Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1167/09.8BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:01/14/2020
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:CONTRIBUIÇÃO ESPECIAL;
EXPO98;
TITULAR DO DIREITO DE CONSTRUÇÃO;
PRESUNÇÃO ILIDÍVEL.
Sumário:I. O Regulamento da Contribuição Especial (RCE), devida pela valorização de imóveis, decorrente da realização da EXPO 98 (aprovado em anexo ao DL n.º 54/95, de 22 de março), define dois momentos relevantes distintos, para efeitos de incidência objetiva e subjetiva (cfr. art.ºs 2.º e 3.º).

II. Para efeitos de incidência objetiva, o momento relevante é aquele em que é requerida a licença de construção e, para efeitos de incidência subjetiva, é aquele em que é emitida essa mesma licença, sendo neste último momento essencial aferir quem é o titular do direito de construir.

III. O art.º 3.º do RCE consagra uma presunção de que a titularidade do direito de construção é daquele em nome de quem seja emitida a licença de construção, sendo tal presunção ilidível.

IV. Tendo, entre o momento em que foi requerida a licença de construção e o momento em que foi emitido o alvará de construção, sido transmitido o direito de propriedade do lote em causa e deixado o Recorrido de ser, por via dessa transmissão, titular do direito de construção, o mesmo não é sujeito passivo da CE, ainda que o alvará tenha sido emitido em seu nome, dado ter sido ilidida a presunção prevista no art.º 3.º do RCE.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 20.11.2017, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por Seminário M... (doravante Recorrido ou Impugnante), que teve por objeto liquidação de contribuição especial (CE) prevista no DL n.º 54/95, de 22 de março.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

I - A douta sentença a quo determinou pela anulação da liquidação de Contribuição Especial, emitida em nome do Impugnante, no valor de € 7.042,00, por considerar que, não obstante, ser aquele titular de um alvará de construção para o prédio melhor identificado nos autos, o certo é que tal imóvel, por se encontrar à data da emissão daquela licença na titularidade de outra pessoa jurídica, ficou desprovido de qualquer efeito útil, ao que acresce o facto de a sociedade adquirente do imóvel também ter vindo a obter uma licença de construção em seu nome e para o mesmo imóvel, não podendo, por este motivo, o Impugnante ser considerado sujeito passivo de imposto, nos termos do disposto no art.° 3o do Regulamento da Contribuição Especial, anexo ao DL 54/95 de 22/03.

II - Ora, com a devida vénia pela douta decisão assim formulada e sempre com a ressalva de melhor entendimento, dissente esta RFP do julgado, pois como resulta dos autos, verifica-se que o Impugnante requereu o loteamento urbano do prédio em questão; foi proprietário do lote em causa até á data de 11.11.2004, sendo que, relativamente a este, também requereu e obteve um alvará de construção.

III - Assim, tendo presente o estipulado no art.° 3o do DL 54/95 de 22/03, nos termos do qual, a contribuição é devida pelos titulares do direito de construir em cujo nome seja emitida a licença de construção ou de obra, forçoso se torna concluir que estes pressupostos da tributação se verificavam na pessoa do Impugnante, motivo pelo qual, perante a omissão declarativa prevista no art.° 7o daquele diploma por parte do mesmo, o serviço de finanças competente procedeu à respectiva notificação para entrega da competente declaração e, posteriormente, procedeu à emissão da liquidação de imposto.

IV - Nos termos expostos, constata-se que o Impugnante é o sujeito passivo do imposto, porque requereu e obteve a licença de construção relativa ao imóvel em causa, sendo que, também não cumpriu com as obrigações decorrentes do estipulado no DL n° 555/99 de 16/12 quanto à alteração da titularidade dos alvarás de loteamento e de construção e respectiva comunicação ao serviço de finanças competente.

- O Venerando Tribunal a quo, esteou a sua fundamentação numa errónea apreciação das razões de facto e de direito, pelo que foram violados, entre outros, os artigos art.° 3o e do DL 54/95 de 22/03, motivo pelo qual, a liquidação de Contribuição Especial impugnada, porque legal, deve manter-se na ordem jurídica”.

