Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12302/15
Secção:
Data do Acordão:07/31/2015
Relator:CATARINA JARMELA
Descritores:SEGURANÇA PRIVADA - DL 34/2013 – ANTECEDENTES CRIMINAIS – ARTIGO 30º N.º 4 DA CONSTITUIÇÃO
Sumário:
I – O cancelamento (revogação) do cartão profissional de que era titular o recorrido equivale à perda de “direitos civis, profissionais ou políticos” e, como tal, inclui-se no âmbito da proibição do art. 30º n.º 4, da CRP, pois a proibição de perda automática de direitos profissionais constante deste normativo legal não se restringe à perda de direitos no contexto de uma determinada carreira profissional, mas abrange também, além do mais, os direitos de escolha e de exercício de profissão – in casu estamos perante uma interdição de exercício de uma actividade profissional, a de segurança privada -, assegurados pelo art. 47º, da CRP.
II – Da norma do art. 22º n.ºs 1, al. d), e 2, conjugada com o art. 27º n.ºs 2 e 3, da Lei 34/2013, de 16/5, decorre que o cancelamento do cartão profissional para o exercício da actividade de segurança privada é a única decisão possível para a entidade administrativa no caso de estar documentada a condenação por crime doloso e o respectivo trânsito em julgado, não tendo a entidade administrativa qualquer margem para a mediação de um juízo sobre a idoneidade daquela condenação para fundamentar tal cancelamento, isto é, o cancelamento do cartão profissional decorre automaticamente/mecanicamente da condenação por crime doloso, transitada em julgado.
III - Não é possível antecipar uma ligação abstractamente forte entre o crime praticado e a actividade de segurança privada, pois a norma do art. 22º n.ºs 1, al. d), e 2, conjugada com o art. 27º n.ºs 2 e 3, da Lei 34/2013, de 16/5, ao prever o cancelamento do cartão profissional para o exercício da actividade de segurança privada como um efeito decorrente da condenação por qualquer crime doloso, não revela, só por si, a demonstração ou comprovação da falta dos requisitos necessários para o exercício da actividade de segurança privada, ou seja, no caso em apreço falta a conexão, em abstracto, entre todo e qualquer crime doloso e a actividade de segurança privada, o que conduz à violação do princípio da proporcionalidade.
IV - A inconstitucionalidade da norma do art. 22º n.ºs 1, al. d), e 2, conjugada com o art. 27º n.ºs 2 e 3, da Lei 34/2013, de 16/5, por violação do art. 30º n.º 4, da CRP, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, é patente, pois para se apurar a sua procedência não é necessária uma laboriosa indagação em termos de direito, pois é notório o paralelo da situação em análise com a apreciada maxime no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 25/2011, o que é suficiente para se concluir que se verifica o critério de concessão da providência previsto na al. a) do n.º 1 do art. 120º, do CPTA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
*

I - RELATÓRIO

Cláudio …………………… intentou no TAF de Loulé o presente processo cautelar contra o Ministério da Administração Interna, indicando como contra-interessada …………………….., Lda., e no qual formulou os seguintes pedidos:
a) Convolação da presente providência em processo principal, com a consequente antecipação da apreciação da causa de pedir e dos pedidos formulados no âmbito do articulado principal junto;
Caso assim não se entenda,
b) Suspensão da eficácia do acto/decisão administrativa exarada pela entidade requerida em 30/09/2014, notificada no dia 03/10/2014, que determinou o cancelamento do cartão profissional de vigilante, n.º 82144, das especialidades de vigilante/segurança e assistente de recinto desportivo, atribuído ao requerente, permitindo-lhe a prossecução da sua actividade profissional enquanto não existe decisão principal.

Por decisão de 3 de Abril de 2015 do referido tribunal foi:
- indeferido o pedido de antecipação do juízo sobre a causa principal;
- julgado procedente o presente processo cautelar e, consequentemente, decretada a suspensão da eficácia do acto administrativo consubstanciado no despacho do Director-Nacional Adjunto da Polícia de Segurança Pública, datado de 26 de Setembro de 2014, que determinou o “cancelamento” do cartão profissional do requerente para o exercício da actividade de segurança privada.

Inconformada, a entidade requerida interpôs recurso jurisdicional para este TCA Sul, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:

