Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1510/10.7BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:12/03/2020
Relator:ANA PINHOL
Descritores:PRINCÍPIO DA PLENITUDE DA ASSISTÊNCIA DOS JUIZES;
GERÊNCIA DE FACTO;
TRÂNSITOS EM JULGADOS CONTRADITÓRIOS.
Sumário: I. A recente alteração ao CPPT, passou a prever expressamente, no artigo 114°, que também no processo tributário passava a vigorar o princípio da plenitude da assistência do juiz, mas apenas para todos processos que dessem entrada em juízo após a entrada em vigor da Lei n.º 118/2019, de 17.09, cfr. artigo 13.°, n.º 1 e alínea a).

II.A contradição de casos julgados a que se refere o artigo 625.º, nº1 do CPC pressupõe a verificação da tríplice identidade estabelecida no artigo 581.º do mesmo diploma legal, já que deve incidir “sobre a mesma pretensão”.

III.É inaplicável ao caso dos autos o regime inscrito no artigo 625.º, nº1 do CPC, desde logo porque não existe total identidade de sujeitos nem de pedido.

IV.Para a responsabilização subsidiária dos administradores, directores e gerentes a lei exige que estes exerçam funções de administração ou gestão - ainda que somente de facto - da sociedade (artigo 24.º, n.º1 LGT).

V.Se não exercerem tais funções, significa que não têm a gerência (administração ou direção) efectiva da sociedade.

VI.E neste caso, não está nas suas mãos controlar a actividade da sociedade, contactar fornecedores, decidir a quem e o que pagar, contratar ou despedir empregados, e de um modo geral delinear o rumo societário.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO

I.RELATÓRIO

M....... recorre da decisão da Meritíssima Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que julgou improcedente a oposição que deduziu à execução fiscal n.º ....... e apensos que, instaurada contra a sociedade «P………, Lda.», para cobrança de dívidas provenientes de retenções na fonte de IRS e IRC, IVA, IRC (exercícios de 2002 a 2004), reverteu contra ela, na qualidade de responsável subsidiária pelas dívidas exequendas.

A recorrente apresentou, para o efeito, alegações nas quais formulou as seguintes conclusões:

«A. a inquirição de testemunhas nos presentes autos teve lugar no dia 29 de Abril de 2016;

B. À referida inquirição de testemunhas presidiu a Mma. Juiz de Direito Dra. Sofia Sousa Claro;

C. verifica-se que a sentença veio a ser proferida cerca de três anos e meio após a realização de julgamento, em 22 de Novembro de 2019, pela Mma. Juiz de Direito Dra. Célia Coutinho;

D. Desta forma foi violado o principio da imediação e da plenitude da assistência do juiz constante do art. 605° do CPC, aplicável ex vi alínea e), do art. 2° do CPPT;

E. Neste mesmo sentido o acórdão do Tribunal Central Administrativo SUL de 14/02/2019, proferido no âmbito do processo n.° 159/09.9BECTB;

F. Prescreve o n.° 1, do art. 605° do CPC que a audiência deverá ser repetida;

G. A preterição do princípio consignado no art. 605° do CPC é geradora de nulidade nos termos do disposto no art. 199° e do n.° 1, do 195° do CPC, dado que, além do mais, a preterição da plenitude da assistência do juiz que elabora a sentença, como ora sucede, influi decisivamente na decisão da causa.

H. Foram olvidadas as alegações apresentadas pela oponente nos presentes autos, em 30 de Maio de 2019, sob o documento SITAF com o n.° 005616610, com o n.° 05616612, ambos de 30 de Maio de 2016 e ainda por correio sob o documento SITAF n.° 005617567 de 1 de Junho de 2016!

I. Os factos sub judice foram já objecto de decisão judicial em processo instaurado por dívidas à Segurança Social;

J. Tal processo correu termos sob o número 550/10.0BELRS, na 1a Unidade Orgânica do Tribunal Tributário de Lisboa tendo como Exequente o IGFSS - Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social e como Oponente a mesma pessoa em questão nos presentes autos.

