Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:787/19.7 BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/03/2022
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA TÉCNICA
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO POR REMISSÃO
Sumário:I. Na apreciação da incapacidade de trabalhador decorrente de acidente em serviço, a junta médica goza de discricionariedade administrativa técnica quanto à sua aferição, o que não afasta a necessidade de cumprimento do dever de fundamentação.

II. Constando do procedimento elementos clínicos contraditórios, o auto da junta médica de recurso que omite a apresentação de qualquer justificação que permita ao destinatário ficar esclarecido sobre as razões da manutenção do grau de desvalorização da incapacidade, não cumpre tal dever.

III. A fundamentação por remissão, prevista no artigo 153.º, n.º 1, do CPA, implica a referência no ato administrativo a informação, parecer ou proposta que contenha a respetiva motivação, da qual se apropria e dele fica a fazer parte integrante.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul

I. RELATÓRIO
Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local intentou a presente ação administrativa urgente contra a Caixa Geral de Aposentações, I.P., peticionando a anulação da deliberação da Junta Médica da CGA, de 19/09/2017, e a condenação da entidade requerida na prática de ato administrativo que reconheça que a patologia exibida pela representada do autor constitui agravamento das lesões contraídas no acidente em serviço de abril de 2009, ou que a este sinistro estão ligadas, e que valorize o agravamento ou lesões exibidas de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades (TNI).
Foi oficiosamente suscitada a questão da falta de fundamentação do ato impugnado.
Por sentença de 25/10/2021, o TAC de Lisboa julgou procedente a presente ação administrativa e, em consequência, anulou o ato impugnado.
Inconformada, a entidade demandada interpôs recurso daquela decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“A) Em face da matéria de facto dada como provada não se compreende por que motivo conclui o Tribunal a quo, que o ato impugnado não cumpre o dever de fundamentação do ato administrativo.
B) Com todo o respeito que o Tribunal a quo nos merece, tal contraria a melhor jurisprudência dos nossos Tribunais em matéria de fundamentação do ato administrativo.
C) A decisão de submeter a representada do Recorrido a exame de um médico especialista em neurologia e psiquiatria e a posterior emissão de pareceres especializados surgem no encadeamento do procedimento administrativo subjacente à Junta de Recurso que a própria interessada desencadeou.
D) Acrescendo dizer que a deliberação das Juntas, em que os mesmos médicos presentes na deliberação final consideraram, previamente à decisão, ser de solicitar parecer a um médico especialista em neurologia e psiquiatria, contraria frontalmente o entendimento que o Tribunal a quo, demonstrando, inequivocamente, que esses pareceres são determinantes e constituem fundamentação da decisão da peticionada Junta de Recurso.
E) Segundo a jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal Administrativo, a fundamentação do ato administrativo tem de ser expressa, mas tanto pode constar do ato como de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituirão, neste caso, parte integrante do respetivo ato.
F) Trata-se, nesse caso, de fundamentação por remissão ou ‘per relationem’, expressamente prevista no art.° 125.°, n.° 1 do Código do Procedimento Administrativo, que consiste na remissão para os termos de uma informação, parecer ou proposta que contenha, ela mesma, a motivação do ato, de tal modo que essa remissão deve ser entendida no sentido de que o ato administrativo absorveu e se apropriou da respetiva motivação ou fundamentação, que, assim, dele ficará a fazer parte integrante.
Termos em que, em face da matéria de facto dada como assente e da melhor jurisprudência dos nossos Tribunais em matéria de fundamentação do ato administrativo, deverá ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue totalmente improcedente a presente ação.”
Não foram apresentadas contra-alegações.

Perante as conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre aferir do erro de julgamento da decisão recorrida ao concluir pela verificação da falta de fundamentação do ato impugnado.

