Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:53/10.3BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:05/27/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IRS
DECLARAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO
RECLAMAÇÃO GRACIOSA
PEDIDO DE REVISÃO
LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
TEMPESTIVIDADE DO MEIO GRACIOSO
Sumário:
I. A liquidação de IRS pode ser corrigida, respeitado que seja o respetivo prazo de caducidade.

II. No caso de ser apresentada declaração de rendimentos fora do prazo legal, depois de emitida a liquidação oficiosa de IRS e dentro do prazo para a apresentação da reclamação graciosa, a AT deve desencadear procedimento com vista a aferir da necessidade de corrigir a liquidação oficiosa emitida.

III. Se em requerimento apresentado dentro do prazo mencionado em I. são referidos vícios da liquidação oficiosa, por desconsiderar elementos na posse da própria AT, reúnem-se as condições para o mesmo ser tratado como pedido de revisão do ato tributário.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A….. (doravante Recorrente ou Impugnante) veio apresentar recurso da sentença proferida a 11.10.2016, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Almada, na qual foi julgada improcedente a impugnação por si apresentada, que teve por objeto o indeferimento do recurso hierárquico da rejeição liminar por extemporaneidade da reclamação graciosa que versou sobre a liquidação oficiosa de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), relativa ao ano de 2006.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, o Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

1. O Tribunal a quo pronunciou-se, erradamente, salvo o devido respeito, rejeitando a causa de pedir e pedido da Impugnação nos presentes autos, o que de todo não se pode aceitar, nem se entendem os doutos fundamentos da sentença de que se recorre.

2. É manifesto que o Tribunal a quo revela que não teve presente os factores circunstanciais relacionados com o caso concreto, apenas tomando por base a prova documental, ancorando em especial no invocado na douta Contestação da Fazenda Pública.

3. É manifesto de que o Tribunal a quo não tomou em conta o conteúdo do ponto 6 dos dados como provados, onde é manifesto que o Recorrente entregou Declaração de Substituição face à Liquidação que lhe foi notificada.

4. A questão em concreto prende-se com os rendimentos referentes ao exercício de 2006, sendo que já anteriormente o Tribunal se havia pronunciado noutro processo, sobre o rendimentos do ano de 2005, onde a douta decisão é bem diferente, tomando aí em conta a entrega da Declaração de Substituição.

5. O Recorrente respeita o princípio da livre apreciação da prova da parte do Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, mas ainda assim entende que há limites marcados pelas normas legais, sendo manifesto que a douta decisão, de que se recorre, não manifesta estar de acordo.

6. Não se pode aceitar a douta conclusão do Tribunal a quo quando faz improceder a impugnação, e assim nada se corrigir quanto à liquidação notificada, e que deu origem à entrega por parte do Recorrente de Declaração de Substituição, na data de 11 de Junho de 2008.

7. Nos presentes autos a AT considera, nos documentos que juntou, que o Recorrente procedeu à entrega da dita Declaração de Substituição, enquanto que o Tribunal a quo apenas se prende com o pormenor de que o Recorrente colocou uma “x” no quadrado quarto “1ª Declaração do ano” (ver ponto 6 dos factos dados como provados).

8. Ora desde logo deveria tal ponto 6, dado como provado, e face à documentação existente, merecer o acréscimo de conteúdo, aí se concluindo que tal correspondia a Declaração de Substituição, devendo por isso assim se corrigir.

9. Sendo que o Tribunal a quo teria a obrigação de conhecer de que existindo uma liquidação notificada, como foi, então qualquer alteração, ou pedido de correcção, só o podia ser por entrega de Declaração de Substituição, coisa que a AT até reconhece na sua documentação e decisões que juntou aos autos.

10. Ora o Tribunal a quo nada diz sobre essa entrega da Declaração de Substituição, nem sobre a data em que foi efectuada, a saber 11 de Junho de 2008, dento do prazo previsto nos artigos 45 e 46 da LGT.

11. E também não toma em conta o Tribunal a quo, o que se entende que devia fazer, que a Declaração de Substituição teria de dar lugar à sua convolação em Reclamação Graciosa, obrigando a que a AT conhecesse do mérito.