K. Na referida decisão, proferida sob os mesmos factos ora em causa, o Tribunal supra identificado concluiu que "...resulta que da prova produzida decorreu que a oponente nunca foi gestora de facto da devedora “originária."(itálico nosso)

L. Concluindo que “Julga-se procedente a presente oposição e, em consequência, julgam-se extintos, quanto à oponente, os processos de execução fiscal n.°s ....... e apensos” (itálico nosso);

M. Dispõe o art. 625° do Código de Processo Civil que "Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar."(itálico nosso);

N. No esteio da sentença supra identificada, deverá a opoente ser liminarmente considerada parte ilegítima, por nunca ter sido gestora de facto da devedora originária.

O. O testemunho da D. R....... é claro quando afirmou que a ora oponente tratava da recepção dos clientes, trabalhando, na prática, como Relações Públicas e como gestora da equipa de esteticistas;

P. Resulta da prova gravada que desta testemunha que os fornecimentos eram tratados pelo Dr. R....... que era quem tratava dos vencimentos e recibos de ordenado;

Q. Sendo ainda este mesmo senhor quem tratava de questões relacionadas com pagamentos a fornecedores, e que decidia e ordenava pagamentos;

R. E que também recebia as justificações de faltas das trabalhadoras;

S. Mais tendo esta testemunha afirmado taxativamente ser o dono da empresa o Dr. J.......;

T. E que todas as decisões partiam deste mesmo senhor e não de outra pessoa;

U. Que, conjuntamente, com o Dr. R......., fixava os preços a praticar pela empresa;

V. Tendo ainda referido a testemunha que era o Dr. R....... que decidia que pagamentos é que se faziam no período em que a oponente assinava os cheques;

W. Cumprindo também salientar, para apreciação do real exercício da gerência, que a testemunha afirmou que a relação do Dr. R....... com o Dr. G....... era completamente diferente do tratamento que este tinha para com as esteticistas e com a oponente.

X. E que todas tinham a noção que a oponente, tendo funções diferenciadas delas, era uma sua colega, ao invés do Dr. R....... que era hierarquicamente superior.

Y. A sentença sob recurso ignora totalmente a falta de papel decisório da oponente quanto aos pontos supra expostos, nomeadamente quanto a decisão e pagamentos.

Z. Olvidando também o papel do Sr. R........

AA. A testemunha M....... veio referir que a D. M....... tinha a função de Relações Públicas, cuja função era a angariação de clientes;

BB. Tendo afirmado a testemunha que o Dr. G....... continuava a ser o último decisor de tudo o que se relacionava com a gestão da empresa;

CC. Foi também dito por esta testemunha que as empregadas tinham o Dr. R....... como o decisor de tudo o que era da área financeira;

DD. Sendo que a oponente apenas tratava de questões de recursos humanos, que reportava ao Dr. G......., que por sua vez as decidia;

EE. A testemunha foi clara ao afirmar que o Dr. G....... disse especificamente às funcionárias que a D. M....... era apenas um elo de ligação entre as coisas que necessitavam de ser tratadas e ele próprio;

FF. Tendo ainda afirmado que era o Dr. R....... que procedia a pagamentos;

GG. Sabendo que este, contrariamente à oponente, eventualmente teria alguma autonomia nas funções que exercia;

HH. Tendo a testemunha reforçado que viam a oponente apenas como alguém que era um canal de comunicação com o Dr. G........

II. Ambas as testemunhas foram concordantes quanto ao facto de ter havido uma reunião convocada pelo Dr. G....... em que este comunicou que passava a ser a oponente a assinar cheques por ocasião de uma intervenção cirúrgica a que teria de ser submetido.

JJ. Deste modo, e pelo testemunho prestado junto do tribunal, se prova que não era a opoente que, efectivamente exercia a gerência da sociedade em causa;

KK. Mas sim os já referidos Dr. J....... e o Dr. R....... Santos.

LL. De forma particular cabe aqui dizer que, não sendo a oponente que procedia a pagamentos, e que não decidia sobre os mesmos, nunca a esta se poderão assacar responsabilidades pela falta de pagamento de contribuições, cuja decisão de falta de pagamento cabia aos dois senhores supra identificados.

