicado à situação sub judice.”
Contra o que argumenta o recorrente, em suma, que não veio para Portugal apenas para ter acesso a boas condições de vida materiais, mas por uma questão de sobrevivência, fundando-se o seu pedido no receio de não conseguir ultrapassar as sérias dificuldades que se fazem sentir no país de origem, que o coloca em risco de vida e à sua família.
Vejamos se lhe assiste razão.
A sentença recorrida validou os fundamentos da decisão administrativa, que considerou infundado o pedido formulado, ao abrigo do artigo 19.º da Lei n.º 27/2008, ao invés de seguir os trâmites previstos no artigo 18.º do mesmo diploma legal.
A decisão administrativa amparou-se na alínea e) do citado artigo 19.º, para fundamentar a tramitação acelerada a que sujeitou o pedido do recorrente.
Estaria, pois, em causa ter o requerente invocado apenas questões não pertinentes ou de relevância mínima para analisar o cumprimento das condições para ser considerado refugiado ou pessoa elegível para proteção subsidiária.
Ou seja, com base numa apreciação sumária, considerou-se desde logo como infundado o pedido.
O que implicou não se passar para a fase de apreciação do pedido nos termos previstos no artigo 18.º da Lei do Asilo, em que compete ao SEF analisar todos os elementos pertinentes, designadamente as declarações do requerente, proferidas nos termos dos artigos anteriores, e toda a informação disponível.
Nesta medida, conforme assisadamente se entendeu na sentença, não se afigura viável que o recorrente obtenha, através da procedência desta ação, a concessão de proteção internacional ou a autorização de residência, conforme peticiona. Foi proferida uma decisão liminar no procedimento de proteção internacional, impondo aqui saber se se justifica determinar a instrução do pedido à entidade demandada, nos termos da respetiva tramitação regular.
Prosseguindo.
Conforme consta do Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado, da ACNUR, ponto 205 (disponível em https://www.acnur.org/), cabe ao requerente do pedido de asilo, designadamente, dizer a verdade, esforçar-se para sustentar as suas declarações com todas as evidências disponíveis e dar uma explicação satisfatória em relação a qualquer falta de elementos de prova. Por seu turno, cabe a quem examina o pedido, designadamente, apreciar a credibilidade do requerente e avaliar os elementos de prova (se necessário, dando ao requerente o benefício da dúvida) a fim de estabelecer os elementos objetivos e subjetivos do caso.
Não devem os representantes do Estado que aprecia o pedido de asilo ater-se às declarações iniciais do requerente, antes se impondo uma cooperação ativa com este, havendo que recolher junto de diversas fontes não estatais, como o ACNUR, a EASO ou outras organizações de defesa de direitos humanos, as informações mais atuais e necessárias para apreciar aquele pedido (cf. Ana Rita Gil, “A garantia de um procedimento justo no Direito Europeu de Asilo”, CEJ - O contencioso do direito de asilo e proteção subsidiária, 2016, págs. 242/243).
Sucede que, no caso presente, como bem refere o Ministério Público, tanto das declarações como dos articulados posteriormente apresentados pelo recorrente, é inultrapassável que as razões invocadas pelo recorrente são tão-só razões económicas.
Ainda que se invoque, de forma perfeitamente descontextualizada, ser vítima de tratamento desumano e degradante no seu país de origem, na medida em que não lhe é garantido qualquer acesso aos mais elementares cuidados de saúde e ao mercado de trabalho, e que a sua transferência para o país de origem resultará num sério e grave risco para a integridade física e própria vida. Tratam-se de alegações desprovidas de qualquer densificação e como tal vazias.
Não vem invocado qualquer fundado receio de perseguição.
Pelo que estamos fora do âmbito dos pressupostos da concessão do direito de asilo, previstos no artigo 3.º da Lei n.º 27/2008.
Tal como patentemente não resulta dos autos que se verifique a impossibilidade de regresso a Marrocos em virtude de sistemática violação dos seus direitos humanos, ou a ocorrência de risco de sofrer ofensa grave, para efeitos de concessão de autorização de residência por proteção subsidiária, conforme previsto no artigo 7.º da referida Lei.
Nem sequer se mostra fundamentado o pedido de autorização de residência por razões humanitárias, que de todo o modo impõe distinto procedimento junto da entidade demandada.
Cumpre, pois, concluir que, em face dos elementos disponíveis, não se vislumbra que o recorrente faça referência a questões pertinentes ou de relevância mínima para analisar o cumprimento das condições para ser considerado pessoa elegível para concessão de asilo ou proteção subsidiária.
É verdade que nos procedimentos de asilo tem aplicação o princípio do benefício da dúvida, que enforma as já citadas alíneas do n.º 4 do artigo 18.º da Lei n.º 27/2008. Contudo, para que ocorra a repartição do ónus da prova entre o requerente e o decisor do procedimento, como ali se prevê, é pressuposta a pertinência e relevância das questões suscitadas nas suas declarações.
Nesta medida, não se justificava conceder-lhe o benefício da dúvida, como se notou na sentença recorrida, que não merece censura.

Em suma, será de negar provimento ao recurso.
*

III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas, atento o disposto no artigo 84.º da Lei do Asilo.

Lisboa, 17 de dezembro de 2020

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o relator consigna e atesta que as Juízas Desembargadoras Ana Cristina Lameira e Catarina Vasconcelos têm voto de conformidade com o presente acórdão.
(Pedro Nuno Figueiredo)