Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:810/20.2 BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:12/15/2021
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:OPOSIÇÃO
DUPLICAÇÃO DE COLETA VS DUPLA TRIBUTAÇÃO
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
CONVOLAÇÃO
Sumário:I - Os conceitos de legais de duplicação de coleta e de dupla tributação não se confundem.
II – A forma de reagir contra a dupla tributação é a impugnação judicial do ato de liquidação de IRS e não a oposição à execução fiscal com fundamento em duplicação de coleta.

III – A impugnação judicial visa atacar os atos de liquidação, com vista a obter a declaração da sua inexistência, nulidade ou anulação.

IV - A alegada dupla tributação não corresponde também à denominada ilegalidade abstrata (ou absoluta) da liquidação, a que corresponde a alínea a) do nº1 do artigo 204º do CPPT.

V – No caso, verifica-se erro na forma de processo, o que constitui uma nulidade processual de conhecimento oficioso pelo Tribunal.

VI - Para efetuar a convolação necessário é que seja viável o prosseguimento do processo na forma processual adequada, designadamente que a petição inicial tenha sido tempestivamente apresentada.

VII - O facto de estar pendente uma reclamação graciosa relativamente ao ato de liquidação que é impugnado através de oposição à execução fiscal não é obstáculo a que se convole a petição de oposição em petição de impugnação judicial.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - Relatório

A ……………… e E ……………….., ambos com os sinais dos autos, deduziram no TAF de Leiria oposição ao processo de execução fiscal n.º …………….., por dívida de IRS dos anos de 2017 e 2018, no montante de €14.138,59, alegando existir dupla tributação dos rendimentos de pensões que auferem em França.

Por sentença de 9 de março de 2021, o TAF de Leiria julgou verificada a exceção dilatória de erro na forma de processo, prevista nos artigos 193º e 577º, alínea b), do Código de Processo Civil (CPC) e, em consequência, absolveu a Fazenda Pública da instância, nos termos do artigo 278º, nº 1, alínea b), do mesmo código, com as demais consequências legais.

Inconformados com sentença do TAF de Leiria, os Oponentes interpuseram recurso jurisdicional que dirigiram ao STA, tribunal que se declarou hierarquicamente incompetente.

Remetido o recurso para este TCA, importa conhecer o quadro conclusivo formulado pelos Recorrentes:

“A) Por Douta Sentença de que ora se recorre, o Tribunal de 1.ª Instância decidiu julgar verificada a excepção dilatória de erro na forma do Processo prevista nos artigos 193º e 577º b) do Código de Processo Civil e, em consequência absolveu a Fazenda Pública da instância nos termos do artigo 278º nº 1 b) do Código do Processo Civil, por entender que não estaria alegado qualquer dos fundamentos admitidos pelo art.º 204.º n.º 1 do CPPT.

B) Mais, entendeu o Douto Tribunal Recorrido, que os fundamentos evidenciados teriam uma sede própria, distinta da Oposição - a Impugnação Judicial da liquidação de imposto.

C) Contudo, o Meritíssimo Juiz do Tribunal da 1ª Instância recebeu liminarmente a presente Oposição e ordenou a notificação da Fazenda Nacional para Contestar.

D) Após a Contestação, o Meritíssimo Juiz do Tribunal da 1ª Instância decidiu pela absolvição da instância da Fazenda Nacional, julgando verificada a excepção dilatória de erro na forma do Processo.

E) O Recorrente fundou a sua Oposição à execução fiscal na duplicação da colecta, alínea g) do nº 1 do artigo 204º e nº 1 do artigo 205º do CPPT, Pedindo na petição que seja declarada inexigível a dívida exequenda e arquivados os autos de execução.

F) Os rendimentos que os Recorrentes auferem em França são unicamente de pensões de reforma e são declarados anualmente nos impostos em França, como sendo lá residentes, como efectivamente aconteceu quanto às Pensões de reforma referentes aos anos de 2017 e 2018.

G) Ao serem declaradas as pensões nas declarações de imposto em França, não podem ser declarados novamente nas declarações de impostos em Portugal.

H) Assim, a Decisão da AT que decidiu efectuar a correcção das Declarações de imposto, referentes aos anos de 2017 e 2018 no IRS dos Oponentes, quando tais rendimentos já tinham sido declarados em França, é ilegal, havendo duplicação da colecta.