O Recorrido contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

1ª. Atentas as conclusões da alegação da recorrente, em especial a conclusão II de acordo com a qual a "o thema decidendum, assenta em saber se a impugnante era sujeito passivo de imposto e se estava ou não isenta do mesmo", conclui-se que o objeto do presente recurso reconduz-se única e exclusivamente a questões de direito, sendo o recurso, portanto, da competência da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (cfr. artigo 280.º, n.º 1 do CPPT).

2ª.A contribuição especial em causa é devida, segundo a lei, ”pelos titulares do direito de construir em cujo nome seja emitida a licença de construção ou de obra” (v. art. 3º do Decreto-Lei n.º 54/95, de 22 de Março), o que significa que não basta que se verifique a condição de um alvará de licença se mostrar emitido em nome de certa pessoa, sendo ainda imprescindível que essa mesma pessoa seja titular do direito de construir.

3ª. Não sendo o ora Recorrido titular do direito de construir ao momento em que foi emitido em seu nome o alvará de autorização administrativa - por já não ser então o proprietário do lote, como se provou nos autos – é manifesta a ilegalidade do ato de liquidação por ausência de suporte legal.

"O artigo 3.º do RCE assenta na presunção legal de que o beneficiário do direito de construir e da dita valorização do terreno é aquele em nome de quem foi emitido o respectivo alvará da licença da construção. Mas essa presunção é afastada quando se demonstra que o alvará foi emitido em nome de quem efectivamente já não tinha o direito de construir. Nesta situação a valorização do terreno que a contribuição especial visou tributar não se repercute na esfera jurídica em nome de quem foi emitido o alvará mas sim em nome do titular do direito de construção" cfr. - Acórdão do STA de 30.01.2013, proferido no processo 0804/12, disponível em www.dgsi.pt”.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) Este TCAS é hierarquicamente incompetente para o conhecimento do presente recurso?

b) Há erro de julgamento de facto e de direito, em virtude de verificarem os pressupostos da tributação?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A) Seminário M... (ou impugnante) pessoa jurídica canónica goza de personalidade jurídica reconhecida pelo Estado Português;

B) O impugnante foi proprietário do prédio urbano designado por lote 2… da Urbanização J……., na freguesia de M……., concelho de Loures, criado pelo Alvará de loteamento nº …/2004, de 9 de Fevereiro de 2004;

C) Em 26 de Agosto de 2004 o impugnante requereu uma autorização administrativa para construção de um edifício no lote 2…;

D) Em 11 de Novembro de 2004, a impugnante vendeu o lote 2… à sociedade O…… – C……, SA, nos termos da escritura pública de fls 40 a 47, dos autos;

E) A sociedade identificada em D) promoveu junto da Câmara Municipal o licenciamento da construção no lote 2…;

F) Em 13 de Setembro de 2005 foi emitido o alvará de autorização administrativa de construção nº 51…/2005, em nome do impugnante (fls 49 e 50, do pa);

G) A proprietária do lote, a O....... – C......, SA, levantou o alvará referido no ponto anterior;

H) Em 13 de Novembro de 2007 o impugnante foi notificado, pelo ofício nº 878… do Serviço de Finanças de Loures 3 para proceder à entrega do Modelo 1 da Contribuição Especial (fls 34 do pa);

I) Em 4 de Dezembro de 2007 o impugnante, junto do serviço de Finanças de Loures 3, expôs as razões porque entendia não recair sobre si a apresentação do Modelo 1 (fls 37 a 39 do pa);

J) Em 10 de Dezembro de 2007 o Serviço de Finanças de Loures 3, informou o impugnante, pelo ofício nº 982…, não ser procedente a argumentação apresentada no ponto anterior (fls 51, do pa);

K) Em 26 de Dezembro de 2007 o impugnante respondeu ao ofício referido no ponto anterior;

L) Por ofício de 29 de Setembro de 2008 o impugnante foi notificado da instauração do processo de contra-ordenação por falta de apresentação da declaração Modelo 1, da Contribuição especial, prevista no artº 7º do DL nº 54/95, de 22-03, relativamente ao imóvel construído no lote 23 (fls 52, do pa);

