Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1911/10.0BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:06/24/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:REVERSÃO
GERÊNCIA DE FACTO
Sumário:I. O exercício efetivo de funções de gestão é um dos pressupostos da responsabilidade tributária subsidiária dos gestores.
II. Cabe à AT o ónus da prova do exercício efetivo de funções de gerente por parte do revertido.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 22.10.2018, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, na qual foi julgada procedente a oposição apresentada por M….. (doravante Recorrida ou Oponente), ao processo de execução fiscal (PEF) n.º ….. e apensos, que o Serviço de Finanças (SF) de Sintra 4 lhe moveu, por reversão de dívidas de retenções na fonte de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), coimas e imposto sobre o valor acrescentado (IVA), dos anos/exercícios compreendidos entre 2005 e 2010, da devedora originária M….., Lda.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“A) Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que julgou procedente a Oposição deduzida pela Oponente M….., na qualidade de responsável subsidiária, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ….. e apensos, instaurado pelo Serviço de Finanças de Sintra 4 para cobrança de dívidas por falta de entrega de retenções na fonte de IRS e por falta de pagamento de IRC, coimas e IVA, dos anos de 2005 a 2010, no valor de €17.811,59, da sociedade M….., Lda. (NIPC …..), determinando a extinção da referida execução contra a revertida.

B) Considerou o Tribunal a quo como provados, nos pontos 7 e 8 da fundamentação de facto, que embora a gerência de direito da sociedade estivesse atribuída à ora Recorrida, a gerência de facto cabia a J….., tendo o Tribunal firmado a sua convicção com base no depoimento de uma única testemunha, exatamente o Sr. J….., que se arroga gerente de facto da sociedade M….., Lda. nos anos em causa.

C) A sentença ora recorrida entendeu que o depoimento prestado pela única testemunha foi claro, assertivo e seguro, considerando o depoimento global da testemunha “congruente, claro e assertivo”, embora saliente a existência de momentos em que “a testemunha hesitou quando inquirida sobre a assinatura de documentos por parte da Oponente”.

D) A sentença ora recorrida desconsidera por completo, os designados na própria motivação de facto, momentos de hesitação da testemunha no seu depoimento, momentos vários que a apresentam como uma testemunha não credível, como já tivemos oportunidade de discorrer em sede de alegações e reforçamos ora.

E) A inquirição da única testemunha arrolada pela Oponente, ora Recorrida, o Sr. J….., em 28.09.2018, que, segundo alega a ora Recorrida na sua petição inicial era o gerente de facto da sociedade executada e, portanto, responsável pela dívida em causa nos autos, não corroborou a alegação da ora Recorrida, mostrando-se sempre muito inconsistente nas respostas dadas ao Tribunal.

F) Ao minuto 5 e 10 segundos e seguintes da inquirição, a testemunha refere que “já não seria patrão da dona M….. … quem pagava os impostos seria a dona M….. … a partir dali todas as responsabilidades foram da dona M….. … já não podia assinar mais nada …” quando questionado se o facto de existir esta empresa “M….., Lda.” tinha alterado a sua relação profissional com a ora Recorrida, e se continuava a ser patrão da mesma.

G) E as imprecisões e inseguranças da mesma testemunha continuam ao minuto 11 da mesma inquirição e seguintes, quando questionado acerca da origem do nome da sociedade executada, “M….., Lda.”. A testemunha não soube esclarecer a origem do nome, mostrando-se inclusive surpreendido com a dúvida da Fazenda Pública acerca do nome da sociedade, o que se revela, no mínimo, peculiar, considerando que a sociedade tem exatamente o nome da pessoa que não se diz gerente da mesma, mas simples funcionária!

H) Ainda ao minuto 11 e 21 segundos e seguintes da mesma inquirição refere a testemunha o seguinte, “A empresa era minha até essa altura … a partir da altura em que a firma foi aberta a dona M….. era responsável … todas as situações eram assinadas pela dona M….. …”

I) Inquirido pela Meritíssima Juiz, ao minuto 14 e 54 segundos e seguintes a testemunha refere ainda que “qualquer decisão tomada nessa altura era tomada pelos dois …

J) E, pela audição da inquirição à testemunha ao minuto 7 e 25 segundos e seguintes, todo o depoimento foi prestado não pela testemunha, mas pelo seu mandatário.