I) Ao ser decidido corrigir as declarações de IRS referentes aos anos de 2017 e 2018, acrescentando os rendimentos das pensões de França, que já lá tinham sido declaradas, a AT incorreu em Duplicação da Colecta.

J) A duplicação da Colecta é fundamento da dedução de oposição à execução fiscal, conforme se dispõe na alínea g) do nº 1 do artigo 204º e 205º do CPPT.

K) Mais, na opinião dos Recorrentes a discussão da legalidade da dívida de IRS não se pode subsumir a uma ilegalidade concreta, mas abstracta ou absoluta da liquidação, sendo factor de dedução de oposição à execução fiscal por via da alínea a) do artigo 204º do CPPT.

L) Não sendo de acompanhar a sentença recorrida quando a mesma diz que a oposição judicial não é o meio para a satisfação da pretensão dos Recorrentes, sendo que o meio processual correcto seria a impugnação do acto de liquidação, concluindo pela existência de erro na forma de processo.

Sem prescindir,

M) O Douto Tribunal Recorrido decidiu pela existência de erro na forma do processo, alegando que o meio processual próprio seria a impugnação judicial do acto tributário.

N) O Douto Tribunal Recorrido decidiu pela não convolação da oposição à execução fiscal em impugnação judicial, alegando a intempestividade para efeitos da nova forma processual, dado que, no entendimento da Douta Sentença Recorrida, a data limite para o pagamento voluntário ocorreu em 23/04/2020 e a presente oposição foi intentada em 17/09/2020, tendo já decorrido o período de 3 meses previsto no artigo 102º nº 1 do CPPT.

O) Os recorrentes não podem concordar com a Douta Sentença recorrida em não convolar a oposição à execução fiscal em impugnação judicial por intempestividade, dado que os Recorrentes haviam deduzido Reclamação Graciosa da liquidação do IRS referente ao ano de 2018, e ainda não haveria decisão à data da propositura da acção.

P) Ora, se não havia decisão da Reclamação Graciosa, os Recorrentes estariam sempre em tempo de deduzirem impugnação judicial do acto tributário, ao abrigo do disposto nas alíneas b) e e) do artigo 102º do CPPT.

Q) Os Recorrentes estariam ainda em tempo de deduzirem impugnação judicial em relação à decisão da Reclamação Graciosa referentes à liquidação do IRS referente ao ano de 2018, pelo que o Douto Tribunal a quo deveria ter convolado a execução à oposição fiscal em impugnação judicial.

R) Os Recorrentes alegam, pois, que a dedução de oposição à execução fiscal é o meio próprio e adequado para reagirem à duplicação da colecta que resultou na liquidação adicional de IRS referente aos anos de 2017 e 2018.

S) Mas caso o não fosse, e havendo erro na forma do processo, o mesmo deveria ter sido convolado em impugnação judicial, dado que deduziram Reclamação Graciosa que ainda não tinha decisão à data da propositura da Acção, 17/09/2020.

T) Ao decidir existir erro na forma do processo, que na opinião dos Recorrentes não existiu, e ao não convolar a oposição à execução fiscal em impugnação judicial, decidindo pela absolvição da instância Fazenda Nacional, o Douto Tribunal Recorrido violou as disposições dos artigos 204º, 205º e 102º do CPPT.

Em face de todo o exposto, formula-se o seguinte PEDIDO:

Deverá ser concedido provimento ao presente Recurso, revogando-se a Douta Sentença Recorrida e, por conseguinte, devendo os autos baixarem ao tribunal a quo para conhecimento do mérito da oposição deduzida, ou ordenada a convolação do processo em impugnação judicial, seguindo os seus ulteriores trâmites,

FAZENDO-SE A COSTUMADA JUSTIÇA!”


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste TCA emitiu parecer com o seguinte teor: “Aderindo à douta decisão recorrida, que se nos afigura correcta na apreciação de facto de direito, entendemos que a mesma deve ser confirmada e negado provimento ao recurso dos ali oponentes”.

No STA, o parecer proferido pelo EMMP foi no sentido da incompetência em razão da hierarquia do Tribunal – aí se lê, além do mais, “Assim sendo, mostra-se este tribunal incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso, motivo pelo qual se impõe excecionar a incompetência do STA e determinar-se a remessa dos autos ao TCA Sul, por ser o competente para a sua apreciação”.


