Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1141/09.4BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:05/07/2020
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:CONTRIBUIÇÃO ESPECIAL
TITULAR DO DIREITO DE CONSTRUÇÃO
TRANSMISSÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE
PRESUNÇÃO ILIDÍVEL
RATIO LEGIS RCE
Sumário:I. O Regulamento da Contribuição Especial (RCE), devida pela valorização de imóveis, decorrente da realização da EXPO 98 (aprovado em anexo ao DL n.º 54/95, de 22 de março), define dois momentos relevantes distintos, para efeitos de incidência objetiva e subjetiva (cfr. art.ºs 2.º e 3.º).
II. Para efeitos de incidência objetiva, o momento relevante é aquele em que é requerida a licença de construção e, para efeitos de incidência subjetiva, é aquele em que é emitida essa mesma licença, sendo neste último momento essencial aferir quem é o titular do direito de construir.
III. O art.º 3.º do RCE consagra uma presunção de que a titularidade do direito de construção é daquele em nome de quem seja emitida a licença de construção, sendo tal presunção ilidível.
IV.Tendo, entre o momento em que foi requerida a licença de construção e o momento em que foi emitido o alvará de construção, sido transmitido o direito de propriedade do lote em causa e deixado o Recorrido de ser, por via dessa transmissão, titular do direito de construção, o mesmo não é sujeito passivo da CE, ainda que o alvará tenha sido emitido em seu nome, dado ter sido ilidida a presunção prevista no art.º 3.º do RCE.
V-Tal interpretação está em conformidade com a ratio legis subjacente à criação da CE, uma vez que é o titular do direito de construção que tem o benefício efetivo das obras públicas, sendo que só o proprietário do prédio munido do correspondente alvará de construção dá início à edificação, cujos frutos se repercutem, necessariamente, na sua esfera jurídica.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

I-RELATÓRIO

O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (DRFP) veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial deduzida tendo por objeto a liquidação de Contribuição Especial (CE) prevista no Decreto-Lei nº 54/95, de 22 de março, no valor de €13.698,00.

A Recorrente apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

CONCLUSÕES:

I - A douta Sentença a quo determinou pela anulação da liquidação de Contribuição Especial, emitida em nome do Impugnante, no valor de €13.698,00, por considerar que, não obstante, ser aquele titular de um alvará de construção para o prédio identificado nos autos como lote 5, sito na ….., o certo é que tal imóvel, por se encontrar à data da emissão daquele documento na propriedade de outra pessoa jurídica, ficou desprovido de qualquer efeito útil, ao que acresce o facto de a sociedade adquirente do imóvel também ter vindo a obter uma licença de construção em seu nome e para o mesmo imóvel, não podendo, por este motivo, o Impugnante ser considerado sujeito passivo de imposto, nos termos do disposto no art.º 3º do Regulamento da Contribuição Especial, anexo ao DL 54/95 de 22/03.

II – Ao que acresce, como vem referido na douta Sentença a quo, que à data em que foi requerida a licença para construção, encontrava-se em vigor a Concordata firmada ente o Estado português e a Santa Sé de 1940, pelo que, nos termos do respetivo art.º 8º, o Impugnante se encontrava isento de todas as contribuições e impostos, incluindo a Contribuição Especial.

III – Ora, com a devida vénia pela douta decisão assim formulada e sempre com a ressalva de melhor entendimento, dissente esta RFP do julgado, pois como resulta dos autos, verifica-se que o Impugnante requereu o loteamento urbano do prédio em questão; foi proprietário do lote em causa até á data de 11.11.2004, sendo que, relativamente a este, também requereu e obteve um alvará de construção.

IV – Assim, tendo presente o estipulado no art.º 3º do DL 54/95 de 22/03, nos termos do qual, a contribuição é devida pelos titulares do direito de construir em cujo nome seja emitida a licença de construção ou de obra, forçoso se torna concluir que estes pressupostos da tributação se verificavam na pessoa do Impugnante, motivo pelo qual, perante a omissão declarativa prevista no art.º 7º daquele diploma por parte do mesmo, o serviço de finanças competente procedeu à respectiva notificação para entrega da competente declaração e, posteriormente, procedeu à emissão da liquidação de imposto.