K) Ora, entende a Fazenda Pública que nenhuma prova existe nos autos que motive a conclusão de que

A Oponente foi nomeada gerente da sociedade M….., Lda. porque J….. não podia ter a empresa registada em seu nome (depoimento da testemunha);” e “Na sociedade M….., Lda., quem dava ordens, quem fazia pagamentos, quem dava orientações aos empregados e recebia dinheiro era J….. (depoimento da testemunha)”;, factos vertidos nos n.º 7 e 8 da fundamentação de facto.

L) Verifica-se, portanto, vício da motivação insuficiente ou pouco convincente, o que configura erro de julgamento, devendo os factos constantes dos pontos 7 e 8 da fundamentação de facto ser considerados como “Não provados”.

M) Sem prejuízo do princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 607.º n.º 5 do CPC, essa livre apreciação, e a formação da convicção do julgador dela decorrente, deve ser feita à luz das regras gerais da experiência, do raciocínio e da lógica, e, salvo o devido respeito, se essas regras tivessem sido observadas pela Mmª Juiz a quo na apreciação e ponderação de todos os elementos de prova existentes nos autos, de per si e conjugados entre si, a mesma teria forçosamente de concluir que a prova testemunhal não sustenta nem fundamenta os factos dados como provados na fundamentação de facto sob os pontos 7 e 8, relevante para a boa decisão da causa, pelo que ora se impugna, ao abrigo do disposto no art.º 640.º, n.º 1, alínea a) do CPC.

N) O Tribunal a quo incorreu, de facto, num erro na apreciação da prova, numa apreciação totalmente arbitrária das provas produzidas em audiência de julgamento, ignorando ou afrontando diretamente as mais elementares regras da experiência, existindo uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto.

O) No caso sub judice, o Tribunal a quo parece considerar provada a gerência de direito, conforme se comprova pelo constante no ponto 1 da fundamentação de facto. Pelo que, nessa medida, deve a eventual responsabilidade subsidiária da Oponente, ora Recorrida, ser analisada à luz do regime previsto no artigo 24.º, n.º 1, al. b), da LGT.

P) Constituindo o registo presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida – artigo 11.º do Código do Registo Comercial (CRC), da inscrição no registo comercial da nomeação de alguém como gerente, in casu, a ora Recorrida, apenas resulta a presunção legal, com base no citado art. 11.º do CRC, de que a mesma é gerente de direito.

Q) No entanto, a jurisprudência 1 [1 Veja-se, entre outros, o acórdão do TCA Sul, de 25 de Outubro de 2005, no âmbito do processo n.º 00583/05, disponível em www.dgsi.pt], tem considerado que “a presunção de gerência, resultante do registo da nomeação para esse cargo, é a da gerência de direito e não a da gerência de facto, presumindo-se esta, se provada aquela. A presunção de gerência decorrente do registo, sendo uma presunção legal, só por prova em contrário, no caso necessariamente documental, pode ser ilidida. A presunção do efectivo exercício da gerência, porque meramente judicial, pode ser ilidida por qualquer meio de prova, incluindo a prova testemunhal”.

R) Ora, uma vez que a ora Recorrida nunca diligenciou no sentido de apresentar qualquer tipo de prova documental suscetível de ilidir a presunção constante do artigo 11.º do CRC, cabe, pois, ao julgador, baseando-se na comprovada nomeação da Recorrida para a gerência de direito e noutros factos, revelados pelos autos, como sejam as posições assumidas pelas partes no processo, as provas produzidas e fundando-se nas regras da experiência, de que deverá dar devida conta, presumir que a Oponente, ora Recorrida, exerceu de facto, a gerência, havendo como “há uma probabilidade forte («certeza jurídica») de esse exercício da gerência ter ocorrido e não haver razões para duvidar que ele tenha acontecido” 2[2 Conforme Acórdão do STA de 10 de Dezembro de 2008 proferido no processo com o n.º 861/08, in Apêndice ao Diário da República de 11 de Fevereiro de 2009  (http://www.dre.pt/ pdfgratisac/2008/32240.pdf), págs. 1479 a 1483,].

