Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13006/16
Secção:CA
Data do Acordão:04/07/2016
Relator:RUI PEREIRA
Descritores:AGENTE DA PSP – PROVIDÊNCIA CAUTELAR – PROCESSO DISCIPLINAR – SUSPENSÃO DE FUNÇÕES – MANIFESTA ILEGALIDADE [INCONSTITUCIONALIDADE]
Sumário:I – A norma do artigo 38º, nº 1 do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, segundo a qual “o despacho de pronúncia ou equivalente com trânsito em julgado em processo penal por infracção a que corresponda pena de prisão superior a três anos determina a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória”, padece de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32º, nº 2 da CRP, conjugado com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18º, nº 2 da mesma CRP.
II – Estando o despacho suspendendo estribado numa norma que, de acordo com sucessivos juízos expressos pelo, se afigura manifestamente inconstitucional, há fundamento para em sede cautelar, considerar preenchido o requisito de que a alínea a) do nº 1 do artigo 120º do CPTA faz depender a imediata concessão da tutela cautelar.
III – Essa inconstitucionalidade, que se afigura manifesta, contamina o despacho suspendendo, tornando evidente a procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal, com a consequente anulação do despacho suspendendo em sede de acção principal, porque estribado numa norma cuja aplicação deverá ser recusada, por desconforme com o princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32º, nº 2 da CRP, conjugado com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18º, nº 2 da mesma CRP.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:R., com os sinais dos autos, intentou no TAC de Lisboa contra o Ministério da Administração Interna um pedido cautelar de suspensão de eficácia do despacho do Director Nacional da PSP, datado de …-5-2015, que determinou a sua suspensão de funções, ao abrigo do disposto no artigo 38º, nº 1 do RD/PSP, bem como o respectivo desarmamento.
O TAC de Lisboa, por sentença datada de ..-11-2015, julgou improcedente o pedido cautelar formulado.
Inconformado, o requerente recorre para este TCA Sul, tendo concluído a sua alegação nos seguintes termos:
1. Nos presentes autos foi proferida sentença que a julgou improcedente a pretensão do recorrente e, consequentemente, indeferiu o pedido de suspensão de eficácia do despacho de … de Maio de 2015 do Director Nacional da PSP. Esta sentença, agora recorrida, padece de erro de julgamento por ter sido proferida com fundamento em pressupostos que constituem erro de interpretação da Lei, designadamente do disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 120º do CPTA.
2. Na oposição apresentada pela entidade recorrida não são impugnados especificadamente, ou de qualquer outra forma, os factos alegados pelo recorrente acerca da inexistência de despacho de pronúncia nem das receitas e correspondentes despesas que apresentou. Sobre esta entidade recaía o ónus previsto no nº 1 do artigo 574º do CPC. Por outro lado, a oposição, na sua globalidade, não contradiz estes factos, pelo que foram admitidos por acordo.
3. Deste modo foram admitidos os seguintes factos:
• A parte do artigo 21º da petição inicial que alega não existir o despacho de pronúncia exigido pelo nº 1 do artigo 38º do RD/PSP;
• A remuneração do requerente indicada no artigo 27º e a respectiva diminuição indicada no artigo 30º, ambos da petição inicial, resultando que, após a aplicação do acto a suspender, a remuneração liquida do recorrente passa a ser de 494,18 €;
• Todas as despesas indicadas no artigo 34º da petição inicial;
4. Portanto, por acordo ou através de documentos juntos com a petição inicial o recorrente provou o seguinte:
• Não foi proferido despacho de pronúncia;
• Antes da prática do acto a suspender o recorrente recebia o vencimento [remuneração base e outros abonos] mensal ilíquido de 1.484,84 € a que corresponde o valor ilíquido de 1.022,01 €;
• Com a prática deste acto o recorrente deixa de auferir os valores indicados no artigo 30º da petição inicial, passando a receber o valor líquido mensal de 494,18 €;
• A existência de todas as despesas mensais apresentadas no artigo 34º da petição inicial, incluindo as estimativas de transportes e de alimentação e vestuário, no valor de 70 € e 500 € mensais, respectivamente.