V – Nos termos expostos, constata-se que o Impugnante é o sujeito passivo do imposto, porque requereu e obteve a licença de construção relativa ao imóvel em causa, sendo que, também não cumpriu com as obrigações decorrentes do estipulado no DL nº 555/99 de 16/12 quanto à alteração da titularidade dos alvarás de loteamento e de construção e respectiva comunicação ao serviço de finanças competente.

VI – Na douta Sentença a quo vem ainda referido que, não obstante a licença de construção ter sido emitida em 2005, a verdade é que a mesma foi requerida em Setembro de 2004, ainda em plena vigência da Concordata de 1940, motivo pelo qual, se à data da apresentação do requerimento o Impugnante era isento de qualquer contribuição e imposto, essa isenção não poderia deixar de ser considerada para as situações jurídicas constituídas ao seu abrigo.

VII – Porém e neste caso importa referir que atenta a natureza deste tributo, conclui-se que o mesmo não se pode ter como englobado no elenco de isenções de tributação previstas quer na Concordata de 1940, quer na de 2004, pelo que a Contribuição Especial ora sindicada se afigura como devida.

VIII - O Venerando Tribunal a quo, esteou a sua fundamentação numa errónea apreciação das razões de facto e de direito, pelo que foram violados, entre outros, os artigos art.º 3º e 7º do DL 54/95 de 22/03, motivo pelo qual, a liquidação de Contribuição Especial impugnada, porque legal, deve manter-se na ordem jurídica.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação totalmente improcedente, tudo com as legais e devidas consequências.

PORÉM V. EX.AS DECIDINDO, FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA”


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A Recorrida apresentou contra-alegações tendo concluído da seguinte forma:

1º Atentas as conclusões da alegação da recorrente, o objeto do presente recurso reconduz-se única e exclusivamente a questões de direito, sendo o recurso, portanto, da competência da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (cfr. artigo 280.°, n.° 1 à data do recurso do CPPT) e não do Tribunal Central Administrativo Sul como se mostra interposto e admitido em 1ª Instância.

2º A sentença recorrida fez correta interpretação e aplicação do disposto no artigo 3.° do Regulamento anexo ao Decreto-Lei n.° 54/95, de 22 de março, ao julgar procedente a impugnação, entendendo que tal norma reclama que o sujeito passivo tenha a titularidade do direito de construir independentemente do nome do sujeito que figura no alvará de licença.

3º Estando demonstrado que o Recorrido já não era titular do direito de construir ao momento em que foi emitido em seu nome o alvará de autorização - por já não ser então o proprietário do lote - sobre o mesmo não poderia ter recaído o ato de liquidação de contribuição especial por ausência de suporte legal.

4º O artigo 3.° do RCE assenta na presunção legal de que o beneficiário do direito de construir e da dita valorização do terreno é aquele em nome de quem foi emitido o respectivo alvará da licença da construção. Mas essa presunção é afastada quando se demonstra que o alvará foi emitido em nome de quem efectivamente já não tinha o direito de construir. Nesta situação a valorização do terreno que a contribuição especial visou tributar não se repercute na esfera jurídica em nome de quem foi emitido o alvará mas sim em nome do titular do direito de construção”- cfr. por todos, o acórdão de 30.01.2013, no Proc. n.° 0804/12, in www.dgsi.pt.

5º O documento de fls. 58 a 60 do PAT apenso aos autos emitido pela Câmara Municipal de Loures em 22.07.2005 com o n.° ….. é um «alvará de autorização administrativa de construção», como se encontra provado nos autos (v. ponto 6 dos factos assentes) e como inequivocamente consta desse documento e não um «alvará de licença de construção», pelo que mesmo que se pretenda adotar uma perspetiva interpretativa estritamente literal da previsão da norma, a mesma não pode ter-se como preenchida, inexistindo pressuposto para a liquidação.