S) E, contrariamente ao referido pelo Tribunal a quo, constam do processo administrativo tributário provas suficientes do exercício da gerência de facto pela Oponente, ora Recorrida.

T) Veja-se a informação do Serviço de Finanças de Sintra 4 de 14.12.2010, onde foram juntas as declarações de alterações relativamente ao técnico oficial de contas, e à comunicação da opção pelo regime de contabilidade organizada, declarações assinadas pela ora Recorrida na qualidade de sócia gerente. Tais documentos não foram considerados pelo Tribunal a quo suficientes para a prova da gerência de facto.

U) Pelo exposto, verifica-se um erro de julgamento, decorrente da circunstância de, não terem sido considerados como suficientes as provas apresentadas de exercício da gerência de facto pela ora Recorrida.

V) Impunha-se à douta sentença recorrida, perante o probatório, fazer uma correspondência perfeita entre os factos dados como provados e o decidido, o que não aconteceu, manifestando a fundamentação jurídica da decisão uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária ou de todo insustentável, e por isso incorreta, o que conduziu à injusta decisão contra a ora Recorrente.

Pelo que, nestes termos se impõe a sua revogação e substituição por acórdão que, julgue procedente o presente recurso, e, consequentemente procedente a presente Impugnação Judicial, nos termos das conclusões que seguem e que V. Exas melhor suprirão, julgando legal a sobredita correção”.

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:
a) Há erro na decisão proferida sobre a matéria de facto?
b) Verifica-se erro de julgamento, em virtude de se poder concluir que a Recorrida exerceu a gerência da devedora originária?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

1. A Oponente foi nomeada gerente única da pessoa colectiva M….., Sociedade Unipessoal, Lda. com o NIF ….., em 29-06-2004, nomeação que se manteve, pelo menos, até 30-09-2010 (cf. ap. ….. da certidão do registo comercial e respectiva data de emissão, a fls. 117 do processo de execução fiscal);

2. Em 11-10-2010 foi elaborada informação pelo Serviço de Finanças Sintra 4, onde consta que foram instaurados processos de execução contra a sociedade M….., Sociedade Unipessoal, Lda., com o NIF ….., todos apensos ao principal n.º …..e que não foram encontrados bens que respondam pelo pagamento das dívidas, bem como que a gerente M….. responde subsidiariamente pela dívida (cf. informação a fls. 122 do processo de execução, SITAF n.º 005088182, p. 25);

3. As dívidas em cobrança nos processos de execução referidos respeitam a retenções na fonte de IRS, IRC, coimas e IVA dos anos de 2005 a 2010 e com a quantia exequenda de €17.811,59 (cf. certidões de dívida a fls. 1 a 111 do processo de execução fiscal);

4. Em 27-10-2010 foi proferido despacho de reversão contra a Oponente no processo de execução referido, com os seguintes fundamentos:

«(…)

Fundamentos da reversão

Dos administradores, directores, ou gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entidades fiscalmente equiparadas, por não terem provado não lhes ser imputável a falta de pagamento da dívida, quando o prazo legal de pagamento/entrega da mesma terminou no período de exercício do cargo [art. 24º/nº 1/b) LGT].

Alínea b) do n.º 1 do artº 8º do RGIT.

IDENTIFICAÇÃO DA DÍVIDA EM COBRANÇA COERCIVA

(…)

TOTAL: €17.811,59.

