Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2256/11.4BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:04/29/2021
Relator:MÁRIO REBELO
Descritores:AUDIÇÃO PRÉVIA.
FALTA INJUSTIFICADA DE INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS.
AUTO LIQUIDAÇÃO.
Sumário:1.O exercício do direito de audição prévia  não se basta com a mera oportunidade, formal, de pronúncia dada ao sujeito. Apenas se completa numa decisão que resulte, nomeadamente, da análise da prova carreada pelo interessado e pondere as questões por ele mobilizadas em defesa da sua posição.
2.Embora o órgão de execução fiscal não tenha procedido à inquirição das testemunhas arroladas, sem qualquer justificação, o tribunal "a quo" fê-lo e fixou todos os factos provados relevantes, incluindo os respeitantes ao exercício de facto da gerência e da culpa na insuficiência patrimonial da devedora originária, concluindo pela sua verificação.
3.Decorre do princípio de aproveitamento dos atos administrativos, que a anulação de um ato viciado não será pronunciada quando seja seguro que o novo ato a emitir, isento desse vício, não poderá deixar de ter o mesmo conteúdo decisório que tinha o ato impugnado.
4.A caducidade do direito à liquidação pressupõe o dever de efetuar a sua notificação ao contribuinte (art. 45º/1 LGT). Tratando-se de uma auto liquidação, a AT está desobrigada de notificar o sujeito passivo do montante que o próprio liquidou.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
RECORRENTE: Autoridade Tributária
RECORRIDO: M.....
OBJECTO DO RECURSO:

Sentença proferida pelo MMº juiz do TT de Lisboa que julgou procedente a Oposição Judicial deduzida por M....., na qualidade de responsável subsidiária, no processo de execução fiscal n.° ........ e apensos, em que é executada originária a sociedade “ P......., LDA.”, para cobrança coerciva de dívidas, no montante de € 485.446,04 e acrescido.


CONCLUSÕES DAS ALEGAÇÕES:

I) Com a ressalva da devida vénia e também por melhor entendimento, não pode a Fazenda Pública conformar-se com o assim doutamente decidido, porquanto, considera existir erro de julgamento quanto à matéria de facto e de direito; errando o douto Tribunal a quo quanto à aplicação do disposto nos art.°s 60° e nos art.°s 23° e 24, todos da LGT; 163.°, n.° 5 do CPA, bem como quanto ao disposto no art.° 204° do CPPT.

II) Ao contrário do entendimento firmado pelo Tribunal a quo, a Administração Tributária ponderou a argumentação exposta pela Oponente aquando do exercício do direito de audição, como, aliás, o Tribunal reconhece e assentou nos pontos 20 e 21 do probatório.

III) Assim como ponderou a não audição das testemunhas arroladas, posto que se entendesse como necessária a respetiva audição, tê-lo-ia feito.

IV) Encontrando-se, deste modo, o despacho de reversão devidamente fundamentado, devendo, por tal fato, manter-se na ordem jurídica. Não obstante e sem conceder,

V) As testemunhas arroladas pela Oponente na petição de oposição foram ouvidas pelo douto Tribunal a quo em audiência de inquirição de testemunhas, tendo o Tribunal asseverado que aquelas não lhe deram convencimento relativamente à tese da Oponente quanto à sua alegada ilegitimidade e falta de culpa, relativamente à insuficiência do património da executada originária para o pagamento das dívidas exequendas.

VI) Assim, se perante o Tribunal a Oponente não conseguiu provar a sua ilegitimidade traduzida no não exercício da gerência efetiva e na falta de culpa relativamente à insuficiência do património da executada originária para o pagamento dos seus débitos, logo, caso fosse repetida a formalidade de audição prévia, agora com a audição das testemunhas arroladas, o órgão de execução fiscal não poderia apreciar e valorar de forma diferente os mesmos meios de prova, pois isso atentaria contra o caso julgado que se formou com a sentença recorrida. - Neste sentido, cfr. o ante citado Acórdão do STA de 20.06.2012, processo n° 01013/11.