M) Em 14 de Janeiro de 2009 o impugnante foi notificado para “nomear representante para comparecer no Serviço de Finanças, pelas 9 horas e trinta minutos, no próximo dia 2009-03-10, para conjuntamente com os restantes membros integrar a Comissão que irá proceder nos termos do nº 2 do Decreto-Lei, à avaliação do lote, sito na freguesia de M….., Urbanização J……” (fls 57, do pa);

N) Em 26 de Janeiro de 2009 o impugnante apresentou recurso hierárquico do despacho, pelas mesmas razões – não ser o sujeito passivo do imposto (junto ao pa);

O) Pelo ofício nº 00336… de 20-04-2009 notificou o impugnante da liquidação de Contribuição Especial, relativa ao lote 2…, da Urbanização dos J……., no montante de €7.042,00 (fls 19, dos autos)”.

II.B. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda­se em alterar a redação de parte da factualidade mencionada em II.A., em virtude de resultarem dos autos elementos documentais que exigem tal alteração[1].

Nesse seguimento, é a seguinte a redação dos factos que se identificam, por referência à sua enumeração por letras efetuada em 1.ª instância:

Facto B) mencionado em II.A.:

B) O impugnante foi titular do direito de propriedade sobre prédio urbano designado por lote 2… da Urbanização J……., na freguesia de M….., concelho de Loures, criado pelo Alvará de loteamento n.º …/2004, de 9 de fevereiro de 2004, cujo projeto foi aprovado por despacho de 01.03.2005 (cfr. fls. 40 a 47 e 49 do processo administrativo).

II.C. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se em aditar a seguinte matéria de facto provada:

P) Foi elaborado termo de avaliação, para efeitos de liquidação da contribuição especial prevista no DL n.º 54/95, de 22 de março, pelos serviços da administração tributária (AT), relativamente ao lote mencionado em B), do qual resultou como valor da avaliação à data do pedido de licenciamento o de 513.458,00 Eur., indicando-se como tal data o dia 01.03.2005 (cfr. fls. 20 a 22 dos autos em suporte de papel, cujo teor se dá integralmente por reproduzido).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Da competência em razão da hierarquia

Cumpre, antes de mais, apreciar a (in)competência em razão da hierarquia deste TCAS, suscitada pelo Recorrido nas suas contra-alegações, em virtude de, na sua perspetiva, estarem apenas em discussão questões de direito.

Vejamos.

Atento o disposto no art.º 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF – redação vigente à época):

“Compete à Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo conhecer:

(…) b) Dos recursos interpostos de decisões dos tribunais tributários com exclusivo fundamento em matéria de direito”.

Por seu turno, prescreve o art.º 38.º, al. a), do mesmo diploma que:

“Compete à Secção de Contencioso Tributário de cada tribunal central administrativo conhecer:

a) Dos recursos de decisões dos tribunais tributários, salvo o disposto na alínea b) do artigo 26.º”.

Por outro lado, nos termos do art.º 280.º, n.º 1, do CPPT (na redação então vigente):

“Das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância cabe recurso, no prazo de 10 dias, a interpor pelo impugnante, recorrente, executado, oponente ou embargante, pelo Ministério Público, pelo representante da Fazenda Pública e por qualquer outro interveniente que no processo fique vencido, para o Tribunal Central Administrativo, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito, caso em que cabe recurso, dentro do mesmo prazo, para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo”.

Assim, compete ao Supremo Tribunal Administrativo o conhecimento de recursos, quando a matéria for exclusivamente de direito, competindo aos TCA o conhecimento dos demais.

Nos termos do art.º 16.º, n.º 1, do CPPT, a infração das regras de competência em razão da hierarquia determina a incompetência absoluta do Tribunal.

Para a aferição da competência em razão da hierarquia é fundamental atentar nas alegações e conclusões do recurso.

É certo que, in casu, tal como refere o Recorrido, nas conclusões de recurso, prima facie, não são postos em causa os factos indicados na conclusão II. Aliás, da análise das conclusões de recurso, não resulta que a Recorrente tenha emitido qualquer discordância com a decisão proferida sobre a matéria de facto. No entanto, considerando o alegado, decorre que a Recorrente expressamente suscita errónea valoração da matéria de facto assente nos autos, além de erro de direito. Decorre ainda, segundo a nossa interpretação, que a Recorrente diverge das ilações de facto que se devam retirar da factualidade provada.