(…)»

(cf. despacho de reversão a fls. 143 do processo de execução fiscal);

5. A Oponente foi citada na qualidade de responsável subsidiária pelas dívidas cobradas no processo de execução referido, em 02-11-2010 (cf. aviso de recepção assinado, a fls. 162 do processo de execução);

6. Em 24-11-2010, a Oponente e J….. reduziram a escrito um acordo para pagamento de dívidas, onde este declarou que a Oponente exerceu sempre uma gerência de direito da sociedade M….., Sociedade Unipessoal, Lda. e que a gerência de facto foi exercida por si através da prática de todos os actos sociais da referida sociedade e onde assumiu «a título pessoal, a responsabilidade pelas dívidas da referida sociedade», confessando-se devedor da quantia de €96.267,44 referente ao passivo conhecido da sociedade (cf. acordo de pagamento de dívida, junto como documento n.º 2 com a petição, a fls. 17 do processo físico, SITAF n.º 005088182, p. 16);

7. A Oponente foi nomeada gerente da sociedade M….., Lda. porque J….. não podia ter a empresa registada em seu nome (depoimento da testemunha);

8. Na sociedade M….., Lda., quem dava ordens, quem fazia pagamentos, quem dava orientações aos empregados e recebia dinheiro era J….. (depoimento da testemunha);

9. A Oponente assinou declarações de alterações da situação tributária da sociedade M….., Lda. enquanto representante legal, em Janeiro de 2006 e Março de 2007 (cf. declarações de alteração para efeitos de IVA e IRC, juntos a fls. 1673 a 169 do processo de execução)”.

II.B. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A motivação do tribunal quanto aos factos provados, assenta na prova documental constante dos autos tendo em conta o teor dos documentos indicados em cada um dos pontos do probatório, junto aos autos pelas partes e constantes do processo de execução fiscal em apenso.

Quantos aos factos provados nos pontos 7 e 8, o tribunal firmou a sua convicção no depoimento da testemunha J….. que afirmou ter conhecimento directo dos factos em discussão.

A testemunha foi inquirida sobre as suas funções na sociedade devedora originária e foi clara quando afirmou que a mesma, quando foi criada, foi colocada «em nome» da Oponente por que ele próprio não o podia fazer e esclareceu que o nome foi escolhido por um advogado que tratou das formalidades da constituição da firma.

Quando inquirido sobre quem dava ordens, quem fazia pagamentos, quem recebia dinheiro e quem dava orientações aos empregados, o Sr. J….. respondeu de forma assertiva e segura que era ele próprio.

Houve momentos no seu depoimento que a testemunha hesitou quando inquirida sobre a assinatura de documentos por parte da Oponente. Contudo, foi claro e seguro quando afirmou que assumiu a gerência no quotidiano do restaurante e esclareceu que a partir do momento em que a Oponente figurava «no papel» como gerente, ele próprio não podia assinar mais nada. Em complemento, a testemunha quando expressamente inquirida sobre quem, no dia-a-dia, dava orientações aos empregados, aos fornecedores e tomava decisões respondeu sem hesitar, de forma convicta, assumida e clara que era ele quem o fazia.

O depoimento global da testemunha foi congruente, claro e assertivo, pelo que o tribunal ficou convencido da sua veracidade”.

II.C. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto

Entende, desde logo, a Recorrente que a decisão proferida sobre a matéria de facto padece de erro, porquanto, considerando a prova testemunhal e documental produzidas, os factos provados 7. e 8. deveriam ser dados como não provados.

Considerando o disposto no art.º 640.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão[1].

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Especificamente quanto à prova testemunhal, dispõe o n.º 2 do art.º 640.º do CPC:

“2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­‑se-lhe os ónus já mencionados[2].

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que tais ónus foram minimamente satisfeitos, passando-se, pois, à apreciação do alegado.

Como já mencionado, entende a Recorrente que devem ser considerados não provados os seguintes factos:

7. A Oponente foi nomeada gerente da sociedade M….., Lda. porque J….. não podia ter a empresa registada em seu nome (depoimento da testemunha);

8. Na sociedade M….., Lda., quem dava ordens, quem fazia pagamentos, quem dava orientações aos empregados e recebia dinheiro era J….. (depoimento da testemunha)”.