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Foram colhidos os vistos legais.



Questão a decidir: saber se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento ao considerar verificado o erro na forma processual utilizada – oposição à execução fiscal – sem possibilidade de convolação no meio considerado adequado – impugnação judicial.

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II - Fundamentação

- Matéria de Facto

A. Em 21/05/2020 a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu em nome dos Oponentes as certidões de divida n.º ………………….. relativa a IRS e juros compensatórios do ano de 2017 no montante de € 7.264,95 e n.º ………….., relativa a IRS e juros compensatórios do ano de 2018 no montante de € 6.873,64, com data limite de pagamento de 23/04/2020, para efeitos de instauração do processo de execução fiscal n.º ……………… do Serviço de Finanças de Ourém. – (cfr. docs. de fls. 26 a 29 dos autos).

B. Em 04/08/2020 a Autoridade Tributária e Aduaneira endereçou ao Oponente A ……….., citação postal para o processo de execução fiscal identificado na alínea precedente, com a quantia exequenda de € 14.312,42. - (cfr. doc. de fls.30 dos autos).

C. B. Em 04/08/2020 a Autoridade Tributária e Aduaneira endereçou à Oponente E …………., citação postal para o processo de execução fiscal identificado em A., com a quantia exequenda de € 14.309,12. - (cfr. doc. de fls. 31 dos autos).

D. Em 28/08/2020 o Oponente apresentou reclamação graciosa contra o ato de liquidação de IRS do ano de 2018. – (cfr. fls. 47 dos autos).

E. Em 07/09/2020 foi remetida ao Serviço de Finanças de Ourém, via postal registado, a petição inicial da presente oposição. – (cfr. fls. 23 dos autos).

Encontra-se ainda provado que:

F. Os Oponentes possuem autorizações de residência em França, estão registados na Segurança Social Francesa e a Oponente encontra-se desde 06/05/2020 recenseada em França. – (cfr. docs. de fls. 13 a 18 dos autos).


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Inexistem factos não provados com interesse para a decisão da presente nulidade”

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- O direito

Como dissemos, a decisão do TAF de Leiria foi a de julgar verificado o erro na forma do processo (oposição à execução fiscal), sem possibilidade de convolação na forma processual adequada (impugnação judicial).

Acompanhemos, com a transcrição que se segue, o discurso adotado pelo Mmo. Juiz a quo. Lê-se na sentença, além do mais, o seguinte:

“(…)

Os Oponente pretendem com a presente oposição a absolvição do pagamento da quantia exequenda por entenderem que o IRS dos anos de 2017 e 2018 que lhes foi liquidado adicionalmente não é devido pelo menos na parte em que foram auferidos e tributados em França.

Todavia, como veremos, os Oponentes não podem nestes autos de oposição ao processo executivo discutir a legalidade em concreto da dívida de IRS.

Com efeito, em sede de oposição à execução fiscal, apenas se pode discutir a ilegalidade em abstracto da dívida exequenda e, por isso, mostra-se excluída do âmbito da oposição a possibilidade de discussão da ilegalidade concreta da liquidação, fundamento que, assim, não é admitido em sede de oposição à execução fiscal.

Ora, os Oponentes indicam no preâmbulo da petição que deduzem oposição ao processo executivo nos termos do disposto no art.º 204.º e seguintes do CPPT, mas a sua causa de pedir (existência de dupla tributação) não se subsume a nenhuma delas.

(…)

Assim, é de concluir que a presente oposição judicial é um meio processual inadequado para a satisfação da sua pretensão, sendo que o meio processual adequado, neste caso, será, efectivamente, a impugnação do acto de liquidação, como acima referimos, pelo que existe erro na forma processual empregue”.

Inconformados com o decidido, começam os Recorrentes por dizer que a oposição por si deduzida teve como fundamento a duplicação de coleta, o que, nos termos da alínea g) do nº1 do artigo 204º do CPPT, constitui fundamento de oposição à execução fiscal.

Vejamos, então.