1. A Lei n.° 34/2013 fixou, no seu artigo 22°, na parte que agora interessa, um regime mais apertado de incompatibilidades para o exercício da atividade de segurança privada, relativamente ao regime anterior, estabelecendo que o pessoal de vigilância deve preencher, permanente e cumulativamente com os demais, o requisito da alínea d) do seu n.° 1, em conjugação com o n.° 2, ou seja, "não ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso previsto no Código Penal e demais legislação penal".
2. Ao alargar o âmbito do requisito da inexistência de condenações para o exercício da actividade de segurança privada, de forma permanente, a todos os crimes dolosos (deixando apenas de fora os crimes por negligência), sem qualquer salvaguarda superveniente, a nova lei não permite a nenhum condenado por crime doloso, o exercício daquela actividade, não sendo relevante nem possível sequer a qualificação da conduta criminosa pela Administração.
3. Releva-se na lei ordinária a função subsidiária e complementar da actividade das forças e serviços de segurança pública do Estado, requerendo-se que a segurança privada seja exercida, permanentemente, por pessoas de cadastro criminal sempre limpo, sobrepondo-se, aqui, o interesse coletivo aos interesses particulares de quem a pretenda exercer.
4. Ao contrário do que refere a douta sentença recorrida, as normas contidas na alínea d) do n.º 1 do artigo 22°, por referência do seu n.º 2, da Lei n.º 34/2013, na interpretação e aplicação que dela fez o despacho sub iudicio, não são inconstitucionais, por violação do n.º 4 do artigo 30° da Constituição, em conjugação com a violação de princípio da proporcionalidade.
5. O objetivo e o sentido das normas da alínea d) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 22° da Lei n.º 34/2013, estão claramente focados na circunstância de estarmos em presença de requisitos e incompatibilidades para o exercício da atividade de segurança privada, e não de efeitos automáticos da condenação que se possam simplesmente reconduzir a uma situação de perda de direitos profissionais.
6. A Administração não goza do poder de valoração da conduta criminosa e é a lei que, segundo um critério apriorístico, equaciona, ela própria, a "idoneidade" do candidato ao exercício da atividade de segurança privada (no caso de acesso) ou da continuação da actividade exercício (em caso de renovação), excluindo "a contrario" do catálogo dos crimes, unicamente, os crimes praticados por negligência e, aqui está, concludentemente, a única faculdade deixada à Administração para balizar a proibição do excesso.
7. Como não pode delimitar (a Administração), de entre os crimes dolosos, quais os crimes que, por esta ou aquela razão, se possam ou não considerar como obstando à violação do princípio da proporcionalidade, nem apreciar e valorar as condutas pelas quais houve condenação, porque a lei não o permite.
8. Segundo a letra e o espírito da lei actual, estamos em presença de requisitos legais para o exercício de uma actividade que requer, como tantas outras, condições especiais para o seu exercício, sem que isso possa consubstanciar o efeito automático de uma condenação eventualmente violadora do princípio constitucional da proporcionalidade, na vertente da proibição do excesso, e sem que tal possa ser qualificado como restrição de direitos profissionais objetivos ou subjetivos, em abstrato ou em concreto, em função dos bens jurídicos a proteger.
9. Por outro lado, o legislador pretendeu também aplicar o novo regime a todas as renovações dos cartões profissionais, estabelecendo que a renovação depende da verificação, à data do pedido, dos requisitos exigidos para a sua concessão (art.º 52º), o que afasta, salvo melhor opinião, a violação do disposto no artigo 18°, n.º 3 da Constituição, ao contrário do que se decidiu na douta sentença recorrida.
10. A este propósito, deve entender-se que a nova lei impõe que as renovações dependem da circunstância do pessoal de vigilância preencher todos os requisitos do seu artigo 22°, nomeadamente, nunca ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de qualquer crime doloso, independentemente do tempo da prática do crime, uma vez que impõe a verificação permanente de todos os requisitos legais e não apenas da ausência de condenação por crime doloso.
11. Também aqui, não se trata da aplicação retroactiva de uma norma restritiva de um direito profissional, mas da aplicação de normas impositivas de verificação de requisitos, a todo o tempo e, em concreto, no momento da verificação da ausência dos mesmos, o que, no caso dos autos, se verificou na data do pedido de renovação do cartão profissional.
12. A esta luz, não poderia o tribunal ter decidido, como decidiu, pela não aplicação das normas da alínea d), do n.º 1 e n.º 2 do artigo 22° da Lei n.º 34/2013, no sentido que resulta do despacho sub iudicio, por violação do disposto no artigo 30°, n.º 4 da Constituição (e do seu art.º 18º, n.º 3), sendo certo, como se julga, não ser evidente a procedência da pretensão formulada no processo principal, incorrendo, consequentemente, a sentença em erro de julgamento na apreciação do critério plasmado no artigo 120°, n.º 1, al. a) do CPTA que, em consequência, violou.
13. Assim, e tratando-se uma providência conservatória, ao não se verificar o critério da evidência previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 120° do CPTA, não deveria a mesma ter sido decretada, motivo por que deve o presente recurso ser julgado procedente, com revogação da sentença recorrida e indeferimento da providência requerida,

Como se nos afigura de justiça!”.


O recorrido, notificado, não apresentou contra-alegações.

A DMMP junto deste TCA Sul emitiu parecer, no qual sustenta que o recurso não merece provimento, posicionamento esse que, objecto de contraditório, não mereceu qualquer resposta.

II - FUNDAMENTAÇÃO
Na decisão recorrida foram dados como sumariamente provados os seguintes factos:
a) O autor exerce, desde Agosto de 2008, a profissão de segurança privado, sob as ordens, direcção e fiscalização da "…………………………., Lda.", tendo-lhe sido atribuído, para o efeito, o cartão profissional n.º 82144, nas especialidades de vigilante e de assistente de recinto desportivo;
b) Em 24 de Maio de 2013, foi apresentado, junto dos serviços da Direcção Nacional da Polícia de Segurança Pública, um pedido de renovação do cartão profissional do autor, nas especialidades de vigilante/segurança;
c) O referido pedido foi instruído com um certificado de registo criminal do requerente, nas quais constavam averbadas as seguintes decisões condenatórias:
i. Sentença do 2.° Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Loulé, no processo n.º 1319/08.8GTABF, transitada em julgado, pela qual o autor foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3°, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n°2/98, de 3 de Janeiro, praticado em 29 de Dezembro de 2008, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, perfazendo a quantia total de € 600,00, a qual foi declarada extinta em 24 de Março de 2009;
ii. Sentença do 2.° Juízo do Tribunal judicial de Olhão, no processo n.º 285/10.4GTABF, transitada em julgado, pela qual o autor foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3°, n.°s 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, praticado em 21 de Abril de 2010, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, perfazendo a quantia total de € 800,00, a qual foi declarada extinta em 7 de Fevereiro de 2011;
iii. Sentença do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Olhão, no processo n.º 303/09.9GTABF, transitada em julgado, pela qual o autor foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3°, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, praticado em 30 de Julho de 2009, na pena de 3 meses e 15 dias de prisão, suspensa por 1 ano, a qual foi declarada extinta em 24 de Maio de 2012;
(cf. fls. 9 e 14 do processo administrativo),
d) Em 26 de Setembro de 2014, após proposta emitida pelos serviços no procedimento, foi proferido despacho pelo Director-Nacional Adjunto da Polícia de Segurança Pública, que "cancelou" o referido cartão profissional, nos seguintes termos:
«CANCELO o cartão profissional para o exercício da actividade de segurança privada, de CLÁUDIO ………………………… […] com o n.º 82144 para as especialidades de Vigilante/Segurança e Assistente de Recinto Desportivo, uma vez que, da análise do processo, designadamente do Certificado de Registo criminal resulta conhecimento de três condenações pela prática de 3 (três) crimes de Condução sem Habilitação legal, p.p. pelo art.º 3.°, n.ºs 1 e 2 do Dec. Lei 2/98 de 3 de janeiro, não se encontrando por esse motivo reunido o requisito previsto na alínea d) do n.º 1 do Artigo 22.° (Requisitos e incompatibilidades para o exercício), por referência do n.º 2 do mesmo artigo, da Lei n.º 34/2013, de 16 de Maio.»
(cf. fls. 83 do processo administrativo);
e) Na sequência desta decisão, e com fundamento nela, a entidade empregadora determinou a suspensão do contrato de trabalho celebrado com o requerente, por o mesmo não ser titular do cartão profissional necessário para o exercício das funções de segurança privado para que foi contratado (cf. documento n.º 1 junto com a petição inicial do processo principal);
f) As decisões condenatórias referidas na alínea c) não constam, actualmente, do certificado do registo criminal do requerente, quando requerido para fins de emprego ou de exercício de actividade (e designadamente de renovação do cartão profissional de vigilante/segurança), por entretanto haver sido ordenada a sua não transcrição e o seu cancelamento provisório (cf. documentos n.ºs 6 a 12 juntos com a petição inicial do processo principal e documento de fls. 175, registado no SITAF sob o nº 118523).