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
*

II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. Em 17.04.2009, a representada do Autor sofreu um acidente qualificado como sendo em serviço pela sua entidade empregadora, o Município de Vale de Cambra (facto não controvertido e cf. fls. 10 e 15 do PA).
2. Na sequência do referido acidente, foi solicitada a submissão da representada do Autor a junta médica da CGA para fixação do grau de incapacidade permanente (facto não controvertido e cf. fls. 1 a 9 do PA).
3. Em 19.03.2013, foi realizada junta médica da CGA a qual emitiu parecer (auto de junta médica) fixando à representada do Autor uma incapacidade permanente parcial, com grau de desvalorização de 6% (facto não controvertido e cf. fls. 18 do PA).
4. Por despacho de 02.04.2013, o parecer anteriormente referido foi homologado pela CGA (cf. fls. 18 do PA).
5. Com fundamento no agravamento da sua incapacidade, em 29.04.2014, a representada do Autor requereu a realização de junta médica para revisão da incapacidade anteriormente atribuída (facto não controvertido e cf. fls. 46 a 116 do PA).
6. Em 18.11.2014, foi realizada junta médica da CGA a qual emitiu parecer (auto de junta médica) onde, não confirmando a incapacidade anteriormente atribuída de 6%, fixou à representada do Autor uma incapacidade permanente parcial, com grau de desvalorização de 9% (facto não controvertido e cf. fls. 122 do PA).
7. Por despacho de 01.12.2014, o parecer anterior foi homologado pela CGA (cf. fls. 122 do PA).
8. Em 11.02.2015, a representada do Autor requereu a submissão a junta médica de recurso, relativamente à decisão referida em 6., apresentando diversos relatórios/pareceres médicos e exames clínicos e referindo no seu requerimento, como fundamento do pedido de recurso, o seguinte:



[...]" (facto não controvertido e cf. fls. 160 a 181 do PA).
9. Dos referidos relatórios destaca-se o seguinte (por extractos):

“(texto integral no original; imagem)”



“(texto integral no original; imagem)”
[…]



[...]" (cf. fls. 160 a 181 do PA).
10. Por ofício da entidade empregadora da representada do Autor, de 29.06.2015, após algumas vicissitudes procedimentais, relativas ao facto de a CGA considerar que o pedido de submissão a junta médica de recurso não estaria devidamente justificada, solicitando que a representada do Autor apresentasse elementos clínicos justificativos do seu estado de saúde, que não tivessem sido levados em conta pela junta médica realizada em 18.11.2014, foram apresentados diversos relatórios/pareceres médicos e exames clínicos (cf. fls. 182 a 201 do PA).
11. Dos referidos relatórios/pareceres médicos, destaca-se o seguinte:
[...]
“(texto integral no original; imagem)”
[…]





[…]

“(texto integral no original; imagem)”

[…]
[…]
RELATÓRIO MÉDICO
de
M……
Paciente de 50 anos de idade, casada, residente no Concelho de Oliveira de Azeméis.
Esta senhora é acompanhada em consultas de psiquiatria, correspondendo o seu quadro clínico a um transtorno depressivo recorrente, episódio actual grave sem sintomas psicóticos, (F33.2), segundo os critérios da CID-10. Este actual episódio, aparentemente, está relacionado com manifestas limitações, após acidente de trabalho, com sequelas a nível da coluna lombar.
A paciente apresenta; insónia inicial, alterações do apetite, humor depressivo vespertino, anedonia, alterações mnésicas significativas, níveis elevados de ansiedade, baixa auto-estima, isolamento social, choro, intolerância aos ruídos, vertigens, zumbidos, tonturas, diminuição da força física, desequilíbrio, parestesias, etc.
Está medicada desde já há algum tempo com antidepressivo e em dose considerada terapêutica, mas sem resposta satisfatória,
A D. M.... está medicada com: Prozac 20mg id, ADT 25 2id, Diazepam qb e outros.
Resumindo: trata-se de uma senhora de 50 anos de idade, que apresenta uma depressão major, {transtorno depressivo recorrente, episódio actual grave sem sintomas psicóticos P33.2),
O seu estilo de vida (quer social, quer laboral, quer familiar) está significativamente comprometido.
Às mazelas apresentadas têm enquadramento na Tabela Nacional de Trabalho, no Capitulo X, Grau III (perturbações funcionais importantes, com manifesta diminuição do nível de eficiência pessoal ou profissional) cujo coeficiente de desvalorização varia dentro dos seguintes limites: 0,16-0,30„ E dado o sofrimento apresentado, patologia orgânica de que padece e o grau de severidade da mesma, deve-se propor uma desvalorização neste capítulo (X) de 0,25 (25%).
Por ser verdade e me ter sido pedido passo o presente relatório que dato e assino.
Coimbra, 29.05.15
“(texto integral no original; imagem)”




“(texto integral no original; imagem)”


[...]" (cf. fls. 189 a 200 do PA).
12. Em 07.07.2015, o Coordenador do Núcleo Médico da CGA proferiu o seguinte parecer:
"[...]
“(texto integral no original; imagem)”

[...] (cf. fls. 202 do PA).
13. Em 18.10.2016, realizou-se junta médica da CGA que proferiu auto de junta médica solicitando parecer do consultor de Neurocirurgia, sem necessidade da representada do Autor voltar à Junta
(cf. fls. 275 do PA).
14. Em 15.12.2016, o consultor de Neurocirurgia elaborou o seguinte relatório clínico:
"[...]


