Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1251/19.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:01/30/2020
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:LEGITIMIDADE PASSIVA; SUPRIMENTO DA ILEGITIMIDADE PASSIVA
Sumário:
I - O 10.º, n.º 2, do CPTA, procede a um alargamento da legitimidade passiva no contencioso administrativo, determinando que quando um processo se reporte à acção ou omissão de órgãos integrados em ministérios ou em secretarias regionais, a parte demandada é o ministério ou secretaria a cujos órgãos sejam imputáveis os actos praticados ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos. Por força desta regra, nas acções relativas a actos comissivos ou omissivos de um órgão do Estado integrado num dado ministério ou secretaria, a legitimidade passiva pertence a esse Ministério ou secretaria e não à pessoa colectiva EP;
II – Se apesar de a PI conter um erro na indicação da entidade demandada, a citação é dirigida ao órgão que praticou o acto impugnado e esse órgão apresenta contestação, opera o indicado nos art.ºs 10.º, n.ºs 4 e 5 º e 78.º, n.º 1, al. e) e 3 do CPTA e fica suprida a eventual irregularidade na identificação do R.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul


I - RELATÓRIO
Y........ interpôs recurso da sentença do TAC de Lisboa, que julgou verificada a excepção de ilegitimidade passiva e absolveu o R. da instância.
Em alegações são formuladas pelo Recorrente, as seguintes conclusões:“I. Considerando indevidamente acionado o Estado Português, e porque os Órgãos materialmente envolvidos se mostram específica e concreta- mente imputados na PI, devia o Meritíssimo Juiz do processo, nos ter- mos do n.º 1 do artigo 7.º do CPC, suprir ex-ofício a ajuizada irregularidade.
II. O Estado Português é a Pessoa Jurídica com capacidade judiciária que deve ser acionado, pois que, perante cidadão estrangeiro, violou normas de caráter internacional, conforme especificado na PI (artigo 33.º da Convenção de Genebra e do nº 1 do art.º 25º da Lei de Asilo), com as quais se encontra comprometido.
III. O Estado Português agiu naturalmente através dos seus órgãos (Ministério da Administração Interna e SEF), devidamente especificados e equacionados na PI, sendo, entretanto, que os efeitos jurídicos de tal violação se repercutem na pessoa jurídica do Estado e não nos seus Órgãos que são naturalmente instrumentais.
IV. Por uma questão de segurança jurídica legítima, importa que os procedimentos e entendimento judicial desta matéria sejam coerentes e estáveis, pois que, diversas outras ações judiciais absolutamente congéneres (78/16.SBELSB; 2272/17.2BELSB; 2131/18.1BELSB, entre outros), têm sido propostas neste entendimento, contra o Estado Português e decididas conforme foi jurisdicionalmente julgado, sem equacionar o entendimento sobre ilegitimidade ora em presença, não tendo, nessas ações, este douto entendimento judicial agora equacionado, sido alegado como fundamento da decisão final.”

O Recorrido não contra-alegou.
A DMMP apresentou a pronúncia no sentido da procedência do recurso.
Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo, vem o processo à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – OS FACTOS
A sentença recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto, que se mantém:
A) O Requerente é nacional do Togo, onde nasceu em 11/09/1992 (cfr. PA apenso a fls. 1 que ora se da por integralmente reproduzido);
B) O Requerente apresentou-se no posto de fronteira do Aeroporto de L……. em 24/06/2019, no voo TP…2, proveniente do Recife, (cfr. fls. 7 do processo administrativo apenso, que ora se dá por integralmente reproduzido);
C) Veio a constatar-se que o Requerente não era portador de visto válido pelo que, por esse motivo foi-lhe recusada a entrada em Portugal (cfr. fls. 7 do processo administrativo apenso, que ora se dá por integralmente reproduzido);
D) Em 24/06/2019, o Requerente, aquando da informação dos motivos da recusa de entrada, efectuou pedido de asilo ao Estado Português (cfr. fls. 26 do processo administrativo apenso, que ora se dá por integralmente reproduzido);
E) Em 03/07/2019, a Directora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteira proferiu Decisão com o seguinte teor:

“Texto integral com imagem”

(cfr. Doc. junto com o R. I., que ora se dá por integralmente reproduzido);
F) Em 03/07/2019, o Requerente foi notificado da decisão referida na alínea anterior (cfr. fls. 66 do processo administrativo apenso, que ora se dá por integralmente reproduzido);

Nos termos dos art.ºs 149.º, n.º 1, do CPTA e 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 140.º, n.º3, do CPTA, fixam-se os seguintes factos, por provados:
G) O A. e Recorrente apresentou a PI da presente acção indicando visar demandar o “Estado português, no âmbito do Ministério da Administração Interna, aqui representado pelos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras, com sede na Avenida do Casal de Cabanas Urbanização Cabanas Golf N.º1 2724-506 Barcarena Oeiras” e aí impugna a decisão de 03/07/2019 da Directora Nacional (DN) do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que considerou infundado o seu pedido de protecção internacional – cf. PI junta aos autos.
H) Foi determinada a citação do R. pelo juiz e nessa sequência foi oficiosamente citado para apresentar contestação, querendo, o SEF – cf. ofício constante dos autos.
I) Por despacho datado de 16-08-2019, foi notificado o A. “para esclarecer se a presente cção foi intentada contra o Estado Português ou contra o Ministério da Administração Interna” - cf. o referido despacho nos autos.
J) O A. veio informar que a presente acção foi “intentada contra o Estado Português” – cf. o referido articulado nos autos.
L) Por despacho de 09/09/2019, foi suscitada a excepção ilegitimidade passiva do EP e foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a indicada excepção - cf. o referido despacho nos autos.
M) As partes nada responderam.

II.2 - O DIREITO
A questão a decidir neste recurso é:
- aferir do erro decisório e da violação do art.º 7.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) e do princípio da segurança jurídica, por na presente acção dever ser demandado o EP, por os respectivos órgãos serem instrumentais da pessoa colectiva Estado, porque noutras acções similares foi demandado o EP e não foi suscitada a questão da ilegitimidade passiva e porque a eventual ocorrência de uma situação de ilegitimidade passiva deveria ter sido oficiosamente corrigida.

Tal como ocorre no processo civil, no processo administrativo a regra geral é a de que cada acção deve ser proposta contra a outra parte da relação material controvertida, tal como esta é configurada pelo A. - cf. art.º 10.º, n.º 1, do Código de processo nos Tribunais Administrativos - CPTA (na anterior redacção, aqui aplicável).

