Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:394/08.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2021
Relator:LURDES TOSCANO
Descritores:GERÊNCIA DE FACTO
PROVA
Sumário:I – O facto de o Oponente já não ser gerente de direito da sociedade executada na data em que as dívidas se venceram não obsta que o mesmo possa ser responsabilizado pelas mesmas, pois, como resulta do citado artigo 24º da LGT [onde se refere expressamente “pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração”], o que é decisivo para se afirmar a responsabilidade subsidiária dos gerentes é a demonstração do exercício efectivo ou de facto da gerência, não se exigindo sequer a denominada gerência nominal ou de direito.

II - Deste modo, nada se tendo provado sobre a efectiva gerência de facto do Oponente entre 2000 e 2004, a Oposição não pode deixar de ser julgada procedente e o Oponente parte ilegítima com a consequente extinção dos referidos processos de execução fiscal.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA veio, em conformidade com o artigo 282.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, interpor recurso da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa, de 21 de fevereiro de 2020, a qual julgou parcialmente procedente a oposição deduzida por J... à execução fiscal nº 3301200501... instaurada no Serviço de Finanças Lisboa-4, contra I... – P..., LDA., e contra si revertida. Mais, aquela sentença, fixou à causa o valor de € 289.392,46 e condenou a Fazenda Pública nas custas.

A Recorrente termina as alegações de recurso formulando as conclusões seguintes:
“A – O oponente, ora recorrido, deduziu oposição à execução fiscal nº 3301200501... e apensos, originariamente instaurada contra a sociedade I... – P..., Lda., no montante global de €289.392,46.
B - Os referidos processos de execução fiscal tiveram origem nas liquidações oficiosas de IRC dos anos de 2000 a 2004.
C - A douta decisão recorrida ao considerar que o oponente era parte ilegítima nos presentes autos, com fundamento de que na data em que terminou o pagamento voluntário da dívida exequenda, o oponente já tinha renunciado à gerência, errou na apreciação dos factos controvertidos, pois partiu do errado pressuposto factual que a data com relevância fiscal para aferirmos da legitimidade do oponente era a data de pagamento voluntário das liquidações oficiosas e não as datas em que os impostos deveriam ter sido pagos pela originária devedora.
D - Contrariamente ao decidido, as datas limite de pagamento voluntário constante da douta sentença [“as dívidas, de acordo com as certidões emitidas, têm como data limite de pagamento voluntário de 2005.01.15 (IRC do exercício de 2000), 2005.11.27 (IRC do exercício de 2001), 2006.07.007 (IRC de 2002), 2006.08.16 (IRC de 2003), 2006.06.30 (IRC de 2004)]”, dizem respeito ao ato tributário de liquidação de imposto (liquidações oficiosas de IRC) e não à obrigação de pagamento dos impostos.
E - Nos períodos em que as obrigações declarativas e de pagamento de IRC dos exercícios de 2000 e 2001, deveriam ter sido cumpridas, o oponente estava investido no cargo de gerente da originária devedora;
F - A alínea b) do n° 1 do artigo 24° da LGT, consagra uma presunção de culpa, pelo que a Administração Pública está dispensada de a provar, recaindo o ónus da prova sobre a oponente, ou seja, é o oponente que deve provar que não lhe é imputável a falta de pagamento dos montantes de IRC em apreço (o gestor está obrigado a fazer prova de um facto negativo, poupando-se a Fazenda Pública a qualquer esforço probatório) o que não se verificou;
G - Por conseguinte, salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo lavrou em erro de interpretação e aplicação do direito e dos factos, nos termos supra explanados, levando a que também preconizasse uma errada valoração da factualidade dada como assente violando o direito aplicável, no caso os art.º 104º/1/b) 117º/1/b) e 120º todos do CIRC e art.º 24º/1 da LGT. 22º, 23º e 24º da LGT.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que declare a oposição parcialmente procedente, quanto à matéria aqui discutida.
PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Por decisão sumária de 22 de março de 2021, o Supremo Tribunal Administrativo declarou a sua incompetência, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso e e mais declarou que a competência para o efeito é do Tribunal Central Administrativo Sul (Secção do Contencioso Tributário).
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Notificado, o Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso, reproduzindo o parecer proferido pelo Ministério Público junto do Supremo Tribunal Administrativo, no qual se pugna pela declaração de nulidade da sentença recorrida, nos termos da alínea c) do nº1 do artigo 615º do CPC, por incongruência da sua fundamentação, dada a sua ambiguidade e obscuridade no que respeita ao exercício de facto da gerência por parte do oponente.
Vejamos.
Nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne a decisão ininteligível.
Ora, compulsada a sentença recorrida não descortinamos nenhuma ambiguidade ou obscuridade, pois percebe-se com clareza o racíocinio seguido, bem como a decisão a que se chegou.
Questão diversa, será a de saber se a fundamentação da decisão foi acertada.
De qualquer modo, mesmo que a fundamentação da decisão não seja a mais correcta, sempre estaremos perante um erro de julgamento - como apreciaremos mais adiante - e não de nulidade.
Termos em que improcede a invocada nulidade da sentença recorrida.