[...]"(cf. fls. 284 do PA).
15. Em 21.02.2017, realizou-se junta médica da CGA que proferiu auto de junta médica solicitando parecer do consultor de Psiquiatria, sem necessidade de a representada do Autor voltar à Junta (cf. fls. 296 do PA).
16. Em 09.06.2017, o consultor de Psiquiatria elaborou o seguinte parecer:
"[...]
“(texto integral no original; imagem)”

[...] " (cf. fls. 342 e 343 do PA).
17. Em 19.09.2017, realizou-se a Junta Médica de Recurso da CGA, a qual elaborou parecer com o seguinte teor:
"[...]
“(texto integral no original; imagem)”


[...]" (cf. fls. 377 do PA).
18. Por despacho da CGA de 27.09.2017, foi homologado o parecer anterior, mantendo-se a desvalorização da incapacidade permanente parcial atribuída à representada do Autor em 9% (cf. fls. 377 do PA).
Mais se provou:
19. Do PA, e com datas anteriores à decisão impugnada, constam diversos pareceres/relatórios médicos e exames clínicos, alguns dos quais para instrução do pedido de aposentação por incapacidade, dos quais se destaca o seguinte:



[…]
“(texto integral no original; imagem)”


[…]
[…]
[…]







[…]
“(texto integral no original; imagem)”




[...]" (cf. fls. 223 e seguintes do PA).
“(texto integral no original; imagem)”

"[...]" (cf. fls. 337 do PA).
20. Na sequência do parecer anterior, foi atribuída à representada do Autor o direito a pensão, com fundamento em incapacidade absoluta e permanente para o exercício das suas funções, com início em 14.03.2017 (cf. fls. 364 a 376 do PA).
*

II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, a questão a decidir cinge-se a saber se ocorre erro de julgamento da decisão recorrida ao concluir pela verificação da falta de fundamentação do ato impugnado.