Porém, no 10.º, n.º 2, do CPTA, procede-se a um alargamento da legitimidade passiva, determinando-se que quando um processo se reporte à acção ou omissão de órgãos integrados em Ministérios ou em secretarias regionais, a parte demandada é o Ministério ou a secretaria a cujos órgãos sejam imputáveis os actos praticados, ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos. Assim, por força desta regra, nas acções relativas a actos comissivos ou omissivos de um órgão do Estado integrado num dado Ministério ou secretaria, a legitimidade passiva pertence a esse Ministério ou secretaria e não à pessoa colectiva EP.
Acautelando a hipótese de os particulares não lograrem identificar na estrutura orgânica da Administração Pública o Ministério ou secretaria a que pertence o órgão que praticou o acto, ou contra o qual se visa a condenação, o art.º 10.º, n.º 4, do CPTA, indica que se na PI for erradamente demandado o indicado órgão e não o Ministério ou a secretaria a que pertence, a acção considera-se regularmente proposta contra aquele Ministério ou secretaria.
No caso dos autos, o A. interpôs a acção contra a pessoa colectiva EP, por entender que o Ministério da Administração Interna (MAI) fazia parte desse Estado e que o SEF representava o MAI. Mais indica o A. na PI, que visava reagir contra uma decisão da DN do SEF. Depois, o A. indica na PI a morada da sede do SEF como a morada para onde deve ser citada a parte contrária.
Assim, atendendo às indicações constantes da PI é indubitável que o A. visava reagir contra um acto do SEF. Estando o SEF integrado no MAI, a acção havia de ser apresentada contra este Ministério, que nos termos do art.º 10.º, n.º 2, do CPTA, é quem tem legitimidade passiva para figurar como R. na presente acção.
Ou seja, as indicações constantes do cabeçalho da PI estavam deficientes, porque o A. não logrou compreender que no contencioso administrativo ocorria um alargamento da legitimidade passiva, que exigia que se demandasse o MAI, ao invés do EP, por força do indicado art. 10.º, n.º 2, do CPTA.
Sem embargo, naquele cabeçalho o A. também indicou o SEF como o órgão que tinha praticado o acto impugnado e apontou a morada deste serviço como sendo a morada para onde deveria ser feita a citação do R.
Já no corpo da PI, o A. indica o acto impugnado como correspondendo à decisão de 03/07/2019, da DN do SEF, que considerou infundado o seu pedido de protecção internacional
Por conseguinte, mal-grado a imperfeição da PI, através da mesma era possível compreender que se visava reagir contra um acto praticado pela DN do SEF, havendo que demandar-se o MAI.
Por o Tribunal ter compreendido a PI nesses termos, determinou a citação do R., que foi feita (oficiosamente, pela Secretaria) ao SEF e para respectiva morada da sede. Uma vez citado, o SEF apresentou contestação.
Ou seja, qualquer erro que pudesse existir na indicação do R. tal como vinha feita na PI, acabou por ser oficiosamente suprido por via da citação que foi feita ao SEF e da correspondente resposta apresentada por este órgão, tendo aqui operado o indicado nos art.ºs 10.º, n.ºs 4 e 5 º e 78.º, n.º 1, al. e) e 3 do CPTA – cf. também os art.ºs 11.º, n.º 5, 81.º, n.ºs 1 e 82.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA.
Consequentemente, estando já suprido o erro cometido na PI com citação e a intervenção do SEF nos autos, eram dispensáveis, porque inúteis, os despachos de 16/08/2019 e de 09/09/2019, a suscitarem a questão da ilegitimidade passiva. Nessa mesma lógica, deveria ter também irrelevado a resposta que foi dada pelo A. a reincidir no erro relativamente à demanda do EP, ou a omissão de resposta quando a questão da ilegitimidade foi novamente suscitada.
Em suma, porque a irregularidade ou o erro da demanda foi ab initio corrigido, por via da citação que foi feita ao SEF, não se mantinha uma qualquer excepção de ilegitimidade passiva que cumprisse ser despoletada, para depois voltar a ser corrigida. Diferentemente, essa questão já estava sanada na data em que foi judicialmente suscitada.
Consequentemente, a decisão recorrida errou quando julgou verificada a excepção de ilegitimidade passiva com base na reafirmação pelo A. de uma inadequada demanda, quando frente à tramitação processual ocorrida se constatava que a parte contrária, que tinha sido oficiosamente citada, era a correcta. Nos autos nunca interveio o EP, representado pelo MP, mas apenas se verificou uma regular citação ao MAI, por intermédio do SEF, que foi também quem apresentou contestação. Não existia, pois, à data da prolação da sentença recorrida, qualquer excepção de ilegitimidade passiva que cumprisse suprir. O que existia nos autos era uma PI imperfeitamente elaborada e a reafirmação por banda do A. das suas falhas iniciais, que entretanto já tinham sido supridas por via da citação que tinha sido feita ao SEF e da apresentação da correspondente contestação.
No restante, por força dos princípios da cooperação e pro accione, haveria o Tribunal que corrigir oficiosamente o erro na indicação da demanda constante da PI, por tal erro não ter influído na regular tramitação dos autos.

III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam:
- em conceder provimento ao recurso interposto, revogar a decisão recorrida e julgar improcedente a excepção de ilegitimidade passiva, por a demanda dever entender-se regularmente feita contra o MAI, que foi citado e apresentou contestação através do SEF;
- sem custas por isenção objectiva.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2020.
(Sofia David)

(Paula Ferreirinha Loureiro- em substituição)

(Pedro Nuno Figueiredo)