Adiante-se, desde já, que não se acompanha o entendimento da Recorrente, quanto à falta de credibilidade do depoimento em causa.

Tendo o mesmo sido integralmente ouvido por este Tribunal, percebe-se que há alguma aparente hesitação, na medida em que a testemunha se mostrava sempre com preocupação em sublinhar que, no papel, formalmente, era a Oponente a gerente e que, por isso, era ela quem assinava determinada documentação e que não o fazia contra a vontade.

No entanto, a referida testemunha afirma de forma clara que todas das decisões de gestão da sociedade eram por si tomadas, tendo a sociedade sido aberta em nome da Oponente (com quem a testemunha já tivera uma relação laboral anterior) porque a testemunha tinha impedimentos em o fazer.

Ou seja, da audição integral do depoimento fica-se com a convicção de que era a testemunha o efetivo gestor da sociedade e que a oponente tinha um papel apenas formal, por motivos relacionados com a impossibilidade de a testemunha ter aberto a empresa em seu nome. A circunstância de ter havido hesitações não atinge a credibilidade do depoimento, sendo patente que esta hesitação tinha relação com a própria assunção de responsabilidade perante a qual se estava. A existência de um ou outro documento assinado pela Recorrida (o que, aliás, decorre do facto 9.) em nada colide com a factualidade assente.

Evidentemente que o facto de a denominação social da devedora originária conter o nome da Oponente não é, per se, relevante nem demonstra que a gerência de facto fosse da Recorrida.

Como tal, indefere-se o requerido.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, uma vez que, em seu entender, resulta demonstrado que a Recorrida era gestora de facto da sociedade em causa.

Vejamos.

In casu, a dívida revertida respeita aos anos/exercícios compreendidos entre 2005 e 2010.

No que concerne à responsabilidade subsidiária dos gerentes e administradores de sociedades pelas dívidas tributárias, somos remetidos para o art.º 24.º, n.º 1, da LGT, nos termos do qual:

“1. Os administradores (…) e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período de exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento”.

À semelhança do que já decorria do art.º 13.º do CPT, o art.º 24.º, n.º 1, da LGT determina que a simples gestão de facto é suficiente para acionar a responsabilidade em causa, não sendo, por outro lado, suficiente a mera gerência ou administração de direito.

O art.º 24.º da LGT demarca duas situações, nas duas alíneas do seu n.º 1.

A primeira, correspondente à sua al. a), refere-se à responsabilidade dos gerentes ou administradores em funções quer no momento de ocorrência do facto tributário, quer após este momento, mas antes do término do prazo de pagamento da dívida tributária, sendo esta responsabilidade pelo depauperamento do património social, de molde a torná-lo insuficiente para responder pelas dívidas em causa. A culpa exigida aos gerentes ou administradores, nesta situação, é uma culpa efetiva — culpa por o património da sociedade se ter tornado insuficiente. Não há qualquer presunção de culpa, o que nos remete para o disposto no art.º 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que cabe à administração tributária (AT) alegar e provar a culpa dos gerentes ou administradores.

A segunda, constante da al. b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, refere­‑se à responsabilidade dos gerentes ou administradores em funções no período no qual ocorre o fim do prazo de pagamento ou entrega do montante correspondente à dívida tributária. No art.º 24.º, n.º 1, al. b), da LGT, presume-se que a falta de pagamento da obrigação tributária é imputável ao gestor. Assim, atentando na al. b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, o momento relevante a considerar é o do termo do prazo para pagamento voluntário. A presunção constante da referida al. b) do art.º 24.º, n.º 1, da LGT, deriva da consagração do dever de boa prática tributária, constante do art.º 32.º da LGT, que prevê “... um especial dever de diligência no cumprimento dos deveres tributários [das pessoas colectivas] (...) — dever de diligência que se presume violado caso tais deveres tributários não sejam cumpridos”[3]. Esta presunção de culpa é ilidível, cabendo ao gestor revertido o ónus de a ilidir.

