Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:254/18.6BECTB
Secção:CA
Data do Acordão:04/30/2020
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:CONTRAORDENAÇÃO URBANÍSTICA;
EDIFICADO.
Sumário:I - São puníveis com contraordenação (com coima) a não conclusão das operações urbanísticas referidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 89º do RJUE nos prazos fixados para o efeito.

II - O que está em causa no tipo legal de contraordenação descrito no artigo 89º do RJUE, antes previsto nos artigos 9º e 10º do RGEU, punido no artigo 98º/1-s), são imperiosas obras de conservação de um edificado ou obras de demolição (de um edificado), por causa de razões de segurança, salubridade ou arranjo estético.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

C............, LDA.., com sede no Parque Industrial………, Rua ….., Lote ….., Tortosendo, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de CASTELO BRANCO processo de recurso contra decisão de aplicação de coima urbanística proferida pelo Vereador do Pelouro do Urbanismo da CÂMARA MUNICIPAL DA COVILHÃ em 10.04.2018, que aplicou uma coima no valor de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), acrescida de custas no montante de €51,00 (cinquenta e um euros), por infração do disposto no artigo 89º, nº 2, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.

Por sentença, o tribunal a quo decidiu anular a decisão de aplicação da coima e absolver a Recorrente – C............, LDA.. – da prática da contraordenação prevista nos termos da alínea s) do nº 1 do artigo 98º do Regime Geral das Contraordenações.

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Inconformado, o MP interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação o seguinte quadro conclusivo:

1-Constitui objecto do presente recurso a douta sentença absolutória proferida pela Mma Juíza nos autos contra-ordenacionais supra referidos.

2-Com todo o respeito, não concordamos com a douta decisão proferida, pelas razões que passaremos a expor.

3-Ora, efectivamente perante a referida factualidade dada como provada e atendendo às regras da experiência comum não se compreende que a sociedade arguida tenha sido absolvida.

4-Com efeito, a prova testemunhal produzida em audiência não contrariou o auto de notícia, nem os fundamentos da decisão recorrida. Por outras palavras, ainda que tenha havido limpeza do terreno, a mesma não ocorreu em tempo conforme notificação efectuada, pelo que deve haver sanção contra-ordenacional.

5-Pelo exposto impunha-se, ao invés, a conclusão contrária, condenando, sob pena de erro notório na apreciação da prova e de matéria de facto dada como provada insuficiente para a decisão de direito

6-Pelas razões expostas, a douta decisão mostra-se inquinada de insuficiência erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no art. 410º, nº 2, al. a) e c) do Código de Processo Penal(1), razão pela qual sempre deverá ser, pelo menos, determinado o reenvio do processo para novo julgamento, de acordo com o disposto no artigo 426º do Código de Processo Penal.

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A recorrida arguida contra-alegou, concluindo assim:

1ª - O artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal, estabelece que “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiencia comum: (…) c) Erro notório na apreciação da prova”.

2ª - O erro notório na apreciação da prova trata-se de um vício de raciocínio de apreciação das provas e verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e ainda as regras da experiência comum, o qual terá de constar do teor da própria decisão de facto e não da motivação dessa decisão ou da fundamentação de direito.

3ª - Fundamentou a Mmª Juiz a quo a sua convicção para dar como provada a factualidade constante dos pontos 1 a 16 que aqui importa considerar, conjugando os seguintes elementos probatórios: i) análise dos documentos e informações oficiais não impugnados e juntos aos autos, nomeadamente o Auto de Notícia e a decisão administrativa de fixação da coima; ii) sendo que, quanto aos pontos 8 a 16 da factualidade provada, tal resultou dos depoimentos das testemunhas P............ e R............, ambas arroladas pela aqui Recorrida e com conhecimento directo dos factos, as quais apresentaram um discurso sereno e coerente.