MM. Tendo o tribunal a quo formado a sua convicção também no testemunho das duas testemunhas supra indicadas, que não ouviu directamente saliente-se uma vez mais, prova-se que a decisão final deverá ser modificada, devendo dar-se como provada a falta de gerência de facto por parte da opoente;

NN. Devendo esta, em consequência, ser absolvida nos presentes autos.

Nestes termos, deverá ser julgada procedente o recurso apresentado e, consequentemente, improceder totalmente a reversão contra a recorrente, assim se fazendo a tão Costumada Justiça!»


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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo emitiu douto parecer no sentido de que o recurso merece provimento.

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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:

- nulidade da sentença por violação dos princípios da plenitude da assistência dos juízes e da imediação;

- violação do artigo 625.º do CPC;

- erro de julgamento de facto e de direito da sentença recorrida ao considerar a Oponente parte ilegítima na execução.


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III. FUNDAMENTAÇÃO

A.DOS FACTOS

Na sentença recorrida fixou-se a matéria de facto e indicou-se a respectiva fundamentação nos seguintes termos:

«A) A 02.05.2000 foi registada na Conservatória do Registo Comercial de Amadora, a constituição da sociedade “P......., Lda.”, nipc ......., tendo como sócio único a sociedade R......., Lda., obrigando a sociedade com a intervenção de um gerente [cf. cópia da certidão permanente a fls. 27 dos autos, e fs. 43 a 46 do PEF em apenso].

B) São sócios da sociedade R......., Lda., a sociedade americana S....... Ltd., e V....... [cf. cópia da certidão permanente a fls. 31 a 33 dos autos].

C) São sócios da R....... II - ......., Lda., a R....... Lda., e H....... [cf. cópia da certidão permanente a fls. 34 a 36 dos autos].

D) A 21.09.2006 foi registada na Conservatória do Registo Comercial de Amadora, a nomeação de M....... como gerente da sociedade “P......., Lda.”, com data de deliberação a 02.08.2006 [cf. cópia da certidão permanente a fls. 29 dos autos].

E) Entre Julho a de 2006 a Dezembro de 2007 a oponente exerceu a função de Directora de Serviços da sociedade R....... - ......., Lda. [cf. cópia dos recibos de vencimentos e declaração de rendimentos a fls. 13 a 26 dos autos].

F) A 24.09.2007 foi pela oponente assinada uma procuração na qualidade de legal representante da sociedade “P......., Lda.”, em sede do recurso jurisdicional tributário n.° 3743/10, que correu termos no Tribunal Central Administrativo Sul [cf. cópia da procuração a fls. 66 dos autos].

G) Com data de 14.11.2007, foi redigido pela oponente uma carta de renúncia ao cargo de gerente na sociedade R......., Lda., recebida a 17.11.2007 [cf. cópia da carta onde foi aposta carimbo da R....... e rubricada a fls. 44 dos autos].

H) Com data de 14.11.2007, foi redigido pela oponente uma carta de renúncia ao cargo de gerente na sociedade P......., Lda., remetida por carta registada com aviso de recepção a 15.11.2007, e recebida a 16.11.2007 [cf. cópia da carta a fls. 46 dos autos, e aviso de recepção a fls. 47 dos autos].

I) A 31.03.2008 foi registada na Conservatória do Registo Comercial de Amadora, a cessação de funções de membro de órgão social de M....... como gerente da sociedade “P......., Lda.”, com data de renúncia a 14.11.2007 [cf. cópia da certidão permanente a fls. 30 dos autos].

J) Contra a “P......., Lda.”, foi instaurado no Serviço de Finanças de Amadora 3, o processo de execução fiscal n.° ......., por dívida de retenções na fonte de IRS, referente exercício de 2006, pela quantia exequenda de €2.491,07, com data limite de pagamento voluntário 20.08.2006 [cf. fls. 1 e 2 do PEF em apenso].