Consta da decisão recorrida a seguinte fundamentação:
Também no presente caso se verifica que o auto de junta médica, depois homologado pela CGA, se limita ao teor constante do ponto 17. do probatório, sem qualquer justificação, explicação ou fundamentação, por mínima ou sucinta que fosse, que permita a qualquer destinatário (dir-se-á, mesmo para um especialista na respectiva área) perceber como se chega à conclusão de manutenção do grau de desvalorização da incapacidade em 9%.
De facto, o referido parecer é totalmente conclusivo, não contendo absolutamente nenhuma fundamentação.
Dizer que se mantém o grau de desvalorização em 9% é apenas a conclusão ou resultado, não constitui a fundamentação ou explicação dos motivos ou razões para essa mesma conclusão.
E nem se diga que, previamente no procedimento, tinha havido um parecer interno do Coordenador do Núcleo Médico em 07.07.2015 (ponto 12. do probatório) que, eventualmente, permitisse descortinar as conclusões da junta médica aqui em causa nos autos.
Para além desse parecer ser interno, entre a data da sua elaboração e o auto da junta médica houve outros relatórios médicos apresentados no procedimento e incluídos no PA e, além disso, esse mesmo parecer interno mostra-se, numa análise perfunctória, ou parcialmente errado (mesmo para um leigo) ou, pelo menos, não fundamentado para parte das afirmações ali tecidas. Isto porque, pelo menos ressuma de forma evidente que os pareceres/relatórios médicos entretanto apresentados pela representada do Autor não apresentavam ‘um quadro sequelar totalmente idêntico’ a anteriores relatórios.
Por um lado, tinham sido apresentados mais do que um relatório e não apenas aquele a que é feito referência no parecer do Coordenador do Núcleo Médico e, ademais, mesmo esse relatório aparentemente idêntico - bem ou mal, não importa no caso - apresentava conclusões actualizadas e reforçadas, até pelo próprio apontado agravamento, face ao anteriormente apresentado.
Depois, e ainda nesse mesmo parecer também eram sugeridas determinadas actuações para aferir melhor a situação da representada do Autor.
Essas sugestões foram seguidas, porém nada sobre elas é referido no auto de junta médica em causa nos autos.
Em bom rigor, nem sequer o referido parecer do Coordenador do Núcleo Médico é referenciado, por qualquer forma, no auto de junta médica.
Muito menos se indica, por sucinto que fosse, quais os motivos para desatender as conclusões dos diversos pareceres/relatórios médicos apresentados (os quais, claramente, apontavam noutro sentido àquele que acabou por ser a conclusão da junta médica), nem sequer se diz se e como eventualmente fossem repetição de relatórios anteriores já considerados por juntas médicas anteriores (sendo que, objectivamente e independentemente da sua valia técnica ou científica, os diversos relatórios entretanto apresentados não se podem considerar, analisando o seu teor, meras repetições de outros anteriormente considerados).
Nem sequer se equaciona a congruência da conclusão e a da junta médica que considerou a representada do Autor absolutamente e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções, na sequência da qual lhe foi concedida a aposentação por incapacidade.
Repare-se: até pode haver explicação técnica e científica simples para essa aparente incongruência (basta que a específicas patologias consideradas para um e outro efeitos não fossem as mesmas), mas a questão reside, precisamente, no facto de absolutamente nada ser referido quanto à motivação ou explicação da conclusão da junta médica que permitisse compreender e dissipar qualquer eventual incongruência.
Incongruência essa que fica reforçada com o teor dos diversos relatórios médicos oportunamente apresentados e, aparentemente, desconsiderados pela junta médica.
A junta médica até poderia afastar a valia dos relatórios médicos ou da importância que teriam para a situação em análise e que lhe cumpria decidir, mas tinha de o justificar ou explicar devidamente, de forma racional, lógica e suficiente e, sobretudo e a montante, demonstrar que os ponderou a todos, porque nem isso, na verdade, resulta do teor do auto de junta médica.
Conclui-se, pois, que a decisão impugnada, porque baseada no parecer/auto de junta médica meramente conclusivo e sem nenhuma fundamentação, é inválida, devendo ser anulada.
Atendendo à procedência do vício de falta absoluta de fundamentação, que impede também a este Tribunal apreciar o acerto ou desacerto da decisão impugnada, mesmo no que se refere a um eventual erro grosseiro ou manifesto, fica prejudicado o conhecimento de quaisquer outras questões, nomeadamente o vício também invocado do erro sobre os pressupostos de facto.
Procede, assim, a ação.
Ao que contrapõe a recorrente, em síntese, o seguinte:
- a decisão de submeter a representada do recorrido a exame de médico especialista em neurologia e psiquiatria e a posterior emissão de pareceres especializados surgem no encadeamento do procedimento administrativo subjacente à junta de recurso;
- tais pareceres são determinantes e constituem fundamentação da decisão desta junta por remissão.
Vejamos se lhe assiste razão.
Sustenta a recorrente que a matéria de facto dada como assente não pode amparar a conclusão do Tribunal a quo quanto à falta de fundamentação da decisão da junta de recurso.