4ª - Analisada atentamente a matéria de facto julgada provada dela não consta manifestamente que a mesma não tenha ocorrido em tempo, conforme notificação efectuada, tal como alega o Ministério Público, pelo que é, evidente, que nunca estaríamos perante um erro notório na apreciação da prova, porque tal facto não contraria, de forma frontal e clara, as regras da experiência comum, antes, se coaduna perfeitamente com a prova produzida.

5ª - Mesmo que se admita que as testemunhas não conseguissem localizar bem no tempo a vistoria a que se referem os autos ou a data em que procederam à limpeza e remoção do ordenado – o que não se concede – nunca daqui poderia resultar que a limpeza do terreno não ocorreu tempestivamente, uma vez que resulta da factualidade provada que a Recorrida procedeu ao corte e limpeza da vegetação existente e removeu os resíduos e detritos depositados no logradouro do prédio sua propriedade, sendo que, contudo, tal acto ocorreu em data que não foi possível apurar.

6ª – Ora, não ter sido possível apurar em audiência de julgamento a data em que a Recorrida procedeu ao corte e limpeza da vegetação e à remoção dos resíduos e detritos depositados no logradouro do prédio significa, tão só, que ao tribunal a quo, não foi possível apurar o dia exacto em que tais actos de corte e limpeza de vegetação e remoção de resíduos foram praticados, não significando, assim, que tais actos foram praticados em prazo desconforme à notificação da Câmara Municipal, tal como é entendimento da digna Magistrada do Ministério Público.

7ª - O que sempre legitimaria, em caso de dúvida, a aplicação do princípio do in dúbio pro reo, princípio geral do processo penal, que constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.

8ª - Sendo, no entanto, de relevar que é a própria autoridade administrativa que, no âmbito da sua decisão proferida, admite que a aqui Recorrida cortou a vegetação e removeu os respectivos sobrantes, não admitindo, contudo, que esta tenha procedido à remoção dos resíduos e detritos que se encontravam depositados no prédio, tal como havia sido ordenado.

9ª - Raciocínio este que não tem qualquer lógica e coerência, uma vez que, tendo sido admitido que a Recorrida cortou a vegetação, sempre seria de admitir que também removeu os resíduos, nem que seja porque os mesmos, logicamente, se encontravam depositados em cima da dita vegetação, a qual se admite, por parte da autoridade administrativa, ter sido cortada e removida por aquela.

10ª - In casu, a sentença recorrida está bem fundamentada quanto à apreciação crítica que faz da prova, credibilizando a versão das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, apoiando-se, de igual modo, noutros elementos probatórios tais como o Auto de Notícia e a decisão administrativa, e sabendo apreciar e conjugar de forma lógica e coerente os factos, de acordo com a observância das regras da experiência e da livre convicção.

11ª - Acresce que não se verifica qualquer contradição da fundamentação, porquanto, através de um raciocínio lógico, verifica- se que a decisão se encontra bem fundamentada e suficientemente esclarecida, pelo que, dúvidas não restam, que a invocação de tal vício deve improceder.

12ª - Dispõem os nºs 1 e 2, do artigo 89º, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, sob a epígrafe “Dever de conservação” que “1 - As edificações devem ser objeto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, devendo o proprietário, independentemente desse prazo, realizar todas as obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético; 2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a câmara municipal pode a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, determinar a execução de obras de conservação necessárias à correção de más condições de segurança ou de salubridade ou à melhoria do arranjo estético” e o artigo 98º, nº 1, alínea s), do aludido RJUE, preceitua, por seu turno que “Sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal ou disciplinar, são puníveis como contraordenação: (…) s) A não conclusão das operações urbanísticas referidas nos nºs 2 e 3 do artigo 89º nos prazos fixados para o efeito.”

13ª – Resulta, assim, que são elementos constitutivos do tipo objectivo da contra-ordenação em causa, em primeiro lugar, a determinação de obras de execução pela Câmara Municipal e, por fim, a não conclusão das operações urbanísticas determinadas.