Em primeiro lugar, importa deixar esclarecido que, contrariamente ao afirmado, no articulado inicial de oposição não foi expressamente invocada a alínea g) do nº1 do artigo 204º do CPPT, nem os oponentes se referem à duplicação de coleta. Apesar disso, e porque a nomenclatura jurídica não é determinante para o julgador, nenhum óbice se suscitaria perante a alegação correspondente à duplicação de coleta, ainda que tal alegação não viesse acompanhada da invocação expressa da nomenclatura, até porque, como sabemos, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

Sucede, contudo, e isso surge claro na p.i, que o que os Oponentes invocaram (e assim lhe chamaram claramente) foi a dupla tributação dos seus rendimentos. Com efeito, aí alegaram que os rendimentos que o Estado Português pretende tributar (e que estão subjacentes à dívida exequenda) foram já objeto de tributação em França, país onde residem e auferem os rendimentos de pensões de reforma.

Deixemos, desde já, claro que os conceitos de legais de duplicação de coleta e de dupla tributação não se confundem, como neste recurso parece acontecer.

O artigo 205º, nº 1 do CPPT dispõe que “haverá duplicação de coleta para efeitos do artigo anterior quando, estando pago por inteiro um tributo, se exigir da mesma ou de diferente pessoa um outro de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo”.

Assim, são requisitos cumulativos desta figura jurídica os seguintes: a) unicidade dos factos tributários; b) identidade de natureza entre a contribuição ou imposto e o que de novo se exige; c) coincidência temporal do imposto pago e o que de novo se pretende cobrar.

Com refere Jorge Lopes de Sousa, in CPPT anotado, 4ª ed., pág. 930, “o alcance da duplicação de colecta é impedir que seja repetida a cobrança de um mesmo tributo.

A duplicação de colecta resulta da aplicação do mesmo preceito legal mais do que uma vez ao mesmo facto tributário ou situação tributária.

No entanto, torna-se necessário que a realidade fáctica que está subjacente à pluralidade de liquidações seja a mesma, o que não acontecerá, por exemplo, no caso de liquidações adicionais, em que se pretende cobrar um tributo que, indevidamente, não foi liquidado inicialmente…

Distinta da duplicação de colecta é a dupla tributação, que ocorre quando há dois tributos que incidem sobre o mesmo facto tributário”.

Diferente é a aplicação de duas normas distintas pertencentes a ordenamentos jurídicos também distintos (o francês e o português) ao mesmo facto tributário, o que integra o conceito de dupla tributação. É esta, na interpretação que fazemos, a situação exposta ao longo da p.i de oposição.

Feita esta apreciação inicial, partimos já de uma base segura para melhor apreciar a questão que nos vem dirigida, tendo presente que a forma de reagir contra a dupla tributação é a impugnação judicial do ato de liquidação de IRS e não a oposição à execução fiscal com fundamento em duplicação de coleta.

Tenhamos presente que a oposição à execução fiscal que visa, em regra, a extinção da execução fiscal, pode ter qualquer um dos seguintes fundamentos taxativos:

“1 - A oposição só poderá ter algum dos seguintes fundamentos:

a) Inexistência do imposto, taxa ou contribuição nas leis em vigor à data dos factos a que respeita a obrigação ou, se for o caso, não estar autorizada a sua cobrança à data em que tiver ocorrido a respectiva liquidação;

b) Ilegitimidade da pessoa citada por esta não ser o próprio devedor que figura no título ou seu sucessor ou, sendo o que nele figura, não ter sido, durante o período a que respeita a dívida exequenda, o possuidor dos bens que a originaram, ou por não figurar no título e não ser responsável pelo pagamento da dívida;

c) Falsidade do título executivo, quando possa influir nos termos da execução;

d) Prescrição da dívida exequenda;

e) Falta da notificação da liquidação do tributo no prazo de caducidade;

f) Pagamento ou anulação da dívida exequenda;

g) Duplicação de colecta;

h) Ilegalidade da liquidação da dívida exequenda, sempre que a lei não assegure meio judicial de impugnação ou recurso contra o acto de liquidação;

i) Quaisquer fundamentos não referidos nas alíneas anteriores, a provar apenas por documento, desde que não envolvam apreciação da legalidade da liquidação da dívida exequenda, nem representem interferência em matéria de exclusiva competência da entidade que houver extraído o título”.