VII) Deste modo, resta concluir que, tendo o Tribunal a quo confirmado a verificação dos pressupostos da reversão, ficando definido na Sentença que o Tribunal não ficou convencido quanto à alegada ilegitimidade e falta de culpa da Oponente pela falta de pagamento dos tributos, esta é responsável subsidiária pelas dívidas tributárias, pelo que se impunha aproveitar o ato alegadamente inquinado pelo vício da falta de inquirição de testemunhas em sede de audição prévia e, desta forma, determinar pela prossecução da execução contra a Oponente.

VIII) Ao decidir em sentido contrário, a douta Sentença a quo violou as normas preditas, pelo que não se pode manter na ordem jurídica.

Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta Decisão recorrida com as legais consequências, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.»

CONTRA ALEGAÇÕES/RECURSO SUBORDINADO.

a) A omissão da prática de actos de produção de prova sem estar justificada e motivada tal omissão, fere o direito de audição previa e, inerentemente, os princípios constitucionais que lhe estão subjacentes, do contraditório e da participação dos particulares nas decisões da administração;

b) Estando tal situação prevista no art. 104° do Cod. Proc. Administrativo, no caso concreto a falta de inquirição de testemunhas indicadas quando do exercício do direito de audição não foi recuperada em qualquer fase do processo;

c) Quando assim se não entenda, sempre será de atentar, em sede de recurso subordinado, que caducidade do direito à liquidação constitui fundamento de oposição à execução fiscal enquadrável na alínea e) do n.° 1 do art. 204.° do CPPT, gerando uma nulidade por omissão de pronuncia na parte em que a sentença recorrida se absteve de conhecer de tal questão.

Termos em que deve o recurso interposto pela Fazenda Publica ser julgado improcedente, confirmando-se a sentença recorrida ou, quando assim se não entenda, ser conhecido o recurso subordinado suscitado nas presentes alegações e o mesmo julgado procedente, sempre com as legais consequências, por ser de JUSTIÇA!»

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste TCA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

II QUESTÕES A APRECIAR.

O objecto do presente recurso, delimitado pelas conclusões formuladas (artigos 635º/3-4 e 639º/1-3, ambos do Código de Processo Civil, «ex vi» do artº 281º CPPT), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º/ 2, in fine), consiste em saber se a sentença errou ao julgar procedente a oposição por preterição do direito de audição e se ocorreu a caducidade do direito à liquidação.

III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

A sentença fixou os seguintes factos provados e respetiva motivação:

1. A sociedade “P......., Lda.”, constituída por registo de 15.07.1964, tinha como objeto social o “Comércio de papelaria, armazenista, revendedora, de importação e exportação” - cfr. certidão permanente a fls. 59 a 62 dos autos;

2. Na data da constituição da sociedade, referida em 1), foram designados gerentes M....., ora Oponente e G......., obrigando-se a sociedade com a assinatura de qualquer um dos gerentes - cfr. certidão permanente a fls. 59 a 62 dos autos

3. Em 14.01.2001, ocorreu o óbito do sócio e gerente G......., marido da ora Oponente - cfr. fls. 278 do PEF apenso aos autos;

4. A Oponente, na qualidade de sócia gerente da sociedade devedora originária, assinou uma declaração, datada de 10.04.2001, autorizando J....... a levantar o novo cartão de contribuinte da sociedade - cfr. fls. 30 dos autos;

5. Em 30.04.2005, foram instaurados, no Serviço de Finanças de Lisboa 12, contra a sociedade referida em 1), os seguintes processos de execução fiscal, para cobrança de Imposto sobre o Valor acrescentado (IVA), do exercício de 2005, conforme certidões de dívida identificadas:


«imagem no original»


- cfr. fls. 300 do PEF apenso aos autos;

6. A Oponente, na qualidade de sócia gerente da sociedade devedora originária, assinou um requerimento, datado de 23.03.2006, dirigido ao Serviço de Finanças de Lisboa 12, no qual requer a regularização dos valores em dívida através de pagamentos por conta - cfr. fls. 273 e 274 do PEF apenso aos autos;

7. A Oponente, na qualidade de sócia gerente da sociedade devedora originária, assinou um requerimento, datado de 02.11.2006, dirigido ao Diretor Geral da Direção Geral dos Impostos, referente à regularização de valores em dívida - cfr fls. 140 a 143 do PEF apenso aos autos;