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Presente a factualidade antecedente, cumpre entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.

O recorrente defende que a decisão ora sindicada é ilegal por violação da al. a) do n.º 1 do art. 120º, do CPTA, por entender que não se encontra preenchido o requisito previsto nesse normativo legal para o decretamento da providência solicitada (cfr. alegações de recurso e respectivas conclusões, supra transcritas).

Passemos, então, à análise do acerto (ou não) da decisão judicial recorrida que julgou procedente o pedido cautelar, com base no entendimento de que é evidente a procedência da pretensão anulatória da acção principal, por ser seguro que o despacho suspendendo se fundamenta em normas inconstitucionais, cuja aplicação não pode deixar de ser recusada na acção principal, ou seja, com base no entendimento de que se verifica a situação excepcional prevista no art. 120º n.º 1, al. a), do CPTA.

Estatui este art. 120º n.º 1 o seguinte:

Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as providências cautelares são adoptadas:

a) Quando seja evidente a procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal, designadamente por estar em causa a impugnação de acto manifestamente ilegal, de acto de aplicação de norma já anteriormente anulada ou de acto idêntico a outro já anteriormente anulado ou declarado nulo ou inexistente;

(…)”.

Do disposto neste art. 120º n.º 1, al. a), infere-se que constitui condição de procedência das providências cautelares a evidência da procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal.

Conforme explicam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, págs. 602-603, “(…) a alínea a) do n.º 1, pese embora a sua colocação sistemática, não impõe requisitos de cujo preenchimento dependa, em circunstâncias normais, a concessão das providências, mas, pelo contrário, visa permitir que, em situações excepcionais, as providências sejam atribuídas sem necessidade da verificação desses requisitos. O n.º 1, alínea a), contém, assim, uma norma derrogatória, para situações excepcionais, do regime de que depende a concessão das providências em circunstâncias de normalidade. (…)
É, pois, necessária, nesta matéria, uma grande contenção da parte do juiz: como é evidente, se essa contenção faltar e o juiz despender esforços desproporcionados para esgotar, em sede cautelar, a apreciação das questões atinentes ao fundo da causa, ele tenderá a ser conduzido com maior (e indesejável) frequência à aplicação do n.º 1, alínea a). Na verdade, na generalidade dos casos, a solução a dar a qualquer questão jurídica torna-se evidente após uma análise exaustiva. Os próprios exemplos que o legislador indica no preceito sugerem, porém, que este preceito deve ser objecto de uma aplicação restritiva: a evidência a que o preceito se refere deve ser palmar, sem necessidade de quaisquer indagações” (sombreados e sublinhados nossos).

Os tribunais superiores têm-se pronunciando reiteradamente neste mesmo sentido – cfr., entre outros, Acs. do STA de 14.6.2007, proc. n.º 420/07, 24.9.2009, proc. n.º 821/09 [(…) só muito raramente estes meios cautelares mostram de imediato o destino das acções principais. As hipóteses extremas de, logo no processo de suspensão de eficácia, se ver que o acto é ilegal ou legal são invulgares, sendo os casos resolvidos, na sua maioria, pela análise dos interesses em presença e pela sua recíproca ponderação. Com efeito, a ilegalidade do acto só é «evidente» se algum dos vícios arguidos contra o acto for manifesto, indubitável, claro num primeiro olhar. «Evidente» é o que se capta e constata «de visu», sem a mediação necessária de um discurso argumentativo cuja disposição metódica permitirá o conhecimento, «in fine», do que se desconhecia «in initio». Porque as evidências não se demonstram, nunca é evidente a ilegalidade do acto fundada em vícios cuja apreciação implique demonstrações, ou seja, raciocínios complexos através dos quais se transite de um inicial estado de dúvida para a certeza de que o vício afinal existe.], 18.3.2010, proc. n.º 105/10, e 20.3.2014, proc. n.º 148/14 [“I - As situações a enquadrar no art. 120º, nº 1, alínea a), do CPTA, designadamente no conceito de acto “manifestamente ilegal” não devem oferecer quaisquer dúvidas quanto a essa ilegalidade que, assim, deve poder ser facilmente detectada, face aos elementos constantes do processo e pela simples leitura e interpretação elementar da lei aplicável, sem necessidade de outras averiguações ou ponderações], Acs. deste TCA Sul de 9.2.2006, proc. n.º 1349/06 [IV – O que é evidente não necessita de ser explicado nem indagado: sempre que haja necessidade de explicar a bondade da pretensão do requerente, indagando factos ou o direito, não se pode ter a respectiva procedência por evidente, para efeitos do disposto na al. a), do n.º 1 do artº 120º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos], 14.6.2007, proc. n.º 2604/07, 30.11.2011, proc. n.º 8023/11 [“II - Para efeitos do disposto na al. a) do nº 1 do art. 120º do C.P.T.A., a ilegalidade de um acto só é evidente quando for manifesta, indubitável, ou “constatável a olho nu”, sem a mediação de qualquer discurso argumentativo”], e 24.10.2013, proc. n.º 10438/13 [“2. A qualidade de cognição exigida pelo artº 120º nº 1 a) CPTA para o fumus boni iuris traduzida na expressão “evidente procedência da pretensão formulada” mede-se pelo carácter incontroverso (que não admita dúvida), patente (posto que visível sem mais indagações) e irrefragável (irrecusável, incontestável) do presumível conteúdo favorável da sentença de mérito da causa principal, derivado da cognição sumária das circunstâncias de facto e consequente juízo subsuntivo na lei aplicável, efectuados no processo cautelar”], e Acs. do TCA Norte de 11.12.2008, proc. n.º 01038/08.5 BEBRG [II – A evidência prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 120º do CPTA (…), não é uma evidência resultante de demonstração, antes constatável a olho nu, de tal forma que o mero juízo célere e sumário do julgador cautelar possa levar a uma certeza com evidentes repercussões no julgamento da causa principal;], e 25.1.2013, proc. n.º 2253/10.7BEBRG-A [“I. O juízo de «evidência» inserto na al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA é tributário duma ideia de clareza e de caráter inequívoco para um qualquer jurista, realidade essa de que são nítido exemplo as três situações enunciadas naquela alínea (…) II. Tratam-se, pois, de situações em que o triunfo da pretensão deduzida ou a deduzir na ação administrativa principal se revela ou afirma no caso como patente, notório, visível e com grande grau de previsibilidade de vir a ocorrer, mercê da semelhança ou paralelo com os julgados invalidatórios anteriores e, bem assim, da natureza ostensiva e grosseira da ilegalidade cometida. III. Estamos, nessa medida, em presença de critério excecional que abrange apenas as situações em que é mais do que provável que a pretensão do requerente venha a ser julgada procedente (…)”].