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Sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que a recorrente remate a sua alegação (art. 639º do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do referido tribunal.
De outro modo, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.
Assim, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, temos que no caso concreto, o objecto do mesmo está circunscrito à questão de saber se ocorre o alegado erro de julgamento quanto à subsunção dos factos provados ao regime do artigo 24º da LGT, no tocante à questão da gerência de facto.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. De facto

A sentença recorrida deu por provados os seguintes factos:
“A) Em 2004.08.09, foi emitida a liquidação nº 2004 8310012149, de IRC do exercício de 2000, com valor a pagar de € 62 673,61, com data limite de pagamento de 2004.10.27, enviada por carta registada a I... P..., Lda., Rua D..., em Lisboa, devolvida ao remetente (cf. fls. 324, doc. nº 005203927 de 18-05-2010/14:58:00);
B) Em 2005.05.30, foi emitida a liquidação nº 2005 83100..., de IRC do exercício de 2001, com valor a pagar de € 62 673,61, com data limite de pagamento de 2005.07.27, enviada por carta registada a I... P..., Lda., Rua D..., em Lisboa, devolvida ao remetente (cf. fls. 324, doc. nº 005203927 de 18-05-2010/14:58:00);
C) Em 2005.01.08, no Serviço de Finanças de Lisboa-4, foi autuado o processo de execução fiscal (PEF) nº 3301200501... instaurado contra I... – P..., Lda., com sede na Rua D..., em Lisboa; tem por base:
a. Certidão de dívida nº 2006/101..., emitida em 2006.11.21, que atesta que I... – P..., Lda., com sede na Rua D..., em Lisboa, é devedora de € 62 673,61, dos quais € 60 548,61 de IRC do período de 2001, acrescido de € 2 125,00 de juros, com pagamento voluntário até 2005.11.27; mais atesta que são devidos juros de mora contados a partir de 2005.11.29 (cf. fls. 2 do PEF);
D) A este PEF nº 3301200501..., foi junto o PEF nº 33012006010... instaurado no Serviço de Finanças de Lisboa-4, instaurado contra I... – P..., Lda., com sede na Rua D..., em Lisboa; tem por base:
a. Certidão de dívida nº 2006/..., emitida em 2006.10.26, que atesta que I... – P..., Lda., com sede na Rua D..., em Lisboa, é devedora de € 57 890,27, dos quais € 56 764,32 de IRC do exercício de 2002, acrescido de € 1 125,95 de juros, com pagamento voluntário até 2006.07.07; mais atesta que são devidos juros de mora contados a partir de 2006.07.10 (cf. fls. 2 do PEF nº 33012006010...);
b. Certidão de dívida nº 2006/..., emitida em 2006.10.26, que atesta que I... – P..., Lda., com sede na Rua D..., em Lisboa, é devedora de € 48 525,26, dos quais € 47 303,60 de IRC do exercício de 2004, acrescido de € 948,66 de juros, com pagamento voluntário até 2006.06.30; mais atesta que são devidos juros de mora contados a partir de 2006.07.03 (cf. fls. do PEF nº 33012006010...);
E) Ao PEF nº 3301200501..., foi ainda junto o PEF nº 3301200601... instaurado no Serviço de Finanças de Lisboa-4, instaurado contra I... – P..., Lda., com sede na Rua D..., em Lisboa; tem por base:
a. Certidão de dívida nº 2005/..., emitida em 2005.01.06, que atesta que I... – P..., Lda., com sede na Rua D..., em Lisboa, é devedora de € 62 673,61, dos quais € 60 548,61 de IRC do exercício de 2000, acrescido de € 2 125,00 de juros, com pagamento voluntário até 2005.01.15; mais atesta que são devidos juros de mora contados a partir de 2005.01.18 (cf. fls. 2 do PEF nº 3301200601...);
F) Por despacho de 2007.03.13, do Chefe de Finanças, foi ordenada a preparação do processo para efeitos de reversão contra o Opoente (cf. fls. 57 do PEF);
G) Por carta registada em 2007.03.22, foi enviado ao Opoente ofício normalizado Notificação Audição-Prévia (Reversão), constante de fls. 58 do PEF e que aqui se dá por integralmente reproduzido;
H) Em 2007.04.02, o Opoente exerceu por escrito o direito de audição prévia sobre o projeto de despacho de reversão (cf. fls. 70 do PEF);
I) Por despacho do Chefe de Finanças de 2007.04.30, constante de fls. 90 do PEF e que aqui se dá como integralmente reproduzido, a execução fiscal foi revertida contra o Opoente, na qualidade de responsável subsidiário; deste transcreve-se:

Despacho
Face às diligências de fls. [em branco], e estando concretizada a audição do responsável subsidiário, prossiga-se a reversão da execução fiscal contra J... (…) na qualidade de responsável subsidiário pela dívida abaixo discriminada;
Atenta a fundamentação infra, a qual tem de constar da citação, proceda-se à citação do executado por reversão (…);
Fundamentos da Reversão:
Verificados os pressupostos do nº 2 do artigo 23º da LGT
Identificação da dívida em cobrança coerciva:
Processo: 3301200501... e apensos;
Proveniência: Imp. Cont Corr
Nº Cert.: ... – Tributo – IRC – Quantia Exequenda: € 62 673,61
Nº Cert.: ... – Tributo – IRC – Quantia Exequenda: € 57 890,27
Nº Cert.: ... – Tributo – IRC – Quantia Exequenda: € 57 902,71
Nº Cert.: ... – Tributo – IRC – Quantia Exequenda: € 48 252,26
Nº Cert.: 101...9 – Tributo – IRC – Quantia Exequenda: € 62 673,61
Total ……………………………………………………… € 289 392,46;
(…);

J) Por carta registada com aviso de receção assinado em 2007.05.15, o Opoente foi citado para os termos da execução na qualidade de executado por reversão (cf. fls. 91 do PEF);
K) Em 2007.06.11, no Serviço de Finanças de Lisboa-4, deu entrada a presente oposição.
L) Segundo o pacto social o Opoente foi gerente da sociedade até 2003.01.23, data em que renunciou (cf. certidão da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa a fls. 13 do PEF);”
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A sentença recorrida deu por não provado o facto seguinte:
Não se comprovou a data em que as liquidações de IRC dos exercícios de 2002, 2003 e 2004 foram notificadas à sociedade devedora originária.”.
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Em matéria de motivação, consta da sentença recorrida que
A decisão da matéria de facto, consoante ao que acima ficou exposto, efetuou-se com base nos documentos e informações constantes do processo e no depoimento da testemunha que os confirmou.
A testemunha ouvida, C..., colaboradora da I... – P..., Lda., e amiga do Opoente, que prestou depoimento claro, seguro e com conhecimento dos factos aos quais respondeu.”
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Dá-se como provado a seguinte factualidade, ao abrigo do artigo 662.º do CPC, com relevo para a decisão do recurso:

M) O oponente foi gerente de direito entre 25 de Agosto de 1986 e 23 de Janeiro de 2003, cfr. certidão constante a fls. 13 do PEF apenso;

N) Na estrutura de organização da "I... - P..., Lda." o oponente era responsável pela elaboração, negociação de contratos e a produção de filmes (cf. depoimento de C...).