8. A Oponente, na qualidade de sócia gerente da sociedade devedora originária, assinou um requerimento, datado de 24.11.2006, dirigido ao Serviço de Finanças de Lisboa 12, referente a regularização de valores em dívida - cfr. fls. 108 a 110 do PEF apenso aos autos;

9. A Oponente, na qualidade de sócia gerente assinou um documento, datado de 07.12.2006, dirigido ao Serviço de Finanças de Lisboa 12, referente ao Inventário Físico do imobilizado corpóreo, realizado no mês de Novembro de 2006 - cfr. fls. 118 do PEF apenso aos autos;

10. A Oponente, na qualidade de sócia gerente da sociedade devedora originária, assinou um requerimento, datado de 11.12.2006, dirigido ao Serviço de Finanças de Lisboa 12, no qual requer a transferência do crédito de imposto do IVA - cfr. fls. 119 do PEF apenso aos autos;

11. A Oponente, na qualidade de sócia Gerente da sociedade devedora originária, assinou dois requerimentos, datados de 14.12.2006 e 28.03.2007, dirigidos ao Serviço de Finanças de Lisboa 12, referente à inclusão da referida sociedade na lista de devedores tributários - cfr. fls. 197 a 200 do PEF apenso aos autos;

12. Em 08.06.2007, foi registada a dissolução da sociedade devedora originária - cfr. certidão permanente a fls. 59 a 62 dos autos;

13. Em 11.06.2007, foi registado o encerramento da liquidação da sociedade devedora originária - cfr. certidão permanente a fls. 59 a 62 dos autos;

14. A Oponente, na qualidade de fiel depositária dos bens penhorados à ordem de processo executivo, assinou um requerimento, datado de 04.06.2009, no qual requer a venda dos bens penhorados - cfr. fls. 225 e 226 do PEF apenso aos autos;

15. Em 27.09.2011, foi lavrada informação, pelo órgão de execução fiscal, resultando da mesma que a sociedade devedora originária se encontra cessada em IRC desde 16.10.2009 e em IVA desde 08.06.2007, não existindo bens suscetíveis de penhora - cfr. fls. 259 do PEF apenso aos autos;

16. Por despacho lavrado em 27.09.2011, pelo Chefe do Serviço de Finanças, foi determinada a preparação do processo para efeitos de reversão, contra a Oponente - cfr. fls. 260 do PEF apenso aos autos;

17. Na mesma data, foi emitida “Notificação”, conferindo à Oponente, na qualidade de responsável subsidiária, prazo para o exercício do direito de audição prévia, constando da mesma, designadamente, o seguinte:


«imagem no original»


- cfr. fls. 263 e 264 do PEF apenso aos autos;

18. Em 24.10.2011, a Oponente apresentou requerimento, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, exercendo o direito de audição prévia, requerendo a inquirição de duas testemunhas - cfr. fls. 280 a 293 do PEF apenso aos autos;

19. Em 26.10.2011, pelo Chefe do Serviço de Finanças, foi proferido despacho de que determinou a prossecução da reversão contra a Oponente, com fundamento em informação com seguinte teor:


«imagem no original»

- cfr. fls. 296 do PEF apenso aos autos;

20. Com data de 26.10.2011, foi emitido o ofício n.° 009936, dirigido à Oponente, com o seguinte teor:

“ Foi em 2011.10.24 rececionado o direito de audição prévia por parte do SP M....., NIF ....... revertida da devedora originária P....... Lda., NIPC ........

Analisados os argumentos constantes do mesmo, não se vislumbra que obste à prossecução da tramitação do projeto de reversão.

Neste sentido foi por despacho da Chefe de Finanças em exercício, datado de 2011.20.26, indeferida a audição e determinada a citação em reversão.”

21. Do despacho (reversão), contra a ora Oponente, consta o seguinte:

“ Face às diligências de fls. ... e estando concretizado a audição do(s) responsável(eis) subsidiário(s) prossiga-se com a reversão da execução fiscal contra M..... (...) , na qualidade de responsável subsidiário, pela dívida abaixo discriminada.