Ora, como deixámos já referido, é manifesto que a ilegalidade invocada na petição inicial de oposição é a ilegalidade atinente aos atos de liquidação de IRS, ilegalidade essa consubstanciada numa situação de alegada dupla tributação.

É, pois, de concluir, acompanhando o decidido pelo TAF de Leiria, que a causa de pedir não está em linha com o elenco taxativo dos fundamentos de oposição, nem com a pretensão dos recorrentes exposta na oposição - ainda que sem grande rigor terminológico mas direcionada para a invalidade do imposto correspondente à dívida exequenda - e que surge expressa pelas seguintes formas:

« Texto no original»

“(…)

(…) ou, como referem também, pretendem a sua absolvição do pedido da quantia exequenda”.

Temos, pois, por seguro que, no caso, a presente oposição à execução fiscal não é o meio processual adequado para a satisfação do pedido formulado pelos Oponentes, sendo antes – isso sim - a impugnação judicial, meio processual que visa atacar os atos tributários praticados pela Administração Tributária, designadamente atos de liquidação, com vista a obter a declaração da sua inexistência, nulidade ou anulação.

Assim sendo, e porque a cada direito corresponde um meio processual de o fazer valer em juízo, a questão colocada pelos Recorrentes - relativa à legalidade das correções subjacentes às liquidações de IRS de 2017 e 2018 - não pode ser conhecida em processo de oposição, mas sim em impugnação judicial, cujos fundamentos se encontram previstos no artigo 102º do CPPT.

Diga-se, ainda, que a alegada dupla tributação não corresponde também à denominada ilegalidade abstrata (ou absoluta) da liquidação, a que corresponde a alínea a) do nº1 do artigo 204º do CPPT, a qual se distingue da “ilegalidade em concreto”, na medida em que naquela está em causa a ilegalidade do tributo e não a mera ilegalidade do ato tributário; “isto é, na ilegalidade abstrata a ilegalidade não reside diretamente no ato que faz aplicação da lei ao caso concreto, mas na própria lei cuja aplicação é feita, não sendo, por isso, a existência de vício dependente da situação real a que a lei foi aplicada nem do circunstancialismo em que o ato foi praticado”. – cfr. acórdão do STA, de 20/03/19, proc. nº 558/15.0BEMDL.

Há, pois, erro na forma de processo, o que constitui uma nulidade processual de conhecimento oficioso pelo Tribunal, nos termos conjugados do disposto nos artigos 193º, 196º, 576º nº 2, 577º, alínea b), e 578º do CPC, aplicáveis ex vi, artigo 2º, nº 1, alínea e), do CPPT.

Até aqui, e considerando as conclusões A) a M), devem as mesmas ser julgadas improcedentes, mantendo-se o decidido.

Verificado o erro na forma do processo, a questão imediatamente que se colocou à sentença foi a da convolação do meio utilizado naquele efetivamente adequado. Também aqui o decidido suscita a discordância dos Recorrentes, quanto à liquidação de 2018, os quais consideram que, não obstante o erro na forma de processo, devia ter sido ordenada a convolação no meio processual considerado adequado, já que nenhuma questão de intempestividade se coloca.

Relembre-se o que foi decidido pelo TAF de Leiria a propósito da impossibilidade de convolação. Assim, lê-se na decisão recorrida:

“(…)

Como referem Diogo Leite de Campos e Outros, em anotação ao artigo 97.º da LGT, “o n.º 3 do preceito visa obstar a que, por via de uma errada eleição da forma de processo, o tribunal deixe de se pronunciar sobre o mérito da causa. Trata-se de uma injunção ao próprio juiz. Este só estará desonerado da obrigação de ordenar a correcção da forma de processo quando ela se mostre de todo inviável”, sendo que – nota 4 – “a solução da ‘convolação’ do processo tem sido várias vezes aflorada e decidida no contencioso tributário, tendo-se a jurisprudência firmado no sentido da sua admissibilidade desde que o pedido formulado e a causa de pedir invocada se ajustem à forma adequada de processo e a ‘acção judicial’ não esteja caducada”.

Por conseguinte, de acordo com as disposições legais citadas, havendo erro na forma de processo, e sendo esta uma nulidade de conhecimento oficioso e a convolação obrigatória, os autos deveriam ser convolados na forma de processo adequada, mas para que tal pudesse suceder era imperativo que fosse possível o prosseguimento do processo na forma adequada, designadamente que a respectiva petição tivesse sido tempestivamente apresentada para efeitos desta nova forma processual e que o pedido formulado seja também compatível com a nova forma de processo.