12. Ora a AT ao receber a Declaração de Substituição, não procedeu a qualquer convolação, a que estava obrigada, e não conheceu do mérito, nem decidiu em conformidade com isso, e então utilizou um procedimento posterior, face à sua inacção ilegal, para demonstrar que o Recorrente apresentou uma Reclamação extemporânea, o que não podia assim considerar, pois estava obrigada a convolar a mencionada Declaração de Substituição na data da sua entrega, a 11 de Junho de 2008, e pronunciar-se sobre o mérito.

13. Tal foi alegado na PI, mas o Tribunal a quo também não quis dar atenção a esse facto vital, e então face aos prazos invocados pela AT, e aceites, conclui estar-se perante um caso decidido e resolvido face à extemporaneidade da Reclamação Graciosa.

14. Ora nada mais errado, salvo o devido respeito, pois se é verdade de que o limite de pagamento da liquidação que foi notificada ao Recorrente é datada de 5 de Maio de 2008, e se ele procedeu à apresentação de uma Reclamação Graciosa em 2 de Outubro de 2008, esta não se pode ter como válida e relevante, pois antes disso, em 11 de Junho de 2008, a Declaração de Substituição entregue então, a AT tinha obrigação de a convolar em Reclamação Graciosa, essa sim relevante no caso concreto, e mais do que isso, também com o cumprimento legal da AT conhecer e se pronunciar quanto ao mérito.

15. Mas nada disso aconteceu, razão porque o Recorrente interpôs em tempo a impugnação nos presentes autos, sendo evidente que o Tribunal a quo nunca poderia concluir, no caso concreto, como o faz, com fundamento em prazos que aqui não relevam, de que se estaria perante um caso decidido ou resolvido, fazendo improceder a Impugnação, em vez de mandar que fosse corrigida a liquidação notificada, tendo em conta a Declaração de Substituição que foi entregue, como mencionado, pelas razões de facto e direito mencionadas nas presentes Alegações.

16. As normas tributárias que contemplam o facto tributário são as relativas à incidência real, as quais definem os seus elementos objectivos, o que não foi tomado em conta, primeiro pela AT, e agora pelo Tribunal a quo.

17. A AT, e agora o Tribunal a quo, não tomaram em conta que quando da liquidação oficiosa não foram tomados em conta todos os elementos, no caso concreto possíveis rendimentos do cônjuge mulher, bem como o reconhecimento do estado civil do Recorrente, elementos que a AT tinha obrigação de conhecer desde o início.

18. O Tribunal a quo ateve-se a questões formais, que não tinham que ver com o caso concreto, pois fica claro, afinal à semelhança do exercício de 2005, que perante a apresentação da Declaração de Substituição na data de 11 de Junho de 2008, esta teria que ser convolada em Reclamação Graciosa, conhecendo do mérito, o que nunca aconteceu.

19. Ora cabia ao Tribunal a quo corrigir essa situação nos presentes autos, como aliás o entende o douto Acórdão do TCAS de 3 de Dezembro de 2015 (processo 07421/14), e que foi transcrito nas presentes Alegações, tendo aqui por reproduzido.

20. E a verdade é que o artigo 59º do C.P.P.T., no seu n.º 2, estabelece que a regra de que o apuramento da matéria tributável far-se-á com base nas declarações dos contribuintes.

21. No caso concreto perante a Declaração de Substituição, convolada que fosse em Reclamação Graciosa, que não foi, mas ao sê-lo, devia ter conhecido do mérito, e assim procedido à liquidação correctiva do IRS referente ao exercício de 2006, com base no que devia ser a decisão da Reclamação convolada.

22. A correcção de um acto tributário pode ser, tendo em conta a revisão do acto tributário no prazo e condições previstos no artº 78 da L.G.T., devendo ser interpretada no sentido de a liquidação poder ser corrigida antes de completado o prazo de caducidade nos termos dos já mencionados artºs 78 e 79 do L.G.T., e objecto de consideração da sábia Jurisprudência, conforme Acórdãos mencionados nas presentes Alegações.

23. Pelo que nos presentes autos, só pode ser revogada a douta sentença de que se recorre, substituindo-se por outra que mande proceder à liquidação correctiva do IRS referente ao exercício de 2006, tendo em conta a Declaração de Substituição entregue em 11 de Junho de 2008, e o que tal facto fazia impender sobre a AT em termos do conhecimento do mérito resultante dessa entrega e sua convolação.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deverá proceder o presente Recurso, revogando-se a douta sentença nos seus precisos termos, e substituída por outra que mande proceder à liquidação correctiva do IRS referente ao exercício de 2006, com todas as inerentes consequências legais,

Assim se fazendo a boa e sã justiça”.

A Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) não apresentou contra-alegações.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:
a) Verifica-se erro de julgamento, na medida em que, considerando o momento da apresentação da declaração referida em 6) do probatório, o Recorrente reagiu atempadamente, quer por via da convolação em reclamação graciosa quer atento o procedimento de revisão previsto no art.º 78.º da Lei Geral Tributária (LGT)?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1) Em 25 de janeiro de 2006, a Direção de Finanças de Setúbal enviou o ofício n.º ….. para o endereço “….. Charneca da Caparica” e dirigida a A….., nos termos do qual levou ao conhecimento deste que deveria “no prazo de 30 dias a contar do 3.º dia posterior ao registo desta carta, apresentar via internet, ou no Serviço de Finanças do seu domicílio fiscal (…) a(s) declaração(ões) modelo 3, referida no n.º 1 do art.º 57.º do Código do IRS”, respeitante aos anos de 2004, 2005 e 2006, sob cominação de o apuramento dos rendimentos líquidos ser efetuada de acordo com os elementos que os serviços dispunham, ofício que foi devolvido pelos serviços de distribuição postal, com base em “endereço incorreto ou insuficiente” (fls. 26 e 27 do processo administrativo (de ora avante pa)).

2) A Direção de Finanças de Setúbal enviou o ofício n.º ….. para A….., que remeteu para a “…..Charneca da Caparica”, e que continha o projeto de correções do relatório de inspeção, tendo o ofício sido devolvido com base no facto “Endereço Insuficiente” (fls. 35 e 36 do pa).

3) Em 5 de março de 2008, os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Setúbal elaboraram relatório de inspeção tributária, no qual se determinou a correção aritmética da matéria tributável de A….., nos termos e com os fundamentos de fls. 11 a 21 do pa, que aqui se consideram reproduzidos.

4) A Direção de Finanças de Setúbal fixou os rendimentos líquidos dos anos de 2004, 2005 e 2006, para efeitos do IRS, nos termos constantes de fls. 14 a 19 dos autos, documentos que se consideram reproduzidos.

5) Em 26 de março de 2008, foi efetuada a liquidação n.º ….., no valor de € 8.775,69 e a liquidação de juros compensatórios n.º ….., no valor de € 275,05, relativo ao ano de 2006, cujo prazo limite de pagamento ocorreu em 5 de maio de 2008, o que foi levado ao conhecimento de A….., nos seguintes termos:

(fls. 38 e 128 do pa).

6) Em 11 de junho de 2008, A….. apresentou a declaração modelo 3 de IRS, indicando no campo n.º 4, relativa à natureza da declaração, que se tratava da “1.ª declaração do ano”, tudo nos termos do documento constante de fls. 42 a 47 verso do pa, cujo teor se considera integralmente reproduzido.

7) Em 2 de outubro de 2008, A….. apresentou reclamação graciosa, por requerimento dirigido ao Diretor de Finanças de Setúbal, pelo qual expôs que “teve conhecimento pela notificação da penhora de vencimento pelo serviço de finanças, da liquidação de IRS referente ao ano de 2006”, pedindo-lhe que determinasse a “emissão de uma nova nota de liquidação”, com base nos dados constantes na declaração de rendimentos aludida em 6), para (fl. 40 e 41 do pa).

8) Em 11 de novembro de 2008, o Chefe de Divisão, da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de Setúbal, decidiu indeferir liminarmente a reclamação graciosa, por extemporaneidade e “tendo em conta que os vícios invocados se reporta(vam), exclusivamente, à anulabilidade do acto de liquidação”, decisão que foi levada ao seu conhecimento em 12 de dezembro de 2008, pelo ofício n.º ….. (fls, 123 do pa).

9) Em 31 de dezembro de 2008, A….. apresentou recurso hierárquico dirigido ao Ministro das Finanças, o qual foi indeferido em 15 de setembro de 2009, por decisão da Diretora de Serviços do IRS, a qual foi levada ao seu conhecimento pelo ofício n.º ….., em 20 de outubro de 2009 (fls. 172 a 174, fl. 179 e fls. 187 a 188 verso do pa).

10) A petição inicial do presente processo de impugnação judicial foi apresentada em 19 de janeiro de 2010 (fl. 1 dos autos)”.