Do exposto resulta que só se pode considerar que a procedência da acção principal é evidente se tal conclusão se revela, no caso, como patente, notória, visível e com forte ou intenso grau de previsibilidade de vir a ocorrer, mercê da semelhança com os julgados invalidatórios anteriores e, bem assim, da natureza ostensiva/grosseira da ilegalidade cometida, o que implica uma apreciação sumária e célere dos normativos aplicáveis, isto é, o carácter manifesto da ilegalidade tem de ser detectável pela simples leitura e interpretação elementar desses normativos, não existindo margem de discussão/controvérsia – o que não se compadece com aturados trabalhos de análise e subsunção jurídica, nem pode derivar duma análise aprofundada de várias posições doutrinais ou jurisprudenciais -, ou seja, a procedência da acção principal terá de ser constatada e não demonstrada, pois se tiver de ser demonstrada já não será evidente.

A sentença recorrida considerou seguro que o despacho suspendendo se fundamenta em normas inconstitucionais, cuja aplicação não pode deixar de ser recusada na acção principal, com base na seguinte argumentação:

«Em causa está, como vimos, uma decisão administrativa proferida pelo Director-Nacional Adjunto da Polícia de Segurança Pública, que, no âmbito de um procedimento que havia sido iniciado para renovação do cartão profissional de segurança privado de que o requerente era titular, determinou o "cancelamento" do mesmo (indeferindo simultânea e implicitamente, como se interpreta, o pedido para a sua renovação).
Esta decisão, qualificável, em termos jurídicos, como uma revogação do título que habilitava o requerente a exercer a profissão de segurança privado, fundamentou-se, como resulta do seu teor, no artigo 22.° da Lei n.º 34/2013, de 16 de Maio (diploma que aprovou o regime do exercício da actividade de segurança privada), designadamente no n.º 1, alínea d), conjugado com o n.º 2 deste preceito.
Prescreve o referido artigo 22°, regulando os requisitos e incompatibilidades para o exercício da actividade de segurança privada, estabelece, no seu n°2, que o pessoal de vigilância (em que se integra o requerente) deve preencher, permanente e cumulativamente com os demais, o requisito previsto na indicada alínea d) do seu n.º l, ou seja, «[N]ão ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso previsto no Código Penal e demais legislação penal».
Considerou, pois, o autor do acto que o requerente, por ter sido condenado pela prática de crimes de condução sem habilitação legal, por sentenças então averbadas no certificado do registo criminal do requerente, não preenchia o requisito estabelecido na indicada norma para o exercício da profissão de segurança privado.
Bastou-se o órgão decisor, para tanto, com uma subsunção automática da situação do requerente na dita previsão normativa (ou seja, com o facto de o mesmo ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso), sem proceder a qualquer juízo de apreciação quanto ao desvalor da conduta em causa, ou à valoração da mesma para efeitos de apurar a idoneidade do requerente (ou falta dela) para o desempenho das funções em causa.
Suscita o autor, porém, a inconstitucionalidade da norma contida no dito artigo 22°, n.º 1, alínea d) e n.º 2, por violação do artigo 30°, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
Cumpre apreciar.
Prescreve o artigo 30°, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, de forma imperativa, que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
Debruçando-se sobre este preceito, escreveu o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 25/2011, cuja fundamentação aqui seguiremos de perto, remetendo nesta parte para o Acórdão n.º 368/08, que esta norma constitucional «visa salvaguardar que qualquer sanção penalizadora da conduta punida, independentemente da sua natureza e medida, resulte da concreta apreciação, pela instância decisória, do desvalor dessa conduta, por confronto com os padrões normativos aplicáveis. O que se proíbe é a automática imposição de uma sanção, como efeito mecanicisticamente associado à pena ou por esta produzido, sem a mediação de qualquer juízo, em concreto, de ponderação e valoração da sua justificação e adequação, tendo em conta o contexto do caso. E a proibição é necessária para garantia de efectivação de princípios fundamentais de política criminal (...)».
Sustentou ainda, no Acórdão n.º 284/89, que «(...) com tal preceito constitucional pretendeu-se proibir que, em resultado de quaisquer condenações penais, se produzissem automaticamente, pura e simplesmente ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos e pretendeu-se que assim fosse porque, em qualquer caso, essa produção de efeitos, meramente mecanicista, não atenderia afinal aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, princípios esses de todo inafastáveis de uma lei fundamental como a Constituição da República Portuguesa que tem por referente imediato a dignidade da pessoa humana».
E afirmou, no Acórdão n.º 562/2003, que a proibição dos efeitos necessários das "penas" estende-se, por identidade de razão, aos efeitos automáticos ligados à "condenação" pela prática de certos crimes (v., neste sentido, Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2007, 505).
Ora, para aferir da constitucionalidade das normas ora em discussão, e designadamente do artigo 22°, n.º 1, alínea d) e n.º 2, da Lei n.º 34/2013, importa, em primeiro lugar, saber se a revogação ou perda ("cancelamento" ou não renovação) do cartão profissional, do qual depende o exercício das funções inerentes à profissão de segurança privado, se integra no conceito de perda de um "direito profissional" abrangido pela proibição do referido artigo 30°, n.º 4 da Constituição.
E sendo esse o caso, interessará, em seguida, averiguar se essa revogação, cancelamento ou não renovação do cartão profissional constitui um "efeito automático" da condenação pela prática de um crime doloso, que, por não ter fundamento material razoável (designadamente, uma conexão suficientemente relevante entre o crime praticado e a actividade em causa), nos leve a concluir pela inconstitucionalidade da norma aplicada pela Administração para fundamentar o acto administrativo suspendendo.
Vejamos, pois.
Nos termos do artigo 17° da Lei n.º 34/2013, a profissão de segurança privado é uma profissão regulamentada, sujeita à obtenção de título profissional e ao cumprimento dos requisitos previstos no artigo 22° do referido diploma.
Esta profissão, que abrange as funções de vigilante ora em discussão, própria de uma actividade que tem uma função subsidiária e complementar da actividade as forças e serviços de segurança pública do Estado (artigo 1º, n.º 2), só pode ser exercida mediante a titularidade de um cartão profissional, que, nos termos do artigo 27°, n.º 1, da dita Lei n.º 34/2013, é emitido pela Direcção Nacional da PSP, e que é válido pelo prazo de cinco anos e susceptível de renovação por iguais períodos de tempo.