Aqui chegados a questão que importa decidir prende-se em saber se é admissível aproveitar a presente ação, com vista a sua convolação em impugnação judicial, cuja resposta não pode deixar de ser negativa face, por um lado, à inadequação do pedido e, por outro, à intempestividade para efeitos dessa nova forma processual, uma vez que a data do limite do pagamento voluntário ocorreu a 23/04/2020 e quando a presente ação foi intentada em 17/09/2020, já há muito se havia esgotado o prazo de 3 meses prescrito no art.º 102.º n.º 1 do CPPT.

Por outro lado, os Oponentes não deixaram de apresentar reclamação graciosa do ato de liquidação de IRS de 2018, encontrando-se, assim, a discutir a visada legalidade em sede própria”.

Vejamos.

Embora não acompanhemos integralmente a sentença na parte em que aí refere “a inadequação do pedido” como elemento obstativo à convolação, a verdade é que o juízo que afastou a convolação para o caso do ato tributário de 2017 afigura-se correto, o que, aliás, os Recorrentes não questionam. Efetivamente, apesar dos Recorrentes entenderem que a oposição à execução é o meio processual adequado, a verdade é que, admitindo que o TCA assim não entenda, os mesmos não questionam a decisão de não convolação quanto à liquidação de IRS de 2017. Isto mesmo resulta sem esforço da leitura das conclusões.

Mas prosseguindo o que vínhamos referindo, dizíamos que não acompanhamos na sua globalidade o discurso do Mmo. Juiz a quo, pois, tal como acima deixámos referido, entendemos que a interpretação a fazer da pretensão formulada nesta oposição é, ainda que impropriamente formulada, dirigida à (in)validade das liquidações, com fundamento na ilegalidade (por dupla tributação), das correções subjacentes ao IRS apurado em sede inspetiva.

Atentemos, então, na questão da tempestividade do meio adequado apenas no que toca ao ato de liquidação de 2018.

Vejamos, lembrando que a jurisprudência reiteradamente tem vindo a sublinhar que para efetuar a convolação necessário é que seja viável o prosseguimento do processo na forma processual adequada, designadamente que a petição inicial tenha sido tempestivamente apresentada para efeitos da nova forma processual – cfr., entre outros, os acórdãos do STA de 12/04/13 e de 14/05/14, proferidos nos recursos nºs 018/13 e 01236/13, respetivamente.

Em nosso entendimento, a sentença não esteve bem ao considerar inviável a sanação da nulidade por erro na forma do processo, imposta pelos artigos 97º, n.º 3, da LGT e 98º, n.º 4, do CPPT, quanto à liquidação de 2018, pois, na data em que a petição inicial foi apresentada (07/09/20), não estava ultrapassado o prazo para deduzir impugnação. De facto, quanto a este ato tributário de 2018, nada obsta à convolação.

Com efeito, diferentemente daquilo que se passou com o ato de liquidação de 2017, quanto ao IRS de 2018 foi, em 28/08/20, apresentada reclamação graciosa, não tendo decorrido o prazo que a AT dispunha para decidir e, consequentemente, para que se pudesse presumir o indeferimento tácito. Tenha-se presente que, nos termos do artigo 102º, nº 1, alínea d) do CPPT, a impugnação judicial pode ser deduzida no prazo de três meses contados a partir da formação da presunção de indeferimento tácito. Portanto, no caso, o facto de estar pendente uma reclamação graciosa relativamente ao ato de liquidação que é impugnado através de oposição à execução fiscal não é obstáculo a que se convole a petição de oposição em petição de impugnação judicial.

Neste sentido, e decidindo um recurso por oposição de acórdãos, já decidiu o STA no sentido de que “tendo o contribuinte usado um meio impróprio para atacar um acto de liquidação (através do processo de oposição), quando deveria ter usado o meio próprio (impugnação judicial) nada impede (antes aconselha) que o processo deva seguir o seu curso através do modo próprio (impugnação judicial), com as consequências, para a reclamação graciosa, que decorreriam se fosse desde logo utilizado o meio próprio (a dita impugnação judicial)” – proc. nº 051/08, de 28/01/09.