Dali se retira a seguinte factualidade essencial:
- em 17/04/2009, a representada do autor sofreu um acidente qualificado como sendo em serviço;
- a junta médica realizada em 19/03/2013 emitiu parecer no sentido de ser fixada à representada do autor uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 6%, homologado por despacho de 02/04/2013;
- em 29/04/2014, a representada do autor requereu a realização de junta médica para revisão da IPP;
- a junta médica realizada em 18/11/2014 emitiu parecer no sentido de ser fixada à representada do autor uma IPP de 9%, homologado por despacho de 01/12/2014;
- em 11/02/2015, a representada do autor requereu a realização de junta médica de recurso, juntando:
- relatório de avaliação de dano corporal no âmbito do direito do trabalho, datado de 14/11/2014, no qual lhe é atribuída uma IPP de 35,40%;
- relatório de avaliação de incapacidades de médico especialista de neurocirurgia, datado de 14/01/2013, no qual lhe é atribuída uma IPP de 27%;
- posteriormente juntou relatório de avaliação de dano corporal no âmbito do direito do trabalho, datado de 03/06/2015, no qual lhe é atribuída uma IPP de 27%;
- e relatório de avaliação de dano corporal no âmbito do direito do trabalho, datado de 06/06/2015, no qual lhe é atribuída uma IPP de 26,72%;
- em 08/10/2015, foi emitido atestado médico de incapacidade multiuso, após junta médica do Ministério da Saúde, fixando à representada do autor uma incapacidade permanente global de 75,80%;
- em 13/01/2016, foi emitida informação clínico laboral do médico do trabalho da Clínica de Santo António de Vale de Cambra, concluindo pela incapacidade total para a sua atividade profissional;
- em 20/08/2016, foi emitido relatório médico de psiquiatria, concluindo pela incapacidade total e definitiva para a sua atividade profissional;
- em 17/09/2016, foi emitido relatório médico de ortopedia, concluindo pela incapacidade total para a sua atividade profissional;
- a junta médica realizada em 18/10/2016 solicitou parecer do consultor de neurocirurgia;
- deste parecer, datado de 15/12/2016, consta concordância com a IPP decorrente de I.1.1.1 C) e de III.7 do parecer médico de 07/07/2015;
- a junta médica realizada em 21/02/2017 solicitou parecer do consultor de psiquiatria;
- deste parecer, datado de 09/06/2017, consta não ser possível estabelecer nexo entre o acidente e a sintomatologia emocional, e a situação clínica atual não corresponder a patologia psiquiátrica potencialmente incapacitante para a sua profissão;
- a junta médica de recurso (D-L n.º 503/99) realizada em 19/09/2017 emitiu parecer no sentido de ser mantida uma IPP de 9%, homologado por despacho da CGA de 27/09/2017;
- a junta médica de recurso (D-L n.º 498/72) realizada em 14/03/2017 emitiu parecer no sentido da representada do autor estar absoluta e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções;
- na sequência do que lhe foi atribuída o direito a pensão, com fundamento em incapacidade absoluta e permanente para o exercício das suas funções, com início em 14/03/2017.
Em função desta realidade fáctica, na decisão recorrida concluiu-se pelo incumprimento do dever de fundamentação.
E bem se percebe porquê, como adiante se verá.
É indisputável que cabe à administração o dever de fundamentar os atos que afetem os direitos ou interesses legítimos dos seus destinatários, devendo ser expostas as razões de facto e de direito que levaram à prática de determinado ato e a que lhe seja dado determinado conteúdo.
Dando conteúdo ao imperativo constitucional plasmado no artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) (“[o]s atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos”), o CPA prevê o seguinte:
“Artigo 151.º
Menções obrigatórias
1 - Sem prejuízo de outras referências especialmente exigidas por lei, devem constar do ato:
a) A indicação da autoridade que o pratica e a menção da delegação ou subdelegação de poderes, quando exista;
b) A identificação adequada do destinatário ou destinatários;
c) A enunciação dos factos ou atos que lhe deram origem, quando relevantes;
d) A fundamentação, quando exigível;
e) O conteúdo ou o sentido da decisão e o respetivo objeto;
f) A data em que é praticado;
g) A assinatura do autor do ato ou do presidente do órgão colegial que o emana.
2 - As menções exigidas no número anterior devem ser enunciadas de forma clara, de modo a poderem determinar-se de forma inequívoca o seu sentido e alcance e os efeitos jurídicos do ato administrativo.
Artigo 152.º
Dever de fundamentação
1 - Para além dos casos em que a lei especialmente o exija, devem ser fundamentados os atos administrativos que, total ou parcialmente:
a) Neguem, extingam, restrinjam ou afetem por qualquer modo direitos ou interesses legalmente protegidos, ou imponham ou agravem deveres, encargos, ónus, sujeições ou sanções;
b) Decidam reclamação ou recurso;
c) Decidam em contrário de pretensão ou oposição formulada por interessado, ou de parecer, informação ou proposta oficial;
d) Decidam de modo diferente da prática habitualmente seguida na resolução de casos semelhantes, ou na interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou preceitos legais;