Atenta a fundamentação infra, a qual tem de constar da citação, proceda-se à citação do(s) executado(s)por reversão, nos termos do art.° 160.°do CPPTpara pagar no prazo de 30 (trinta) dias, a quantia que contra si reverteu sem juros de mora nem custas ( n°5 do art° 23.° da LGT).

FUNDAMENTOS DA REVERSÃO

Dos administradores, diretores ou gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entidades fiscalmente equiparadas, por terem provado não lhes ser imputável a falta de pagamento da dívida, quando o prazo legal de pagamento/entrega da mesma terminou no período de exercício do cargo [art° 24°/n°1/b) da LGT]. (...)”

- cfr. fls. 299 do PEF apenso aos autos;

22. Em 15.11.2011, a petição de oposição, que deu origem aos presentes autos, foi apresentada no Serviço de Finanças de Lisboa 5 - cfr. fls. 5 dos autos;

23. Até 2001, ano em que faleceu G......., ambos os gerentes tomavam decisões de gestão na sociedade devedora originária - prova testemunhal;

24. A Oponente, em 2005, deslocava-se com regularidade às instalações da sociedade devedora originária - prova testemunhal;

25. Em 2005, a Oponente dava instruções aos funcionários, autorizava a emissão de cheques e de transferências bancárias - prova testemunhal;

26. Pela Oponente, foi emitida procuração em nome de I....... e de outro funcionário - prova testemunhal;

27. I....... assinava cheques, de acordo com as instruções que recebia da Oponente e de acordo com mapas de pagamentos a fornecedores e outros devedores - prova testemunhal;

*

Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.

*

A decisão da matéria de facto provada fundou-se na análise crítica e conjugada do teor dos documentos não impugnados, juntos aos autos e das informações oficiais constantes do processo de execução fiscal apenso, conforme indicado em cada um dos pontos supra.

O facto provado, constante do ponto 23, fundou-se no depoimento de ambas as testemunhas inquiridas, que se revelou, quanto a este facto, convergente.

A primeira testemunha F......., empregada de escritório, na sociedade devedora originária desde 1981 até 2002 e amiga da Oponente, afirmou, de forma convicta que, antes do falecimento do marido da Oponente, G......., a gerência era exercida por ambos.

Por ter deixado de exercer funções na sociedade em causa em 2001, o conhecimento que demonstrou ter, dos factos ocorridos após essa data, resulta, conforme afirmou, do que antigos colegas lhe contaram ou do que foi transmitido pela própria Oponente, não se mostrando, de igual modo, o depoimento espontâneo e isento.

No que respeita aos factos n.°s 24, 25, 26 e 27, a convicção do tribunal fundou-se no depoimento da testemunha, I....... (então I.......), que, tendo exercido funções na área administrativa e da contabilidade da sociedade “P....... Lda.”, de 1994/1995 a 2006, revelou ter conhecimento do funcionamento da mesma.

A referida testemunha depôs de forma espontânea, objetiva e isenta, convencendo o Tribunal.

Do depoimento da testemunha, resulta que a Oponente outorgou procuração em seu nome e em nome de outro funcionário, A......., conferindo-lhes poderes para, em conjunto, assinar cheques na sua ausência.

Mais referiu que os cheques apenas eram assinados por indicação e com a autorização da Oponente.

Afirmou, também, que a Oponente era a única gerente da sociedade desde 2001, dando ordens, instruções e tomando as decisões de gestão.

IV FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
O exercício de facto das funções de administrador ou gerente constitui pressuposto da responsabilidade tributária destes, atualmente prevista no artigo 24.º da Lei Geral Tributária (LGT).

Nos termos do artigo 23.º/4 da LGT a reversão, mesmo nos casos em que exista presunção de culpa, é precedida da audição do responsável subsidiário e da declaração fundamentada dos seu pressupostos e extensão a incluir na citação. Exige, assim, o legislador fiscal, que seja dado ao responsável subsidiário a possibilidade de se pronunciar sobre o ato que contra si ordena a reversão da execução fiscal.