K) Ao processo de execução fiscal identificado no ponto anterior foram apensos os seguintes processos: 

i) ......., por dívida de retenções na fonte de IR, referente exercício de 2006, pela quantia exequenda de €1.735,37, com data limite de pagamento voluntário 20.09.2006;

ii) ......., por dívida de retenções na fonte de IR, referente exercício de 2006, pela quantia exequenda de €1.942,11, com data limite de pagamento voluntário 20.11.2006;

iii) ......., por dívida de retenções na fonte de IR, referente exercício de 2006, pela quantia exequenda de €1.504,22, com data limite de pagamento voluntário 20.12.2006;

iv) ......., por dívida de retenções na fonte de IR, referente exercício de 2006, pela quantia exequenda de €3.219,04, com data limite de pagamento voluntário 20.01.2007;

v) ......., por dívida de retenções na fonte de IR, referente exercício de 2007, pela quantia exequenda de €1.433,07, com data limite de pagamento voluntário 20.02.2007;

vi) ......., por dívida de retenções na fonte de IR, referente exercício de 2007, pela quantia exequenda de €1.209,86, com data limite de pagamento voluntário 20.03.2007;

vii) ......., por dívida de retenções na fonte de IR, referente exercício de 2007, pela quantia exequenda de €1.236,15, com data limite de pagamento voluntário 20.04.2007;

viii) ......., por dívida de retenções na fonte de IR, referente exercício de 2007, pela quantia exequenda de €1.236,15, com data limite de pagamento voluntário 20.05.2007;

ix) ......., por dívida de IVA, referente período 2007/03T, pela quantia exequenda de €1.321,07, com data limite de pagamento voluntário 15.05.2007;

x) ......., por dívida de IRC, referente exercício de 2005, pela quantia exequenda de €11.679,25, com data limite de pagamento voluntário 02.07.2007; 

xi) ......., por dívida de IVA, referente aos períodos 2002/12T, 2003/12T e 2004/12T, pela quantia exequenda de €6.527,72, com data limite de pagamento voluntário 30.06.2007;

xii) ......., por dívida de retenções na fonte de IR, referente exercício de 2007, pela quantia exequenda de €1.236,15, com data limite de pagamento voluntário 20.06.2007;

xiii) ......., por dívida de retenções na fonte de IR, referente exercício de 2007, pela quantia exequenda de €1.590,97, com data limite de pagamento voluntário 20.07.2007;

xiv) ......., por dívida de IVA, referente ao período 2005/12T, pela quantia exequenda de €50.926,27, com data limite de pagamento voluntário 31.08.2007;

xv) ......., por dívida de retenções na fonte de IR, referente exercício de 2007, pela quantia exequenda de €991,64, com data limite de pagamento voluntário 20.08.2007;

xvi) ......., por dívida de IRC, referente exercício de 2007, pela quantia exequenda de €379,27, com data limite de pagamento voluntário 26.09.2007;

xvii) ......., por dívida de retenções na fonte de IR, referente exercício de 2007, pela quantia exequenda de €2.151,37, com data limite de pagamento voluntário 20.05.2007;

xviii) ......., por dívida de retenções na fonte de IR, referente exercício de 2007, pela quantia exequenda de €825,43, com data limite de pagamento voluntário 20.10.2007;

[cf. fls. do PEF em apenso].

L) Por despacho de 04.09.2009 do Chefe de Serviço de Finanças de Amadora 3, foi determinada a preparação do processo de execução fiscal n.° ....... e apensos para reversão, mediante notificação aos responsáveis subsidiários [cf. cópia do despacho a fls. 49 do PEF em apenso].

M) Através do oficio n.° 15103, de 04.09.2009, do Serviço de Finanças de Amadora 3 foi a oponente notificada para o exercício do direito de audição prévia em sede de procedimento de reversão identificado no ponto anterior [cf. cópia do ofício a fls. 54 e 55 do PEF em apenso].

N)Por despacho de 07.11.2009 do Chefe do Serviço de Finanças de Amadora 3, foi determinada a reversão do processo de execução fiscal n.° ....... e apensos contra o oponente, nos termos do artigo 24.°, n.° 1, al. b) da LGT [cf. cópia do despacho a fls. 59 do PEF em apenso].