Em termos idênticos vai o art.º 8.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), sendo apenas de salientar que em nenhuma das suas alíneas está prevista qualquer presunção de culpa do gestor.

In casu, o despacho de reversão proferido foi-o ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT e da al. b) do n.º 1 do art.º 8.º do RGIT, ou seja, considerando os potenciais responsáveis à data do término do prazo para pagamento voluntário (cfr. facto 4.).

Como se referiu anteriormente, o regime da responsabilidade tributária tem subjacente o exercício efetivo de funções por parte do gestor.

Trata-se do ponto de partida de aplicação do regime, sendo que, depois de demonstrada a gestão de facto [cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, do Pleno da Secção do Contencioso Tributário, de 28.02.2007 (Processo: 01132/06)], aplicar-se­‑á, num segundo momento, a al. a) ou a al. b), do n.º 1 do art.º 24.º da LGT ou a al. a) ou a al. b), do n.º 1 do art.º 8.º da RGIT.

Cabe à AT, desde logo e em primeira linha, o ónus da alegação e prova da efetiva gerência ou administração por parte dos revertidos.

Essa prova da gestão de facto tem de ser evidenciada por referência a atos praticados pelos potenciais revertidos, suscetíveis de demonstrar tal efetividade do exercício de funções, entendendo-se como tal a prática de atos com caráter de continuidade, efetividade, durabilidade, regularidade, com poder de decisão e com independência das funções exercidas.

Durante vários anos, prevaleceu o entendimento de que, demonstrada que fosse a gestão de direito, a AT beneficiaria de uma presunção de gestão de facto, cabendo, segundo este entendimento, ao revertido demonstrar não ter exercido efetivamente as referidas funções.

Na sequência do Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 28.02.2007 (Processo: 01132/06), operou-se uma alteração jurisprudencial, no sentido de que “… [a] presunção judicial não tem existência prévia, é um juízo casuístico que o julgador retira da prova produzida num concreto processo quando a aprecia e valora. (...) Ninguém beneficia de uma presunção judicial, porque ela não está, à partida, estabelecida, resultando só do raciocínio do juiz, feito em cada caso que lhe é submetido. (...) Do que se trata é de censurar a aplicação que fez de um regime legal, afirmando a existência de uma presunção judicial e retirando, maquinalmente, de um facto conhecido, outro, desconhecido, como se houvesse uma presunção legal, que não há; e afirmando a inversão do ónus da prova, quando tal inversão não ocorre, no caso, na falta de presunção legal”.

Como tal, continua o referido Acórdão do Pleno:

“Quando, em casos como os tratados pelos arestos aqui em apreciação, a Fazenda Pública pretende efectivar a responsabilidade subsidiária do gerente, exigindo o cumprimento coercivo da obrigação na execução fiscal inicialmente instaurada contra a originária devedora, deve, de acordo com as regras de repartição do ónus da prova, provar os factos que legitimam tal exigência.

(…) [N]ada a dispensa de provar os demais factos, designadamente, que o revertido geriu a sociedade principal devedora. Deste modo, provada que seja a gerência de direito, continua a caber-lhe provar que à designação correspondeu o efectivo exercício da função, posto que a lei se não basta, para responsabilizar o gerente, com a mera designação, desacompanhada de qualquer concretização” (sublinhado nosso).

Face a este entendimento, unânime na jurisprudência atual, a que se adere, decorre, como referido, que cabe, em primeira linha, à AT alegar e demonstrar que o revertido exerceu, nos termos consignados no n.º 1 do art.º 24.º da LGT, efetivas funções de gerência, entendidas como funções de gestão e representação da sociedade. (cfr., para as sociedades por quotas, os art.ºs 192.º e 252.º do Código das Sociedades Comerciais).

O mesmo resulta da interpretação do art.º 11.º do Código do Registo Comercial (CRCom).

Com efeito, nos termos desta disposição legal, “[o] registo por transcrição definitivo constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida”.