6º A sentença recorrida nunca poderia deixar de ter como não verificado o facto tributário que o artigo 3.° do Regulamento anexo ao Decreto-Lei n.° 54/95, de 22 de março, sujeita a Contribuição Especial, dada a ausência de prova de emissão de qualquer alvará de «licença de construção», sendo que a emissão de um alvará de autorização não opera a transformação de um prédio rústico em urbano, limitando-se a permitir o exercício de um direito pré-existente, não preenchendo o pressuposto de facto exigido pela fattispecie da norma.

7º A contribuição especial alegadamente devida pela emissão do alvará de autorização administrativa para construção, foi liquidada no âmbito de um pedido de autorização apresentado em momento em que vigorava para o Recorrido o regime aprovado pela citada Concordata de 1940 e não o regime decorrente da Nova Concordata de 2004, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.° 74/2004, de 16 de novembro e que só entrou em vigor em 31 de Janeiro de 2005, após a troca dos respetivos instrumentos de ratificação (cfr. art.° 33.° da Concordata e Aviso n.° 23/2005, de 26 de janeiro), pelo que se aplica a Concordata de 1940.

8º O artigo 8.° da citada Concordata de 1940 preceituava que eram "isentos de qualquer imposto ou contribuição, geral ou locai, os templos e objectos nele contidos, os seminários ou quaisquer estabelecimentos destinados à formação do clero, e bem assim os editais e avisos afixados à porta das igrejas, relativos ao ministério sagrado; de igual isenção gozam os eclesiásticos pelo exercício do múnus espiritual.

9º Os bens e entidades eclesiásticos, não compreendidos na alínea precedente, não poderão ser onerados com impostos ou contribuições especiais.

Como muito bem decidiu o Tribunal a quo na sentença recorrida, o Recorrido nunca estaria sujeito ao pagamento da contribuição especial liquidada nem à apresentação do referido Modelo 1, pois sempre estaria o isento de tal tributo nos termos dos artigos 8.° da Concordata de 1940 e 31° da Concordata de 2004, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.° 74/2004, de 16 de nov.

NESTES TERMOS, deve o recurso apresentado pelo Fazenda Pública recorrente ser julgado improcedente, confirmando-se a douta sentença recorrida, com as legais consequências;

Assim se decidindo será cumprido o Direito e realizada JUSTIÇA!”


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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

“A decisão recorrida fixou a seguinte factualidade:

Factos provados:

1.º) O Impugnante é uma entidade canonicamente erecta e é uma pessoa jurídica coletiva de direito português - cf. fls. 46 do processo administrativo (PA), apenso a este processo de impugnação judicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

2.º) Pelo Município de Loures foi aprovada a operação de loteamento do terreno descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob a ficha n.ç….., tendo, nessa sequência sido emitido o alvará de licença de loteamento n.º02/2004, de 9 de fevereiro de 2004 - cf. docs. ínsitos no PA apenso a este processo.

3.º) Na sequência da operação de loteamento mencionada em 2), foi constituído entre outros o lote 5 da ….., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob a ficha n.º-----, desanexado do prédio mencionado em 2) - cf. fls.58 do PA apenso a este processo, cujo teor aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais.

4) A Impugnante apresentou junto dos serviços competentes da Câmara Municipal de Loures, requerimento de autorização administrativa para obra de construção no lote mencionado em 3), requerimento que ali deu entrada a 14.09.2004 (facto assumido pelo Impugnante e não posto em causa pela FP).

5) Através de escritura pública, outorgada no cartório notarial de Alverca, a 11 de novembro de 2004, o Impugnante declarou vender à sociedade O….., SA e esta declarou comprar entre outros o lote mencionado em 3) - cf. escritura pública a fls.10 a 14 do Processo de Recurso Hierárquico (RH), ínsito no PA, apenso a este processo, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

6) A 22.07.2005, foi emitido pelo Município de Loures, o alvará de autorização administrativa de construção n.º….. em nome do Impugnante - cf. doc. de fls.58 a 60 do PA apenso a este processo de impugnação, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

7) Na sequência de notificação do Impugnante, por parte da administração tributária (AT), para efeitos de apresentação de declaração Mod.1 da CE prevista no DL n.º43/98, de 3 de março, foi apresentado requerimento, pelo Impugnante, junto dos serviços da AT, datado de 03.12.2007 - cf. docs.41 a 53 do PA apenso a este processo de impugnação