O) Através de ofício n.° 17567 de 07.11.2009 do Serviço de Finanças de Amadora 3 foi a Oponente citada em 18.11.2009 por reversão em sede do processo de execução fiscal n.° ....... e apensos para pagamento da quantia exequenda de €158.659,69, e acrescido [cf. cópia do ofício a fls. 61 e 62 do PEF em apenso e cópia do aviso de recepção assinado a fls. 69 do PEF em apenso].

P) A 15.12.2009 foi remetida via CTT a petição inicial que deu origem à presente acção [cf. Cópia do registo dos CTT a fls. 74 e 75 dos autos].

Nada mais se provou com interesse para a decisão a proferir.

Assenta a convicção deste Tribunal no exame dos documentos constantes dos presentes autos e no processo instrutor, não impugnados, referidos a propósito de cada alínea do probatório.

Pelo tribunal foram ouvidas as testemunhas R....... e M......., ambas funcionárias/técnicas da P......., Lda. Ambas prestaram depoimentos claros e convincentes, revelando possuir conhecimento directo sobre os factos sobre os quais prestaram depoimento. Ambas trabalharam na sociedade devedora originária, razão pela qual tinha conhecimento dos factos relativos à gestão diária da mesma.

Por ambas as testemunhas foi dito reconhecerem na oponente a chefe de equipa técnica, e que esta responderia perante o sócio Sr. G......., que era quem verdadeiramente determinava os destinos na sociedade. Contudo, foi igualmente dito que por um período de alguns meses o Sr. G....... teve de se ausentar do trabalho diário da sociedade e que anunciou que seria a oponente quem ficaria “à frente” da clínica, passando, por conseguinte, a assinar toda a documentação necessária ao regular funcionamento da sociedade.

Pelas testemunhas foi reconhecido que a oponente assinava documentação referente à sociedade, quer se tratassem de cheques ou de documentos relativos a fornecedores, sendo o departamento financeiro controlado por outra pessoa.»

Alteração oficiosa da matéria de facto

Q) R....... era quem colocava o valor nos cheques, quem decidia quais os pagamentos que seriam efectuados e fixava os preços a praticar pela sociedade devedora originária (Depoimento da testemunha R....... e M.......)


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B. DO DIREITO

A Meritíssima Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra julgou improcedente a oposição que a ora recorrente deduziu, na qualidade de revertida, à execução fiscal nº ....... e apensos, instaurada originariamente contra a sociedade «P......., Lda.» porque considerou que a Fazenda Pública logrou demonstrar a prova da gerência de facto enquanto pressuposto da reversão e, por outra banda a Oponente não logrou afastar a presunção (legal) de que a falta de pagamento das dívidas tributárias exequendas lhe é imputável.

No que respeita ao exercício efectivo da gerência enquanto facto constitutivo de um pressuposto da responsabilidade subsidiária considerou a Meritíssima Juiz «a quo» que ficou demonstrado que a recorrente exerceu a gerência de facto da sociedade devedora originária uma vez que actuou como representante da sociedade, na qualidade de gestora da mesma, vinculando-a perante terceiros, designadamente perante funcionários e perante a Administração Tributária.

No recurso que dirigiu a este Tribunal Central Administrativo a recorrente começa por sustentar que (Conclusões A. a G.) que a sentença é nula, uma vez que não foi proferida pela mesma Juíza que presidiu à produção de prova testemunha, e sendo assim, viola o Princípio da imediação e da plenitude a assistência do Juiz.

Mas, adianta-se desde já, sem razão.

O princípio da plenitude da assistência do juiz é um corolário dos princípios da oralidade e da apreciação da prova: para a formação da livre convicção do julgador, este terá de ser o mesmo ao longo de todos os actos de instrução e discussão da causa realizados em audiência.

A este respeito, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no seu Acórdão proferido em 04.03.2020, no processo n.º 0259/10.5 BELRS, lê-se, o seguinte:

«Sobre a questão da prevalência do princípio da plenitude da assistência do juiz, no âmbito do contencioso tributário, já este Supremo Tribunal se pronunciou nos seus acórdãos datados de 12.12.2012, recurso n.º 01152/11 e mais recentemente no acórdão datado de 03.07.2019, recurso n.º 01522/15.