5. Por tudo isto, é evidente que a falta de despacho de pronúncia torna manifestamente ilegal a aplicação do nº 1 do artigo 38º do RD/PSP, na medida em que falta um requisito indispensável para a aplicação: o despacho de pronúncia do recorrente pela prática de infracção a que corresponda pena de prisão superior a três anos. Assim, a providência cautelar requerida devia ser decretada ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 120º do CPTA.
6. De igual modo, ficou provada a existência de periculum in mora para efeitos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 120º do CPTA. O recorrente auferia o vencimento mensal líquido de 1.022,01 € e, após a prática do acto a suspender passa a receber o montante líquido mensal de 491,18 €, mas as despesas mensais fixas mantêm-se em 1.119,51 €.
7. Esta diminuição da remuneração mensal, superior a 500 €, impede o recorrente de fazer face às despesas necessárias para a sobrevivência do seu agregado familiar, ficando impossibilitado de dar resposta às despesas essenciais deste agregado.
8. Também se encontram reunidos os restantes requisitos necessários ao decretamento da providência cautelar requerida, conforme demonstração realizada na petição inicial. Assim torna-se evidente a existência dos requisitos exigidos na alínea b) do nº 1 do artigo 120º do CPTA.
9. Por tudo o que aqui ficou exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso.”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
A Digna Magistrada do Ministério Público junto deste TCA Sul emitiu douto parecer, no qual sustenta que o recurso não merece provimento.
Sem vistos, vêm os autos à conferência para julgamento.

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença recorrida considerou assente a seguinte factualidade:
i. Na sequência da carta proveniente da Directora da Clínica …, datada de …-5-2014, sobre os factos ali ocorridos no dia …-5-2014, foi instaurado contra o requerente processo disciplinar por despacho do Comandante da Divisão Policial de Loures, do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, de …-6-2014 – cfr. fls. 3-7 e 10 do processo instrutor;
ii. Os factos ali narrados foram, por sua vez, comunicados pela PSP aos serviços do Ministério Público junto do Tribunal de Torres Vedras que determinou, em 10-11-2014, a instauração do inquérito com o nº …/14.5PATVD em que é denunciado o ora requerente em funções na …ª Esquadra de … – cfr. fls. 15 do processo instrutor;
iii. Em 10-2-2015, no âmbito desse processo-crime NUIPC nº …/14.5PATVD, o Ministério Público deduziu acusação contra o ora requerente imputando-lhe a prática de um crime de coacção agravada, previsto e punido pelos artigos 154º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), por referência ao artigo 131º do Código Penal, vindo a ser agendada a realização da audiência de julgamento para o dia 2-11-2015 e, em caso de adiamento para o dia 5-11-2015 – cfr. fls. 29-31 do processo instrutor;
iv. Na sequência da acusação deduzida pelo Ministério Público contra o aqui requerente, por despacho do Director Nacional de …-5-2015, foi determinada, nos termos do nº 1 do artigo 38º do RD/PSP, aprovado pela Lei nº 7/90, de 20 de Fevereiro, a sua suspensão de funções até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória, bem como o seu desarmamento, devendo apresentar-se no dia imediato a qualquer das decisões, sem necessidade de notificação para o efeito – cfr. fls. 33-38 do processo instrutor;
v. O requerente foi notificado do conteúdo do despacho de suspensão de funções no dia 29 de Maio de 2015 – cfr. fls. 39-42 do processo instrutor;
vi. O requerente foi alistado na PSP em …-4-2002 não constando até à emissão da nota de assentos em 17-6-2015 qualquer registo de penas disciplinares e sanções acessórias – cfr. doc. 2 junto com o RI;
vii. Na nota de assentos do requerente na PSP consta que foi agraciado com as seguintes condecorações:
- Medalha de Cobre de Comportamento Exemplar, publicada no DR, II Série, nº 1, de …-1-2011;