8) Na sequência do mencionado em 7), foi remetido ofício ao ora Impugnante, por parte dos serviços da AT, datado de 10.12.2007 – cf. doc. de fls.55 do PA apenso a este processo de impugnação judicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

9) Foi elaborado termo de avaliação, para efeitos de liquidação da contribuição especial prevista no DL n.º54/95, de 22 de março, pelos serviços da AT, relativamente ao lote mencionado em 3) – cf. doc.de fls.34 a 37 do processo físico, cujo teor aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais.

10) Na sequência do mencionado em 9), foi emitida pela AT a 24.03.2009 em nome do Impugnante, a liquidação de CE, relativa ao Lote 5 da ….., no valor de - cf. docs. 1 e 2, juntos pelo Impugnante, com a douta petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.


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A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:

“Não existem factos não provados, face às possíveis soluções de direito com interesse para a decisão da causa.”


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A motivação da matéria de facto assentou no seguinte: “A convicção deste Tribunal, no que respeita aos factos provados, assentou na prova documental junta aos autos, conforme indicado em cada um dos factos.”



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Por se entender relevante à decisão a proferir, na medida em que documentalmente demonstrada adita-se ao probatório, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º, nº 1, do CPC, ex vi artigo 281.º do CPPT, a seguinte factualidade:

11) A Entidade “Seminário Maior de Cristo Rei” foi titular do direito de propriedade de um terreno sito na ….. e ….., na freguesia de ….., concelho de Loures, para o qual promoveu uma operação de loteamento (facto não convertido: facto alegado no artigo 2.º da p.i. e artigo 9.º da contestação e corroborado pela consulta ao processo administrativo instrutor);


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III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação de CE prevista no Decreto-Lei nº 54/95, de 22 de março, no valor de €13.698,00.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se a sentença padece de erro de julgamento por errónea apreciação dos pressupostos de facto e de direito, competindo, para o efeito, analisar se, in casu, se encontram reunidos os pressupostos para a tributação atentando, desde logo, na titularidade do direito a construir à data da emissão do alvará, improcedendo tal alegação, se a Recorrida beneficiava de alguma isenção subjetiva. Antes, porém, cumpre aferir da suscitada incompetência em razão da hierarquia.

Comecemos, então, pela arguida incompetência em razão da hierarquia suscitada pela Recorrida nas suas contra-alegações, uma vez que a infração das regras da competência em razão da hierarquia determina a incompetência absoluta do tribunal, constituindo uma questão que o tribunal deve conhecer, oficiosamente ou mediante arguição, com prioridade sobre qualquer outra (cfr. artigos 16.º, n.ºs 1 e 2, 18.º, n.º 3, do CPPT e artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT).

Apreciando.

De harmonia com o disposto no artigo 280.º, nº 1, do CPPT das decisões dos Tribunais Tributários de 1.ª Instância cabe recurso a interpor, em primeira linha, para os Tribunais Centrais Administrativos, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito, caso em que tal recurso tem de ser interposto para a Secção de Contencioso Tributário do STA (artigos 26.º, alínea b) e 38.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).

A competência, sendo um pressuposto processual afere-se pelo pedido e pela causa de pedir, ou seja, pela pretensão do autor e pelos factos com relevância jurídica, tal como são expostos pelo autor, sendo certo que não é a interpretação subjetiva desses factos que interessa à determinação da competência do tribunal mas a relevância objetiva desses factos.

Para determinação da competência hierárquica, à face do preceituado nos citados artigos 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a) do ETAF e artigo 280º, n.º 1, do CPPT, o que é relevante é que o Recorrente, nas alegações de recurso e respetivas conclusões, suscite qualquer questão de facto ou invoque, como suporte da sua pretensão, factos que não foram dados como provados na decisão recorrida.