De forma mais detalhada, lê-se no acórdão recorrido no recurso por oposição de acórdão identificado no parágrafo anterior, cujo entendimento foi sufragado pelo Pleno da SCT do STA, o seguinte:

“Em caso de erro na forma de processo, coloca-se a questão da convolação da petição, em consonância com o preceituado nos artºs. 97º, 2, n. 3, da LGT e 98º, n. 4, do CPPT.

“A correcção do erro na forma de processo, em que se consubstancia a convolação da petição de oposição em petição de impugnação judicial, aproveitando a peça processual imprópria para um meio processual em que possa ter seguimento, justifica-se por razões de economia processual.

“Assim, reconduzindo o alcance daquelas normas sobre correcção dos erros na forma de processo aos limites traçados pela sua razão de ser, só deverá ser decidida a convolação, quando ela seja necessária para que o interessado possa obter o efeito útil que pretendia obter.

“A reclamação graciosa é uma forma administrativa de impugnar os actos de liquidação, obtendo a sua anulação, com âmbito e efeitos potenciais idênticos aos da impugnação judicial (artºs. 68º, nºs 1 e 2, e 70º do CPPT),

“Trata-se de um meio de impugnação administrativa de uso facultativo, que não prejudica a possibilidade de posterior impugnação judicial posteriormente da decisão que indefira a reclamação ou o subsequente recurso hierárquico (artºs. 76º, n. 1, 102º, n.2, e 106º do CPPT).

“No entanto, não é admitida a pendência simultânea da reclamação graciosa e da impugnação judicial, pois, caso esteja pendente impugnação judicial, é obrigatória a apensação a ela do processo de reclamação graciosa ou recurso hierárquico que tenha sido apresentado ou que venha a ser apresentado depois de deduzida a impugnação judicial, como resulta do preceituado nos nºs 3, 4 e 5 do art. 111º do CPPT.

“Assim, é de concluir que relativamente à impugnação administrativa e impugnação judicial há uma preferência legal absoluta por esta, pelo que, se o contribuinte deduzir impugnação judicial, perderá o direito de ver apreciada reclamação graciosa pela administração tributária, sem prejuízo de que seu objecto ser apreciado no âmbito da impugnação.

“Mas, permite-se e respeita-se a vontade do contribuinte que optou pela via administrativa de impugnação, apresentando reclamação graciosa, se e enquanto não manifestar intenção de impugnar o acto de liquidação por via da impugnação judicial.

“Aplicando este regime no contexto da convolação da petição de oposição em petição de impugnação judicial, é de concluir que, se se decidir efectuar a convolação, passará a estar pendente uma impugnação judicial, o que terá como consequência obrigatória a apensação do processo da reclamação graciosa ou recurso hierárquico ao processo de impugnação judicial, no estado em que se encontrar, passando a globalidade das impugnações (administrativa e judicial) a serem apreciadas pelo Tribunal.

“No entanto, o facto de o contribuinte, concomitantemente com a apresentação de reclamação graciosa ou na pendência dela, ter apresentado uma oposição à execução fiscal em que discute a legalidade da dívida exequenda, significa que pretende uma apreciação judicial da legalidade da liquidação e a manifestação desta pretensão, tem como corolário, à face do regime dos referidos nºs 3, 4 e 5 do art. 111º do CPPT, o abandono da opção pela via administrativa de impugnação, através de reclamação graciosa.

“Sendo assim, o facto de estar pendente uma reclamação graciosa relativa ao mesmo acto de liquidação que é impugnado perante o Tribunal através de uma oposição à execução fiscal não deve ser considerado um obstáculo à convolação da petição de oposição em impugnação judicial.

“O que se deve entender, antes, é que, tendo apresentado impugnação através dessa via da oposição, apesar de ter escolhido um meio impróprio, o contribuinte manifestou pretender apreciação judicial da legalidade da liquidação.

“Esta apreciação judicial não fica prejudicada pela pendência da reclamação graciosa, tendo antes, pelo contrário, como efeito obrigatório, a sua cessação e a apreciação dos fundamentos dessa impugnação administrativa no âmbito do processo judicial adequado.

“Assim, a pendência de reclamação graciosa não é obstáculo a convolação…”.