Ademais, resultou ainda para este Tribunal que se verificava uma insuficiência no probatório, que motivou quer a alteração da redação do facto B) quer o aditamento do facto P), relevante para a apreciação das questões suscitadas, sendo certo que, quanto a este último, era dado por adquirido tal facto nas alegações, quando o mesmo não estava cabalmente consubstanciado.

Face ao exposto, improcede a exceção de incompetência absoluta deste Tribunal, em razão da hierarquia, invocada pelo Recorrido.

III.B. Do erro de julgamento

Alega a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, na medida em que, em seu entender, os pressupostos da tributação se verificavam na pessoa do Recorrido, sendo o mesmo sujeito passivo do tributo, não tendo cumprido com as obrigações decorrentes do estipulado no DL n.º 555/99, de 16 de dezembro.

Vejamos então.

O DL n.º 54/95, de 22 de março, aprovou o Regulamento da Contribuição Especial (RCE), devida pela valorização de imóveis, decorrente da realização da EXPO 98, regulamento esse aprovado em anexo.

Nos termos do seu art.º 2.º, n.º 1, “[c]onstitui valor sujeito a contribuição a diferença entre o valor do prédio à data em que for requerida a licença de construção ou de obra e o seu valor à data de 1 de janeiro de 1992, corrigido pelo coeficiente de desvalorização monetária”.

É, pois, definido, como momento relevante, para efeitos de incidência objetiva, o momento em que é requerida a licença de construção.

Por seu turno, o art.º 3.º do referido regulamento prescreve que a contribuição é devida pelos titulares do direito de construir em cujo nome seja emitida a licença de construção ou de obra.

Assim, são momentos relevantes, sob dois prismas distintos, (i) aquele em que é requerida a licença de construção e (ii) aquele em que é emitida essa mesma licença, sendo neste último momento relevante aferir quem é o titular do direito de construir.

A este propósito chama-se à colação o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 30.01.2013 (Processo: 0804/12), que, apesar de respeitante à contribuição especial (CE) criada pelo DL n.º 43/98, de 3 de março, apresenta consonância com os presentes autos, dada a semelhança da disciplina legal de ambas as CE.

No mencionado aresto escreveu-se:

“Na confrontação do artigo 2º com o 3º parece haver dois momentos relevantes para a determinação do tributo: o do requerimento da licença de construção e o da emissão do respectivo alvará. O primeiro serve de ponto de referência para o cálculo do valor do prédio e o segundo constitui o momento em que se considera ‘realizado’ o acréscimo desse valor.

(…) [P]ara efeitos de determinar o momento da “realização” do acréscimo do valor do prédio ou terreno que foi valorizado pelos investimentos públicos, a lei atende à data da emissão do alvará, por ser esse o momento em que o titular do direito de construir o pode tornar efectivo. Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional nº 604/2005, de 2/11 «o facto gerador do tributo é o acto jurídico de licenciamento da edificação – rectius no momento em que é emitido o título correspondente – que é aquele em que o acréscimo de valor do prédio ou terreno passa de potencial a actual, e não o requerimento da licença de construção, bastando ponderar que, se o licenciamento for requerido mas vier a ser indeferido, ninguém sustentará que o tributo seja devido».

O facto de na determinação da matéria colectável o artigo 2º do diploma atender ao valor actual dos prédios à data "em que for requerido o licenciamento de construção ou de obra", não significa que esse seja o momento da realização do acréscimo tributável. Como também se refere no referido acórdão, «não é a apresentação do requerimento de licenciamento da operação urbanística que constitui o facto gerador da obrigação de imposto. Estamos aí perante uma norma que opera em benefício do sujeito passivo, congelando esse aumento de valor em momento anterior ao da ocorrência do facto essencial, com que a mais valia eclode (a emissão do alvará), assim neutralizando os efeitos da maior ou menor duração do procedimento de licenciamento que, em princípio, é imputável à Administração ou decorre de circunstâncias aleatórias que o sujeito passivo não domina»”.