Com efeito, o recurso não versa exclusivamente matéria de direito, se nas respetivas alegações se questionar a matéria de facto, manifestando-se divergência, por insuficiência, excesso ou erro, quanto à matéria de facto provada na decisão recorrida, quer porque se entenda que os factos levados ao probatório não estão provados, quer porque se considere que foram esquecidos factos tidos por relevantes, quer porque se defenda que a prova produzida foi insuficiente, quer porque se divirja nas ilações de facto que se devam retirar dos mesmos, quer, ainda, por o Tribunal, no âmbito dos seus poderes cognição, ter entendido fixar matéria de facto que reputou relevante para a apreciação da lide (1).

In casu, inexiste, de facto, impugnação da matéria de facto, não se discernindo qualquer aditamento seja por substituição, seja por complementação, de todo o modo atentando nas suas conclusões coadjuvado com as alegações, aquiesce-se a necessidade de juízo de valor sobre a matéria de facto.

Em bom rigor, sempre que para a apreciação do erro sobre os pressupostos de direito o Tribunal ad quem tenha que emitir uma apreciação ou um juízo de valor sobre a factualidade, independentemente da bondade ou da possibilidade de êxito da mesma, a questão envolve, necessariamente, matéria de facto.

No caso vertente, a Recorrente defende que existe uma deficiente apreciação do direito aos factos que estiveram na origem da liquidação, importando, assim, apurar se face à matéria de facto provada e atentando em nome de quem foi requerida e emitida a autorização da licença de construção o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, donde, implica juízo de valor sobre a realidade contemplada no acervo probatório, mormente, nos pontos 2) a 7).

Ademais, a alicerçar a competência do presente Tribunal está, desde logo, o aditamento de factualidade (ponto 11) pelo Tribunal ad quem e no âmbito dos seus poderes de cognição, pelo que em ordem ao consignado nos artigos 38.º, alínea a) e 26.º, alínea b) do ETAF, a competência para o seu conhecimento pertence a este Tribunal.

E por assim ser, sem necessidade de outros considerandos, improcede a exceção de incompetência absoluta deste Tribunal, em razão da hierarquia, aduzida pela Recorrida.

Vejamos, ora, se a decisão recorrida padece do erro de julgamento que lhe vem assacado.

A Recorrente defende que o entendimento propugnado pelo Tribunal a quo viola os artigos 3.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 54/95, de 22 de março, na medida em que independentemente de a Recorrida não ser já a titular do ius aedificandi no momento de emissão do alvará de licenciamento de construção referente ao prédio descrito nos autos, a verdade é que foi o Impugnante que requereu o loteamento urbano do prédio em questão, foi proprietário do lote em causa até 11 de novembro de 2004, sendo que foi também o próprio que requereu o alvará de construção, tendo o mesmo sido emitido em seu nome.

Aduz, assim, que o Recorrido é o sujeito passivo do imposto, porquanto requereu e obteve a licença de construção, sendo que não cumpriu, outrossim, as obrigações decorrentes do estipulado no Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de dezembro quanto à alteração da titularidade dos alvarás de loteamento e de construção e respetiva comunicação ao serviço de finanças competente.

Sustenta, outrossim, que também não logra provimento a argumentação gizada pelo Tribunal a quo quando sustenta que não obstante a licença de construção ter sido emitida em 2005 a mesma foi requerida em setembro de 2004, donde, em plena vigência da Concordata de 1940, uma vez que atenta a natureza do tributo o mesmo não se pode ter como englobado no elenco de isenções de tributação previstas quer na Concordata de 1940, quer na de 2004, razão pela qual a Contribuição Especial se afigura devida.

Contra-alegou a Recorrida, em sua defesa, que a sentença sob recurso efetuou uma correta interpretação e aplicação do disposto no artigo 3.º do Regulamento anexo ao Decreto-Lei n.º 54/95, de 22 de março, ao julgar procedente a impugnação, entendendo que tal norma exige a demonstração da titularidade do direito de construir independentemente do nome do sujeito que figura no alvará de licença.

Logo, estando demonstrado que a Recorrida já não era titular do direito de construir ao momento em que foi emitido em seu nome o alvará de autorização - por já não ser então a proprietária do lote – sobre a mesma não poderia ter recaído o ato de liquidação de contribuição especial por ausência de suporte legal.