Em ambos se concluiu que no processo tributário o juiz a quem compete elaborar a sentença é aquele a quem o processo está distribuído e não necessariamente aquele que presidiu às diligências de prova, face à singularidade do próprio processo tributário em confronto com o regime existente no Código Processo Civil.

É certo que a aproximação do regime estabelecido no novo Código de Processo Civil ao regime que desde sempre vigorou no processo tributário, no tocante ao regime da prova e elaboração das sentenças, veio suscitar dúvidas, infundadas, de resto, sobre se também no processo tributário haveria que passar a fazer-se de modo diferente.

Porém, e face, como se disse, à singularidade do processo tributário, a questão colocada já se encontrava resolvida pela doutrina deste Supremo Tribunal e veio mesmo a ser confirmada pelo legislador, na recente alteração ao CPPT, que passou a prever expressamente, no artigo 114°, que também no processo tributário passava a vigorar o princípio da plenitude da assistência do juiz, mas apenas para todos processos que dessem entrada em juízo após a entrada em vigor da Lei n.º 118/2019, de 17.09, cfr. artigo 13°, n.º 1 e alínea a).

Ou seja, não só a doutrina deste Supremo Tribunal sempre foi no sentido de que, no processo judicial tributário, o juiz competente para a elaboração da sentença era aquele a quem o processo se encontrava atribuído, como o próprio legislador apenas pretendeu que se fizesse de modo diferente nos processos entrados em juízo após a entrada em vigor da referida Lei n.º 118/2019.»

Mantendo-se válido este entendimento, com o qual se concorda, por conseguinte, temos de concluir que só na recente alteração ao CPPT, que passou a prever expressamente, no artigo 114°, que também no processo tributário passava a vigorar o princípio da plenitude da assistência do juiz, mas apenas para todos processos que dessem entrada em juízo após a entrada em vigor da Lei n.º 118/2019, de 17.09, cfr. artigo 13°, n.º 1 e alínea a).

Assim, não há motivo para, dar como verificada a violação do princípio da plenitude, e consequentemente não ocorre nenhuma nulidade que possa influir no exame ou na decisão da causa.

Diz ainda a recorrente que «foram olvidadas» as alegações apresentadas nos termos do artigo 120.º do CPPT. Contudo, lidas as conclusões das alegações de recurso, resulta claro, que a recorrente não extrai da alegação produzida qualquer conclusão, pelo que nada há a pronunciar sobre esta concreta alegação.

A segunda questão a decidir está, em saber se tendo a recorrente no âmbito do processo n.º 550/10.0BELRS, que correu termos no Tribunal Tributário de Lisboa sido declarada parte ilegítima na execução fiscal se por força do artigo 625.º do CPC, idêntica decisão deve ser proferida nos presentes autos.

Vejamos, então.

Estabelece o artigo 625.º do CPC:

«1. Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.

2. É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual».

Discorrendo sobre o normativo transcrito, escreve-se no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.05.2020, proferido no processo n.º 1778/14.0TBBCL-D.G1: «[o]correndo casos julgados contraditórios, a lei resolve apelando ao critério da anterioridade: vale a decisão contraditória sobre o mesmo objecto que tenha transitado em primeiro lugar, e ainda que estejam em causa decisões que, dentro do mesmo processo, versem sobre a mesma questão concreta.

Reforça-se, assim, com este artigo, a ideia de que o caso julgado formal previsto no 620º do CPC se refere à vinculação do Tribunal ao julgamento que fez sobre uma questão concreta da relação processual. Compreende-se, por isso, que se afirme que existe «violação do caso julgado formal, previsto no art. 620º, do Código de Processo Civil, quando o Tribunal, no mesmo processo, com as mesmas partes e reportando-se aos mesmos factos, verificados e atendidos já na primeira decisão, volta a decidir a mesma questão, nesse mesmo contexto processual, de forma diversa», outro tanto não sucedendo em hipótese inversa (Ac. da RG, de 17.05.2018, José Flores, Processo n.º 1053/15.2T8GMR-C.G1». (disponível em texto integral em www.dgsi.pt).

No caso é certo que não há total identidade de partes, visto aqui a entidade exequente é a Fazenda Pública, quando no processo n.º 550/10.0BELRS, o exequente é o Instituto da Segurança Social.