- Medalha de Assiduidade de 1 Estrela, publicada no DR, II Série, nº 50, de …-3-2014 – cfr. doc. 2 junto com o RI;
Mais se provou que:
viii. O requerente vive em economia comum com a mulher e duas filhas [uma enteada] em idade escolar – cfr. doc. 2 junto com o RI e declaração de IRS referente ao ano de 2014 e demonstração de liquidação junta com o requerimento de 6-8-2015;
ix. O requerente e a sua cônjuge auferiram no ano de 2014 de rendimento global bruto o montante de € 21.932,53 – cfr. referida declaração de IRS;
x. O recibo de vencimento de Maio de 2015 do requerente, o último antes de ser suspenso de funções, ascende ao montante total líquido de € 1.099,19 [incluindo os subsídios], o que significa que sem o duodécimo de subsídio de Natal o vencimento líquido mensal ascende a € 1.022 – cfr. doc. 5 junto com o RI;
xi. A mulher do requerente aufere um salário líquido mensal no valor de € 282,04 – cfr. doc. 6 junto com o RI;
xii. O requerente tem um encargo mensal com a amortização do empréstimo relativo à aquisição da casa própria no valor de € 250,56 – cfr. doc. 7 junto com o RI;
xiii. O requerente tem um encargo mensal com o seguro da casa no valor de € 14,01 – cfr. doc. 8 junto com o RI;
xiv. O requerente tem um encargo mensal com o seguro do veículo de matrícula 17-..-42 no valor de € 18,37 – cfr. doc. 9 junto com o RI;
xv. O requerente teve um encargo mensal em Maio de 2015 relativo a serviços prestados pela “MEO” [Pacotes, internet, telefone e telemóvel] de € 84,80 – cfr. doc. 10 junto com o RI;
xvi. O requerente teve um encargo mensal [entre 4-3-2015 e 6-4-2015] relativo a água de € 30,80 – cfr. doc. 11 junto com o RI;
xvii. O requerente teve um encargo mensal [entre 26-3-2014 e 25-4-2015]
relativo a electricidade de € 57,38 – cfr. doc. 12 junto com o RI;
xviii. O requerente teve um encargo mensal em Abril de 2015 relativo a gás
propano canalizado de € 30,93 – cfr. doc. 19 junto com o RI;
xix. A filha do casal, L., frequentou durante o ano de 2014 a EB1/J1 de … [JI], o que gerou uma despesa total de € 221,92 – cfr. doc. 23-A junto com o RI.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Como decorre dos autos, a providência cautelar foi indeferida pelo TAC de Lisboa, que entendeu não ser evidente a manifesta ilegalidade da decisão suspendenda, nomeadamente por não vislumbrar na norma em que se fundamentou o despacho suspendendo qualquer resquício ou evidência de inconstitucionalidade e, por conseguinte, descartou a concessão da tutela cautelar ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 120º do CPTA.
E, relativamente aos demais requisitos previstos no artigo 120º do CPTA, entendeu que não estava verificado o “periculum in mora”, pelo que se absteve de ir mais além, nomeadamente efectuando o juízo de ponderação previsto no nº 2 do normativo em causa.
Deste entendimento discorda o recorrente, reiterando que a falta de despacho de pronúncia torna manifestamente ilegal a aplicação do nº 1 do artigo 38º do RD/PSP, na medida em que falta um requisito indispensável para a aplicação, ou seja, o despacho de pronúncia do recorrente pela prática de infracção a que corresponda pena de prisão superior a três anos, razão pela qual a providência cautelar requerida devia ser decretada ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 120º do CPTA. E, por outro lado, defende também que ficou provada a existência de “periculum in mora” para efeitos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 120º do CPTA.
Vejamos o que dizer.
Antes de entrar propriamente na análise dos fundamentos do recurso, importa afirmar que o julgador cautelar não está impedido de controlar uma eventual inconstitucionalidade de normas infraconstitucionais, na medida em que o artigo 204º da CRP lhe atribui essa faculdade, além do que o TC já reconheceu que a tutela cautelar não é “uma área de jurisdição estanque aos imperativos de constitucionalidade” [cfr. acórdão do TC nº 624/09, de 2-12-2009].