e) Impliquem declaração de nulidade, anulação, revogação, modificação ou suspensão de ato administrativo anterior.
2 - Salvo disposição legal em contrário, não carecem de ser fundamentados os atos de homologação de deliberações tomadas por júris, bem como as ordens dadas pelos superiores hierárquicos aos seus subalternos em matéria de serviço e com a forma legal.
Artigo 153.º
Requisitos da fundamentação
1 - A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituem, neste caso, parte integrante do respetivo ato.
2 - Equivale à falta de fundamentação a adoção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato.
3 - Na resolução de assuntos da mesma natureza, pode utilizar-se qualquer meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que tal não envolva diminuição das garantias dos interessados.”
Conforme é de há muito jurisprudência consolidada, a fundamentação é um conceito relativo, que varia consoante o tipo legal de ato administrativo em concreto, tendo como objetivos “habilitar o destinatário a reagir eficazmente pelas vias legais contra a respetiva lesividade, caso com a mesma não se conforme (objetivo endoprocessual) e de assegurar a transparência, a serenidade, a imparcialidade e reflexão decisórias (objetivos exa ou extra-processuais)” (acórdão do STA de 14/05/1997, proc. n.º 029952, disponível, como os demais a citar, em www.dgsi.pt).
Por outras palavras, o ato está devidamente fundamentado sempre que o seu destinatário fica esclarecido acerca das razões que o motivaram, isto é, sempre que o mesmo contenha, com suficiência e clareza, as razões de facto e de direito que o justificaram, por forma a que aquele, se o quiser, possa impugná-lo com o necessário e indispensável esclarecimento; a fundamentação é, assim, um requisito formal do ato que se destina a responder às necessidades de esclarecimento do seu destinatário e que, por isso mesmo, varia em função do seu tipo legal e das circunstâncias concretas de cada caso (cf., vg, o acórdão do STA de 24/09/2009, proc. n.º 428/09).
Deve, assim, o conteúdo da fundamentação adequar-se ao tipo concreto do ato e às circunstâncias em que foi praticado, impondo-se que seja expressa, clara, suficiente e congruente.
Ou, vista no sentido inverso, a fundamentação do ato não pode ser obscura, contraditória ou insuficiente (Vieira de Andrade, O dever de fundamentação expressa dos atos administrativos, 1991, pág. 238).
Ressalta da descrição supra relativa à factualidade essencial constarem dos autos uma série de elementos médicos que se revelam se não contraditórios, pelo menos muito difíceis de conciliar, no que respeita à situação clínica da representada do autor/recorrido, em função do acidente de serviço sofrido no ano de 2009.
Veja-se que cerca de três meses antes, uma outra junta médica de recurso (esta no âmbito do D-L n.º 498/72) chegou a conclusão radicalmente oposta, da representada do recorrido estar absolutamente e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções, na sequência da qual lhe foi concedida a aposentação por incapacidade.
Tais elementos, todos constantes do processo administrativo junto aos autos, estavam disponíveis para consulta pelos membros da junta médica de recurso.
E permitiriam certamente fundamentar as conclusões da junta médica.
Não foi o que sucedeu no respetivo auto.
Assentemos que a sua natureza eminentemente técnica, por estar em causa a chamada discricionariedade administrativa técnica, não implica a sua insindicabilidade e ausência de necessidade de fundamentação das respetivas conclusões, como se assinalou nos citados acórdãos deste TCAS de 10/01/2019, proc. n.º 297/18.0BEFUN, e de 06/06/2019, proc. n.º 297/18.0BEFUN.
Ora, no auto da junta médica de recurso, com o teor constante do ponto 17 do probatório, não é apresentada justificação alguma que permita a qualquer destinatário ficar esclarecido sobre as razões da manutenção do grau de desvalorização da IPP em 9%.
Como bem se nota na sentença, até pode haver explicação técnica e científica simples para as apontadas incongruências, seja entre as conclusões das juntas, seja entre os vários relatórios médicos que constam do processo administrativo, mas absolutamente nada consta do ato impugnado que o permita entender.
Defende a recorrente que há uma fundamentação por remissão, conforme permite a segunda parte do já citado artigo 153.º, n.º 1, do CPA.
Esta fundamentação consiste na remissão para os termos de uma informação, parecer ou proposta que contenha, ela mesma, a motivação do ato, de tal modo que essa remissão deve ser entendida no sentido de que o ato administrativo absorveu e se apropriou da respetiva motivação ou fundamentação, que, assim, dele ficará a fazer parte integrante (cf., v.g., o acórdão do STA de 02/12/2010, proc. n.º 0554/10).
Tal evidentemente não sucede no auto em questão, que é omisso de qualquer referência a informação, relatório ou parecer.
É, assim, evidente o acerto da conclusão da sentença recorrida, no sentido do ato impugnado carecer em absoluto de fundamentação, devendo ser anulado.
Em suma, será de negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 3 de março de 2022
(Pedro Nuno Figueiredo)

(Ana Cristina Lameira)

(Ricardo Ferreira Leite)