E, no que respeita à densificação do conceito de titularidade do direito de construir, refere-se no referido Acórdão (cuja doutrina, apesar de a situação fática subjacente ser respeitante a superficiário, é transponível in casu):

“A determinação do momento em que se gera o facto tributário tem grande interesse no caso dos autos, pois quando o alvará foi emitido em nome da recorrente, ela já não era titular do direito de construir a obra licenciada. (…)

Sendo a contribuição devida pelos “titulares do direito de construir”, o facto revelador da capacidade contributiva que constitui o pressuposto e causa da contribuição especial, naturalmente que só quem pode exercer esse direito vê repercutir na sua esfera jurídica o aumento de valor do prédio. A incidência objectiva, consubstanciada no aumento do valor do prédio, resulta da possibilidade do mesmo ser utilizado para construção urbana. Mas, só quem tem o direito de construir pode ser sujeito passivo da contribuição especial. Isto significa que o facto tributário considerado (…) é (…) a titularidade do direito de construir, em sentido estrito, que consiste na faculdade de se materializar o aproveitamento urbanístico correspondente e que é consolidado ou adquirido com a emissão da licença titulada por alvará.

(…) Ora, no caso dos autos, quando o acréscimo de valor se “realizou”, consumado com a emissão do alvará de licença de construção, tal como se dita no artigo 3º do RCE, já o requerente do licenciamento não era titular do direito de construir: o alvará foi emitido em Março de 2008 e em Dezembro de 2007 o direito de construir foi transmitido para terceiro. Se este tivesse cumprido o disposto no nº 9 do artigo 9º do RJEU, averbando no prazo de 15 dias a substituição do titular do direito de construir, naturalmente que o alvará teria sido emitido em seu nome”.

Assim, e sistematizando, o conceito de titular de direito de construção para efeitos do art.º 3.º do RCE é distinto, designadamente, do de proprietário (e de titular do direito de construção) à data da apresentação do requerimento de licença de construção, podendo haver alterações subjetivas entre um momento e outro.

A este respeito, o próprio Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), aprovado pelo DL n.º 555/99, de 16 de dezembro, admite tais alterações nos procedimentos ali consagrados (cfr. n.º 9 do seu art.º 9.º).

É ainda de sublinhar que consta do já mencionado art.º 3.º do regulamento em causa uma presunção de que a titularidade do direito de construção é daquele em nome de quem seja emitida a licença de construção. Não obstante, tal presunção é ilidível.

Chama-se novamente à colação o já mencionado Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, onde se refere:

“O artigo 3º do RCE assenta na presunção legal de que o beneficiário do direito de construir e da dita valorização do terreno é aquele em nome de quem foi emitido o respectivo alvará da licença de construção. Mas essa presunção é afastada quando se demonstra que o alvará foi emitido em nome de quem efectivamente já não tinha o direito de construir. Nesta situação, a valorização do terreno que a contribuição especial visou tributar não se repercute na esfera jurídica em nome de quem foi emitido o alvará, mas sim em nome do (…) titular do direito de construção”.

Aplicando estes conceitos ao caso dos autos, resulta, desde logo, que, tendo o Recorrido apresentado em agosto de 2004 o requerimento de autorização administrativa para construção [cfr. facto C)], vendeu o lote em causa, através de escritura outorgada em novembro do mesmo ano [cfr. facto D)].

Ou seja, através do contrato celebrado em novembro de 2004, o Recorrido transmitiu a um terceiro o direito de construção ínsito à propriedade do lote, que declarou transmitir naquela data. Aliás, resulta da factualidade assente, e não foi impugnado pela Recorrente, que a nova proprietária promoveu junto da Câmara Municipal o licenciamento da construção no mencionado lote [cfr. facto E)].

Não obstante, o alvará de construção foi, apesar de tal transmissão, emitido em nome do Recorrido [cfr. facto F)], já em 13.09.2005.

Dois anos mais tarde, o Recorrido foi notificada pela administração tributária (AT), para que procedesse à entrega da declaração modelo 1 da CE [cfr. facto H)], tendo nessa sequência o Recorrido reagido e explanado as razões por que, na sua perspetiva, não teria de proceder a tal apresentação [cfr. facto I)].