II.B. Relativamente aos factos não provados, refere-se na sentença recorrida:

“Inexistem factos não provados da instrução da causa”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A convicção do tribunal formou-se com base no teor dos documentos constantes do processo administrativo apenso, os quais se encontram especificamente referidos”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera o Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, na medida em que, considerando o momento da apresentação da declaração referida em 6) do probatório, reagiu atempadamente da liquidação oficiosa emitida, quer por via da convolação em reclamação graciosa quer atento o procedimento de revisão previsto no art.º 78.º da LGT.

Vejamos então.

Nos termos do art.º 57.º do Código do IRS (CIRS), cabe ao sujeito passivo a apresentação da declaração periódica de rendimentos.

Sendo apresentada declaração, a liquidação de IRS é efetuada com base na mesma [cfr. art.º 76.º, n.º 1, al. a), do CIRS].

Não sendo apresentada a declaração e não se tratando de situação de exclusão da obrigação de apresentação da declaração (cfr. art.º 58.º do CIRS), a liquidação é oficiosamente emitida, nos termos do mesmo n.º 1 do art.º 76.º do CIRS, com base em elementos de que a administração tributária (AT) disponha.

Atento o disposto no referido art.º 76.º, nos seus n.ºs 3 e 4 (redação vigente à data da emissão da liquidação):

“3 - Quando não seja apresentada declaração, o titular dos rendimentos é notificado por carta registada para cumprir a obrigação em falta no prazo de 30 dias, findo o qual a liquidação é efetuada, não se atendendo ao disposto no artigo 70.º e sendo apenas efetuadas as deduções previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 79.º e no n.º 3 do artigo 97.º

4 - Em todos os casos previstos no n.º 1, a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso, dentro dos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da lei geral tributária”.

Portanto, este n.º 4, que correspondia ao n.º 2 do art.º 76.º do CIRS na redação anterior à que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, consagra expressamente a possibilidade de haver correções à liquidação, desde que respeitado o prazo de caducidade.

Como se menciona no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.12.2018 (Processo: 0220/11.2BEVIS 0286/18), “o disposto no artº 76º nº 4 do CIRS, vigente à data dos factos, que alguma razão de ser, na harmonia do sistema legislativo, há-de ter (…) [, a] nosso ver possibilita/impõe à Administração Tributária a correcção da liquidação oficiosa por si elaborada quando seja suprida pelo sujeito passivo a sua falta declarativa dentro dos prazos ali previstos”.

Refira-se, ainda, que a circunstância de ter sido emitida liquidação oficiosa, na sequência de omissão declarativa, não implica que essa mesma liquidação não possa ser posta em causa, graciosa ou contenciosamente [cfr., a título meramente ilustrativo, os acórdãos deste TCAS de 16.12.2020 (Processo: 837/09.5BELRS), de 04.06.2020 (Processo: Processo: 2072/07.8BELSB), de 20.02.2020 (Processo: 751/11.4BELRS), de 25.06.2019 (Processo: 506/14.4BEBJA) e de 10.11.2016 (Processo: 06790/13)].

Aliás, a este propósito quer a doutrina[1] quer a jurisprudência[2] qualificam mesmo esta liquidação oficiosa como de natureza provisória, justamente por assentar em presunções, que poderão vir a ser ilididas.

In casu, como não é controvertido, o Recorrente não apresentou tempestivamente, entre outras, a declaração modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2006.

Nessa sequência, a AT procedeu à respetiva liquidação oficiosa, como legalmente previsto, nos termos já explanados supra.

Nesse seguimento, foram fixados os rendimentos, nos termos mencionados em 4) do probatório, e emitida, entre outras, a liquidação referida em 5), o que não é posto em causa (cfr. conclusão 9). Refira-se que o Tribunal a quo, no seu discurso fundamentador, menciona que o Recorrente foi notificado da liquidação a 04.04.2008, remetendo para o que consta da decisão proferida sobre a matéria de facto em 5. [que, por seu turno, remete para elementos do processo administrativo (PA) onde tal data é mencionada], o que não foi posto em causa no presente recurso.

Ficou ainda provado que, a 11.06.2008, o Recorrente apresentou declaração modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2006, na qual indicou tratar-se de primeira declaração do ano [cfr. facto 6)].