Quer isto dizer que o juiz, em sede de recurso, não fica impedido de reapreciar a decisão do tribunal de 1ª instância, se discordar dos fundamentos desta, no tocante a uma concreta questão de constitucionalidade suscitada pelo requerente da providência e que tenha sido desatendida pela decisão em recurso.
Em concreto, a questão prende-se com a conformidade constitucional do artigo 38º, nº 1 do RD da PSP, aprovado pela Lei nº 7/90, de 20/2, segundo o qual “o despacho de pronúncia ou equivalente com trânsito em julgado em processo penal por infracção a que corresponda pena de prisão superior a três anos determina a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória”, que a decisão recorrida considerou não afrontar os princípios constitucionais da presunção de inocência, da igualdade, e da proporcionalidade [cfr. fls. 15/17 da decisão recorrida].
O Tribunal Constitucional apreciou recentemente em dois acórdãos – acórdão nº 62/2016, de 3-2-2016, e acórdão nº 107/2016, de 24-2-2016 – a questão da conformidade constitucional do mencionado artigo 38º, nº 1 do RD da PSP, em ambos tendo concluído [por unanimidade] pela inconstitucionalidade do normativo em causa, por violação do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32º, nº 2 da CRP, conjugado com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18º, nº 2 da mesma CRP.
Os fundamentos invocados para alcançar o apontado juízo de inconstitucionalidade foram os seguintes:
[…]
2. A questão de constitucionalidade que vem colocada, e que originou a recusa de aplicação de norma pelo tribunal recorrido, reporta-se ao artigo 38º, nº 1, do Regulamento Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei nº 7/90, de 20 de fevereiro, e que dispõe do seguinte modo:
"O despacho de pronúncia ou equivalente com trânsito em julgado em processo penal por infração a que corresponda pena de prisão superior a três anos determina a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória.
Norma de idêntico teor constava do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de janeiro (artigo 6º) e já provinha do Estatuto Disciplinar de 1979 (artigo 6º), do Estatuto Disciplinar de 1943 (artigo 6º) e do Código Administrativo (artigo 562º), ainda que, nesses casos, o efeito de suspensão de funções se encontrasse relacionado com a prolação de despacho de pronúncia em processo de querela ou por algum dos crimes enunciados no § único do artigo 7º do Código Penal.
O Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, aprovado pela Lei nº 58/2008, de 9 de setembro, bem como o regime disciplinar que lhe sucedeu, inserido na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGT), e se encontra atualmente em vigor, já não contemplam a suspensão de exercício de funções como efeito do despacho de pronúncia, e limitaram-se a determinar a obrigatoriedade de comunicação do despacho de pronúncia, por parte do Ministério Público, ao órgão ou serviço em que o trabalhador desempenha funções (artigos 7º, nº 1, e 179º, nº 1, respetivamente).
O que significa que, no regime disciplinar geral atualmente vigente, o despacho de pronúncia proferido em processo penal, na medida em que pressupõe a recolha de indícios suficientes da prática de um crime, de que possa resultar uma probabilidade razoável de que ao arguido venha a ser aplicada uma pena, apenas justifica que se dê conhecimento ao dirigente do serviço com competência disciplinar para avaliar a conveniência da instauração de procedimento disciplinar, se os factos tiveram relevância nesse plano, e, eventualmente, se adotarem medidas cautelares, que poderão incluir a suspensão preventiva do exercício de funções do arguido quando a sua presença se revele inconveniente para o serviço (artigo 211º da LGT).
A suspensão do exercício de funções nos termos do artigo 38º, nº 1, do Regulamento Disciplinar da PSP tem, no entanto, um diferente alcance, visto que se traduz numa necessária consequência da pronúncia e, por isso, num efeito que a lei faz derivar direta e automaticamente de um ato processual penal, independentemente de prévia instauração de procedimento disciplinar ou de audiência do arguido ou de qualquer outra ponderação sobre a oportunidade de afastamento do arguido da sua normal atividade profissional.