14ª - A Recorrida foi notificada para proceder à limpeza e corte de vegetação e remoção de resíduos e detritos que se encontravam no logradouro de um prédio sua propriedade, não se inserindo tais actos no âmbito da realização de operações urbanísticas de conservação, mas apenas na limpeza do logradouro, pelo que tal contra-ordenação nunca seria punível nos termos do artigo 98º, nº 1, alínea s), do RJUE, sendo, pois, de concluir que os factos imputados à Recorrida não preenchem os elementos objectivos do tipo legal de ilícito pelo qual foi aplicada a sanção, e, por isso, nesta senda, sempre teria de se absolver a Recorrida, sendo de aplaudir, também nesta parte, a decisão proferida pelo douto tribunal a quo, a qual nenhum reparo nos merece.

15ª – A sentença proferida não padece, pois, do vício apontado de modo a permitir a sua revogação nem a determinação do reenvio do processo para novo julgamento, ao abrigo do disposto no artigo 426º, do Código de Processo Penal.

16ª – Pelo que deve, por isso, negar-se provimento ao recurso interposto, mantendo-se integralmente a douta sentença recorrida, por não se encontrar violado o disposto no artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal, como é, aliás, de inteira justiça!

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Cumpridos que estão neste tribunal de apelação os demais trâmites processuais, vem o recurso à conferência para o seu julgamento.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – FACTOS PROVADOS

Remete-se para a sentença recorrida, ao abrigo do artigo 663º/6 do Código de Processo Civil.

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II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Tendo presente o exposto, bem como o disposto nos artigos 1º, 4º, 8º, n.º 2, e 9º do Código Civil e nos artigos 110º, n.º 1, 203º e 204º da Constituição, passemos agora à análise dos fundamentos do presente recurso.

Desde já adiantamos que o recorrente não tem razão.

É necessário sublinhar que o recorrente não põe em causa o julgamento da matéria de facto. Não densifica qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nem erro notório na apreciação da prova (cf. artigo 410º/2 do CPP). Logo não está em causa aplicar o artigo 426º do CPP.

O que o MP alega neste recurso é que os factos provados e os meios de prova indicaram que o tribunal a quo errou, ao considerar que a conduta imputada à empresa cit. não preencheu o tipo legal da contraordenação por que ela foi condenada; é uma questão de erro de Direito.

Vejamos.

A autoridade administrativa em causa determinou à arguida o seguinte:

“Na edificação vistoriada:

Deverá proceder à limpeza de todos os resíduos da construção e detritos existentes no espaço identificado, bem como da vegetação existente no logradouro do terreno, que se possam constitui como um foco de incêndio e insalubridade para o local;

Deverá transportar a vazadouro licenciado todo o material removido.”

O que a arguida não fez quanto aos resíduos de construção e detritos.

Em consequência, o ato administrativo sancionatório em causa imputou à arguida a contraordenação p.p. nos artigos 89º/2 e 98º/1-s)-4 do RJUE.

Mas, o Tribunal Administrativo de Círculo considerou que:

“(…) os factos descritos e imputados à Recorrente não preenchem a previsão legal do tipo de ilícito ao abrigo do (da) qual a Recorrente foi sancionada, desde logo, porque não se retira da factualidade assente, nem resulta da decisão de aplicação da coima, que a Recorrente tenha sido notificada para fazer intervenções no edificado com vista à correção de más condições de segurança, salubridade ou arranjo estético. Não estamos aqui no âmbito da realização de operações urbanísticas de conservação, mas apenas da limpeza do logradouro.

O que a autoridade administrativa ordenou foi que a Recorrente procede-se (procedesse) à limpeza e corte de vegetação e remoção de resíduos e detritos que se encontravam depositados no logradouro do prédio propriedade da Recorrente. Ora, na eventualidade da Recorrente não ter cumprido o ordenado, não estaríamos perante uma contraordenação punível nos termos previsto no art.º 98º, nº 1, al. s), do RJUE, mas eventualmente perante uma contraordenação punível nos termos do art.º 18º do Decreto-Lei nº 46/2008, de 12 de março(2), ou de acordo com o disposto nos artigos 44º(3) e 48º, alíneas aa) e dd)(4), do Regulamento de Resíduos Urbanos, Higiene e Limpeza Pública na área do município da Covilhã (Regulamento nº 32/2011).”.