De acordo com o disposto no artigo 27°, n.º 2 e n.º 3, a emissão e a renovação deste cartão profissional estão obrigatoriamente sujeitas à verificação dos requisitos e incompatibilidades enunciados no artigo 22°, que se mantêm de forma permanente e que são cumulativos entre si.
Um destes requisitos é, precisamente, o indicado alínea d) do n.º 1 do artigo 22°, aplicável ao pessoal de vigilância por força do seu n.º 2: «[N]ão ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso previsto no Código Penal e demais legislação penal».
Ora, esta norma, ao impedir o interessado, por causa de condenação pela prática de um qualquer crime doloso, de obter ou renovar o cartão profissional - e ao impor como efeito "automático" dela a sua revogação ou cancelamento, como o interpretou a entidade requerida -, consubstancia, nos termos em que vem formulado, uma interdição (permanente) de exercício da actividade profissional de segurança privado.
Com efeito, desta norma resulta uma "impossibilidade" legal, que se mantém permanentemente e por tempo indeterminado (sem previsão de uma eventual irrelevância de condenações passadas), de exercer as funções em causa, por falta de um dos requisitos necessários.
Note-se que, como se lê no acórdão n.º 784/2014 do Tribunal Constitucional, o qual versa expressamente sobre a actividade de segurança privada, "o facto de em causa estar uma actividade profissional remunerada cujo exercício está dependente da atribuição de uma licença não obsta a que à mesma se aplique a proibição de perda automática de direitos profissionais, visto que esta não se restringe à perda de direitos no contexto de uma determinada carreira profissional, mas abrange, também, os direitos de escolha e de exercício da profissão, assegurados pelo artigo 47° da Constituição."
Nessa conformidade, deve concluir-se, à luz da jurisprudência constitucional a que nos vimos referindo, e designadamente da fundamentação dos acórdãos n.º 25/2011 e n.º 784/2014, que o citado artigo 22°, n.º 1, alínea d), e n.º 2, implica a perda da liberdade de escolher e de exercer uma profissão ou actividade (neste caso, a da segurança privada) consagrada no artigo 47º, n.º 1, da Constituição, e nessa medida, a perda de um "direito profissional" abrangido pela proibição do n.º 4 do artigo 30.° da Constituição.
Sendo assim, importa agora então saber se esta revogação ou cancelamento do cartão profissional constitui ou não um "efeito automático" da condenação pela prática de um qualquer crime doloso, e sendo o caso, se o mesmo tem ou não um fundamento material razoável.
O Tribunal Constitucional, no já referido acórdão n.º 25/2011, com fundamentação que é inteiramente aplicável ao caso sub iudice, julgou inconstitucional, por violação do referido artigo 30.°, n.° 4, da Constituição, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, as normas dos artigos 9°, n.º 1, alínea e), e 25°, do "Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno", quando interpretadas no sentido de que a condenação pela prática de um crime doloso determina automaticamente a revogação da licença para o exercício da actividade profissional de guarda-nocturno.
Lê-se, no referido acórdão, em termos que, reportados à actividade de guarda-nocturno, se podem transpor integralmente para a actividade de segurança privada, o seguinte:
«(...)
As normas questionadas encaram a sentença condenatória (transitada em julgado) como um facto e associam-lhe imperativamente a sanção de revogação da licença para o exercício da actividade profissional de guarda-nocturno. A revogação da licença é um efeito imposto por norma regulamentar, que não deixa qualquer margem de apreciação à entidade administrativa para poder avaliar as circunstâncias do caso concreto e emitir um juízo sobre a idoneidade daquela condenação para fundamentar tal revogação.
Como bem salienta (...), o automatismo da revogação da licença não é contrariado pelo facto de a decisão de revogação ser proferida no âmbito de um procedimento administrativo. Pois, apesar de nesse procedimento estarem asseguradas, formalmente, as garantias de defesa do administrado (em cumprimento do disposto no artigo 100.° do Código de Procedimento Administrativo, como aconteceu no caso vertente), o certo é que a decisão a proferir se limitará (como aqui se limitou) a constatar o facto - a condenação por crime doloso - e a determinar a consequente revogação da licença. Uma vez documentada a condenação por crime doloso e o respectivo trânsito em julgado, nada mais resta à entidade administrativa a não ser determinar a revogação da licença em cumprimento das citadas normas regulamentares. Assim, a interpretação normativa questionada associa, de forma imediata, a verificação do "facto" à respectiva consequência e impõe uma única decisão possível, não deixando margem para a mediação de um juízo da autoridade administrativa sobre a idoneidade daquela condenação para fundamentar a revogação da licença atribuída. (...)».
Note-se que o artigo 30°, n° 4, da Constituição não exclui prontamente previsões sancionatórias rígidas, nem uma automaticidade do efeito produzido por uma decisão condenatória, desde que tais previsões surjam como "razoavelmente proporcionadas" e exista uma conexão suficientemente relevante entre o crime praticado e a actividade em causa, atendendo à natureza e à função que lhe está associada.
Porém, e ao contrário do que parece sustentar a entidade requerida, a situação dos presentes autos - como, aliás, aquela a que se referia o aresto acima transcrito - é diversa daqueloutra que foi apreciada no Acórdão n.º 784/2014: neste último, o Tribunal Constitucional foi chamado a apreciar a constitucionalidade da norma do artigo 8°, n.º 1, alínea d), conjugada com o n.º 3 do artigo 10°, do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro, cuja redacção [«Não ter sido condenado por sentença transitada em julgado pela prática de crime doloso contra a vida, a integridade física ou a reserva da vida privada, contra o património, de falsificação, contra a segurança das telecomunicações, contra a ordem e tranquilidade públicas, de resistência ou desobediência à autoridade pública, de detenção ilegal de armas, ou por qualquer outro crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, sem prejuízo de reabilitação judicial»] em nada se confunde com a do artigo 22°, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 34/2014, que ora vimos apreciando.
Diversamente do decido nesse caso, em que se atendeu especificamente ao crime por cuja prática o recorrente havia sido condenado (crime contra a integridade física) e à previsão legal da possibilidade de "reabilitação judicial", não há aqui, como não a havia no caso do Acórdão n.º 25/2011, uma conexão necessariamente relevante entre o crime praticado e a actividade sob licenciamento ou sujeita à obtenção de um título profissional.