Em todo o caso, cabe fazer notar que a suspensão do exercício de funções, para além de se encontrar dependente da prova indiciária de que o arguido é responsável pelos factos que integram a prática de crime, apenas tem lugar quando a infração é punível com pena de prisão superior a três anos, tornando-se, por isso, exigível um especial índice de gravidade penal, que correspondia também ao preenchimento do requisito necessário para a imposição ao arguido de prisão preventiva ou para a aplicação de pena de prisão efetiva (artigos 202º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal e 50º, nº 1, do Código Penal, na redação anterior à reforma de 2007, vigente à data da publicação do Regulamento Disciplinar da PSP).
Por outro lado, importa ter em consideração que, em face do específico estatuto disciplinar dos agentes da PSP, é a prática de certo tipo de crimes, e não de todo e qualquer crime, que conduz à aplicação de uma medida disciplinar expulsiva (artigo 47º, nº 2, alíneas b) e g)), pelo que a suspensão de exercício de funções prevista no falado artigo 38º do Regulamento Disciplinar da PSP não pode ser vista como uma medida cautelar inerente à possível aplicação de uma pena de demissão ou de aposentação compulsiva que seja tendencial ou necessariamente decorrente da imputação dos factos pelos quais o arguido é pronunciado.
Não estamos aqui, em todo o caso, perante uma restrição de direitos que implique a antecipação da aplicação de uma pena ou um qualquer juízo ético-jurídico de censura sobre os factos criminalmente puníveis, assim como não se trata de uma pena acessória ou de um efeito que se encontre associado à condenação penal. A suspensão do exercício de funções decorrente da prolação do despacho de pronúncia constitui antes um efeito de direito que, sendo desencadeado por um mero ato processual penal, se repercute na relação de emprego público e representa, por isso, uma consequência jurídica de natureza estritamente disciplinar.
Isso é o que também resulta da inserção sistemática da norma no âmbito das disposições gerais atinentes à responsabilidade disciplinar e do facto de o mesmo preceito, concomitantemente, impor às entidades judiciárias o dever de comunicação do despacho de pronúncia ao órgão dirigente da PSP para efeitos disciplinares (nº 3). E assim se compreende que, nos termos da mesma disposição, a suspensão de efeitos se mantenha até à decisão final absolutória ou até à decisão final condenatória, o que parece significar que, não se verificando a caducidade por efeito de uma sentença que absolva o arguido da prática do crime, a medida extingue-se pela sua substituição, em caso de sentença condenatória, por uma pena acessória de proibição do exercício de função, cuja aplicação depende da valoração feita pelo tribunal de julgamento segundo os critérios gerais da determinação da pena, ou pela suspensão do exercício da função durante o cumprimento da pena de prisão, como efeito conatural à própria restrição de liberdade inerente à execução da pena de prisão (artigos 66º e 67º do Código Penal).
E, sendo assim, só na sequência de uma condenação penal é que a proibição ou a suspensão do exercício de função pode ser tida como uma sanção penal ou como um efeito material de uma sanção penal (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, 2ª edição, Universidade Católica, págs. 259 e 261).
Ao contrário, a suspensão de exercício de funções como efeito automático da prolação do despacho de pronúncia, como prevê o artigo 38º do Regulamento Disciplinar da PSP, tem incidência meramente disciplinar, refletindo-se apenas na relação laboral existente entre a entidade empregadora e o trabalhador.
3. A garantia de audiência e defesa do arguido decorre, para os trabalhadores da Administração Pública, como um elemento central do estatuto da função pública, do disposto no artigo 269º, nº 3, da Constituição, mas que a revisão constitucional de 1989 tornou extensiva aos processos de contraordenação e aos demais processos sancionatórios (artigo 32º, nº 10). No entanto, da garantia de audiência e defesa não é possível retirar uma extensão ao processo disciplinar da generalidade do regime substantivo em matéria penal. O preceito constitucional apenas releva no plano adjetivo e significa que é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (acórdão do Tribunal Constitucional nº 180/14).