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II.2. De Direito
Em sede de aplicação de direito, a sentença recorrida julgou parcialmente procedente a presente oposição.
Para tanto, apresentou a seguinte fundamentação, em síntese:
«Por conseguinte, a reversão é possível, todavia as dívidas venceram-se depois do período de exercício da gerência: o Opoente renunciou ao cargo em 2003.01.23, ora, relativamente às dívidas vencidas posteriormente cumpria à Fazenda Pública a prova da culpa.
Assim, a reversão deveria ter sido feita ao abrigo do artigo 24/1.a) da LGT: só relativamente às dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período de exercício do cargo (...) se faz incidir sobre o gerente ou administrador o ónus de provar que a falta de pagamento das dívidas tributárias não lhe é imputável.
Assim, a LGT limita a inversão do ónus da prova da culpa do não pagamento das dívidas, às dívidas vencidas no período de exercício de funções. Mas alarga a responsabilidade subsidiária, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 24º, ao estabelecer que serão responsáveis aqueles em relação aos quais a administração fiscal prove que foi por culpa sua que o património da sociedade se tornou insuficiente para a satisfação das dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste (1).
Por conseguinte, a reversão é possível, mas competia à Autoridade Tributária e Aduaneira assegurar-se, antes do ato, da culpa dos revertidos, tema que teria de levar expressamente à motivação decisória.
Ora, e como vimos, tal não sucedeu no caso no caso vertente.
A Fazenda Pública nada provou.
Não estão reunidas, pois, as condições de facto de integração da norma de responsabilização do revertido pelas dívidas IRC.
Tem, pois, razão o Contribuinte, sem necessidade de mais averiguar os motivos invocados e que diriam respeito, nomeadamente, à exigibilidade das dívidas exequendas.»

Aqui chegados, importa, antes de mais referir - e porque isso se retira da fundamentação da decisão - que o Tribunal a quo julgou a presente oposição totalmente procedente, e não parcialmente procedente como, certamente por lapso, se escreveu no dispositivo. A reforçar o que se acabou de escrever, pode ver-se o que se escreveu na condenação em custas: «Custas pela Fazenda Pública que decaiu.»

Inconformada, a Fazenda Pública veio interpor recurso da referida decisão alegando que A douta decisão recorrida ao considerar que o oponente era parte ilegítima nos presentes autos, com fundamento de que na data em que terminou o pagamento voluntário da dívida exequenda, o oponente já tinha renunciado à gerência, errou na apreciação dos factos controvertidos, pois partiu do errado pressuposto factual que a data com relevância fiscal para aferirmos da legitimidade do oponente era a data de pagamento voluntário das liquidações oficiosas e não as datas em que os impostos deveriam ter sido pagos pela originária devedora. (conclusão de recurso C.)
Vejamos.
Foi dado como provado nos autos, alínea L) do probatório que o Oponente renunciou à gerência da sociedade devedora originária em 23/01/2003, pelo que, na data do vencimento das dívidas exequendas, o Oponente já não era sequer gerente de direito da sociedade devedora originária.

Todavia, o facto de o Oponente já não ser gerente de direito da sociedade executada na data em que as dívidas se venceram não obsta que o mesmo possa ser responsabilizado pelas mesmas, pois, como resulta do citado artigo 24º da LGT [onde se refere expressamente “pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração”], o que é decisivo para se afirmar a responsabilidade subsidiária dos gerentes é a demonstração do exercício efectivo ou de facto da gerência, não se exigindo sequer a denominada gerência nominal ou de direito - cf., entre outros, acórdão do TCAN de 14/1/2010, Processo nº 82/03.

E aqui chegados, importa saber se o Oponente foi ou não gerente de facto da sociedade devedora originária.