No mesmo sentido, e a corroborar a nossa linha de raciocínio, veja-se um outro acórdão do STA, de 28/10/09, no processo nº 595/09, no qual se lê, além do mais, que “Por outro lado, este Supremo Tribunal Administrativo já decidiu que, quando é apresentada uma reclamação administrativa de um acto de liquidação, o interessado pode optar por não esperar que seja proferida a respectiva decisão, podendo deduzir impugnação contenciosa do acto administrativamente impugnado, mesmo antes de estar expirado o prazo legal para ser decidida a reclamação, com base no princípio «de que os prazos, não podendo ser excedidos, podem, em regra, ser antecipados», desde que já esteja praticado o acto que é objecto de impugnação. (Neste sentido, pode ver-se o acórdão do STA de 31-5-1995, recurso n.º 18789, AP-DR de 14-8-97, página 1577, em que se escreve:

«Sendo, assim, o objecto da impugnação judicial a liquidação, que não a decisão da reclamação, não se vê razão para que aquela não possa ser interposta antes da decisão desta, tanto mais que, nos termos do dito art. 84.º (do CPCI), se podem ali invocar quaisquer ilegalidades do acto tributário, que não somente as expressas na reclamação».

Esta jurisprudência foi reafirmada no acórdão de 17-12-2008, recurso n.º 734/08, que foi sumariado da seguinte forma:

I – Tendo a reclamação graciosa como objecto um acto de liquidação, o objecto do processo de impugnação judicial de indeferimento tácito de reclamação graciosa embora seja, formalmente, o indeferimento tácito, é, mediatamente, o acto de liquidação que foi objecto da reclamação, e é mesmo este acto de liquidação, nos casos de indeferimento tácito, o único cuja legalidade pode ser apreciada no processo de impugnação judicial.

II – Quando é apresentada uma reclamação graciosa de um acto de liquidação, o interessado pode optar por não esperar que seja proferida a respectiva decisão, podendo optar pela impugnação contenciosa do acto administrativamente impugnado, mesmo antes de estar expirado o prazo legal para ser decidida a reclamação, com base no princípio "de que os prazos, não podendo ser excedidos, podem, em regra, ser antecipados", desde que já esteja praticado o acto que é objecto de impugnação.)

De resto, a caducidade do direito de impugnação de actos justifica-se por razões de segurança e certeza jurídicas, e, por isso, só se deverá declarar quando esses interesses da segurança e certeza estejam em causa. («Cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)» – BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 186. )

Nos casos em que for apresentada reclamação graciosa e se geram as circunstâncias em que é viável a impugnação de indeferimento tácito, o entendimento legislativo subjacente à regra do art. 102.º, n.º 1, alínea d), do CPPT é o de que não são colocadas em causa de forma intolerável a certeza e segurança jurídicas pelo facto de a impugnação do acto de liquidação ser efectuada até que decorram 90 dias sobre a data em que se formar indeferimento tácito.

Por isso, se a impugnação judicial é apresentada antes deste momento em que se justifica a caducidade do direito de impugnação, não se justifica que ela seja declarada”.

Em suma, tanto basta para, quanto à liquidação adicional de IRS de 2018, ordenar a convolação da oposição em impugnação judicial, com as consequências antes assinaladas relativamente à reclamação graciosa.

Temos, pois, que, em parte, procedem as conclusões da alegação de recurso e, em parte também, ou seja, quanto à convolação em impugnação da liquidação de IRS de 2018, será a decisão recorrida revogada, decidindo-se a convolação da oposição à execução fiscal.

No mais, improcedem as conclusões e mantém-se o decidido.


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III - Decisão

Termos em que acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo em:

- conceder parcial provimento ao recurso;

- revogar a sentença na parte em que não ordenou a convolação da oposição em impugnação quanto ao IRS de 2018, ordenando-se, em conformidade, tal convolação;

-no mais, manter a sentença;

- ordenar a baixa dos autos ao TAF de Leiria para prossecução dos autos, na espécie e com o objeto indicados.

Custas por ambas as partes, na proporção do decaimento (atentos os valores em causa correspondentes às liquidações de 2017 e 2018).

Lisboa, 15 de dezembro de 2021


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(Catarina Almeida e Sousa)

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(Isabel Fernandes)

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(Jorge Cortez)