Tem-se admitido, em todo o caso, que os princípios da constituição criminal, e especificamente os previstos nos artigos 29º e 32º da CRP, apesar de se restringirem no seu teor literal ao direito criminal, devam valer, no essencial, e por analogia, para todos os domínios sancionatórios: o princípio da legalidade das penas, o princípio da não retroactividade e o princípio da lei mais favorável ao arguido e o princípio da culpa (acórdãos do TC nºs 161/95, 227/92, 574/95 e 160/2004). A jurisprudência constitucional tem igualmente admitido, em processo disciplinar, o princípio da presunção de inocência do arguido, como decorrência do direito a um processo justo, não apenas na sua vertente probatória, correspondendo à aplicação do princípio "in dubio pro reo", pelo qual é à Administração que cabe o ónus da prova dos factos que integram a infração, quer ao nível do próprio estatuto ou condição do arguido em termos de tornar ilegítima a imposição de qualquer ónus ou restrição de direitos que, de qualquer modo, representem e se traduzam numa antecipação da condenação (assim, o acórdão do TC nº 123/92, que julgou inconstitucional a norma que determina, na sequência da prolação do despacho de pronúncia, e durante a suspensão do exercício de funções da mesma decorrente, a perda da totalidade do vencimento).
Analisando à luz desse parâmetro de constitucionalidade, a norma do artigo 6º, nº 1, do Estatuto Disciplinar de 1984 (que tinha plena correspondência com a norma agora sindicada), o acórdão do Tribunal Constitucional nº 439/87, pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade, consignando, no essencial, o seguinte:
"Mas essa garantia [a presunção de inocência do arguido] não torna ilegítima toda e qualquer suspensão de funções do arguido, que seja funcionário ou agente, aplicada antes do trânsito em julgado da sentença de condenação. A própria prisão preventiva é admitida pela Constituição, «pelo tempo e nas condições que a lei determinam, no caso de «flagrante delito» ou «por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena maior» (-). A suspensão só será constitucionalmente ilegítima quando viole o princípio da proporcionalidade, «o qual – como se lê no citado acórdão nº 282/86 – encontra afloramento no artigo 18º, nº 2, da Constituição e sempre há-de reputar-se como componente essencial do princípio do Estado de direito democrático (cfr. o artigo 2º)".
Ora, fundando-se a suspensão de funções cominada no nº 1 do artigo 6º do Estatuto Disciplinar (-) na «defesa do prestígio dos serviços» (-), sendo ela consequência de «despacho de pronúncia em processo de querela com trânsito em julgado» e determinando tal suspensão apenas a suspensão do «vencimento de exercício» – que é constituído por um sexto do vencimento total (-), não se afigura que com ela saia violado o princípio da proporcionalidade.
Poderá dizer-se que as considerações de índole funcional que, na perspetiva desse acórdão, podem justificar o afastamento do serviço efetivo em relação ao trabalhador em funções públicas, por efeito da prolação do despacho de pronúncia em processo-crime, valem por maioria de razão para os agentes dos serviços e das forças de segurança.
Desde logo, porque esses agentes dispõem de um estatuto jurídico-constitucional próprio.
O artigo 270º da Constituição, na redação introduzida pela revisão constitucional de 2001, ainda que inserido no título referente à Administração Pública – o que permite pressupor a sua aplicação a uma categoria de pessoas que se integram ainda no conceito de trabalhadores da Administração Pública –, consagra expressamente, na estrita medida das exigências das suas funções próprias, a possibilidade de a lei estabelecer restrições a alguns direitos, liberdades e garantias, em relação a «militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efetivo», bem como «agentes dos serviços e das forças de segurança», embora com alguma diferença de grau entre estas diferentes categorias.