Daqui salienta-se que, perante esta apresentação de uma declaração de rendimentos, ainda que fora do prazo legal, a AT deveria ter logo desencadeado um procedimento com vista a aferir da necessidade de corrigir a liquidação oficiosa emitida [cfr., a título meramente ilustrativo, os acórdãos deste TCAS de 20.02.2020 (Processo: 751/11.4BELRS), de 25.06.2019 (Processo: 506/14.4BEBJA)], o que não foi feito.

Entretanto, a 02.10.2008, o Recorrente apresentou reclamação graciosa da já referida liquidação oficiosa, na qual remeteu expressamente para tudo o que constava da declaração referida em 6).

Perante este contexto factual, quer a AT quer o Tribunal a quo consideraram que a reclamação graciosa era intempestiva. No tocante à declaração mencionada em 6) do probatório, o Tribunal a quo não a valorou na sua decisão. Por seu turno, a AT, em sede de administrativa, defendeu não se tratar de situação subsumível ao art.º 59.º do CPPT.

Vejamos então.

Desde já se refira, antecipadamente, que a circunstância de a AT, no que respeita ao ano de 2005, ter procedido de forma distinta, convolando a declaração apresentada em reclamação graciosa, não é de molde a que se entenda, sem mais, assistir razão ao Recorrente.

No entanto, adiantamos, considera-se que, perante o quadro legal vigente, lhe assiste efetivamente razão.

Desde logo, como já se referiu supra, o art.º 76.º, n.º 4, do CIRS prevê especificamente, para todos os casos previstos no n.º 1, sem exceção, a possibilidade de a liquidação poder ser corrigida, respeitado que seja o respetivo prazo de caducidade.

Portanto, não temos dúvida de que, apresentada a declaração mencionada em 6) do probatório, a AT tinha o poder-dever de a analisar e agir em conformidade, corrigindo, se fosse caso disso, a liquidação oficiosa emitida.

Trata-se, aliás, da interpretação que mais consentânea com o princípio da capacidade contributiva, princípio basilar do nosso ordenamento jurídico-tributário. Com efeito, dispõe o art.º 104.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que “… [o] imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”, ou seja, prevê o princípio da capacidade contributiva, que determina que a tributação seja efetuada em função dos rendimentos efetivos.

Assim, perante a apresentação daquela declaração modelo 3 de IRS, ainda que depois de emitida a liquidação oficiosa, a AT tinha o dever de promover o andamento do procedimento dali adveniente. O que não fez.

A AT apenas reagiu, na sequência da apresentação do requerimento designado de “reclamação graciosa” [o qual, sublinhe-se, remete para a declaração mencionada em 6) e que, no fundo, se limita a reiterar o que de tal declaração decorre]. E reagiu considerando que a reclamação graciosa era intempestiva, por não se tratar de questão enquadrável no art.º 59.º do CPPT.

Ora, atentando no art.º 59.º do CPPT, na redação então vigente, consideramos que o mesmo contempla situações como a dos autos.

Assim, nos termos da mencionada disposição legal, na redação à época:

“3 - Em caso de erro de facto ou de direito nas declarações dos contribuintes, estas podem ser substituídas:

a) Seja qual for a situação da declaração a substituir, se ainda decorrer o prazo legal da respetiva entrega;

b) Sem prejuízo da responsabilidade contraordenacional que ao caso couber, quando desta declaração resultar imposto superior ou reembolso inferior ao anteriormente apurado, nos seguintes prazos:

I) Nos 30 dias seguintes ao termo do prazo legal, seja qual for a situação da declaração a substituir;

II) Até ao termo do prazo legal de reclamação graciosa ou impugnação judicial do ato de liquidação, para a correção de erros ou omissões imputáveis aos sujeitos passivos de que resulte imposto de montante inferior ao liquidado com base na declaração apresentada;

III) Até 60 dias antes do termo do prazo de caducidade, para a correção de erros imputáveis aos sujeitos passivos de que resulte imposto superior ao anteriormente liquidado.

(…)

5 - Nos casos em que os erros ou omissões a corrigir decorram de divergência entre o contribuinte e o serviço na qualificação de atos, factos ou documentos invocados em declaração de substituição apresentada no prazo legal para reclamação graciosa, com relevância para a liquidação do imposto ou de fundada dúvida sobre a existência dos referidos atos, factos ou documentos, o chefe de finanças deve convolar a declaração de substituição em reclamação graciosa da liquidação, notificando da decisão o sujeito passivo.