A decisão recorrida assim o entendeu, tendo determinado a anulação do ato impugnado, e de facto, nenhuma censura pode ser apontada à mesma tendo interpretado correta e acertadamente o quadro jurídico com a devida transposição fática ao caso dos autos.

Senão vejamos.

Comecemos por convocar o quadro legal aplicável ao caso em apreço.

A contribuição especial visada nos presentes autos foi emitida ao abrigo do Decreto-Lei nº 54/95, de 22 de março, que aprovou o Regulamento da Contribuição Especial, devida pela valorização de imóveis decorrente da realização da EXPO 98.

Dispõe o artigo 2.º, nº1, do aludido diploma legal que: “Constitui valor sujeito a contribuição a diferença entre o valor do prédio à data em que for requerida a licença de construção ou de obra e o seu valor à data de 1 de janeiro de 1992, corrigido pelo coeficiente de desvalorização monetária.”

Mais consignando, o nº 2 do mesmo diploma legal que: “Os valores que servem para determinar a diferença são determinados por avaliação nos termos do presente Regulamento.”

Preceituando, por seu turno, o artigo 3.º relativamente à incidência subjetiva que “a contribuição é devida pelos titulares do direito de construir em cujo nome seja emitida a licença de construção ou de obra.”

Ora, da interpretação conjugada dos normativos citados resulta que a contribuição especial aqui em causa incide sobre a valorização dos prédios resultante da sua utilização como terrenos para construção provocada pela realização de obras públicas nas áreas adjacentes, sendo devida por aqueles que obtiverem o direito de construção e, por consequência, aquele benefício.

Sendo que, na interpretação e densificação do conceito “direito de construção”, ter-se-á de considerar, como claramente evidencia o Aresto do STA proferido no processo 0804/12, datado de 30 de janeiro de 2013, também convocado pelo Tribunal a quo, que:

“Na confrontação do artigo 2º com o 3º parece haver dois momentos relevantes para a determinação do tributo: o do requerimento da licença de construção e o da emissão do respectivo alvará.

O primeiro serve de ponto de referência para o cálculo do valor do prédio e o segundo constitui o momento em que se considera “realizado” o acréscimo desse valor. Como a incidência objectiva do imposto recai sobre o aumento de valor do prédio, o que revela como data da sua realização é a data em que o direito de construir se torna efectivo, o que só acontece com a emissão do alvará.”

No mesmo sentido doutrina o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 604/05 - também chamado à colação no Aresto do STA que vimos acompanhando- proferido no processo nº 813/04, ainda que versando sobre matéria da inconstitucionalidade do DL 43/98 mas transponível para o caso vertente:

“(…) A incidência objectiva do tributo recai sobre o aumento do valor do prédio ou terreno que se revela ou torna efectivo no momento em que se verifica a emissão do alvará de licença de construção, já que só com tal acto se consubstancia plenamente o acréscimo do valor patrimonial que se quer sujeitar. É o que resulta de se considerar que a data da realização é a data da emissão do alvará de licença de construção e é confirmado pela norma de incidência subjectiva (artigo 3.º do Regulamento: a contribuição é devida pelos titulares do direito de construir em cujo nome seja emitido o alvará de licença de construção ou de obra).

Na verdade, o facto gerador do tributo é o acto jurídico de licenciamento da edificação – rectius no momento em que é emitido o título correspondente – que é aquele em que o acréscimo de valor do prédio ou terreno passa de potencial a actual, e não o requerimento da licença de construção, bastando ponderar que, se o licenciamento for requerido mas vier a ser indeferido, ninguém sustentará que o tributo seja devido.

É certo que a matéria colectável se determina, mediante avaliação, pela diferença entre o valor dos imóveis à data de 1 de Janeiro de 1994, corrigido pelos coeficientes de desvalorização, e o valor actual dos prédios à data "em que for requerido o licenciamento de construção ou de obra". Porém, não é a apresentação do requerimento de licenciamento da operação urbanística que constitui o facto gerador da obrigação de imposto. Estamos aí perante uma norma que opera em benefício do sujeito passivo, congelando esse aumento de valor em momento anterior ao da ocorrência do facto essencial, com que a mais valia eclode (a emissão do alvará), assim neutralizando os efeitos da maior ou menor duração do procedimento de licenciamento que, em princípio, é imputável à Administração ou decorre de circunstâncias aleatórias que o sujeito passivo não domina.”