A previsão legal da norma ora em apreço, ao abranger em abstracto todo e qualquer crime doloso, qualquer que seja o tipo de ilícito, a moldura da pena e o tempo decorrido, não revela, nem é apta a revelar, só por si, a demonstração ou comprovação da falta dos requisitos necessários para o exercício da actividade de segurança privado, e tão pouco legitima uma "presunção" legal de falta de aptidão ou idoneidade do requerente para o exercício das funções correspondentes, como defende a entidade requerida.
Na interpretação normativa ora em discussão, e tal como resulta do acto administrativo em causa, ela limita-se a associar a condenação por qualquer crime doloso, como um efeito imediato e "automático", à impossibilidade de emissão ou renovação do cartão profissional para o exercício das funções de segurança privado, sem deixar margem para a mediação de um juízo da autoridade administrativa sobre a idoneidade daquela condenação para fundamentar a revogação/cancelamento ou não renovação do cartão profissional atribuído, impondo uma única decisão possível.
De facto, por efeito "automático" da condenação, o requerente, para além de ver o seu cartão profissional cancelado ou não renovado, fica simultaneamente colocado numa situação de "impossibilidade" legal de obter um novo título profissional, uma vez que lhe falta o requisito em causa, ou seja, o de «não ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso previsto no Código Penal e demais legislação penal» (com o que não fica prejudicada a irrelevância, no caso em concreto, das condenações em causa, face ao actual não averbamento no respectivo certificado do registo criminal).
E esta "impossibilidade" legal - que, como vimos, se reconduz ao conceito de perda de um "direito profissional" abrangido pelo artigo 30°, n.º 4, da Constituição - por efeito automático da condenação por um qualquer crime doloso, sem que a entidade administrativa competente (ou o julgador) tenha o poder de, em concreto, valorar a relação entre a mesma e o desvaler da conduta que a motiva, revela-se, nos termos em que vem formulada, manifestamente "desproporcionada", sem encontrar legitimação constitucional num fundamento material razoável que a justifique.
Como se lê no Acórdão n.º 25/2011, a que nos vimos referindo, « [Embora referindo-se apenas à "duração" dos efeitos automaticamente associados a um crime, Damião da Cunha in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, T. I, 2ª ed., Coimbra Editora, 2010, 686-687, salienta que «não é pelo facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um "efeito" que atinja estes direitos [os direitos civis, profissionais ou políticos], que fica violada um qualquer princípio constitucional, desde que seja sempre respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstracto, como em concreto, p. ex., através da determinação, por moldura legal, do tempo de privação do direito ou, então, através da previsão de uma cláusula de salvaguarda por "manifesta desproporção"».
Neste pressuposto, e recorrendo, uma vez mais, às palavras do citado Acórdão n.º 25/2011, a falta de conexão, em abstracto, entre todo e qualquer crime doloso e a actividade de segurança privada, aliada à impossibilidade de, em concreto, se formular um juízo de adequação entre aquele crime e esta actividade, conduz à violação do princípio da proporcionalidade.
Pode, pois, concluir-se, à luz da jurisprudência constitucional que vimos citando, e designadamente do Acórdão n.º 25/2011, que a norma do artigo 22°, n.º 1, alínea d), e n.º 2, conjugada com a norma do artigo 27.°, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 34/2013, de 16 de Maio, quando interpretadas no sentido de que a condenação pela prática de crime doloso, e designadamente o de condução sem habilitação legal, determina automaticamente o indeferimento do pedido de renovação ou o cancelamento do cartão profissional para o exercício da actividade de segurança privada, consagram uma solução proibida pelo n.º 4 do artigo 30° da Constituição, em conjugação com o princípio da proporcionalidade.
Deste modo, porque tais normas, nas quais se fundamenta a decisão ora suspendenda, são, como desde já se afigura seguro, inconstitucionais, não poderá a aplicação das mesmas deixar de ser recusada por este tribunal na acção principal, quando nela se vier a conhecer do mérito da impugnação do acto administrativo ora em discussão.
Tanto basta, pois, para que julguemos como evidente a procedência da pretensão formulada pelo requerente no processo principal, que é dirigido à anulação do referido acto.
Evidência que mais se impõe quando as decisões condenatórias em que se alicerçou a revogação (e não renovação) do cartão profissional do requerente não constituíam qualquer impedimento ao exercício da actividade de segurança privada, à luz do regime vigente na data em que as mesmas foram proferidas, estabelecido no já referido Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro, e designadamente no seu artigo 8°, n.º 1, alínea d), conjugado com o n.º 3 do artigo 10°, que, estabelecendo os requisitos e incompatibilidades para o exercício da mesma actividade, restringia a relevância da condenação a determinados tipos de ilícito, que não o da condução sem habilitação legal.
Pelo que, o acto administrativo em causa, ao aplicar retroactivamente uma norma legal que, sendo restritiva de um "direito profissional", não estava ainda em vigor quando foram proferidas as sentenças condenatórias em causa (e, aliás, quando foram praticados os factos pelos quais o requerente foi condenado), em violação do disposto no artigo 18°, n.º 3, da Constituição, seria sempre, por esta razão também, manifesta e ostensivamente ilegal.
Pode, pois, concluir-se que a situação posta em juízo encontra enquadramento na alínea a) do n.º 1 do artigo 120° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, por não se oferecerem dúvidas, ainda que num juízo meramente sumário que é próprio dos autos cautelares, quanto ao bem fundado e ao mérito da pretensão em juízo (cf., por exemplo, acórdãos de 22 de Outubro de 2008, no processo n.º 396/08, de 28 de Janeiro de 2009, no processo n.º 1030/08 e de 2 de Abril de 2009, no processo n.º 168/09, de 11 de Setembro de 2012, no processo n.º 391/12, ou de 20 de Novembro de 2012, no processo n.º 871/12).
Pelo que, demonstrado o interesse do requerente em agir cautelarmente, por se encontrar privado de exercer a sua actividade profissional e de receber a correspondente retribuição, deve reconhecer-se, sem necessidade de mais indagações, o direito à tutela provisória requerida, decretando-se de imediato a providência pedida ao abrigo da pré-dita alínea a), não havendo que provar a existência de um (fundado) receio de constituição de uma situação de facto consumado ou da difícil reparação de danos, nem que ponderar os eventuais prejuízos que a concessão possa vir a causar ao interesse público ou aos demais interesses em presença.» (sublinhados nossos).