6 - Da apresentação das declarações de substituição não pode resultar a ampliação dos prazos de reclamação graciosa, impugnação judicial ou revisão do ato tributário, que seriam aplicáveis caso não tivessem sido apresentadas”.

A apresentação de uma declaração de substituição, por parte do sujeito passivo, pode ocorrer, naturalmente, quando o mesmo tenha apresentado uma declaração inicial e pretenda corrigi-la.

No entanto, consideramos que o disposto no art.º 59.º do CPPT, concretamente no n.º 5, abrange situações como a dos autos, em que a declaração apresentada pelo contribuinte configura-se como uma declaração de substituição da oficiosamente efetuada pela AT.

Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.12.2018 (Processo: 0220/11.2BEVIS 0286/18), “… a contribuinte enquanto sujeito passivo de IRS que incorreu em omissão declarativa do tributo, podia, após a liquidação oficiosa e respeitados os prazos legais, apresentar, como apresentou, a declaração modelo 3 de IRS, que se configura como que ‘uma declaração de substituição da liquidação oficiosa’”.

Assim, entendemos que a situação se subsume no âmbito do n.º 5 do mencionado art.º 59.º, porquanto trata-se de uma situação a corrigir que decorre da divergência entre o contribuinte e a AT. Ou seja, entendemos que, apresentada a declaração mencionada em 6), a mesma deveria logo ter sido convolada em reclamação graciosa, sendo a data da apresentação da mencionada declaração a relevante para efeitos de aferição da tempestividade.

Veja-se que, aliás, esta interpretação encontra-se expressa na atuação da AT em diversos momentos. Assim, para além da situação do próprio Recorrente, relativa ao ano anterior, na qual a declaração apresentada foi convolada em reclamação graciosa e apreciada nesse pressuposto, são vários os exemplos que encontramos na nossa jurisprudência onde, justamente, tal convolação ocorreu [v., v.g., a matéria de facto subjacente aos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.12.2018 (Processo: 0220/11.2BEVIS 0286/18) e do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28.01.2021 (Processo: 3145/12.0BELRS) e de 16.01.2014 (Processo: 07170/13)].

Logo, considerando este nosso entendimento, para aferição da tempestividade da reclamação graciosa deveria ter sido considerada a data da apresentação da declaração referida em 6), o que redunda na sua apresentação dentro do prazo de que dispunha para o efeito, assistindo, pois, razão ao Recorrente, atento o prazo previsto no art.º 70.º do CPPT.

Acrescente-se que sempre seria tempestiva a atuação do Recorrente, considerando o disposto no art.º 78.º da LGT.

Nos termos desta disposição legal, na redação então vigente:

“1 - A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”.

Como se refere no já citado Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.12.2018 (Processo: 0220/11.2BEVIS 0286/18),

“[E]sta liquidação oficiosa de I.R.S. é passível de poder ser corrigida, também em virtude da iniciativa do contribuinte consistente em suprir a sua falta declarativa, ao abrigo do disposto no artº.76, nº.4, do C.I.R.S., desde que o seja dentro dos referidos prazos e nos termos previstos nos artºs.45º e 46º, da Lei Geral Tributária, (preceitos que se referem a prazos de caducidade do direito a liquidação e seu modo de contagem) (…)

A correcção de um acto tributário pode ser obtida, nos termos do artº.79, nº.1, da L.G.T., através de revogação, ratificação, reforma, conversão ou rectificação. Igualmente se deve levar em consideração o prazo e condições de revisão do acto tributário previstos no artº.78, da L.G.T, pelo que, a norma constante do artº.76, nº.4, do C.I.R.S., deve ser interpretada no sentido de a liquidação poder ser corrigida, por iniciativa do contribuinte, antes de completado o prazo de caducidade, nos termos dos ditos artºs.78 e 79, da L.G.T”.

Ora, in casu, um dos fundamentos que o Recorrente alega é a não consideração dos rendimentos auferidos pela sua mulher e a não consideração da sua situação de casado, elementos que, segundo refere, eram do conhecimento da AT.

Neste contexto, se a AT entendia que a reclamação graciosa era intempestiva, da leitura conjugada do n.º 4 do art.º 78.º do CIRS com o art.º 79.º, n.º 1, da LGT, aquela tinha o poder dever de a convolar para pedido de revisão do ato tributário, dado reunirem-se todos pressupostos para o efeito [cfr. neste sentido o Acórdão deste TCAS de 10.11.2016 (Processo: 06790/13)].

Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17.01.2018 (Processo: 01377/14):

“[É] legalmente possível e viável convolar esse procedimento de reclamação em procedimento de revisão previsto no art.º 78º da LGT, segundo o qual a liquidação pode ser objecto de revisão oficiosa no prazo de quatro anos (se o tributo tiver sido pago, como é o caso) com fundamento em erro imputável aos serviços.

Com efeito, constitui jurisprudência pacífica e reiterada desta Secção do STA que a Administração Tributária tem o poder-dever, à luz do disposto no art.º 52º do CPPT, de proceder à convolação do procedimento de reclamação em procedimento de revisão do acto de liquidação sempre que na data em que aquela é apresentada ainda não se encontrava esgotado o prazo dentro do qual a revisão oficiosa podia ser pedida e ordenada. E a tal dever não obsta a intempestividade da reclamação, pois que, para o efeito, apenas é relevante a tempestividade do meio procedimental adequado - cfr. acórdãos de 6/10/2005, no proc. nº 0653/05, de 7/10/2009, nos procs. nº 0474/09, 0475/09 e 0476/09, de 02/11/2011, no proc. nº 0329/11, e de 14/12/2011, no proc. nº 0366/11.

No mesmo sentido se pronuncia JORGE LOPES DE SOUSA ("Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado", 6ª ed. vol. I, p. 463.), salientando que em face do princípio da colaboração recíproca da administração tributária e dos contribuintes, de onde emerge, como corolário mínimo, que estes não percam direitos substantivos por meras razões formais, «será de efectuar a convolação quando o contribuinte utiliza um meio procedimental que, em princípio, é adequado, mas a utilização ocorre fora do prazo legal e há outro meio procedimental - com prazo mais longo, que ainda possa ser utilizado para, mesmo de forma menos intensa, dar alguma satisfação à pretensão do contribuinte. Embora numa situação deste tipo não se esteja perante um absoluto «erro na forma de procedimento», parece que, por mera interpretação declarativa (e, seguramente, se pode enquadrar a situação neste conceito, já que se está perante uma situação em que o meio escolhido não é, no momento em que foi utilizado, o que o contribuinte deveria utilizar, havendo, consequentemente um erro na forma de procedimento que deveria ter sido utilizada. Assim, por exemplo, se o contribuinte apresenta contra um acto de liquidação uma reclamação graciosa fora do prazo legal de 120 dias previsto no art.º 70º, nº 1, do CPPT, mas ainda está em tempo para pedir a revisão oficiosa prevista no art.º 78º da LGT, em vez de uma decisão de indeferimento da reclamação graciosa deverá ser, depois de constatada a intempestividade, efectuada a convolação do requerimento em que é pedido a reclamação graciosa em pedido de revisão oficiosa»”.

Como tal, assiste razão ao Recorrente, padecendo o ato impugnado de vício, conducente à sua anulação. Veja-se, no entanto, que estamos perante uma reação a um indeferimento de recurso hierárquico que confirmou uma decisão de reclamação graciosa na qual se concluiu pela extemporaneidade da mesma, ou seja, que nunca se pronunciou sobre o mérito da pretensão. Assim, sendo certo que assiste razão ao Recorrente, tal circunstância redunda na anulação do ato imediato (indeferimento do recurso hierárquico relativo a rejeição limitar de reclamação graciosa por extemporaneidade) e na do ato mediato (rejeição limitar de reclamação graciosa por extemporaneidade), implicando, pois, que a AT se deva pronunciar sobre o mérito da pretensão formulada [cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17.01.2018 (Processo: 01377/14)].

Vencida a Recorrida é a mesma responsável pelas custas em ambas as instâncias (art.º 527.º do CPC), sem prejuízo de não haver lugar ao pagamento de taxa de justiça na presente instância, por não ter contra-alegado (art.º 7.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais).

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, julgando-se procedente a impugnação e, em consequência, anulando-se o ato impugnado;
b) Custas pela Recorrida em ambas as instâncias;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 27 de maio de 2021


[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores António Patkoczy e Mário Rebelo]

Tânia Meireles da Cunha


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[1] Cfr. Manuel Faustino, «A tributação do rendimento das pessoas singulares», Lições de Fiscalidade, vol. I, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 210.
[2] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.12.2018 (Processo: 0220/11.2BEVIS 0286/18), Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28.01.2021 (Processo: 3145/12.0BELRS).