Atentando na finalidade inerente ao registo comercial e, nesse seguimento, chamando à colação o art.º 1.º do CRCom, do seu n.º 1 resulta que “[o] registo comercial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes individuais, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob forma comercial e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”.

Sendo certo que é legalmente obrigatória a inscrição da nomeação dos membros dos órgãos de administração de sociedades comerciais, nos termos do art.º 3.º, n.º 1, al. m), do CRCom., da leitura conjunta das disposições legais referidas resulta que as mesmas visam dar publicidade a uma situação jurídica e não a uma situação de facto[4]. Assim, e no que ao registo da nomeação de uma determinada pessoa como gerente de uma determinada sociedade a presunção que decorre do art.º 11.º do CRCom é uma presunção da gestão de direito (“situação jurídica”), e não da de facto.

Portanto, também por esta via, não se pode extrair da gerência de direito a gerência de facto, ao contrário do que sustenta a Recorrente.

Posto este enquadramento, cumpre apreciar o caso em concreto.

Ora, no caso dos autos, desde logo se refira que do despacho de reversão não há qualquer indicação sobre quaisquer elementos factuais relativos ao exercício das funções de gestor de facto por parte da oponente, tendo o OEF apenas feito menção à circunstância de a mesma constar como gerente da devedora originária com base nos elementos existentes junto da conservatória do registo comercial.

É certo que constam dos autos alguns documentos nos quais foi aposta a assinatura da Oponente, conforme resulta do probatório (cfr. facto 9.), mas os mesmos são absolutamente circunstanciados no tempo e não permitem aferir qualquer caráter de continuidade.

Por outro lado, há que ter em conta que ficou provado que quem tomava todas as decisões de gestão da devedora originária era J….. (cfr. factos 7. e 8.), que, aliás, em declaração escrita, já o assumira (cfr. facto 6.).

Ou seja, face à prova (parca) produzida pela AT, consubstanciada apenas em um ou outro documento assinado pela Recorrida, o que, per se, nada demonstra (não se compadecendo com o próprio conceito de gestão de facto, que tem um pressuposto de continuidade e regularidade no tempo[5]), e atenta a prova produzida pela Recorrida, no sentido de que o efetivo gerente da sociedade era J….., não se pode se não concluir que a Oponente é parte ilegítima na execução.

Sublinhe-se que a circunstância de estarmos perante uma sociedade unipessoal não é, per se, conclusiva, na medida em que ser sócio e ser gerente são duas realidades perfeitamente discerníveis, nem sendo sequer obrigatório que um sócio seja gerente, inclusivamente nas sociedades unipessoais (cfr. art.º 270.º-E, n.º 1, do CSC).

Face à matéria de facto provada, in casu estaríamos, no mínimo, perante uma situação de non liquet, que se resolve contra quem tem o ónus da prova do facto, ou seja, no caso a Fazenda Pública.

Como tal, bem andou o Tribunal a quo. Logo, não se encontra preenchido o pressuposto previsto no n.º 1 do art.º 24.º da LGT e no n.º 1 do art.º 8.º do RGIT, motivo pelo qual se verifica ilegitimidade da oponente.

Assim, carece de razão a Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Custas pela Recorrente;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 24 de junho de 2021


[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores António Patkoczy e Mário Rebelo]

Tânia Meireles da Cunha

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[1] Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
[2] V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.
[3] Isabel Marques da Silva, «A Responsabilidade Tributária dos Corpos Sociais», Problemas Fundamentais do Direito Tributário, Vislis, Lisboa, 1999, p. 132.
[4] V. a este respeito os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28.02.2019 (Processo: 357/09.8BELRS), de 11.07.2019 (Processo: 1471/11.5BELRS) e de 05.11.2020 (Processo: 1992/10.7BELRS), bem como o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 11.03.2010 (Processo: 00349/05.6BEBRG).
[5] Cfr., a este respeito, os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, de 07.05.2020 (Processo: 3118/12.3BELRS) e de 08.10.2020 (Processo: 1978/05.3BELSB).