Do ora transcrito decorre que a sentença recorrida considerou que:
- O despacho suspendendo, de 26.9.2014, da autoria do Director-Nacional Adjunto da Polícia de Segurança Pública, determinou – no âmbito de um procedimento que havia sido iniciado para renovação do cartão profissional de segurança privado de que o requerente, ora recorrido, era titular – o “cancelamento” desse cartão profissional, consubstanciando-se numa revogação do título que habilitava o recorrido a exercer a actividade de segurança privada;
- O despacho suspendendo fundamentou-se, por um lado, no art. 22º n.ºs 1, al. d), e 2, da Lei 34/2013, de 16/5 [nos termos do qual o pessoal de vigilância – em que se integra o recorrido – deve preencher, permanente e cumulativamente com os demais, o seguinte requisito: “Não ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso previsto no Código Penal e demais legislação penal”], dado que, face ao disposto no art. 27º n.ºs 2 e 3, desse mesmo diploma legal, a emissão e a renovação do cartão profissional estão obrigatoriamente sujeitas à verificação dos requisitos e incompatibilidades enunciados no art. 22º, e, por outro lado, no facto de o recorrido ter sido condenado pela prática de crimes de condução sem habilitação legal;
- A norma do art. 22º n.ºs 1, al. d), e 2, conjugada com a norma do art. 27º n.ºs 2 e 3, da Lei 34/2013, de 16/5, são inconstitucionais por violação do art. 30º n.º 4, da CRP, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, tal como decorre em especial do Ac. do Tribunal Constitucional n.º 25/2011, já que:
- esse art. 22º n.ºs 1, al. d), e 2 implica a perda da liberdade de escolher e de exercer uma profissão ou actividade (neste caso, a de segurança privada), consagrada no art. 47º n.º 1, da CRP, e, nessa medida, a perda de um “direito profissional” abrangido pela proibição do art. 30º n.º 4, da CRP;
- o cancelamento do cartão profissional - e a impossibilidade legal de obter um novo título profissional - constitui um efeito automático da condenação pela prática de um qualquer crime doloso, pois esse art. 22º n.ºs 1, al. d), e 2 não deixa margem para a mediação de um juízo da autoridade administrativa sobre a idoneidade da condenação crime para fundamentar a revogação/cancelamento ou não renovação do cartão profissional, impondo uma única decisão possível;
- essa automaticidade viola o princípio da proporcionalidade, dada a falta de conexão, em abstracto, entre todo e qualquer crime doloso e a actividade de segurança privada;
- A situação dos presentes autos é diversa daqueloutra que foi apreciada no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 748/2014 [por lapso é referido o Ac. n.º 784/2014], pois nesse acórdão foi apreciada a constitucionalidade da norma do art. 8° n.º 1, al. d), conjugada com o n.º 3 do art. 10°, do DL 35/2004, de 21/2, que tem uma redacção distinta do art. 22º n.ºs 1, al. d), e 2, da Lei 34/2013, de 16/5;
- A norma do art. 22º n.ºs 1, al. d), e 2, conjugada com a norma do art. 27º n.ºs 2 e 3, da Lei 34/2013, de 16/5, são inconstitucionais por violação do art. 18º n.º 3, da CRP, já que tais normas são aplicadas relativamente a decisões condenatórias – que alicerçaram a revogação do cartão profissional - que foram proferidas numa data em que tais normas ainda não estavam em vigor, sendo certo que à luz do regime vigente na data em que as mesmas foram prolatadas estas não constituíam qualquer impedimento ao exercício da actividade de segurança privada [cfr. art. 8º n.º 1, al. d) (“Não ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso contra a vida, a integridade física ou a reserva da vida privada, contra o património, de falsificação, contra a segurança das telecomunicações, contra a ordem e tranquilidade públicas, de resistência ou desobediência à autoridade pública, de detenção ilegal de armas, ou por qualquer outro crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, sem prejuízo da reabilitação judicial”), conjugado com o art. 10º n.º 3, do DL 35/2004, de 21/2].