A audição do responsável subsidiário concretiza o direito de participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhe digam respeito consagrado no n.º 4 do artigo 267.º da CRP. A lei garante-lhes o direito de participação ativa na decisão final, não só através da sua argumentação e, ou, alegação de factos ou razões de direito, mas também mediante indicação de provas que invalidem ou, pelo menos, ponham em causa as razões invocadas no projeto de decisão.

No caso dos autos foi dada a possibilidade à Oponente de se pronunciar sobre o teor do projeto do despacho de reversão, o que fez, arrolando, além disso, duas testemunhas (Factos provados n.º 18 e 19).

Os argumentos invocados pela Revertida improcederam por não se vislumbrar que obstem à prossecução da tramitação do projeto de reversão. Contudo, a   inquirição  das testemunhas foi rejeitada sem qualquer fundamentação. (Factos provados n.º 20º).

A MMª juiz "a quo" decidiu que tal omissão injustificada corresponde a preterição do direito de audição e, por via disso, anulou o despacho de reversão não sem antes considerar que no caso era inviável o  “aproveitamento do acto”.

O Exmo. Representante da Fazenda Pública discorda do decidido por entender que a AT ponderou a argumentação exposta pela Oponente no âmbito do exercício do direito de audição, como é reconhecido nos pontos 20 e 21 dos factos provados.
Ponderou a não audição das testemunhas, posto que se entendesse necessária a respetiva audição tê-lo-ia feito.  
Por outro lado, a Oponente não conseguiu provar a sua ilegitimidade traduzida no não exercício da gerência efetiva e na falta de culpa relativamente à insuficiência  do património da devedora originária para pagamento da quantia exequenda.
Daí que, caso fosse repetida a formalidade da audição prévia com audição das testemunhas o órgão de execução fiscal não poderia apreciar e valorar de forma diferente os mesmos meios de prova, por atentar contra o caso julgado.

Iniciando a análise do recurso diga-se, desde já, como nota preliminar, que dos autos não resulta qualquer “ponderação” da AT  sobre a não inquirição das testemunhas, ao contrário do que afirma do Exmo. Representante da Fazenda Pública.  
A nosso ver, tão pouco se pode inferir essa “ponderação” a partir da aparente lógica contida na frase de que se entendesse necessária a sua inquirição tê-la-ia efetuado. Ainda que fosse verdadeira (e não há razões para crer que seja), a fundamentação terá de ser expressa, como a  lei exige (art. 77º/1 LGT).
 
Ora, o exercício da audição prévia  não se basta com a mera oportunidade, formal, de pronúncia dada ao sujeito. Apenas se completa numa decisão que resulte, nomeadamente, da análise da prova carreada pelo interessado e pondere as questões por ele mobilizadas em defesa da sua posição (cfr. art. artigo 23.º/4 LGT).
Acresce que se houver elementos novos suscitados na audição dos contribuintes serão, obrigatoriamente, tidos em conta na fundamentação da decisão (artigo 60.º/7 LGT).

A gerência de facto da Oponente na sociedade originariamente devedora constituía questão controvertida. E como tal, deveria ter sido esclarecida previamente à reversão, pois caso se  apurasse que a Oponente não exercera funções na sociedade no período a que respeitam as dívidas, a reversão não devia ter tido lugar, por falta de pressuposto legal.

Aliás, resulta do art. 107.º do C.P.A. que, se no procedimento administrativo for proferida decisão final expressa, há um dever de pronúncia generalizado da Administração sobre todas as questões pertinentes suscitadas pelos interessados, pronúncia essa que, a não ocorrer antes da decisão final, deverá ser nela incluída, e que deve abranger a posição assumida sobre pedido de realização de diligências formulado pelos interessados no exercício do direito de audiência[1].

E embora a AT não esteja obrigada a realizar todas as diligências requeridas pelo interessado, mas apenas as que forem convenientes para a decisão, nos termos do art. 125º do CPA, aplicável subsidiariamente, a indicação de testemunhas pela Oponente constituía, “diligência complementar conveniente” para apurar da veracidade do alegado, não podendo a AT descartar essa diligência sem qualquer fundamento.