Esta questão já foi decidida por Acórdão deste TCAS de 19/02/2015, Proc. 07303/14, disponível em www.dgsi.pt, onde o oponente era o mesmo, a sociedade devedora originária era a mesma,e em que a inquirição de testemunhas foi a mesma por aproveitamento da inquirição deste processo para aquele. Assim, escreveu-se no referido Acórdão:

«Questões distintas são as de saber se, face aos factos apurados, é acertado concluir que o Recorrente foi ou não gerente de facto e, em caso afirmativo, se o era à data de constituição da dívida ou ao tempo em que legalmente era exigível que o tributo tivesse sido pago.

Quanto à primeira das questões postas em concurso não temos dúvidas: o Oponente foi gerente de direito e de facto da sociedade.

Foi gerente de direito entre 25 de Agosto de 1986 e 23 de Janeiro de 2003, como o comprova, conjugadamente, a factualidade vertida sob os n.ºs 16., 18.º e 20.º do ponto III supra. [aqui leia-se alínea M) do probatório]

E foi gerente de facto como o comprova, desde logo, o facto de se ter provado que era o Oponente que na estrutura da empresa era o responsável pela elaboração, negociação de contratos e a produção de filmes.

É certo, poder-se-á dizer que este facto, assim singelamente considerado, é pouco para lhe atribuir a gerência de facto da sociedade.

Todavia, esse facto já é sobremaneira relevante no juízo a realizar se atentarmos na demais factualidade com a qual deve ser conjugadamente interpretado, a saber:

- Aquela produção de filmes era o concreto objecto da sociedade, isto é, a sociedade dedicava-se precisamente a produzir filmes por cuja realização, como vimos, o Oponente era responsável;

- era também o Oponente que era responsável pela negociação dos contratos tendo em vista a realização desses filmes e

- era o Oponente que os celebrava, isto é, enquanto gerente de direito que também era, que vinculava a sociedade ao cumprimento desses contratos.

É certo que apenas se sabe que, além dessas funções, o Oponente exerceria outras, desconhecendo-se, em concreto, quais.

Mas esse é, diga-se sem receios, um dado (ignorado) irrelevante, já que não pode existir dúvidas quanto a ao Oponente caberem funções de gerente (de direito) e ter sido gerente de facto, isto é, praticado actos típicos de gerência, qualidade que não deixa de lhe poder ser atribuída apenas porque a outros sócios ou gerentes tenham sido cometidas outras funções, designadamente as estritamente financeiras ou contabilísticas (como em sede de audiência prévia o Oponente defendeu e a AF no despacho de reversão combateu), uma vez que nem a lei exige que a sociedade apenas tenha um gerente (podendo os sócios acordar o número de gerentes que bem entender), nem que determinadas funções podem ou devam caber a cada um dos gerentes nomeados, matéria que, igualmente, se integra na liberdade de conformação social dos sócios.

Em suma, sendo o Oponente gerente de direito e, nessa qualidade, negociado e celebrado contratos com terceiros que vinculavam a sociedade, em especial contratos de produção de filmes em cuja realização intervinha como máximo responsável e sendo este o principal objecto da empresa, não se vê como pode concluir-se que o exercício dessa função e a prática de tais actos não constituem actos típicos de gerência de facto desta sociedade concreta ou que através daquele exercício não estava o Oponente a exercer essa gerência de facto.

Tais actos são, naturalmente, actos de desenvolvimento do objecto social com vista à obtenção do lucro, constituindo a administração assim densificada, mais do que um poder ou direito, um verdadeira imposição, um dos vectores essenciais e genéticos da existência de gestores, qualidade que, inequivocamente, através da actuação descrita, o Oponente assumiu.

Porém, como dissemos, outra questão se coloca, ainda no plano desta gerência de facto e consequente responsabilização do Recorrido: saber se o Oponente era gerente de facto à data de constituição do tributo ou do terminus legal do seu pagamento.

Ora, quanto a esta questão, nada no probatório nos permite responder afirmativamente.