Do exposto resulta que a sentença recorrida considerou a norma do art. 22º n.ºs 1, al. d), e 2, conjugada com o art. 27º n.ºs 2 e 3, da Lei 34/2013, de 16/5 - na qual assentou o despacho suspendendo -, e de forma evidente, inconstitucional, por violação do:
- art. 30º n.º 4, da CRP, em conjugação com o princípio da proporcionalidade,
- art. 18º n.º 3, da CRP.

Ora, a inconstitucionalidade da norma do art. 22º n.ºs 1, al. d), e 2, conjugada com o art. 27º n.ºs 2 e 3, da Lei 34/2013, de 16/5, por violação do art. 30º n.º 4, da CRP, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, é evidente pela razões indicadas na sentença recorrida, sendo certo que o recorrente não invoca qualquer argumento capaz de as pôr em causa.

Efectivamente, e conforme se afirma na decisão recorrida, com apoio maxime no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 25/2011 (no qual foram julgadas inconstitucionais normas com uma redacção muito semelhante à norma ora em apreciação):
- O cancelamento (revogação) do cartão profissional de que era titular o recorrido equivale à perda de “direitos civis, profissionais ou políticos” e, como tal, inclui-se no âmbito da proibição do art. 30º n.º 4, da CRP (que consagra o princípio da proibição de penas automáticas, a fim de obviar ao efeito estigmatizante e criminógeno das penas e de impedir a violação dos princípios da culpa e da proporcionalidade), pois a proibição de perda automática de direitos profissionais constante deste normativo legal não se restringe à perda de direitos no contexto de uma determinada carreira profissional, mas abrange também, além do mais, os direitos de escolha e de exercício de profissão – in casu estamos perante uma interdição de exercício de uma actividade profissional, a de segurança privada, ou seja, a perda da liberdade de escolher e de exercer a actividade de segurança privada -, assegurados pelo art. 47º, da CRP;
- Da norma do art. 22º n.ºs 1, al. d), e 2, conjugada com o art. 27º n.ºs 2 e 3, da Lei 34/2013, de 16/5, decorre que o cancelamento do cartão profissional para o exercício da actividade de segurança privada é a única decisão possível para a entidade administrativa no caso de estar documentada a condenação por crime doloso e o respectivo trânsito em julgado, não tendo a entidade administrativa qualquer margem para a mediação de um juízo sobre a idoneidade daquela condenação para fundamentar tal cancelamento, isto é, o cancelamento do cartão profissional decorre automaticamente/mecanicamente da condenação por crime doloso, transitada em julgado (como é reconhecido pelo recorrente maxime nas conclusões 2ª e 7ª, da sua alegação de recurso);
- Não é possível antecipar uma ligação abstractamente forte entre o crime praticado e a actividade de segurança privada, pois a norma do art. 22º n.ºs 1, al. d), e 2, conjugada com o art. 27º n.ºs 2 e 3, da Lei 34/2013, de 16/5, ao prever o cancelamento do cartão profissional para o exercício da actividade de segurança privada como um efeito decorrente da condenação por qualquer crime doloso, não revela, só por si, a demonstração ou comprovação da falta dos requisitos necessários para o exercício da actividade de segurança privada, ou seja, no caso em apreço falta a conexão, em abstracto, entre todo e qualquer crime doloso e a actividade de segurança privada, o que conduz à violação do princípio da proporcionalidade.

Acresce que a norma do art. 22º n.ºs 1, al. d), e 2, conjugada com o art. 27º n.ºs 2 e 3, da Lei 34/2013, de 16/5, é distinta da norma que anteriormente regulava esta matéria (norma do art. 8° n.º 1, al. d), conjugada com o n.º 3 do art. 10°, do DL 35/2004, de 21/2) – sendo que o próprio recorrente reconhece que o referido art. 22º estabelece um regime mais apertado de requisitos e incompatibilidades relativamente ao regime anterior (cfr. conclusões 1ª e 2ª, da alegação de recurso) -, razão pela qual não é aplicável a jurisprudência do Ac. do Tribunal Constitucional n.º 748/2014 (no qual se considerou não inconstitucional a norma do art. 8° n.º 1, al. d), conjugada com o n.º 3 do art. 10°, do DL 35/2004, de 21/2, já que a solução perspectivada pelo legislador que acaba por retirar da prática de um qualquer crime doloso, cuja moldura penal abstracta seja superior a três anos de prisão, uma conclusão sobre a inaptidão da pessoa para o desempenho da actividade de segurança privada, só ocorre após ter previsto, na primeira parte da norma, a prática de um crime contra a integridade física (o recorrente tinha sido condenado pela prática de um crime de maus tratos do cônjuge ou análogo) como incompatível com o exercício profissional em causa, pelo que, sendo assim, nesta hipótese existe uma ligação suficientemente forte entre o tipo legal de crime efectivamente preenchido e o tipo de actividade profissional cuja inibição se pretende induzir através da norma sob escrutínio (basta pensar na importância e no risco que, num Estado de Direito, inerem à actividade de segurança privada, tendo em conta sobretudo os meios técnicos de que, sob certo condicionalismo, esta pode beneficiar), conexão que afasta a existência de uma desproporção manifesta, obstando à violação do princípio da proibição do excesso e, por conseguinte, do art. 30º n.º 4, da Constituição).


Nestes termos, verifica-se que é patente a procedência da acção principal, pois para se apurar a procedência da referida inconstitucionalidade [violação do art. 30º n.º 4, da CRP, em conjugação com o princípio da proporcionalidade] não é necessária uma laboriosa indagação em termos de direito, pois é notório o paralelo da situação em análise com a apreciada maxime no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 25/2011, o que é suficiente para se concluir que se verifica o critério de concessão da providência previsto na al. a) do n.º 1 do art. 120º, do CPTA [assim ficando prejudicado o conhecimento da outra inconstitucionalidade também considerada evidente na sentença recorrida – por violação do art. 18º n.º 3, da CRP].

Assim sendo, a decisão ora sindicada não enferma de erro de julgamento quando considerou que se verificava o requisito previsto na al. a) do n.º 1 do art. 120º, do CPTA, pelo que deverá ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, e assim mantido o juízo de procedência da pretensão cautelar.

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Uma vez que o recorrente ficou vencido no presente recurso jurisdicional deverá suportar as custas (art. 527 n.ºs 1 e 2, do CPC de 2013, ex vi art. 1º, do CPTA).

III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em:

I - Negar provimento ao pedido de revogação da decisão recorrida que julgou procedente o pedido cautelar, e assim manter o juízo de procedência da pretensão cautelar.

II – Condenar o recorrente nas custas relativas ao presente recurso jurisdicional.

III – Registe e notifique.

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Lisboa, 31 de Julho de 2015

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(Catarina Jarmela - relatora)

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(Nuno Coutinho)

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(Jorge Cortês)