Somos, assim, levados a concordar com a douta sentença  quando afirma que ... o requerimento da Oponente no sentido de se proceder à inquirição de testemunhas constituía, “diligência complementar conveniente” para apurar da veracidade do alegado, não se vislumbrando em que medida esta era substituível por qualquer outra diligência.
Atentos os factos alegados pela Oponente, designadamente no que se refere ao não exercício da gerência de facto e à sua falta de culpa pelo não pagamento das dívidas em causa, impunha-se que fossem ouvidas as testemunhas por si arroladas ou que fosse devidamente justificada a sua não audição.
Resulta do probatório que, nem a informação que sustentou o despacho de reversão (o despacho de reversão não a incorpora, nem mesmo remete para o seu conteúdo), nem o próprio despacho, se pronunciam quanto à necessidade ou desnecessidade de inquirição das testemunhas, quer quanto ao invocado no que se refere à gerência de facto, quer quanto à invocada falta de culpa pelo não pagamento das dívidas, ignorando por completo o meio de prova requerido.”

Quanto à possibilidade/dever de aproveitamento a MMª juiz declinou essa possibilidade, aludindo ao disposto no art. 163º/5 do CPA com a seguinte fundamentação:
“Dispõe aquele normativo que
Não se produz o efeito anulatório quando:
a) O conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível;
b) O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via;
c) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.”
Ou seja, verificada alguma das referidas situações, a formalidade (preterida), degrada-se em formalidade não essencial.
Ora, a decisão sobre a reversão, em causa nos autos, não constitui um ato vinculado, porquanto depende sempre da apreciação e do preenchimento dos pressupostos em cada caso concreto, relativamente a cada potencial responsável subsidiário.
Assim, independentemente da prova efetuada pela Oponente nos presentes autos, e, pese embora se tenha procedido à inquirição de uma das testemunhas, que a Oponente também arrolou em sede de audição prévia, a verdade é que a audição das testemunhas, requerida, daria a possibilidade de contrariar o exercício da gerência de facto e a culpa da Oponente, perante a AT, que poderia ter obstado ao despacho de reversão impugnado.
Com efeito, não podendo dar-se por inteiramente seguro que o correto exercício do direito de audição, não pudesse ter a mínima relevância ou influência na decisão de reversão, é de manter o efeito anulatório do despacho de reversão, não sendo possível o aproveitamento do ato.”

Sdr, nesta parte não acompanhamos a fundamentação da douta sentença.

Embora o órgão de execução fiscal não tenha procedido à inquirição das testemunhas arroladas, sem qualquer justificação, preterindo assim o dever de efetuar as “diligências complementares convenientes” para a tomada de decisão no caso concreto, o tribunal "a quo" efetuou a inquirição de testemunhas arroladas pela Oponente.

E no escrutínio de todos os meios de prova constantes do processo, o tribunal "a quo" fixou todos os factos provados relevantes, incluindo os respeitantes ao exercício de facto da gerência e da culpa na insuficiência patrimonial da devedora originária, concluindo pela sua verificação.
Decorre do princípio de aproveitamento dos atos administrativos, que a anulação de um ato viciado não será pronunciada quando seja seguro que o novo ato a emitir, isento desse vício, não poderá deixar de ter o mesmo conteúdo decisório que tinha o ato impugnado[2].
 
Ou, como também, a propósito, decidiu o mesmo STA no douto ac. n.º  01437/14.3BELRS 0304/18 de 20-03-2019 “Se a administração tributária não dá adequado cumprimento ao direito de audição, tal facto determina a anulação, por vício de forma, do despacho de reversão. O mesmo só não seria anulável se a respetiva irregularidade pudesse degradar-se em formalidade não essencial, por força da aplicação do princípio do aproveitamento dos atos. Mas, essa degradação só poderia ocorrer se, por recurso a um juízo de prognose póstuma, fosse seguro concluir que a realização da diligência de inquirição das testemunhas indicadas pelo revertido, não seria passível de aportar elementos novos, relevantes para a fundamentação da decisão a proferir.[3]
Dos factos provados fixados na douta sentença decorre, “a posteriori”, é certo, que a decisão administrativa não poderia ser outra.