Ora, com a epígrafe “Dever de conservação”, dispõe o artigo 89º/1-2 do RJUE o seguinte:

“1 – As edificações devem ser objeto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, devendo o proprietário, independentemente desse prazo, realizar todas as obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético.

2 – Sem prejuízo do disposto no número anterior, a câmara municipal pode a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, determinar a execução de obras de conservação necessárias à correção de más condições de segurança ou salubridade ou à melhoria do arranjo estético.”

Por seu turno, preceitua o artigo 98º/1-s) do RJUE que são puníveis com contraordenação (com coima), “a não conclusão das operações urbanísticas referidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 89º nos prazos fixados para o efeito”.

O que está em causa no tipo legal de contraordenação descrito no artigo 89º do RJUE, antes previsto nos artigos 9º e 10º do RGEU, punido no artigo 98º/1-s) cit.,são imperiosas obras de conservação de um edificado ou obras de demolição (de um edificado), por causa de razões de “segurança, salubridade ou arranjo estético” (cf. assim, além do texto legal, Fernanda P. Oliveira et al., RJUE Comentado, 2011, p. 637).

Mas, aqui, o que se passou foi que a autoridade administrativa ordenou que a recorrente procedesse à limpeza e corte de vegetação e remoção de resíduos e detritos que se encontravam no logradouro de um imóvel (entulhos, chapas de zinco). Realidade bem distinta da que é prevista no artigo 89º cit., logo também distinta da punida no artigo 98º/1-s) do RJUE.

Em síntese, a arguida não cometeu o ilícito de mera ordenação social por que foi condenada.

Pelo que improcedem as conclusões do recurso.

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III - DECISÃO

Nestes termos e ao abrigo do artigo 202.º da Constituição e do nº 1 do artigo 1.º do EMJ (ex vi artigo 57.º do ETAF), os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul acordam em negar provimento ao recurso.

Sem custas.

Lisboa, 30-04-2020


Paulo H. Pereira Gouveia - Relator

Catarina Jarmela

Paula de Ferreirinha Loureiro



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(1) 2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
(2) 1 - Constitui contra-ordenação ambiental muito grave o abandono e a descarga de RCD em local não licenciado ou autorizado para o efeito.
2 - Constitui contra-ordenação ambiental grave: (…).
(3) Artigo 44.º
Remoção dos Resíduos e Reposição da Situação Anterior
1 - Sem prejuízo das sanções referidas nos artigos 48.º a 53.º, os responsáveis pelas infracções ao presente Regulamento ficam obrigados à remoção dos resíduos indevidamente depositados ou abandonados, utilizando meios próprios e no prazo fixado pela ADC.
2 - Quando os infractores não procederem em conformidade com o disposto na alínea anterior, proceder-se-á à remoção dos resíduos e à realização das obras e outros trabalhos necessários à reposição da situação anterior à infracção a expensas do infractor.
(4) Artigo 48.º
Infracções contra a Higiene e Limpeza dos Lugares Públicos ou Privados
Constituem contra-ordenações puníveis com coimas, as seguintes infracções:
(…)
aa) Manter nos terrenos, nos prédios ou seus logradouros, árvores, arbustos, silvados, sebes ou resíduos de quaisquer espécie que possam constituir perigo de incêndio ou para a saúde pública ou produzam impacto visual negativo, excepto se se tratar de um compostor individual sem criar situações de insalubridade;
(…)
dd) Depositar por sua própria iniciativa, ou não prevenir a ADC, sendo conhecedor de que a sua propriedade está a ser utilizada para deposição de resíduos em vazadouro a céu aberto ou sobre qualquer outra forma prejudicial ao ambiente; (…).