O que tem também reflexo, no que diz respeito ao pessoal policial, no respetivo estatuto profissional, que é caracterizado, não apenas pela restrição a alguns direitos e liberdades, mas também pela sujeição a um conjunto de princípios orientadores e deveres especiais, que justificam o reconhecimento da sua especificidade face aos demais trabalhadores da Administração Pública. O que permite compreender que o pessoal policial, para além da sujeição aos deveres gerais aplicáveis aos trabalhadores que exercem funções públicas, se encontre também subordinado a um código deontológico próprio e a estatuto disciplinar especial (artigos 4º e 13º do Decreto-Lei nº 299/2009, de 14 de outubro).
Condicionamentos estes que estão associados naturalmente às atribuições próprias da PSP, entre as quais, se destaca a prevenção da criminalidade em geral e o desenvolvimento de ações de investigação criminal e contraordenacional (artigo 2º, nº 2, alíneas c) e e), da lei nº 53/2007, de 31 de agosto).
A medida de suspensão automática de funções, em consequência da emissão do despacho de pronúncia em processo-crime instaurado contra um agente da PSP, pode ser encarada, por isso, como um medida cautelar destinada a preservar, independentemente de qualquer outra ponderação, a integridade e o prestígio da função policial na sua relação com os cidadãos e o público em geral.
Como se assinalou no acórdão nº 123/92, o princípio da presunção da inocência do arguido não proíbe a antecipação de certas medidas cautelares e de investigação, e, como no caso do processo disciplinar, a suspensão provisória do exercício de funções.
A questão que no caso vertente se coloca é que uma tal medida surja como efeito automático da prolação do despacho de pronúncia, sem qualquer ponderação de um juízo de necessidade no contexto do caso concreto. A sujeição do arguido a uma medida, ainda que de natureza cautelar, que se baseie num juízo de probabilidade de futura condenação viola prima facie o princípio da presunção de inocência que se encontra constitucionalmente garantido até à sentença definitiva, pois que é aplicada com o exclusivo fundamento numa presunção de culpabilidade.
Por outro lado, não parece que uma tal medida, ainda que encontre a sua razão de ser em considerações de ordem funcional, se mostre justificada à luz do ordenamento jurídico, sendo possível divergir, neste estrito plano, do juízo que genericamente foi formulado no citado acórdão nº 439/87.
Na verdade, a própria norma do artigo 38º, nº 1, do Regulamento Disciplinar da PSP, em consonância com o que também dispõe atualmente o regime disciplinar dos trabalhadores em funções públicas (artigo 179º da LGT), prevê o dever de comunicação do despacho de pronúncia à entidade com competência disciplinar, que poderá com base nos mesmos factos instaurar procedimento disciplinar, e, nesse âmbito, instituir a medida cautelar de suspensão preventiva do arguido sempre que a sua manutenção em funções seja inconveniente para o serviço ou para o apuramento da verdade (artigo 74º, nº 1).
Por outro lado, a possibilidade de aplicação da suspensão preventiva por iniciativa da entidade administrativa que ordene a instauração do processo disciplinar, ou, no decurso desse processo, por proposta do instrutor (nº 2) – e ainda que se encontre pendente um processo-crime pelos mesmos factos –, é a necessária decorrência do princípio da autonomia do processo disciplinar relativamente ao processo penal (cfr. artigo 179º, nºs 3 e 4, da LGT), e que tem, entre outras, as seguintes consequências: (a) é possível a aplicação de duas sanções – a disciplinar e a criminal – sem violação do princípio non bis in idem; (b) o caso julgado absolutório penal não impede que os mesmos factos sejam considerados provados em matéria disciplinar; (c) a Administração não está vinculada aos resultados probatórios obtidos em processo-crime, podendo decidir, segundo a sua livre convicção, em termos divergentes do caso julgado penal; (d) sendo imputado ao arguido em processo disciplinar os mesmos factos que constituem matéria de acusação em processo-crime, não há motivo para a suspensão do procedimento até que seja proferida decisão final no processo-crime (sobre todas estas questões, cfr. os acórdãos do TC nºs 161/95 e 263/94, e os acórdãos do STA de 12 de maio de 2005, Processo nº 930/04, de 4 de dezembro de 1997, Processo nº 36.390, de 21 de maio de 2008, Processo nº 989/07, de 21 de janeiro de 2011, Processo nº 1079/09, de 14 de outubro de 1993, Processo nº 31.885 e de 9 de maio de 1995, Processo nº 35.837).