E se a decisão não podia ser outra, então o indeferimento injustificado do pedido de inquirição das testemunhas revelou-se, posteriormente, insuficiente para invalidar o ato.

A circunstância de não haver coincidência entre as testemunhas inquiridas em audiência e as oferecidas no exercício do direito de audição não é, por si só, fundamento para exclusão do princípio do aproveitamento do ato.
Em ambos os casos, ofereceram-se os meios de prova que a Oponente julgou mais convenientes para a demonstração da causa de pedir que desenhou nos autos, não nos parecendo pertinente aqui discorrer sobre quais as testemunhas que melhor satisfariam os interesses probatórios da Oponente.
Podemos, assim, concluir que o correto exercício do direito de audição não teria influência na decisão de reversão, o que implica a revogação da sentença, nesta parte.

Prosseguindo, agora no que à caducidade diz respeito, alegada na petição inicial (e no recurso “subordinado”), a MMª juiz declinou a sua apreciação com fundamento em que “... a mesma contende com a legalidade em concreto da liquidação (o que se encontra afastado de apreciação, salvos os casos excecionais previstos na alínea h) do artigo 204.°, do CPPT).
Com efeito, a legalidade da liquidação deve ser apreciada em sede de impugnação judicial, sendo que, apenas o que tenha a ver com a sua exigibilidade é passível de ser conhecido em sede de oposição à execução fiscal (cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 26.09.2012, Processo n.° 0251/12).
Ora, no presente caso, a Oponente apenas alega a caducidade do direito à liquidação, designadamente, em termos de prazo.
Como tal, este argumento não será ora apreciado, por não ser esta a sede própria, nos termos explanados.”
Também neste segmento discordamos da douta sentença que parece não ter levado em conta  a jurisprudência do STA proferida, entre outros, no Ac. n.º 01528/08.0BELRS, 30-10-2019[4], segundo a qual “A falta de notificação da liquidação dentro do prazo da caducidade do direito à liquidação constitui, por força da lei (art. 45.º, n.º 1, da LGT), ilegalidade invalidante do acto de liquidação, susceptível de constituir não só fundamento de impugnação judicial (cf. art. 99.º do CPPT), mas também fundamento de oposição à execução fiscal, por expressa previsão legal na alínea e) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT”
Na linha, aliás, do que defende Jorge Lopes de Sousa “...o facto de o art. 204º, n.º 1, do CPPT admitir explicitamente a possibilidade de invocação da intempestividade da notificação como fundamento de oposição à execução fiscal impõe que se entenda que também se pode deduzir oposição com este fundamento. O que significa, assim, que haverá uma dupla possibilidade de invocação da intempestividade da notificação à face do art. 45º n.º 1 da LGT tanto como fundamento de impugnação judicial como fundamento de oposição, à semelhança do que sucede com a ilegalidade abstracta da liquidação e da duplicação de colecta.”[5]
Fazendo eco da jurisprudência do STA também este TCA se pronunciou repetidamente sobre a questão destacando-se o recente acórdão de 914/07.7BEALM de 16-12-2020[6].
Não tendo sido apreciada no tribunal "a quo", recai sobre este TCA o dever de apreciar a questão quer por força do recurso “subordinado” interposto, quer por força do disposto no art.º 665º/2 CPC, desde que estejam disponíveis os elementos factuais necessários para o efeito.
Disponibilidade que no caso se confirma.

Como resulta da informação referida nos factos provados n.º 19, estão a ser revertidas dívidas de IVA por falta de pagamento, ou seja, declarações periódicas enviadas e não pagas, cujo processo de execução fiscal foi instaurado em 2005 (Factos Provados n.º 5).
A doutrina e a jurisprudência referem-se à autoliquidação como o ato cuja iniciativa pertence ao contribuinte por disposição legal, consubstanciando-se na apresentação de uma declaração, normalmente acompanhada do respetivo meio de pagamento[7].

Mas como se decidiu no Acórdão do STA, de 07/05/2003, proferido no âmbito do processo n.º 0316/03, não é essencial, para se falar em “autoliquidação”, que a declaração seja acompanhada do respetivo meio de pagamento[8].