Feitos estes considerandos, podemos, assim, concluir e conforme doutrinado no recente Aresto deste Tribunal, proferido no processo nº 1167/09, datado de 14 de janeiro de 2020, na qual a signatária interveio como segunda adjunta e bem assim no processo nº 1156/09, de 06 de fevereiro de 2020, no qual interveio como Relatora:

“[o] conceito de titular de direito de construção para efeitos do art.º 3.º do RCE é distinto, designadamente, do de proprietário (e de titular do direito de construção) à data da apresentação do requerimento de licença de construção, podendo haver alterações subjetivas entre um momento e outro.

A este respeito, o próprio Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), aprovado pelo DL n.º 555/99, de 16 de dezembro, admite tais alterações nos procedimentos ali consagrados (cfr. n.º 9 do seu art.º 9.º).

É ainda de sublinhar que consta do já mencionado art.º 3.º do regulamento em causa uma presunção de que a titularidade do direito de construção é daquele em nome de quem seja emitida a licença de construção. Não obstante, tal presunção é ilidível.”

Com efeito, o citado artigo 3.º do RCE alicerça-se na presunção legal de que o beneficiário do direito de construir e da correspondente valorização do terreno é aquele em nome de quem foi emitido o respetivo alvará da licença de construção, porém essa presunção não é absoluta, ou seja, é passível de ser afastada, desde logo, pela concreta demonstração de que o alvará foi emitido em nome de quem efetivamente já não tinha o direito de construir (2).

Aqui chegados, vistos os conceitos de direito que relevam para o caso vertente, atentemos, então, no que resulta do recorte fático dos autos.

Da factualidade assente, resulta que a Recorrida na qualidade de proprietária de um terreno sito na ….. e na ….., na freguesia de ….., concelho de Loures, promoveu uma operação de loteamento, a qual foi aprovada pelo Município de Loures tendo, nessa sequência, sido emitido o alvará de licença de loteamento n.º ….., de 9 de fevereiro de 2004, mediante o qual foi constituído, designadamente, o lote 5 da ….., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob a ficha n.º …...

Mais dimanando que, a Recorrida a 14 de setembro de 2004, requereu ao Município de Loures, autorização administrativa para obra de construção no aludido lote, sendo que, a 11 de novembro de 2004 alienou o aludido lote 4 à sociedade “O….., S.A”.

Resultando, igualmente, assente que a 22 de julho de 2005, foi emitido alvará de autorização administrativa de construção n.º ….., em nome da ora Recorrida.

Promanando, outrossim, da factualidade assente que, a Recorrida foi notificada pela Administração Tributária, para que procedesse à entrega da declaração modelo 1, não tendo a Recorrida cumprido essa notificação, apresentando, para o efeito, requerimento a explanar as razões da discordância.

Nessa conformidade, foi dado início a procedimento de avaliação, tendo sido emitido o competente termo de avaliação e, em consequência emitida a liquidação adicional impugnada.

Ora, face ao supra aludido dimana perentório que foi a Recorrida que requereu autorização administrativa para obra de construção, e que, nessa sequência, foi emitido, em seu nome, o competente alvará de autorização administrativa, donde, presumir-se-ia que o beneficiário do direito de construção seria a, ora, Recorrida.

Porém, como visto, no interregno de tempo que mediou entre o pedido de autorização administrativa de construção e a emissão do correspondente alvará de autorização administrativa, a Recorrente alienou o lote de terreno visado na presente lide, pelo que, como é bom de ver, deixou de poder beneficiar de qualquer direito de construção, ilidindo, nessa medida, a presunção contemplada no citado normativo.

Destarte, não se encontra verificado o elemento subjetivo contemplado no artigo 3.º do RCE, visto que a Recorrida, no momento da emissão do alvará já não era titular do direito de construção não podendo, por isso, beneficiar do mesmo, donde, ser objeto de tributação em sede de contribuição especial.