É também certo que não há inteira identidade de pedidos, em concreto, na presente oposição é pedida a extinção dos processos de execução fiscal que contra a recorrente reverteram para cobrança coerciva de dívidas de retenções na fonte de IRS e IRC, IVA, IRC referentes aos exercícios de 2002 a 2004, quando no processo n.º 550/10.0BELRS foi pedida a extinção da execução relativamente a dívidas de contribuições à segurança social dos anos de 2006 a 2008.

Não há, assim, qualquer dúvida, que a norma invocada pela recorrente (cfr. artigo 625.º do CPC) não tem aplicabilidade no presente caso porquanto não estamos perante a mesma relação controvertida.

A terceira questão que se coloca de seguida consiste em saber se a recorrente pode ou não ser subsidiariamente responsabilizada pelo pagamento das dívidas exequendas de que é devedora originária a sociedade «P……….., Lda».

Antes, porém, de avançarmos sobre essa questão, importa tecer algumas considerações sobre o regime da responsabilidade subsidiária aplicável.

A primeira, é a de que, o regime aplicável é o vigente à data em que as dívidas foram geradas, pelo que estando em causa dívidas cujos factos constitutivos ocorreram na vigência da Lei Geral Tributária (LGT), é de aplicar o regime previsto no artigo 24.º desta Lei.

Estabelece o referido normativo que: “1- Os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.”

Resulta inequivocamente deste normativo legal que a responsabilidade subsidiária é atribuída em função do exercício do cargo de gerente e reportada ao período do respectivo exercício. Ou seja, a gerência de facto constitui requisito da responsabilidade subsidiária dos gerentes, não bastando, portanto, a mera titularidade do cargo, a gerência nominal ou de direito.

Ora, é sobre a administração tributária, enquanto exequente e como titular do direito de reversão, que recai o ónus de alegar e provar os pressupostos que lhe permitem reverter a execução fiscal contra o gerente da devedora originária, designadamente, os factos integradores do efectivo exercício da gerência de facto [de acordo com a regra geral de quem invoca um direito tem que provar os respectivos factos constitutivos - artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil e artigo 74.º, n.º 1, da LGT]. Com efeito, não há qualquer presunção legal que faça decorrer da qualidade de gerente de direito o efectivo exercício da função e que faça inverter o referido ónus que recai sobre a administração tributária.

No caso dos presentes autos, resulta da certidão do registo comercial que a recorrente foi nomeada gerente da sociedade «P……………, Lda.», entre 02.08.2006 e 14.11.2007, vinculando a sociedade devedora originária com a sua assinatura, encontrando-se, por isso, provada, desde logo, a gerência de direito [cf. al. D) e H) dos factos assentes].

Por isso, o despacho de reversão ao determinar a imputação subsidiária da recorrente ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT, não merece censura, pois que, o regime instituído pelo preceito abrange a responsabilidade dos gerentes que exerceram o cargo à data do pagamento das dívidas, independentemente de o terem exercido ou não no período da constituição da dívida. Ora, como já afirmamos, sendo a revertida gerente da devedora originária e visto que as dívidas se venceram e deviam ter sido paga durante a sua gerência, é aplicável a alínea b) do nº 1 do artigo 24.º da LGT.

Como dissemos atrás, na sentença sob recurso entendeu-se que a recorrente era parte legitima para a execução, com base na seguinte fundamentação: «É certo que a oponente, tal como resulta da certidão do registo comercial, foi nomeada gerente da sociedade “P…………, Lda.”, entre 02.08.2006 e 14.11.2007, vinculando a sociedade devedora originária com a sua assinatura, encontrando-se, por isso, provada, desde logo, a administração de direito [cf. al. D) e H) dos factos assentes].

Não obstante, alega que nunca exerceu as funções de gerência de facto na medida em que apenas acedeu ao pedido de J......., verdadeiro dono das sociedades que detinham o grupo de clínicas e do qual a devedora originária fazia parte, para assinar documentação.