Nada justifica, por conseguinte, mesmo à luz do princípio da proporcionalidade (numa dimensão da necessidade), que, em benefício dos interesses funcionais dos serviços, se verifique a suspensão do exercício de funções por efeito de um ato processual penal, quando está na disponibilidade da Administração, independentemente da prossecução do processo penal e da decisão final que nele venha a ser proferida, decretar uma medida cautelar instrumental de idêntico alcance e pela qual é possível atingir as mesmas finalidades de prevenção geral.
Não pode ignorar-se, por outro lado, que a obrigatoriedade do processo disciplinar, que se encontra consagrada na lei (artigos 194º e 298º da LGT), deve entender-se como uma das regras ou princípios que caracterizam o estatuto específico da função pública, com assento constitucional e que decorre essencialmente do disposto nos artigos 269º e 271º° da Lei Fundamental (cfr., neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional nº 154/2010).
Ora, só por via do procedimento disciplinar, em que seja assegurada a garantia de audiência e defesa do arguido, é que é possível fazer cessar o vínculo de emprego público por motivo disciplinar, e só nessa sede é admissível a adoção de medidas cautelares que se destinem a proteger, na pendência do procedimento, a capacidade funcional da Administração, e que sempre depende, por aplicação de um princípio de proporcionalidade, de um juízo de ponderação da necessidade da medida nas circunstâncias do caso concreto.
Tudo leva a concluir no sentido da inconstitucionalidade da norma sub judicio por violação do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32º, nº 2, da Constituição, entendido em articulação com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18º, nº 2, ficando consequentemente prejudicada a apreciação do princípio da igualdade que serviu igualmente de parâmetro para o julgamento feito pelo tribunal recorrido.”.
Concorda-se integralmente com a fundamentação transcrita, pelo que haverá agora que retirar as devidas consequências em sede do presente processo cautelar.
No fundo, o que se pretende saber é se estando o despacho suspendendo estribado numa norma que, de acordo com o juízo acima expresso do TC, se afigura manifestamente inconstitucional, não haverá fundamento para em sede cautelar, considerar preenchido o requisito de que a alínea a) do nº 1 do artigo 120º do CPTA faz depender a imediata concessão da tutela cautelar. Ou, dito de outro modo, se essa manifesta inconstitucionalidade não contamina o despacho suspendendo, tornando evidente a procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal.
Quanto a nós, a resposta não pode deixar de ser positiva, ou seja, face aos sucessivos juízos de desconformidade constitucional da norma em causa acima referidos, temos por evidente que o despacho suspendendo será anulado em sede de acção principal, porque estribado numa norma cuja aplicação deverá ser recusada, por desconforme com o princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32º, nº 2 da CRP, conjugado com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18º, nº 2 da mesma CRP.
E, sendo assim, a decisão recorrida não pode manter-se, devendo ser concedida a tutela cautelar ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 120º do CPTA [na versão aqui aplicável], com fundamento na manifesta ilegalidade [por inconstitucionalidade] da norma ao abrigo da qual foi determinada a suspensão de funções do recorrente [o mencionado artigo 38º, nº 1 do RD/PSP], bem como o respectivo desarmamento.

IV. DECISÃO
Nestes termos, e pelo exposto, concedendo-se provimento ao presente recurso, revoga-se a sentença recorrida e suspende-se a eficácia do despacho do Director Nacional da PSP, datado de …-5-2015, que determinou a suspensão de funções do recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 38º, nº 1 do RD/PSP, bem como o respectivo desarmamento.
Custas a cargo do Ministério da Administração Interna.
Lisboa, 7 de Abril de 2016


[Rui Belfo Pereira – Relator]


[Pedro Marchão Marques]


[Helena Canelas]