De relevar, neste particular, que este é o entendimento que acolhe a ratio legis subjacente ao RCE, pois visa-se tributar a valorização que ocorre no momento em que se materializa a possibilidade de utilização dos terrenos para o fim de construção urbana, com um valor substancialmente acrescido por via das obras públicas previstas no Decreto-Lei n.º54/95, de 22 de março, as quais tornaram viável tal utilização para a construção ou reconstrução, daí resultando, para o beneficiário do direito a construir, benefícios patrimoniais acrescidos.

Ademais, só o titular do direito de construção é que possui o benefício efetivo das obras públicas, sendo que só o proprietário do prédio munido do correspondente alvará de construção dá início à edificação, cujos frutos se repercutem, necessariamente, na sua esfera jurídica.

Mais importa relevar que em nada releva a argumentação concatenada com a falta de cumprimento do estipulado no Decreto-Lei nº 555/99, quanto à alteração da titularidade do alvará de loteamento, e bem assim com a falta de comunicação junto do órgão da execução fiscal, e isto porque tais questões coadunam-se, tão-só, com obrigações declarativas sendo que o seu incumprimento em nada legitima a emissão de um ato de liquidação eivado, como visto, de vício de violação de lei.

Conforme doutrinado no já citado Aresto proferido no processo nº 1167/09, “[c]arece de qualquer relevância o alegado pela Recorrente, no tocante ao não cumprimento pelo Recorrido da obrigação de comunicação da alteração subjetiva do procedimento, prevista no art.º 9.º do RJUE, porquanto essa falta de comunicação não tem qualquer impacto na circunstância de, de facto, o Recorrido não ser titular do direito de construção à data de emissão do alvará. É evidente que, se tal comunicação tivesse ocorrido, evitar-se-ia o presente litígio, mas a sua não ocorrência não implica que não possa ser afastada a presunção prevista no art.º 3.º do Regulamento, o que, como já referimos, ocorreu.”

Na mesma linha se preconiza relativamente ao facto de não ter sido dado cumprimento ao disposto no art.º 7.º do RCE e isto porque não obstante o aludido normativo, contrariamente ao constante no citado artigo 3.º, não apelar ao conceito de titular do direito de construção, a verdade é que “[t]rata-se de disposição legal que prevê uma obrigação acessória e não uma norma de incidência, ao contrário do art.º 3.º. Ademais, sempre a interpretação das normas tem de ser sistemática e, como tal, a interpretação do art.º 7.º deve ser feita atento o disposto na globalidade do RCE, designadamente no art.º 3.º.”

E por assim, os aludidos incumprimentos em nada podem legitimar a manutenção do ato de liquidação de contribuição especial, pois em nada alteram o juízo efetuado, uma vez que, como referido, a Recorrida não era o titular do direito de construção à data da emissão do alvará de construção.

Assim, face a todo o todo exposto, conclui-se que no caso vertente a Recorrida ilidiu a presunção, atenta a demonstração de que o alvará foi emitido em nome de quem efetivamente já não tinha o direito de construir, donde a valorização do terreno que a contribuição especial visou tributar não se repercute na sua esfera jurídica mas sim em nome do atual proprietário, titular do direito de construção, razão pela qual a liquidação de contribuição padece de vício de violação de lei.

De relevar, in fine, que atento todo o exposto e a solução preconizada, resulta, necessariamente, prejudicada a análise do argumento de reforço contemplado na decisão recorrida concatenado com a isenção decorrente da Concordata.

E por assim ser, a sentença que assim o decidiu não merece qualquer censura, não padecendo dos assacados erros de julgamento, devendo ser confirmada.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Segunda Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.


Lisboa, 07 de maio de 2020

(Patrícia Manuel Pires)

(Cristina Flora)

(Tânia Meireles da Cunha)

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(1) Vide, designadamente, Acórdão do STA proferido no processo nº 0161/14, de 09 de abril de 2014 e demais jurisprudência nele citada

(2) Assim o enuncia, de forma clara, o Acórdão do STA já citado proferido no processo nº 0804/12.