Contudo, por forma a desempenhar as funções relativas a esse pedido de ajuda, certo é que a oponente passou a assinar documentação, nomeadamente cheques e outros documentos necessários ao exercício da actividade da sociedade, tal como, por exemplo, a passar procuração na qualidade de responsável legal da devedora originária, para efeitos de constituição de mandatário em processo judicial [cf. al. G) dos factos assentes].

Os factos acabados de descrever, na sua maioria resultantes de documentos, são demonstrativos de que a ora oponente actuou como representante da sociedade, na qualidade de gestora da mesma, vinculando-a perante terceiros, designadamente perante funcionários e perante a Administração Fiscal.».

Nas suas alegações, a recorrente sustenta que, não está provada a sua gerência efectiva na devedora originária e, por essa via, deve ser reconhecida a sua ilegitimidade na execução.

Repetimos aqui, que provada que seja a gerência de direito, continua a caber à Fazenda Pública prova de que à nomeação correspondeu um exercício efectivo da função, posto que a lei se não basta, para responsabilizar o gerente, com a mera designação, desacompanhada de qualquer concretização.

Este efectivo exercício pode o juiz inferi-lo do conjunto da prova, usando as regras da experiência, fazendo juízos de probabilidade.

Mas não pode retirá-lo, mecanicamente, do facto de o revertido ter sido designado gerente, na falta de presunção legal.

Revertendo ao caso ajuizado, ouvida a gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas é inevitável concluir que que embora a recorrente assinasse cheques, era o Senhor R....... quem colocava o valor nos mesmos, decidia quais os pagamentos que seriam efectuados e fixava os preços a praticar pela sociedade [cfr. al.Q) do probatório].

Neste contexto, fica pelo menos uma dúvida substancial e fundada sobre o efectivo exercício da gerência da sociedade executada por parte da recorrente, uma vez que não obstante a devedora originária se obrigar unicamente pela sua assinatura e ter assinado cheques e a procuração forense a que alude a al G) do probatório não tinha o exercício efectivo da gerência da sociedade porque não tinha qualquer «poder» de decisão em relação aos negócios (em sentido amplo) da devedora originária.

Concluímos, pois, que, competindo à recorrida o ónus probatório do exercício efectivo da administração por parte da recorrente, a tal título, como responsável subsidiário, e sendo a presunção desse mesmo exercício, decorrente da respectiva qualidade jurídica, meramente de facto ou judicial, então forçoso se impõe concluir que a referida dúvida tem desfavorecer a recorrida, havendo assim que conceder provimento ao presente recurso, revogar a sentença recorrida e julgar procedente a oposição à execução fiscal.

IV. CONCLUSÕES

I.A recente alteração ao CPPT, passou a prever expressamente, no artigo 114°, que também no processo tributário passava a vigorar o princípio da plenitude da assistência do juiz, mas apenas para todos processos que dessem entrada em juízo após a entrada em vigor da Lei n.º 118/2019, de 17.09, cfr. artigo 13.°, n.º 1 e alínea a).

II.A contradição de casos julgados a que se refere o artigo 625.º, nº1 do CPC pressupõe a verificação da tríplice identidade estabelecida no artigo 581.º do mesmo diploma legal, já que deve incidir “sobre a mesma pretensão”.

III.É inaplicável ao caso dos autos o regime inscrito no artigo 625.º, nº1 do CPC, desde logo porque não existe total identidade de sujeitos nem de pedido.

IV.Para a responsabilização subsidiária dos administradores, directores e gerentes a lei exige que estes exerçam funções de administração ou gestão - ainda que somente de facto - da sociedade (artigo 24.º, n.º1 LGT).

V.Se não exercerem tais funções, significa que não têm a gerência (administração ou direção) efectiva da sociedade.

VI.E neste caso, não está nas suas mãos controlar a actividade da sociedade, contactar fornecedores, decidir a quem e o que pagar, contratar ou despedir empregados, e de um modo geral delinear o rumo societário.

V.DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes que integram a 1ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e, julgar procedente a presente oposição e extinta a execução fiscal relativamente à Oponente.

Custas a cargo da recorrida.


Lisboa, 3 de dezembro de 2020



[Ana Pinhol]

[Isabel Fernandes]

[Jorge Cortês]