Após tais procedimentos, foi ainda o Recorrido notificado para nomear representante para efeitos de avaliação do lote [cfr. facto M)], tendo tal avaliação sido efetuada [cfr. facto P), ora aditado] e, em consequência, emitida a liquidação impugnada [cfr. facto O)].

Ora, tendo em consideração esse acervo probatório, para apreciação do erro sobre os pressupostos de facto e de direito da liquidação em causa, há que atentar na titularidade em concreto do direito de construir à data da emissão do alvará de construção.

Assim, e voltando ao caso dos autos, considerando o contrato celebrado em novembro de 2004, resulta que o Recorrido deixou de ser o titular do direito de construção, não obstante o alvará de construção ter sido emitido em seu nome.

Cumpre salientar a este respeito que o próprio termo de avaliação contém, a este respeito, um erro nos pressupostos, na medida em que do mesmo resulta que a data do pedido de licenciamento foi 01.03.2005, ou seja, data ulterior à venda do lote, quando, como resulta da factualidade assente, tal pedido data de agosto de 2004, correspondendo tal data referida no termo de avaliação, atento o teor do alvará de autorização administrativa de construção, ao dia de aprovação do projeto e ao não dia de apresentação do pedido.

Como tal, o pedido de licenciamento foi efetuado pelo Recorrido, em agosto de 2004, numa altura em que era titular do direito de construção ínsito ao seu direito de propriedade. Não obstante, com a transmissão que efetuou, deixou de ter tal titularidade. Logo, foi ilidida a presunção decorrente do mencionado facto de o alvará ter sido emitido em nome do Recorrido.

Não sendo o Recorrido titular do direito de construção, no momento da emissão do alvará de loteamento, não se encontra verificado o elemento subjetivo constante do art.º 3.º do regulamento.

O facto de não ter sido dado cumprimento ao disposto no art.º 7.º do RCE também não permite extrair diferente conclusão, ao contrário do defendido pela Recorrente.

Com efeito, nos termos do mencionado art.º 7.º:

“1 - Os titulares de licença de construção ou de obra deverão apresentar até ao fim do mês imediato àquele em que tenha sido emitida a referida licença, na repartição de finanças da área da situação do prédio, declaração do modelo aprovado.

2 - Com a apresentação da declaração deverá ser exibida a licença de construção ou de obra a fim de ser extraída pela repartição de finanças fotocópia destinada a documentar o processo”.

É certo que esta disposição legal, ao contrário do referido no art.º 3.º, não apela ao conceito de titular do direito de construção.

No entanto, trata-se de disposição legal que prevê uma obrigação acessória e não uma norma de incidência, ao contrário do art.º 3.º. Ademais, sempre a interpretação das normas tem de ser sistemática e, como tal, a interpretação do art.º 7.º deve ser feita atento o disposto na globalidade do RCE, designadamente no art.º 3.º.

Portanto, o facto de o Recorrido não ter cumprido o disposto no art.º 7.º em nada altera o juízo efetuado, pois que não era o mesmo o titular do direito de construção à data da emissão do alvará de construção.

Refira-se, adicionalmente, que carece de qualquer relevância o alegado pela Recorrente, no tocante ao não cumprimento pelo Recorrido da obrigação de comunicação da alteração subjetiva do procedimento, prevista no art.º 9.º do RJUE, porquanto essa falta de comunicação não tem qualquer impacto na circunstância de, de facto, o Recorrido não ser titular do direito de construção à data de emissão do alvará. É evidente que, se tal comunicação tivesse ocorrido, evitar-se-ia o presente litígio, mas a sua não ocorrência não implica que não possa ser afastada a presunção prevista no art.º 3.º do Regulamento, o que, como já referimos, ocorreu.

Como tal não se verifica o pressuposto subjetivo do facto tributário em termos de titularidade do direito de construção, o que fere a liquidação em crise de erro sobre os pressupostos.

Logo, carece de razão a Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 14 de janeiro de 2020

(Tânia Meireles da Cunha)

(Cristina Flora)

(Patrícia Manuel Pires)


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[1] Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 286.