Assim, a autoliquidação é a liquidação de um tributo que não é feita pela Administração Tributária, mas pelo sujeito passivo, onerado com o dever de esclarecer, quando solicitado pela administração tributária, quais os critérios utilizados e a sua aplicação na determinação dos valores que declarou (art. 84º/2 LGT).
Portanto, a autoliquidação exigirá sempre uma declaração.

Decorre dos factos provados que as quantias exequendas de IVA resultam da entrega das declarações periódicas de IVA desacompanhadas do respetivo meio de pagamento

A caducidade do direito à liquidação pressupõe o dever de efetuar a sua notificação ao contribuinte (art. 45º/1 LGT). Mas como não foi a AT a autora da liquidação, está desobrigada de notificar o sujeito passivo do montante liquidado, cujo valor foi, aliás, apurado (liquidado)  pelo próprio.

Sendo legalmente admissível impugnar a autoliquidação, por identidade de razão, é igualmente admissível deduzir oposição à execução resultante do não pagamento de liquidações que tiveram por base autoliquidações anteriores apresentadas depois do prazo de caducidade.

Todavia,  tal não sucede no caso dos autos. Sendo as dívidas relativas a 2005, os processos de execução fiscal foram instaurados contra a devedora originária no mesmo ano, o que de imediato afasta qualquer possibilidade de caducidade (note-se que para efeitos de caducidade se tem em vista o devedor originário)[9].

Por fim, diga-se que o facto de não ter sido excutido o património da devedora originária não obsta à reversão da execução contra o devedor subsidiário, como resulta do disposto no art. 23º/3 LGT.[10]

V DECISÃO.

Termos em que acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso Tributário deste TCAS em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar improcedente a oposição.

Custas pela Recorrida.

Lisboa,  29 de abril de 2021.

[Nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, o relator consigna e atesta que têm voto de conformidade as Exmas. Senhoras Desembargadoras Patrícia Manuel Pires e Susana Barreto que integram a presente formação de julgamento.]

(Mário Rebelo)



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[1] Ac. do Pleno da Secção do CA n.º 041291 de 12-11-2003 Relator:   JORGE DE SOUSA              
[2] Ac. do STA n.º 0561/03.2BTCBR 01438/15 de        03-07-2019 Relator:         PEDRO DELGADO
[3] Relator:             ARAGÃO SEIA

[4] Relator: Francisco Rhodes.
[5] Jorge Lopes de Sousa  in "Código de Procedimento e de Processo Tributário", vol. III pp.491 (nota de rodapé n.º 1). 
[6] Relator:            MARIA CARDOSO
[7] Seguimos de perto o ac. do TCAN n.º 01257/10.4BEBRG de 06-06-2019 Relator:   Ana Patrocínio.
[8] Cfr. Ac. do TCAS n.º 02530/08 de            09-12-2008 Relator:        EUGÉNIO SEQUEIRA.  
Sumário:             
3. Em auto-liquidação efectuada pela contribuinte na respectiva declaração periódica de IVA, não há lugar a qualquer notificação da mesma antes de ser extraída a competente certidão de dívida, findo o prazo do seu pagamento voluntário;
[9] Ac. do TCAN n.º 01257/10.4BEBRG de 06-06-2019 Relator:              Ana Patrocínio
XII O que releva para efeitos da caducidade do direito de liquidação previsto no artigo 45.º, n.º 1 da LGT é a notificação da liquidação ao contribuinte, ou seja, apenas o devedor originário do tributo, e já não ao responsável subsidiário.
[10] Cfr. Ac. do TCAN n.º 00880/15.5BEBRG de 14-07-2016 Relator:     Paula Moura Teixeira
Sumário:              I - A reversão em execução fiscal pode ser decidida contra os responsáveis subsidiários, mesmo sem o património do devedor originário ainda estar excutido, bastando que existam fundadas razões para se poder concluir que os bens penhorados ao devedor originário sejam insuficientes para pagar a totalidade da dívida.
II - Nesse caso, o benefício da excussão é salvaguardado com a suspensão dos efeitos da reversão, caso se verifique a impossibilidade de apuramento da suficiência dos bens penhorados.