(…)

Ora, não obstante resultar da factualidade exposta no probatório sob o n.º 2, que parte dessas dívidas têm na sua génese factos tributários nascidos antes da renúncia expressa à gerência de direito por parte do Oponente e outros posteriormente, o certo é que nada no probatório nos permite concluir que entre 2000 e 2005 (datas em que se constituíram os tributos em causa) o Oponente ainda era gerente de facto.

Note-se que o Recorrido alegou que “Nos últimos anos da década de 90 a situação instável da sociedade tinha levado a litígios inconciliáveis entre os sócios que determinaram a cessação da actividade da ....................– ........................., Lda.», que no «exercício de 1999 a sociedade já não funcionava”, sendo mesmo física e em termos logísticos impossível desenvolver qualquer actividade porque todos os seus bens (secretárias, televisões, mesas, cadeiras, computadores, telefones, etc.) tinham sido penhorados (cfr. artigos 99.º a 101.º da petição de Oposição). Isto é, o Oponente alegou a inexistência de actividade de facto e, consequentemente, gerência de facto desde finais da década de 90.

E, relativamente a esta matéria, a Administração Fiscal nada alegou ou provou, limitando-se, quer no seu despacho de reversão, quer nos posteriores articulados dos autos, quer, por último, neste recurso, a insistir pela irrelevância dessa factualidade por, face ao disposto nos artigos 191.º e 253.º do CSC se ter de presumir como gerentes e responsáveis todos os sócios.

Não sendo assim, como já deixamos suficientemente explanado, e nada se tendo provado sobre essa efectiva gerência de facto do Oponente entre 2000 e 2005, a Oposição não pode deixar de ser julgada procedente e o Oponente parte legitima com a consequente extinção dos referidos processos de execução fiscal.

Decisão que, a final, será a nossa, confirmando-se, assim, com estes fundamentos, a decisão recorrida.»

Concordamos inteiramente com a fundamentação do Acórdão supra citado, que tem inteira aplicação nos presentes autos.

No caso em apreço, estamos perante dívidas de IRC dos anos de 2000 a 2004.

Do probatório não se retira a resposta quanto a saber se o Oponente era gerente de facto à data de constituição do tributo ou do terminus legal do seu pagamento, pelo que não podemos concluir que entre 2000 e 2004 (datas em que se constituíram os tributos em causa) o Oponente ainda era gerente de facto..

Até porque o oponente, ora recorrido alegou (arts. 43º e 44º da p.i.) que “Este cenário determinou a insustentabilidade da I..., que acabou por cessar totalmente a sua actividade em finais de 1998, não tendo a sociedade tido qualquer actividade subsequente”. E ainda “De 2004 a 2006, exercícios em causa nos presentes autos, a sociedade não teve qualquer actividade, pelo que não gerou facturação nem proveitos.”

Assim, o Oponente alegou a inexistência de actividade de facto e, consequentemente, da gerência de facto desde finais de 1998.

E, relativamente a esta matéria, a Administração Fiscal nada alegou ou provou.

Deste modo, nada se tendo provado sobre a efectiva gerência de facto do Oponente entre 2000 e 2004, a Oposição não pode deixar de ser julgada procedente e o Oponente parte ilegítima com a consequente extinção dos referidos processos de execução fiscal.

Decisão que, a final, será a nossa, confirmando-se, assim, com a presente fundamentação, a decisão recorrida.

Face ao agora decidido, encontram-se prejudicadas quaisquer outras questões.




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III – DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes da 1ª Subsecção da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida, com a presente fundamentação, e consequentemente, julgando totalmente procedente a presente oposição, e o Oponente parte ilegítima com a consequente extinção dos processos de execução fiscal.

Custas pelo Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 30 de Setembro de 2021


[O relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 03.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Maria Cardoso e Catarina Almeida e Sousa]

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(1) CAMPOS, Diogo Leite et Al., LEI GERAL TRIBUTÁRIA: Comentada e Anotada, 4ª Ed, 2012, Encontro da Escrita, pág. 236.